de verde e de sabor

Transcrição

de verde e de sabor
Iura
de verde e de sabor
Entalado entre a Borgonha, dos vinhos dos deuses, e a Suíça, das
contas secretas e montanhas bucólicas, o Jura é como aquele irmão
mais novo que sabe que, para sobreviver, tem de ser original.
TEXTO DE VASCO ALENCASTRE I
FOTOGRAFIAS DE GERARDO SANTOS/GLOBAL IMAGENS
CHÂTEAU D'ARLAY
O seu encantador jardin
des jeux, criado pelos
condes d’Arlay, em
1996, segue o tema do
divertimento botânico.
Em Arlay, como em todo
o Jura, o verde é pano de
fundo de casas e gentes.
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VERDE-JURA
À entrada de Arbois, um
jurassiano bem-disposto (à
esquerda) toma conta do
seu pequeno vinhedo. Já em
Château-Chalon anuncia-se,
à porta, que há néctares
jurassianos (o da esquerda
é o Clavecin e o da direita os
tintos e brancos da região).
COMO IR
A TAP (flytap.com) voa para
Nice a partir de 244 euros.
A partir desta cidade existem
ligações regulares aéreas e
de comboio com Dôle-Jura.
A SABER
Em Lisboa pode deliciar-se
com os vinhos e queijos
do Jura no bar-garrafeira
Os Goliardos.
AGRADECIMENTOS
Atout France - Agência de
Desenvolvimento Turístico
de França
TAP
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A
s zonas onde a gastronomia se desenvolve são as
zonas onde se faz o comércio, onde se transaciona»,
atira Jean-Luc Bouvret, documentarista
consagrado – entre nós realizou Côa, o Rio
das Mil Gravuras – e jurassiano de muitas
gerações. Estamos à mesa no Seize Quartiers,
o restaurante que a sua mulher Maia dirige
em Château-Chalon. Esta pequena aldeia,
que é quase uma espécie de Marvão, fica no
topo de uma falésia e ostenta dois títulos:
uma das «mais belas aldeias de França» e
local onde nasceu o vin jaune, um dos mais
originais, e controversos, vinhos do mundo,
pelo seu caráter oxidado.
O Seize Quartiers – o nome é herdado
das noviças oriundas de famílias nobres que,
em querendo ficar na abadia beneditina que
domina o centro da aldeia, eram obrigadas a
provar a sua ancestralidade nobiliárquica em
pelo menos 16 gerações – é um pequeno e
acolhedor restaurante onde oficia Maia, cozinheira talentosa e de temperamento vivo. No
nosso palato ficaram a suavíssima galinha de
Bresse com cogumelos morille, preparada com
vin jaune e acompanhada por um especiado e
QUATRO IMAGENS
À direita, no sentido horário:
pormenor da sala de jantar
do hotel e restaurante Les
Caudailles; Arbois, terra de
Pasteur, revela-se na luz da
manhã; as garrafas secam, ou
decoram, à porta de uma cave
em Château-Chalon; animais
no pasto.
mineral Trousseau – uma das castas, tintas,
autóctones do Jura –, Cuvée des Geologues,
2005, desse superlativo vigneron que é Lucien
Aviet, conhecido como «Bacchus».
É o vinho, ainda mais que o queijo, ou
queijos, porque não é só essa maravilha intensa que é o Comté, um queijo de leite de
vaca, par preferencial do jaune, é também o
Morbier, queijo de leite de vaca suave marcado no gosto pelo traço de cinzas vegetais, é o
vinho, dizíamos – porque é fácil perdermo-nos
em divagações gastrossemânticas quando se
mistura jaune e Comté –, que marca a gastronomia do Jura.
Três castas fazem a originalidade dos vinhos da região, a Poulsard (ou Ploussard, se
estivermos em Pupillin, a poucos quilómetros
a norte de Château-Chalon), a Trousseau e
a Savagnin. As duas primeiras, tintas, dão
vinhos delicados com uma surpreendente
frescura e persistência nas mãos de vignerons
respeitadores do vinho e da natureza do seu
terroir [mais sobre isto à frente]. Savagnin é
a casta que está na base do vin jaune, dando
brancos originais e marcantes, sendo engarrafado também com Chardonnay, uma casta
que chegou ao Jura no fim da Idade Média
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HUMOR JURASSIANO
Em Arbois, na cave do
domaine de La Tournelle,
um aviso observa que não se
pode fumar nem cuspir
o vinho. Nesta página,
à direita, Pascal Clairet,
domaine de La Tournelle,
produtor de vinho e um dos
principais «apóstolos» dos
vinhos naturais.
A cor e o temperamento de uma casta:
o Savagnin faz a magia dos
vinhos do Jura, nomeadamente o seu jaune, um vinho oxidado único no mundo.
e é hoje responsável por mais de cinquenta
por cento das vinhas plantadas. Já a Pinot
Noir chega ao Jura com os romanos, como
na vizinha Borgonha, embora aqui resulte em
vinhos mais minerais e menos complexos.
O vin jaune é, pese a sua baixa produção
– dois por cento de todo o vinho da região –,
o mais significativo argumento do Jura para
reclamar originalidade. Que começa no
facto de o tempo de envelhecimento em
barrica ser precisamente de seis anos e três
meses, coisa que encanta os puristas, ciosos
de pormenores. Acrescentemos que durante
este período estão sur voile, ou seja, à medida
que o tempo avança e alguma evaporação
acontece não é acrescentado, na barrica,
mais vinho ao jaune, ao contrário do que
sucede com quase todos os vinhos, e daí
a oxidação do Savagnin. Em consequência, cada barrica produz menos vinho do
que o normal e a garrafa utilizada pelos
jurassiens – Clavelin – é mais atarracada
do que outras, comportando só 62 centilitros contra os 75 que normalmente encontramos. Maia, no seu Seize Quartiers, em
Château-Chalon, a mais famosa sub-região
do Jura produtora de jaune, arruma a questão:
«O jaune ou se ama ou se odeia. Eu amei-o
à primeira.» Se não o souber para si, o leitor
ocorrerá em imperdoável falha vínica.
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Pascal Clairet, proprietário do domaine
La Tournelle, em Arbois, no coração do Jura
vinícola, e defensor dos vinhos nature na esteira
do «papa» do movimento, Pierre Overnoy (que
produz os seus vinhos a meros seis quilómetros,
em Pupillin), diz-nos que «as perceções de
consumidores e jornalistas especializados estão
a mudar». «Os vinhos do Jura não são vinhos
de montanha, como durante muito tempo
se pensou fora da região. Somos um vignoble
de pé de montanha, as nossas vinhas estão
situadas, no máximo, entre 250 e 400 metros
de altitude. E não somos só uma região de
vinhos oxidados, poderosos. Estes vinhos são
uma pequena parte da nossa produção total.»
Pascal está lançado. Alto e espadaúdo, a
sua cara angulosa e queixada protuberante faz
lembrar a dos romanos nas bandas desenhadas
de Uderzo. Uma certeza orientou, desde o
início, este vigneron de primeira geração que
começou a produzir vinho há vinte anos tendo como companheira de aventura Eveline,
a sua mulher e enóloga de profissão: queriam
fazer vinhos que respeitassem ao máximo o
local de onde provêm, não sendo adulterados
por químicos tanto na terra como na cave,
onde a manipulação é mínima. Porquê? «Para
já, porque gostamos de beber mais e não queremos ter dores de cabeça no dia seguinte»,
retorque, com ar gozão.
O domaine tem agora sete hectares e meio.
«É uma exploração pequena, que complementamos com um bar à vins e bistrot, no verão,
no centro de Arbois.» Os vinhos que produz,
do Chardonnay ao jaune, são austeros, retos.
«Os nossos vinhos são originais. Só no Jura
se pode provar um Poulsard, por exemplo.
E, ao contrário do que por vezes se diz, fazemos
também grandes vinhos.» Uma prova no
bar de Pascal convence-nos. Os brancos são
minerais, com um toque floral, com destaque
para o Fleur de Savagnin, mineral, reto, com
classe. Os tintos são delicados, de aparência
translúcida, também minerais, persistentes. Um belo exemplo é a cuvée l’Uva, um
Poulsard não filtrado que sabe àquilo a que
um vinho deve saber e, mais importante,
deixa-nos com um sorriso nos lábios, crentes
que de facto expressa a natureza abundante
e o caráter generoso desta região que passou
ao lado de um desenvolvimento excessivo
e mantém, intocada, uma paisagem única.
Termina Pascal, de sorriso matreiro: «Somos
assim, os jurassianos – acolhedores como um
Poulsard, robustos como um Trousseau, “duros” como alguns Savagnin. Mas mal ultrapasses o primeiro gole de jaune, aí sim, sentirás o
calor dos jurassiens.» Confusos? Então vale a
pena um pouco de história para percebermos
o que forjou o caráter desta gente que suporta
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INUSITADO
No Jura as vacas
extravasam os campos
e proporcionam
imagens pitorescas, e
irresistíveis, como esta
na estrada para Arlay.
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CHÂTEAU D’ARLAY
Se o interior visitável do castelo de Arlay revela episódios curiosos da história da linhagem dos seus proprietários – os condes
de Arlay, Alain e Anne Laguiche –, são os jardins «românticos»,
que ocupam os oito hectares que rodeiam o edifício principal,
que fascinam. Das vistas amplas das planícies circundantes
às ruínas do castelo original, datado do século xii, um passeio
demorado pelos jardins de Arlay recupera em nós uma comunhão simples com a natureza.
O castelo de Arlay, onde a vinha é conhecida desde o século ix,
é também um importante produtor de vinhos do Jura. O domaine
exporta quase a totalidade da sua produção de noventa mil
garrafas, sendo um ex-líbris do vin jaune no mundo. É com Anne
que visitamos a cave com enormes tonéis e paredes negras e
nos preparamos para a pequena prova dos vinhos do castelo.
A marquesa apresenta-nos um vinho de assemblage – o vin de
corail, que junta as cinco castas jurassianas – como se fazia
no antanho e que se revela uma daquelas peculiariedades da
aristocracia que consiste em reviver ou manter uma tradição
sem questionar a sua utilidade ou qualidade visível ou, neste
caso, bebível. Polidamente, como convém nestes, e em quase
todos os casos na vida, fizemos um gesto de aprovação com a
cabeça acompanhado de um sorriso benevolente, e dirigimos o
olhar ao próximo vinho, um Trousseau, que se revelou agradável,
a condizer com os procedimentos. Terminámos com um jaune
que, esse sim, fazia jus à história e à reputação dos vinhos de
Arlay e dos jurassiens que tanto quiseram ser independentes.
Merci, madame la marquise!
PATRIMÓNIO
Na página da esquerda:
as ruínas do medieval
castelo d’Arlay, o original,
envoltas no verde jurassiano,
e as caves centenárias
do «novo» castelo,
construídas à maneira
jurassiana, com luz natural.
BIJOU
Nesta página, em baixo:
a biblioteca circular
do castelo d’Arlay, toda
de madeira nobre, é uma
joia que não deixa nenhum
visitante indiferente, com
particular destaque para
a sua deliciosa escada.
Lancias e Ferraris
na gravilha do pátio do castelo d’Arlay, numa concentração
de bólides transalpinos, espelham bem a paixão de Alain Laguiche, o conde titular.
temperaturas negativas no inverno e calores
acima dos trinta no verão, num território que
podemos percorrer durante quilómetros sem
ver a intervenção humana.
O departamento do Jura está incluído na
região administrativa da Franche-Comté, que
inclui também a Haute-Saône, Doubs e o território de Belfort. De caráter independente e
hábeis manipuladores das potências regionais
centro-europeias desde o tempo dos francos,
os habitantes da região lograram manter uma
certa autonomia ao longo dos séculos. Até
que, em 1678, a França de Luís XIV acabou
com as veleidades autonómicas e jogos dos
jurassianos e, com o tratado de Nimègue,
integrou definitivamente a Franche-Comté
no reino de França. A coisa caiu tão mal
nos locais que, durante largos anos, muitos
franche-comtesianos pediram para ser enterrados virados para baixo para não terem
de ver franceses a pisar na sua amada terra.
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O documentarista Jean-Luc Bouvret
descreve os locais como intrinsecamente
independentes, mas com um forte espírito
de comunidade. «O jurassiano tem interesse
pelo outro. O território é vasto e as quintas
afastadas. A autonomia que cada um sente
é temperada por sabermos que não podemos
existir uns sem os outros.» A região, não por
acaso, viu nascer figuras-chave do socialismo
utópico – Charles Fourrier, no século xviii, e
um precursor do mutualismo, Pierre-Joseph
Proudhon, no século xix, ambos naturais de
Besançon, capital da Franche-Comté. Em
1937 é em Arbois que surge a primeira Denominação de Origem Controlada (DOC)
do vinho francês. Ainda Jean-Luc Bouvret:
«O individualismo produz experimentadores,
estimula a criatividade.» O Jura orgulha-se
de dois Louis, Pasteur e Vuitton, e de Claude
de Lisle, o compositor da Marselhesa, o hino
da República. Para o que nos importa neste
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GOURMET
À esquerda: Samuel
Richardet, o chef proprietário
do Grapiot, conseguiu
que o seu restaurante fosse
o único jurassiano presente
no reputado guia Fooding
e uma estrela Michelin
pode estar a caminho.
GOURMAND
Ná página da direita, no
sentido horário: Poligny,
entre vinhas; Edouard
Hirsinger, com o seu colar de
Meilleur Ouvrier de France;
anúncio vintage ao queijo
ex-líbris do Jura, o Comté,
um regalo gastronómico.
São localidades como Poligny,
verdadeiros cartões-postais, que resumem, se
tal é possível, o Jura: a sempre presente vinha, simpáticas vilas e o verde jurassiano de fundo.
artigo, o Jura viu nascer Pierre Overnoy, o
«pai» do movimento natural no vinho, figura
de sorriso pronto e inteligência coruscante.
«Quando Pierre fez o seu primeiro vinho sem
sulfitos, em 1985, muita gente fez pouco dele.
Hoje é uma figura reconhecida e influente.
Contudo, continua na sua aldeia, Pupillin,
imbuído de uma vontade de devolver algo
à sua comunidade. É o melhor do caráter
jurassiano. O rasgo criativo, inquisitivo, e a
determinação contra tudo e todos em combinação com um sentido agudo de comunidade», afirma Jean-Luc Bouvret enquanto
nos nossos copos está um vinho de cor suave
e rosada, fresco e saboroso, incrivelmente
vivo, complexo na sua fruta. É um Poulsard
de Overnoy. A pausa que se segue é uma
homenagem a Pierre e também a Henri Bouvret, pai de Jean-Luc e astuto negociante de
vinhos. Ambos seguiam o preceito de que se
degusta em silêncio, para melhor nos concentrarmos no que temos no copo. Henri foi uma
influên­cia reconhecida no Jura pelas sessões
de degustação que levava a cabo na sua vasta
e completa cave. «Quem não se comportasse,
falasse durante a prova, não era convidado
outra vez», lembra Pierre Overnoy no livro La
Parole de Pierre. «Henri ensinou-nos a provar,
abriu-nos os horizontes do vinho.» À la vôtre,
messieurs Bouvret et Overnoy!
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Imune à atribulada história humana da
região, mas não menos importante para a
sua compreensão, está a natureza luxuriante
do Jura. Na primavera a variedade de verdes
faz-nos parar o carro na beira da estrada.
A luz do sol desenha efeitos raros pelo meio
das árvores. E é essa mesma luz refletida na
rocha branca das escarpas das montanhas que
dá uma luminosidade quase mediterrânica a
esta região a centenas de quilómetros do mar.
O que sabemos é que desta natureza
pródiga emerge uma gastronomia rica,
fundada nos produtos frescos e no vinho.
O mais recente expoente é – e há consenso
nisso – o Le Grapiot, em Pupillin, onde
Samuel Richardet e a sua mulher Julie (ele
na cozinha, ela na sala) propiciam a uma
clientela quase totalmente local uma experiência que merece referências nos guias
mais reputados e de quem se diz que é uma
questão de tempo até conseguir uma estrela
Michelin.
Quem não se impressiona com estas coisas
é o guia alternativo Fooding, campeão da
«bistronomia», que elegeu o Grapiot como
única referência no Jura. Samuel, 39 anos,
é, contudo, prudente: «Estamos aqui há dez
anos. Crescemos com cuidado. Ampliámos o
restaurante recentemente. Não temos pressa.
A última coisa que queríamos era que, no
caso de recebermos uma estrela, os nossos
clientes pensassem que iríamos mudar, que
seríamos mais caros. Se um dia a estrela vier,
será bem-vinda, ficarei feliz. Este é o meu
trabalho, a minha vida.»
Samuel recorda os seus tempos de adolescente, quando se levantava da cama e
se juntava aos padeiros dando corpo a uma
vocação descoberta em tenra idade. A partir
daí, a escola e a presença em mais de vinte
casas, entre as quais duas de referência, o
Château de Germigney onde, com o estrelado
Pierre Basso Moro, aprendeu «o rigor, o gosto
pelos bons ingredientes, a boa apresentação
dos pratos» e com Christophe Leroy, outro
nome da grande cozinha gaulesa, aprendeu,
num dos seus restaurantes, em Saint-Tropez,
a dirigir grandes equipas. Mas tudo isto de
nada lhe serviria se há oito anos, quando se
dirigiu ao Grapiot para dar os bons-dias à
então proprietária e saiu de lá ele próprio o
proprietário, não tivesse apostado em fazer um
grande restaurante, imbuído de paixão e rigor.
A sucessão de pratos que nos passa pela
elegante mesa é disso exemplo. Impressionaram o foie gras – suave, sedoso –, acompanhado por uma geleia de Trousseau que lhe dava
sofisticação, e também os fresquíssimos espargos verdes com crème de chèvre, tomate-cereja
e ovas de salmão. Tudo isto, ainda assim, não
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EDOUARD HIRSINGER
Chocolatier
Se quisermos ser precisos, foram os prussianos, ao invadirem a
Alsácia em 1870, os responsáveis por um dos cinco melhores chocolatiers de França ter loja aberta em Arbois, uma aldeia no coração do
Jura. Os Hirsinger, perante a ameaça dos sabres teutónicos, escaparam para o Jura e optaram pela nacionalidade francesa. Edouard
Hirsinger mostra-nos as relíquias que a família foi acumulando ao
longo das quatro gerações que adoçam a boca aos jurassianos e,
porque há uma chocolataria Hirsinger em franchising em Tóquio, ao
mundo também. No museu que mantém na cave por baixo da loja e
fábrica, Edouard tem, bem preservada, uma fascinante coleção de
artefactos que vai desde a frente da primeira loja que o seu bisavô
Auguste fundou em 1900, no mesmo local que a presente, até à
caixa de rebuçados art déco de época.
Mas é lá em cima que a magia acontece, numa loja de bom gosto
onde os chocolates do mundo – «o melhor de todos, para mim, é
o colombiano», afirma Edouard – se apresentam em todo o seu
esplendor.«O chocolate é uma matéria nobre e exigente», continua
Edouard, enquanto nos vai passando pequenas amostras dos doces
da casa para degustarmos. É delícia após delícia, até termos de dizer
a Edouard para parar, já que estamos em overdose de açúcar, e não
alcançámos a metade das sessenta especialidades que a casa tem
sempre à disposição dos seus clientes. Apaixonado, curioso, com
uma energia impressionante, Edouard Hirsinger é um artista que,
por acaso familiar, se dedicou à doçaria e ao chocolate. Valeria bem
a pena, só por esta elegante chocolataria e as suas maravilhas,
viajar até ao Jura, que Tóquio é bem mais longe.
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À JANELA
Madame Credoz, em
Chateau-Chalon, quer saber
ao que vimos. «Provar o seu
Jaune, madame. É possível?»
«J’arrive!», responde-nos.
À esquerda: pátio do Musée
du Vin de Chateau-Chalon,
uma visita «obrigatória».
TESOURO
Na página da direita: a
visão do Château-Chalon,
revelado a partir do jardim
do Seize Quartiers, é mágica.
Sobretudo quando surge,
deslumbrante, emoldurado
por um arco-íris. E nem
é preciso pote de ouro.
Château-Chalon.
O seu charme e as suas vistas, que lhe valeram o título de «uma
das mais belas aldeias de França», são o orgulho, indisfarçável, do maire Christian Vuillaume.
nos preparou para a sumptuosa e tenríssima
vollaile acompanhada de espargos verdes crocantes e batata, um triunfo culinário de leveza
e sabores! Dos vinhos, todos jurassianos, como
se impunha, destacaram-se um Chardonnay
do domaine de La Pinte, mineral e longo na
boca, um Fleur de Savagnin de 2011, de
Julian Labet, fresco de uma mineralidade sur­
preendente e, para acompanhar os deliciosos
Comté e Morbier, um grande jaune, de 2005,
do domaine de La Renardiére. Inexplicável
de bom. De resto, quando perguntamos a
Samuel que ingrediente lhe é indispensável
na cozinha, a resposta vem acompanhada de
uma gargalhada: «O vinho, claro!»
Regressamos a Château-Chalon por uma
serpenteante estrada rodeada de verde e mais
verde. É fácil demorar mais do que o tempo
previsto nestes curtos percursos. À chegada à
aldeia mais famosa do Jura, segunda, e muitas
vezes primeira, casa de artistas como Bernard
Moninot, artista plástico, decidimos parar
para fotografar um habitante que poda a sua
sebe. Mas quem nos interpela é um cidadão do
outro lado da rua que quer saber quem somos
e o que fazemos. Jornalistas, respondemos,
à descoberta do Jura. «Christian Vuillaume,
le maire», anuncia-se de mão estendida. Em
breve estamos a tentar encaixar na nossa
agenda um inesperado convite para uma
conversa e, mais importante para o nosso
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maire, a oportunidade de uma fotografia.
«Oui, monsieur le maire! Mais para o fim do
dia! Combinado.» Entregamo-nos à aldeia, às
suas ruas frescas, à sua abadia imponente, e às
vistas deslumbrantes que os vários miradouros
proporcionam.
E vamos deixar as malas no T’Nature,
um turismo de habitação agradável e dedicado a mostrar as riquezas alimentares da
região, sempre em «bio». O sorriso aberto
de Françoise, a proprietária, é tão acolhedor
como a decoração cuidada e de bom gosto do
interior da estalagem. O T’Nature foi criado
«no espírito da amizade e fruto de um desejo
de vinte anos, quando chegámos, o meu
marido e eu, ao Jura. Comprámos o espaço
a uns amigos arquitetos que ainda vivem ao
nosso lado, e assim realizámos o sonho de ter
um sítio para receber amigos», diz Françoise.
O espaço (tnature.fr) pode abrigar até
11 pessoas e os quartos estão pensados para
acomodar várias combinações de grupos.
Deixamos Françoise e caminhamos em
direção às caves de Jean Claude Credoz, um
produtor local de vin jaune. Apesar de ser o
berço do jaune, Château-Chalon tem caído
na consideração dos exigentes apreciadores,
locais e de fora, do néctar símbolo da região.
Ser estandarte traz sempre consigo um escrutínio mais incisivo. Jean-Claude tem as suas
dúvidas em relação aos métodos mais nature
de outros produtores jurassianos. «Prefiro
um equilíbrio entre as várias práticas. Sou
cartesiano, digamos, gosto de compreender a
fundo o que estou a fazer», diz, num remoque
a algumas das práticas mais esotéricas da biodinâmica. «É importante ouvir os vignerons
mais velhos como Overnoy ou Desiré Petit,
produtor em Arbois, que era meu avô, e com
quem passei muito tempo. É isso também
que faço com o meu filho: temperar o que
está a aprender na escola com a realidade da
vinha.» Os vinhos, esses, melhoram quando passamos dos correntes, indistintos nos
brancos, agressivos nos tintos, para o jaune,
do qual provámos o 2004, com uma boa
acidez e longo em boca, fino mesmo. A boa
surpresa é o vin de paille, mistura de terços
iguais de Poulsard, Savagnin e Chardonnay,
um licoroso intenso e persistente. A sala de
provas de Jean-Claude, aberta ao público
que intensamente visita Château-Chalon
nos meses quentes, está cheia e o vigneron a
todos faz provar. Muitos saem de caixas na
mão em direção às planícies de onde vieram,
um pouco mais felizes.
Após um salto a Arlay [ver caixa] e ao
seu castelo e jardim, regressamos a Château-­
-Chalon para a conversa com o maire.
A desilusão inicial por me ver chegar sozinho – Gerardo, o fotógrafo, tinha ido captar
imagens de uma das imperdíveis maravilhas
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Orgulhosos e temperamentais,
os jurassianos, tomando como exemplo o Douro,
levaram tempo a mobilizar-se mas acabaram por unir esforços para que, a partir de 2006,
também a sua paisagem única e de grande valor cultural passasse a estar protegida.
naturais e arquitetónicas do Jura, Baume-les-Messieurs, a poucos quilómetros de Château-Chalon. e que merece, também ela, o título
de «uma das mais belas aldeias de França»
– não abalou o entusiasmo irreprimível de
Christian Vuillaume. Leva-me para a sua
cave, onde abre uma garrafa de Trousseau
para provarmos – uma colheita familiar,
feita com os pais, já falecidos, e engarrafada
no ano do nascimento do seu filho mais
velho – e falamos do caráter, e das tradições
do Jura. «Em 2006, no Jura, protegemos a
paisagem como vocês, em Portugal, fizeram
com o Douro.» Avança: «Porquê? Tivemos
medo que, a esta paisagem absolutamente
magnífica, fizessem “verrugas”. Sabe o que me
disse um velho produtor de vinho quando o
conseguimos? “Tinhas razão, ó grande insistente, tudo cansa menos quando é bonito.”
E é assim o caráter do jurassiano, duro como
o tempo invernoso – levámos imenso tempo
a convencê-los a participarem –, e, com o
tempo, caloroso como o nosso verão.» Deixamos o maire depois de um tour pela sua
casa, com soberbas vistas sobre os campos
de vinha que se estendem pelas encostas de
Château-Chalon.
Jean-Luc Bouvret fala de margens. Mais
propriamente de margem. «O jurassiano é o
mais individualista dos franceses. A Franche-Comté durante séculos ficou à margem do
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reino de França. Voilà! O Jura é a margem!
E gostamos disso. Somos independentes de
espírito, já o fomos de território.»
E assim ficamos. O restaurante já sem
clientes, nós à mesa, à volta de uma garrafa
de Trousseau, um dos vinhos mais conviviais
que existem, a falar disto e daquilo, experimentando o lado caloroso de um jurassiano
dos quatro costados, vivamente interessado no outro e cioso, ao mesmo tempo, das
suas convicções.
Na manhã da saída de Château-Chalon
despedimo-nos de Françoise com o estômago
reconfortado pelo pequeno-almoço nature –
não provar as mais de seis compotas presentes
teria sido uma ofensa à simpática proprietária.
Jean, o marido de Françoise, aproxima-se
do carro e avisa: «Monsieur le maire ligou e
está à vossa espera. Marcou uma degustação.»
O sorriso de Jean parece querer dizer «começo
a ter pena de vocês». Para fugir ao entusiasmo
promocional do maire alegamos o horário de
comboio que nos espera em Dôle, a capital
do Jura, e que nos há de levar à Borgonha.
E invade-nos o receio de que até o TGV
possa ser atrasado pela vontade férrea do
maire em tirar mais uma fotografia na sua
varanda tendo como fundo a paisagem de
Château-Chalon, «que ajudei a proteger em
2006, já vos disse?» «Oui, monsieur le maire,
certainement, au revoir. n
ANFITRIÕES
O casal Jean-Luc Bouvret e
Maia (em cima, à esquerda)
no seu Seize Quartiers. Ele,
documentarista premiado,
é um jurassiano dos quatro
costados. Ela, vinda de outras
paragens, traz à cozinha local
um toque de classe.
MONSIEUR LE MAIRE
Christian Vuillaume (em
baixo), presidente da Câmara
de Château-Chalon, é um
grande entusiasta e defensor
do património jurassiano.
Não deixou que a equipa
da Volta Mundo partisse
sem lhe fazer este retrato.
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