de verde e de sabor
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de verde e de sabor
Iura de verde e de sabor Entalado entre a Borgonha, dos vinhos dos deuses, e a Suíça, das contas secretas e montanhas bucólicas, o Jura é como aquele irmão mais novo que sabe que, para sobreviver, tem de ser original. TEXTO DE VASCO ALENCASTRE I FOTOGRAFIAS DE GERARDO SANTOS/GLOBAL IMAGENS CHÂTEAU D'ARLAY O seu encantador jardin des jeux, criado pelos condes d’Arlay, em 1996, segue o tema do divertimento botânico. Em Arlay, como em todo o Jura, o verde é pano de fundo de casas e gentes. Volta ao Mundo julho 2013 83 VERDE-JURA À entrada de Arbois, um jurassiano bem-disposto (à esquerda) toma conta do seu pequeno vinhedo. Já em Château-Chalon anuncia-se, à porta, que há néctares jurassianos (o da esquerda é o Clavecin e o da direita os tintos e brancos da região). COMO IR A TAP (flytap.com) voa para Nice a partir de 244 euros. A partir desta cidade existem ligações regulares aéreas e de comboio com Dôle-Jura. A SABER Em Lisboa pode deliciar-se com os vinhos e queijos do Jura no bar-garrafeira Os Goliardos. AGRADECIMENTOS Atout France - Agência de Desenvolvimento Turístico de França TAP 84 A s zonas onde a gastronomia se desenvolve são as zonas onde se faz o comércio, onde se transaciona», atira Jean-Luc Bouvret, documentarista consagrado – entre nós realizou Côa, o Rio das Mil Gravuras – e jurassiano de muitas gerações. Estamos à mesa no Seize Quartiers, o restaurante que a sua mulher Maia dirige em Château-Chalon. Esta pequena aldeia, que é quase uma espécie de Marvão, fica no topo de uma falésia e ostenta dois títulos: uma das «mais belas aldeias de França» e local onde nasceu o vin jaune, um dos mais originais, e controversos, vinhos do mundo, pelo seu caráter oxidado. O Seize Quartiers – o nome é herdado das noviças oriundas de famílias nobres que, em querendo ficar na abadia beneditina que domina o centro da aldeia, eram obrigadas a provar a sua ancestralidade nobiliárquica em pelo menos 16 gerações – é um pequeno e acolhedor restaurante onde oficia Maia, cozinheira talentosa e de temperamento vivo. No nosso palato ficaram a suavíssima galinha de Bresse com cogumelos morille, preparada com vin jaune e acompanhada por um especiado e QUATRO IMAGENS À direita, no sentido horário: pormenor da sala de jantar do hotel e restaurante Les Caudailles; Arbois, terra de Pasteur, revela-se na luz da manhã; as garrafas secam, ou decoram, à porta de uma cave em Château-Chalon; animais no pasto. mineral Trousseau – uma das castas, tintas, autóctones do Jura –, Cuvée des Geologues, 2005, desse superlativo vigneron que é Lucien Aviet, conhecido como «Bacchus». É o vinho, ainda mais que o queijo, ou queijos, porque não é só essa maravilha intensa que é o Comté, um queijo de leite de vaca, par preferencial do jaune, é também o Morbier, queijo de leite de vaca suave marcado no gosto pelo traço de cinzas vegetais, é o vinho, dizíamos – porque é fácil perdermo-nos em divagações gastrossemânticas quando se mistura jaune e Comté –, que marca a gastronomia do Jura. Três castas fazem a originalidade dos vinhos da região, a Poulsard (ou Ploussard, se estivermos em Pupillin, a poucos quilómetros a norte de Château-Chalon), a Trousseau e a Savagnin. As duas primeiras, tintas, dão vinhos delicados com uma surpreendente frescura e persistência nas mãos de vignerons respeitadores do vinho e da natureza do seu terroir [mais sobre isto à frente]. Savagnin é a casta que está na base do vin jaune, dando brancos originais e marcantes, sendo engarrafado também com Chardonnay, uma casta que chegou ao Jura no fim da Idade Média Volta ao Mundo julho 2013 Volta ao Mundo julho 2013 85 86 Volta ao Mundo julho 2013 HUMOR JURASSIANO Em Arbois, na cave do domaine de La Tournelle, um aviso observa que não se pode fumar nem cuspir o vinho. Nesta página, à direita, Pascal Clairet, domaine de La Tournelle, produtor de vinho e um dos principais «apóstolos» dos vinhos naturais. A cor e o temperamento de uma casta: o Savagnin faz a magia dos vinhos do Jura, nomeadamente o seu jaune, um vinho oxidado único no mundo. e é hoje responsável por mais de cinquenta por cento das vinhas plantadas. Já a Pinot Noir chega ao Jura com os romanos, como na vizinha Borgonha, embora aqui resulte em vinhos mais minerais e menos complexos. O vin jaune é, pese a sua baixa produção – dois por cento de todo o vinho da região –, o mais significativo argumento do Jura para reclamar originalidade. Que começa no facto de o tempo de envelhecimento em barrica ser precisamente de seis anos e três meses, coisa que encanta os puristas, ciosos de pormenores. Acrescentemos que durante este período estão sur voile, ou seja, à medida que o tempo avança e alguma evaporação acontece não é acrescentado, na barrica, mais vinho ao jaune, ao contrário do que sucede com quase todos os vinhos, e daí a oxidação do Savagnin. Em consequência, cada barrica produz menos vinho do que o normal e a garrafa utilizada pelos jurassiens – Clavelin – é mais atarracada do que outras, comportando só 62 centilitros contra os 75 que normalmente encontramos. Maia, no seu Seize Quartiers, em Château-Chalon, a mais famosa sub-região do Jura produtora de jaune, arruma a questão: «O jaune ou se ama ou se odeia. Eu amei-o à primeira.» Se não o souber para si, o leitor ocorrerá em imperdoável falha vínica. Volta ao Mundo julho 2013 Pascal Clairet, proprietário do domaine La Tournelle, em Arbois, no coração do Jura vinícola, e defensor dos vinhos nature na esteira do «papa» do movimento, Pierre Overnoy (que produz os seus vinhos a meros seis quilómetros, em Pupillin), diz-nos que «as perceções de consumidores e jornalistas especializados estão a mudar». «Os vinhos do Jura não são vinhos de montanha, como durante muito tempo se pensou fora da região. Somos um vignoble de pé de montanha, as nossas vinhas estão situadas, no máximo, entre 250 e 400 metros de altitude. E não somos só uma região de vinhos oxidados, poderosos. Estes vinhos são uma pequena parte da nossa produção total.» Pascal está lançado. Alto e espadaúdo, a sua cara angulosa e queixada protuberante faz lembrar a dos romanos nas bandas desenhadas de Uderzo. Uma certeza orientou, desde o início, este vigneron de primeira geração que começou a produzir vinho há vinte anos tendo como companheira de aventura Eveline, a sua mulher e enóloga de profissão: queriam fazer vinhos que respeitassem ao máximo o local de onde provêm, não sendo adulterados por químicos tanto na terra como na cave, onde a manipulação é mínima. Porquê? «Para já, porque gostamos de beber mais e não queremos ter dores de cabeça no dia seguinte», retorque, com ar gozão. O domaine tem agora sete hectares e meio. «É uma exploração pequena, que complementamos com um bar à vins e bistrot, no verão, no centro de Arbois.» Os vinhos que produz, do Chardonnay ao jaune, são austeros, retos. «Os nossos vinhos são originais. Só no Jura se pode provar um Poulsard, por exemplo. E, ao contrário do que por vezes se diz, fazemos também grandes vinhos.» Uma prova no bar de Pascal convence-nos. Os brancos são minerais, com um toque floral, com destaque para o Fleur de Savagnin, mineral, reto, com classe. Os tintos são delicados, de aparência translúcida, também minerais, persistentes. Um belo exemplo é a cuvée l’Uva, um Poulsard não filtrado que sabe àquilo a que um vinho deve saber e, mais importante, deixa-nos com um sorriso nos lábios, crentes que de facto expressa a natureza abundante e o caráter generoso desta região que passou ao lado de um desenvolvimento excessivo e mantém, intocada, uma paisagem única. Termina Pascal, de sorriso matreiro: «Somos assim, os jurassianos – acolhedores como um Poulsard, robustos como um Trousseau, “duros” como alguns Savagnin. Mas mal ultrapasses o primeiro gole de jaune, aí sim, sentirás o calor dos jurassiens.» Confusos? Então vale a pena um pouco de história para percebermos o que forjou o caráter desta gente que suporta 87 INUSITADO No Jura as vacas extravasam os campos e proporcionam imagens pitorescas, e irresistíveis, como esta na estrada para Arlay. 88 Volta ao Mundo julho 2013 Volta ao Mundo julho 2013 89 CHÂTEAU D’ARLAY Se o interior visitável do castelo de Arlay revela episódios curiosos da história da linhagem dos seus proprietários – os condes de Arlay, Alain e Anne Laguiche –, são os jardins «românticos», que ocupam os oito hectares que rodeiam o edifício principal, que fascinam. Das vistas amplas das planícies circundantes às ruínas do castelo original, datado do século xii, um passeio demorado pelos jardins de Arlay recupera em nós uma comunhão simples com a natureza. O castelo de Arlay, onde a vinha é conhecida desde o século ix, é também um importante produtor de vinhos do Jura. O domaine exporta quase a totalidade da sua produção de noventa mil garrafas, sendo um ex-líbris do vin jaune no mundo. É com Anne que visitamos a cave com enormes tonéis e paredes negras e nos preparamos para a pequena prova dos vinhos do castelo. A marquesa apresenta-nos um vinho de assemblage – o vin de corail, que junta as cinco castas jurassianas – como se fazia no antanho e que se revela uma daquelas peculiariedades da aristocracia que consiste em reviver ou manter uma tradição sem questionar a sua utilidade ou qualidade visível ou, neste caso, bebível. Polidamente, como convém nestes, e em quase todos os casos na vida, fizemos um gesto de aprovação com a cabeça acompanhado de um sorriso benevolente, e dirigimos o olhar ao próximo vinho, um Trousseau, que se revelou agradável, a condizer com os procedimentos. Terminámos com um jaune que, esse sim, fazia jus à história e à reputação dos vinhos de Arlay e dos jurassiens que tanto quiseram ser independentes. Merci, madame la marquise! PATRIMÓNIO Na página da esquerda: as ruínas do medieval castelo d’Arlay, o original, envoltas no verde jurassiano, e as caves centenárias do «novo» castelo, construídas à maneira jurassiana, com luz natural. BIJOU Nesta página, em baixo: a biblioteca circular do castelo d’Arlay, toda de madeira nobre, é uma joia que não deixa nenhum visitante indiferente, com particular destaque para a sua deliciosa escada. Lancias e Ferraris na gravilha do pátio do castelo d’Arlay, numa concentração de bólides transalpinos, espelham bem a paixão de Alain Laguiche, o conde titular. temperaturas negativas no inverno e calores acima dos trinta no verão, num território que podemos percorrer durante quilómetros sem ver a intervenção humana. O departamento do Jura está incluído na região administrativa da Franche-Comté, que inclui também a Haute-Saône, Doubs e o território de Belfort. De caráter independente e hábeis manipuladores das potências regionais centro-europeias desde o tempo dos francos, os habitantes da região lograram manter uma certa autonomia ao longo dos séculos. Até que, em 1678, a França de Luís XIV acabou com as veleidades autonómicas e jogos dos jurassianos e, com o tratado de Nimègue, integrou definitivamente a Franche-Comté no reino de França. A coisa caiu tão mal nos locais que, durante largos anos, muitos franche-comtesianos pediram para ser enterrados virados para baixo para não terem de ver franceses a pisar na sua amada terra. Volta ao Mundo julho 2013 O documentarista Jean-Luc Bouvret descreve os locais como intrinsecamente independentes, mas com um forte espírito de comunidade. «O jurassiano tem interesse pelo outro. O território é vasto e as quintas afastadas. A autonomia que cada um sente é temperada por sabermos que não podemos existir uns sem os outros.» A região, não por acaso, viu nascer figuras-chave do socialismo utópico – Charles Fourrier, no século xviii, e um precursor do mutualismo, Pierre-Joseph Proudhon, no século xix, ambos naturais de Besançon, capital da Franche-Comté. Em 1937 é em Arbois que surge a primeira Denominação de Origem Controlada (DOC) do vinho francês. Ainda Jean-Luc Bouvret: «O individualismo produz experimentadores, estimula a criatividade.» O Jura orgulha-se de dois Louis, Pasteur e Vuitton, e de Claude de Lisle, o compositor da Marselhesa, o hino da República. Para o que nos importa neste 91 GOURMET À esquerda: Samuel Richardet, o chef proprietário do Grapiot, conseguiu que o seu restaurante fosse o único jurassiano presente no reputado guia Fooding e uma estrela Michelin pode estar a caminho. GOURMAND Ná página da direita, no sentido horário: Poligny, entre vinhas; Edouard Hirsinger, com o seu colar de Meilleur Ouvrier de France; anúncio vintage ao queijo ex-líbris do Jura, o Comté, um regalo gastronómico. São localidades como Poligny, verdadeiros cartões-postais, que resumem, se tal é possível, o Jura: a sempre presente vinha, simpáticas vilas e o verde jurassiano de fundo. artigo, o Jura viu nascer Pierre Overnoy, o «pai» do movimento natural no vinho, figura de sorriso pronto e inteligência coruscante. «Quando Pierre fez o seu primeiro vinho sem sulfitos, em 1985, muita gente fez pouco dele. Hoje é uma figura reconhecida e influente. Contudo, continua na sua aldeia, Pupillin, imbuído de uma vontade de devolver algo à sua comunidade. É o melhor do caráter jurassiano. O rasgo criativo, inquisitivo, e a determinação contra tudo e todos em combinação com um sentido agudo de comunidade», afirma Jean-Luc Bouvret enquanto nos nossos copos está um vinho de cor suave e rosada, fresco e saboroso, incrivelmente vivo, complexo na sua fruta. É um Poulsard de Overnoy. A pausa que se segue é uma homenagem a Pierre e também a Henri Bouvret, pai de Jean-Luc e astuto negociante de vinhos. Ambos seguiam o preceito de que se degusta em silêncio, para melhor nos concentrarmos no que temos no copo. Henri foi uma influência reconhecida no Jura pelas sessões de degustação que levava a cabo na sua vasta e completa cave. «Quem não se comportasse, falasse durante a prova, não era convidado outra vez», lembra Pierre Overnoy no livro La Parole de Pierre. «Henri ensinou-nos a provar, abriu-nos os horizontes do vinho.» À la vôtre, messieurs Bouvret et Overnoy! 92 Imune à atribulada história humana da região, mas não menos importante para a sua compreensão, está a natureza luxuriante do Jura. Na primavera a variedade de verdes faz-nos parar o carro na beira da estrada. A luz do sol desenha efeitos raros pelo meio das árvores. E é essa mesma luz refletida na rocha branca das escarpas das montanhas que dá uma luminosidade quase mediterrânica a esta região a centenas de quilómetros do mar. O que sabemos é que desta natureza pródiga emerge uma gastronomia rica, fundada nos produtos frescos e no vinho. O mais recente expoente é – e há consenso nisso – o Le Grapiot, em Pupillin, onde Samuel Richardet e a sua mulher Julie (ele na cozinha, ela na sala) propiciam a uma clientela quase totalmente local uma experiência que merece referências nos guias mais reputados e de quem se diz que é uma questão de tempo até conseguir uma estrela Michelin. Quem não se impressiona com estas coisas é o guia alternativo Fooding, campeão da «bistronomia», que elegeu o Grapiot como única referência no Jura. Samuel, 39 anos, é, contudo, prudente: «Estamos aqui há dez anos. Crescemos com cuidado. Ampliámos o restaurante recentemente. Não temos pressa. A última coisa que queríamos era que, no caso de recebermos uma estrela, os nossos clientes pensassem que iríamos mudar, que seríamos mais caros. Se um dia a estrela vier, será bem-vinda, ficarei feliz. Este é o meu trabalho, a minha vida.» Samuel recorda os seus tempos de adolescente, quando se levantava da cama e se juntava aos padeiros dando corpo a uma vocação descoberta em tenra idade. A partir daí, a escola e a presença em mais de vinte casas, entre as quais duas de referência, o Château de Germigney onde, com o estrelado Pierre Basso Moro, aprendeu «o rigor, o gosto pelos bons ingredientes, a boa apresentação dos pratos» e com Christophe Leroy, outro nome da grande cozinha gaulesa, aprendeu, num dos seus restaurantes, em Saint-Tropez, a dirigir grandes equipas. Mas tudo isto de nada lhe serviria se há oito anos, quando se dirigiu ao Grapiot para dar os bons-dias à então proprietária e saiu de lá ele próprio o proprietário, não tivesse apostado em fazer um grande restaurante, imbuído de paixão e rigor. A sucessão de pratos que nos passa pela elegante mesa é disso exemplo. Impressionaram o foie gras – suave, sedoso –, acompanhado por uma geleia de Trousseau que lhe dava sofisticação, e também os fresquíssimos espargos verdes com crème de chèvre, tomate-cereja e ovas de salmão. Tudo isto, ainda assim, não Volta ao Mundo julho 2013 EDOUARD HIRSINGER Chocolatier Se quisermos ser precisos, foram os prussianos, ao invadirem a Alsácia em 1870, os responsáveis por um dos cinco melhores chocolatiers de França ter loja aberta em Arbois, uma aldeia no coração do Jura. Os Hirsinger, perante a ameaça dos sabres teutónicos, escaparam para o Jura e optaram pela nacionalidade francesa. Edouard Hirsinger mostra-nos as relíquias que a família foi acumulando ao longo das quatro gerações que adoçam a boca aos jurassianos e, porque há uma chocolataria Hirsinger em franchising em Tóquio, ao mundo também. No museu que mantém na cave por baixo da loja e fábrica, Edouard tem, bem preservada, uma fascinante coleção de artefactos que vai desde a frente da primeira loja que o seu bisavô Auguste fundou em 1900, no mesmo local que a presente, até à caixa de rebuçados art déco de época. Mas é lá em cima que a magia acontece, numa loja de bom gosto onde os chocolates do mundo – «o melhor de todos, para mim, é o colombiano», afirma Edouard – se apresentam em todo o seu esplendor.«O chocolate é uma matéria nobre e exigente», continua Edouard, enquanto nos vai passando pequenas amostras dos doces da casa para degustarmos. É delícia após delícia, até termos de dizer a Edouard para parar, já que estamos em overdose de açúcar, e não alcançámos a metade das sessenta especialidades que a casa tem sempre à disposição dos seus clientes. Apaixonado, curioso, com uma energia impressionante, Edouard Hirsinger é um artista que, por acaso familiar, se dedicou à doçaria e ao chocolate. Valeria bem a pena, só por esta elegante chocolataria e as suas maravilhas, viajar até ao Jura, que Tóquio é bem mais longe. Volta ao Mundo julho 2013 93 À JANELA Madame Credoz, em Chateau-Chalon, quer saber ao que vimos. «Provar o seu Jaune, madame. É possível?» «J’arrive!», responde-nos. À esquerda: pátio do Musée du Vin de Chateau-Chalon, uma visita «obrigatória». TESOURO Na página da direita: a visão do Château-Chalon, revelado a partir do jardim do Seize Quartiers, é mágica. Sobretudo quando surge, deslumbrante, emoldurado por um arco-íris. E nem é preciso pote de ouro. Château-Chalon. O seu charme e as suas vistas, que lhe valeram o título de «uma das mais belas aldeias de França», são o orgulho, indisfarçável, do maire Christian Vuillaume. nos preparou para a sumptuosa e tenríssima vollaile acompanhada de espargos verdes crocantes e batata, um triunfo culinário de leveza e sabores! Dos vinhos, todos jurassianos, como se impunha, destacaram-se um Chardonnay do domaine de La Pinte, mineral e longo na boca, um Fleur de Savagnin de 2011, de Julian Labet, fresco de uma mineralidade sur preendente e, para acompanhar os deliciosos Comté e Morbier, um grande jaune, de 2005, do domaine de La Renardiére. Inexplicável de bom. De resto, quando perguntamos a Samuel que ingrediente lhe é indispensável na cozinha, a resposta vem acompanhada de uma gargalhada: «O vinho, claro!» Regressamos a Château-Chalon por uma serpenteante estrada rodeada de verde e mais verde. É fácil demorar mais do que o tempo previsto nestes curtos percursos. À chegada à aldeia mais famosa do Jura, segunda, e muitas vezes primeira, casa de artistas como Bernard Moninot, artista plástico, decidimos parar para fotografar um habitante que poda a sua sebe. Mas quem nos interpela é um cidadão do outro lado da rua que quer saber quem somos e o que fazemos. Jornalistas, respondemos, à descoberta do Jura. «Christian Vuillaume, le maire», anuncia-se de mão estendida. Em breve estamos a tentar encaixar na nossa agenda um inesperado convite para uma conversa e, mais importante para o nosso 94 maire, a oportunidade de uma fotografia. «Oui, monsieur le maire! Mais para o fim do dia! Combinado.» Entregamo-nos à aldeia, às suas ruas frescas, à sua abadia imponente, e às vistas deslumbrantes que os vários miradouros proporcionam. E vamos deixar as malas no T’Nature, um turismo de habitação agradável e dedicado a mostrar as riquezas alimentares da região, sempre em «bio». O sorriso aberto de Françoise, a proprietária, é tão acolhedor como a decoração cuidada e de bom gosto do interior da estalagem. O T’Nature foi criado «no espírito da amizade e fruto de um desejo de vinte anos, quando chegámos, o meu marido e eu, ao Jura. Comprámos o espaço a uns amigos arquitetos que ainda vivem ao nosso lado, e assim realizámos o sonho de ter um sítio para receber amigos», diz Françoise. O espaço (tnature.fr) pode abrigar até 11 pessoas e os quartos estão pensados para acomodar várias combinações de grupos. Deixamos Françoise e caminhamos em direção às caves de Jean Claude Credoz, um produtor local de vin jaune. Apesar de ser o berço do jaune, Château-Chalon tem caído na consideração dos exigentes apreciadores, locais e de fora, do néctar símbolo da região. Ser estandarte traz sempre consigo um escrutínio mais incisivo. Jean-Claude tem as suas dúvidas em relação aos métodos mais nature de outros produtores jurassianos. «Prefiro um equilíbrio entre as várias práticas. Sou cartesiano, digamos, gosto de compreender a fundo o que estou a fazer», diz, num remoque a algumas das práticas mais esotéricas da biodinâmica. «É importante ouvir os vignerons mais velhos como Overnoy ou Desiré Petit, produtor em Arbois, que era meu avô, e com quem passei muito tempo. É isso também que faço com o meu filho: temperar o que está a aprender na escola com a realidade da vinha.» Os vinhos, esses, melhoram quando passamos dos correntes, indistintos nos brancos, agressivos nos tintos, para o jaune, do qual provámos o 2004, com uma boa acidez e longo em boca, fino mesmo. A boa surpresa é o vin de paille, mistura de terços iguais de Poulsard, Savagnin e Chardonnay, um licoroso intenso e persistente. A sala de provas de Jean-Claude, aberta ao público que intensamente visita Château-Chalon nos meses quentes, está cheia e o vigneron a todos faz provar. Muitos saem de caixas na mão em direção às planícies de onde vieram, um pouco mais felizes. Após um salto a Arlay [ver caixa] e ao seu castelo e jardim, regressamos a Château- -Chalon para a conversa com o maire. A desilusão inicial por me ver chegar sozinho – Gerardo, o fotógrafo, tinha ido captar imagens de uma das imperdíveis maravilhas Volta ao Mundo julho 2013 Volta ao Mundo julho 2013 95 96 Volta ao Mundo julho 2013 Orgulhosos e temperamentais, os jurassianos, tomando como exemplo o Douro, levaram tempo a mobilizar-se mas acabaram por unir esforços para que, a partir de 2006, também a sua paisagem única e de grande valor cultural passasse a estar protegida. naturais e arquitetónicas do Jura, Baume-les-Messieurs, a poucos quilómetros de Château-Chalon. e que merece, também ela, o título de «uma das mais belas aldeias de França» – não abalou o entusiasmo irreprimível de Christian Vuillaume. Leva-me para a sua cave, onde abre uma garrafa de Trousseau para provarmos – uma colheita familiar, feita com os pais, já falecidos, e engarrafada no ano do nascimento do seu filho mais velho – e falamos do caráter, e das tradições do Jura. «Em 2006, no Jura, protegemos a paisagem como vocês, em Portugal, fizeram com o Douro.» Avança: «Porquê? Tivemos medo que, a esta paisagem absolutamente magnífica, fizessem “verrugas”. Sabe o que me disse um velho produtor de vinho quando o conseguimos? “Tinhas razão, ó grande insistente, tudo cansa menos quando é bonito.” E é assim o caráter do jurassiano, duro como o tempo invernoso – levámos imenso tempo a convencê-los a participarem –, e, com o tempo, caloroso como o nosso verão.» Deixamos o maire depois de um tour pela sua casa, com soberbas vistas sobre os campos de vinha que se estendem pelas encostas de Château-Chalon. Jean-Luc Bouvret fala de margens. Mais propriamente de margem. «O jurassiano é o mais individualista dos franceses. A Franche-Comté durante séculos ficou à margem do Volta ao Mundo julho 2013 reino de França. Voilà! O Jura é a margem! E gostamos disso. Somos independentes de espírito, já o fomos de território.» E assim ficamos. O restaurante já sem clientes, nós à mesa, à volta de uma garrafa de Trousseau, um dos vinhos mais conviviais que existem, a falar disto e daquilo, experimentando o lado caloroso de um jurassiano dos quatro costados, vivamente interessado no outro e cioso, ao mesmo tempo, das suas convicções. Na manhã da saída de Château-Chalon despedimo-nos de Françoise com o estômago reconfortado pelo pequeno-almoço nature – não provar as mais de seis compotas presentes teria sido uma ofensa à simpática proprietária. Jean, o marido de Françoise, aproxima-se do carro e avisa: «Monsieur le maire ligou e está à vossa espera. Marcou uma degustação.» O sorriso de Jean parece querer dizer «começo a ter pena de vocês». Para fugir ao entusiasmo promocional do maire alegamos o horário de comboio que nos espera em Dôle, a capital do Jura, e que nos há de levar à Borgonha. E invade-nos o receio de que até o TGV possa ser atrasado pela vontade férrea do maire em tirar mais uma fotografia na sua varanda tendo como fundo a paisagem de Château-Chalon, «que ajudei a proteger em 2006, já vos disse?» «Oui, monsieur le maire, certainement, au revoir. n ANFITRIÕES O casal Jean-Luc Bouvret e Maia (em cima, à esquerda) no seu Seize Quartiers. Ele, documentarista premiado, é um jurassiano dos quatro costados. Ela, vinda de outras paragens, traz à cozinha local um toque de classe. MONSIEUR LE MAIRE Christian Vuillaume (em baixo), presidente da Câmara de Château-Chalon, é um grande entusiasta e defensor do património jurassiano. Não deixou que a equipa da Volta Mundo partisse sem lhe fazer este retrato. 97