A gestão dos recursos humanos nas Forças Armadas e as suas

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A gestão dos recursos humanos nas Forças Armadas e as suas
2016/06/10
A gestão dos recursos humanos nas Forças Armadas e
as suas implicações para a segurança dos cidadãos1
Eduardo Jorge Antunes Afonso2
O centro de gravidade de qualquer
organização
humana
reside
na
qualidade, competência e motivação
dos seus quadros.
A problemática que pretendo analisar
nesta reflexão diz respeito às Forças
Armadas (FA), contudo as suas potenciais
consequências ou riscos são transversais
a toda a sociedade, pelo que não deve
deixar de merecer o olhar atento da
sociedade civil.
Refiro-me à questão do Regime de Contrato (RC) com limite de seis anos, em vigor
nas FA.
Esta questão, como todas as questões que merecem análise e reflexão, é complexa
e apresenta várias facetas, que podem por sua vez ser abordadas de diversos
ângulos; pretendo abordar apenas duas dessas vertentes, sem desprimor por outras,
certamente relevantes: refiro-me às implicações e riscos desta estratégia de gestão
Recursos Humanos (RH), tanto para o funcionamento e operacionalidade das FA,
como para a segurança dos cidadãos.
Para esse efeito, formulei duas questões derivadas:
1. O desperdício de capital humano qualificado e especializado e,
consequentemente, do investimento realizado no seu recrutamento, formação e
treino.
2. O risco para a segurança interna e externa3, que decorre da oportunidade de
captação desta mão-de-obra diferenciada, a custo zero, por redes de crime
organizado.
Antes de “mergulharmos” nesta reflexão, um breve apontamento, para nos situarmos
conceptualmente, na questão da gestão de RH, que podemos enunciar nos seguintes
termos:
1
Artigo originalmente divulgado pela Associação dos Oficiais das Forças Armadas.
Mestre em Ciências Militares e Auditor do Curso Intensivo de Defesa Nacional.
3
Tal como salientei na reflexão que tive ensejo de produzir acerca dos ataques de Paris, estou convicto
de que não existe uma verdadeira separação entre segurança interna e externa, mas antes que estas são
duas faces da mesma moeda, intrinsecamente ligadas, que não devem ser artificialmente separadas e
abordadas per si, sob pena de se perderem importantes sinergias e vasos comunicantes.
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«A gestão de RH é não mais do que a utilização eficiente dos colaboradores, através
do uso efetivo dos seus talentos e habilidades, com vista ao atingir dos objetivos da
organização, sem esquecer o bem-estar dos próprios colaboradores.»
Esta definição, bastante sintética, falha no ponto de vista limitado - o da empresa em que aborda a questão, descurando os seus impactos na sociedade.
Relativamente à primeira questão derivada:
Um sistema que incorpora cidadãos com idades compreendidas entre os 18 e os 24
anos e os dispensa entre os 24 e os 30 anos4 - no auge das suas capacidades físicas
e intelectuais - não pode, de todo, estar a interpretar e implementar corretamente o
conceito de gestão de RH enunciado.
Quantas especializações são ministradas, por exemplo, a um militar de uma qualquer
Força Especial (FE), quais os custos dessas formações e que retorno efetivo podem
estes militares trazer às FA e ao País, na sua curta passagem pelas fileiras?
Militares Portugueses de Forças Especiais.
Quando receberam a formação e o treino
adequados, depois de participarem, em
muitos casos, de missões internacionais e,
mais
importante,
se
encontram
“endoutrinados” (imbuídos dos valores e
da cultura institucional intrínsecos às FA,
como o patriotismo, a disciplina, o espírito
de corpo, a abnegação, entre outros), são
ingloriamente
dispensados,
antes
mesmos de alcançarem a sua “Full
Operational Capability” (FOC), para
utilizar um inglesismo muito usado entre
nós.
Em síntese: o atual sistema de gestão, ao invés de garantir «a utilização eficiente
dos colaboradores», desperdiça não só RH qualificados como os recursos financeiros,
humanos e materiais investidos no seu recrutamento, formação e treino.
No que diz respeito à segunda questão derivada:
No caso concreto dos RH das FA, com as suas características e habilidades específicas
e, em alguns casos, extraordinárias, o impacto da sua transição desordenada do
serviço ativo para a disponibilidade encerra desafios e riscos para a segurança que
não podem, nem devem, ser descurados.
Temos que nos interrogar, com sentido crítico, acerca das competências em áreas
sensíveis, como as comunicações, os explosivos ou “sniper” - para dar apenas alguns
exemplos - adquiridas pelos militares na sua breve passagem pelas fileiras.
Estes militares são dispensados das fileiras, contra sua vontade, em muitos casos
revoltados e relativamente desprotegidos, dotados de um conjunto de competências,
atitudes e comportamentos que os transformam em “alvos” fáceis e muito apetecíveis
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Dos 18 aos 24 anos e no mínimo o 9.º ano de escolaridade; até aos 27 anos, com licenciatura; e até aos
30 anos, com licenciatura em medicina.
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para as redes de crime organizado e, efetivamente, para as redes de recrutamento
de organizações terroristas.
O auto proclamado “Estado Islâmico”, é sabido, incorpora ex-militares de diversas
nacionalidades, com esse tipo de competências e sofisticação, com os resultados que
estão à vista de todos, tanto em termos de capacidade de planeamento, quanto no
rigor e eficácia na condução de operações militares e na execução de atentados.
Compreende-se facilmente o interesse destas redes em explorar este “filão” de mãode-obra qualificada, em alguns casos altamente diferenciada e treinada, a custo zero.
Nos Estados Unidos da América (EUA), as autoridades manifestam preocupação com
o interesse de organizações criminosas conhecidas por “gangs”, em recrutar exmilitares e/ou em infiltrar as FA em geral e as FE em particular, com o intuito de
adquirir competências e treino operacional de qualidade e, não menos importante,
de obter licença para adquirir armas de
guerra.
O FBI publicou um relatório em 2011 em
que alerta para que os “gangs” e o crime
organizado penetraram já todos os ramos
das FA.5
No relatório, o FBI estima que existam 1,4
milhões de membros de “gangs” nos EUA,
e que muitos estão a penetrar as FA, que
já registaram membros de 53 “gangs”
diferentes, em instalações militares, em
nos EUA e no estrangeiro.
Um soldado norte-americano numa zona
de combate, utilizando sinalética e
linguagem corporal associada à subcultura
dos “gangs”.
O relatório considera que os militares
afiliados a “gangs” expandem a sua cultura e operações a novas regiões, tanto no
plano interno como externo, minando os esforços das autoridades no combate ao
crime organizado.
Os membros de “gangs” com treino militar representam uma ameaça única para as
Forças e Serviços de Segurança (FSS), devido à sua capacidade para utilizar
armamento especial e às competências de combate adquiridas, que por sua vez
podem transmitir aos membros dos respetivos “gangs”.
No México, o cartel “Los Zetas”, o mais poderoso e cujos métodos são de uma
brutalidade extrema, foi criado por 34 ex-militares das FE mexicanas.6
5
“The FBI Announces Gangs Have Infiltrated Every Branch Of The Military” disponível em:
[http://www.businessinsider.com/fbi-gang-assessment-us-military-2011-10].
6
“How
34
commandos
created
Mexico's
most
brutal
drug
cartel”
disponível
em:
[http://www.businessinsider.com/how-34-commandos-created-mexicos-most-brutal-drug-cartel-20153].
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O Governo dos EUA classificou-o como “o mais tecnologicamente avançado,
sofisticado e perigoso Cartel a operar no México”.
Os métodos extremamente violentos e o uso de armamento sofisticado são imagens de marca
do cartel Los Zetas.
Com uma forte presença em 17 Estados mexicanos – metade do país – Los Zetas é
a maior organização criminosa a operar no País.
O
Departamento
de
Defesa
Mexicano reconheceu-o o grupo
como “o mais formidável esquadrão
da morte que alguma vez trabalhou
para o crime organizado, na história
do México”.
Los Zetas estendem a sua influência a metade do
território mexicano, e muito para lá das fronteiras
do país.
Outros exemplos haverá, um pouco
por todo o mundo (Máfia Russa /
Spetznaz, etc.), pelo que não nos
podemos considerar imunes a estas
tendências e aos riscos para a
segurança que representam.
Se a questão da compra do
armamento de guerra não se coloca em Portugal com a mesma acuidade (não deixa
de ser preocupante e um provável sinal desta tendência, os recentes - e públicos furtos de armas em unidades militares), já a aquisição de competências e treino
operacional tem, obviamente, relevância entre nós.
A incorporação de valor acrescentado na organização sem a necessidade de
investimento em formação e treino é tão aliciante para o crime organizado em
Portugal, como o é em qualquer parte do mundo. É uma questão de necessidade,
disponibilidade e oportunidade e as leis de mercado funcionam basicamente do
mesmo modo, em qualquer ponto do globo.
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Para agravar este quadro, o
financiamento
destas
redes
criminosas não é, no quadro
atual, propriamente difícil, tendo
nos paraísos fiscais - que
movimentam, fora do controlo
das autoridades, 8 % de toda a
riqueza mundial 7, terreno fértil
para
as
operações
de
financiamento
e
de
branqueamento
de
capitais
destas organizações. 8
O negócio da droga gera enormes volumes de
dinheiro, que os offshores e a opacidade do setor
financeiro ajudam a “lavar”.
Entre nós, felizmente, não tem sido noticiada a contratação de ex-militares por
organizações ligadas ao crime organizado, o que não quer dizer que esse risco não
exista, ou que seja negligenciável, particularmente num contexto de graves
dificuldades socioeconómicas, em que o desemprego é uma dura realidade.
Fará sentido, e será esta a melhor gestão de RH, continuarmos a dispensar os nossos
contratados no auge das suas capacidades? Não seria mais racional rentabilizar estes
militares, o seu “saber de experiência feito”, mantendo-os na componente
operacional do sistema de forças por um período mais longo, quiçá até aos 40 anos
de idade?
Num contexto em que se assiste ao acentuado e acelerado envelhecimento da
população portuguesa9 e ao aumento de longevidade nas sociedades modernas veja-se a crescente longevidade dos atletas de alta competição -, uma solução desta
natureza reveste-se de particular pertinência e atualidade.
Este envelhecimento terá, a curto
prazo (se não está já a verificar-se),
reflexos
muito
negativos
na
capacidade das FA para captar
voluntários em número suficiente10
para suprir as suas necessidades de
pessoal em RC.
Aos 38 anos, Ricardo Carvalho será o jogador
de campo mais velho de sempre, a participar
no Europeu de futebol.
A esta dificuldade acresce a falta de
atratividade do RC nas FA, que se
apresenta como uma solução de
trabalho de baixa remuneração, e a
termo.
7
El Telegrafo online, disponível em: [http://www.eltelegrafo.com.ec/noticias/economia/8/el-8-de-lariqueza-mundial-esta-offshore].
8
Para não falar de mecanismos ainda mais difíceis de rastrear pelas autoridades, como é o caso da moeda
“bitcoin”, transacionada na “darkweb” e utilizada para todo o tipo de atividades ilícitas ou criminosas.
9
PORDATA, disponível em: [http://www.pordata.pt/Portugal/Indicadores+de+envelhecimento-526]
10
É sabido que a tendência natural, quando os números insuficientes, é de diminuir o grau de exigência
colocado na seleção.
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As FSS não têm (ainda) dificuldades de recrutamento, por diversos motivos, sendo a
existência de um QP para praças/ agentes, com toda a certeza, um dos principais.
A população portuguesa apresentava em 2014 um índice de envelhecimento de 138,6%.
Como gerir então esta matéria tão sensível?
De uma perspetiva da gestão de RH, a operacionalização desta solução far-se-ia de
modo bastante simples e, muito provavelmente, menos oneroso para o erário público
do que o sistema atual: através da criação de um Quadro Permanente (QP) para
militares oriundos do RC.
Esta solução permitiria uma melhor rentabilização do investimento - não desprezível
- feito no recrutamento, formação e treino destes militares e, simultaneamente,
diminuir - não eliminar - o risco destes virem a ser captados por organizações
criminosas e/ou terroristas.
Perguntarão os mais céticos: o que fazer com estes militares, após os 40 anos?
Penso que esta é uma falsa questão; quantas funções de natureza administrativologísticas são hoje desempenhadas por jovens na casa dos 20 anos? E haverá alguma
vantagem nisso?
Não se sentiria um general mais seguro, se tivesse como condutor um experiente exoperacional de uma FE, em vez de um jovem na casa dos 20 anos, dotado apenas
da instrução militar básica? Penso que sim.
A doutrina de referência considera a necessidade de 7 (sete) Homens envolvidos em
tarefas relacionadas com a formação e com o apoio administrativo-logístico, por cada
combatente na “linha da frente”.11
Não faria mais sentido integrar estes ex-operacionais nas estruturas de apoio,
naturalmente submetendo-os a formação adicional para o desempenho das novas
funções, de modo a não se perder o seu conhecimento e experiência acumulada,
numa lógica de aprendizagem ao longo da vida?
É portanto necessário reorientar a filosofia de gestão de RH, de tal forma a que os
militares iniciem, por regra geral, a sua carreira no desempenho de tarefas de
11
«Assim, em qualquer exército ocidental, o número de efetivos utilizados para o municiamento das
unidades de combate era muito superior ao número de combatentes.» Excerto de “A guerra na história da
Europa”, de Michael Howard.
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natureza operacional para, após os 40 anos de idade (ou outra que se entenda mais
adequada do ponto de vista psicofisiológico), passarem por um processo de
reorientação laboral, que lhes permita integrar as estruturas de formação ou de apoio
administrativo-logístico.
As FA precisam, como do ar que respiram, de valores fundamentais como o da
coesão, da disciplina, e de espírito de corpo. Estes valores são valores que se
aprendem, desenvolvem, consolidam e transmitem às novas gerações no decurso de
uma vida, não de seis anos.
Esse passar de testemunho enriquece qualquer organização, ainda mais quando esta
assenta em valores e atitudes que, infelizmente para a nossa sociedade
doentiamente competitiva e autofágica, se praticam cada vez menos, e que por isso
mesmo se vão, gradual mas irremediavelmente, perdendo.
Em conclusão: um QP de Praças, Sargentos e Oficiais oriundos do RC constituiria uma
ferramenta fundamental para gestão de RH numas FA modernas e adaptadas à
realidade demográfica do país.
Simultaneamente, não resolvendo por completo o quadro de riscos e ameaças que
constitui a captação de RH diferenciados por organizações criminosas e/ou
terroristas, poderia contribuir, para a solução deste problema, potencialmente grave.
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