O REGIME DISCIPLINAR DIFERENCIADO FRENTE AOS
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O REGIME DISCIPLINAR DIFERENCIADO FRENTE AOS
1 O REGIME DISCIPLINAR DIFERENCIADO FRENTE AOS PRINCIPIOS CONSTITUCIONAIS DO DIREITO PENAL Christiane Pinto Thomazatti Resumo: O presente artigo visa fazer uma análise do Regime Disciplinar Diferenciado (RDD) frente aos direitos e garantias fundamentais do ser humano trazidos pelo art. 5º da Constituição Federal, bem como ao princípio da dignidade da pessoa humana elencado em seu artigo 1º. Farei ainda uma análise de tal regime frente ao principio da presunção de inocência, principio este que norteia a interpretação das leis penais. Há que se analisar ainda, se o referido regime cumpre com a finalidade da pena que se traduz na reeducação e ressocialização do apenado. Defenderei, portanto, a tese de que o Regime Disciplinar Diferenciado é inconstitucional. Palavras chave: Regime Disciplinar Diferenciado; Inconstitucionalidade; Direitos e Garantias Fundamentais; Princípios. Abstract: The present essay aims at doing an analysis of the Differentiated Disciplinary Regimen facing to the rights and the human being's fundamental warranties brought by the 5th article of the Federal Constitution, as well as to the human dignity principle enrolled in its 1st article. It also makes an analysis of such regimen facing to the innocence presumption principle which orientates the penal laws interpretation, and the referred regimen accomplishes with the punishment purpose which can itself translates into the convicted rehabilitation and resocialization, and it also defends the theory in which the Differentiated Disciplinary Regimen is unconstitutional. Key words: Differentiated Disciplinary Regimen; Unconstitutionality; Rights and Fundamental Warranties; Principles. Introdução A criminalidade é um dos principais problemas enfrentados pelo nosso País, conseqüentemente, a violência urbana. Vivemos em um País onde a classe abastada é minoria, e o que predomina é a miséria, e a desigualdade social. Entretanto, é grande o desinteresse do Estado para combater essa desigualdade. Pode se dizer que a violência urbana que tanto assola a sociedade é fruto de políticas que não combatem a desigualdade social. 2 Por sua vez, as casas de custódia superlotadas não estão prontas para exercerem seu papel para com os apenados, o de cumprir com a finalidade da pena: reeducação e ressocialização para que possam ser ”devolvidos” ao convívio social. Devido a série de rebeliões ocorridas no início desta década em São Paulo, Rio de Janeiro e Paraná, foi emitida a resolução da Secretaria de Administração Penitenciária (SAP) 26/2001 que inseriu o Regime Disciplinar Diferenciado (RDD) no Estado de São Paulo, levando posteriormente à edição da Lei nº 10.792/2003 inserindo-o em âmbito Nacional. Ocorre que o regime acima citado se caracteriza pela sua rigidez e severidade que chegam a ultrapassar os limites da dignidade da pessoa humana. Suas regras acabam por infringir os princípios consagrados na Constituição Federal. No RDD, o preso, condenado ou provisório, que cometa falta grave que constitua crime doloso, ou represente alto risco para o bom funcionamento do estabelecimento prisional, ou seja, suspeito de envolvimento em organizações criminosas, é submetido a isolamento em cela individual, sem assistência religiosa, educacional ou laboral, com duas horas para o banho de sol. A Constituição Federal de 1988 traz em seu art. 5º os direitos e garantias fundamentais tais como: a proibição à tortura e a tratamento desumano ou degradante, o direito à assistência religiosa aos presos, a proibição às penas cruéis, o respeito à integridade física e moral dos presos, bem como à assistência da família e do advogado. O objetivo deste trabalho será discutir se o regime disciplinar diferenciado resguarda estes direitos e garantias inerentes aos seres humanos, bem como se tal regime está em conformidade com os princípios constitucionais e com os princípios do direito penal. O presente estudo objetiva fazer uma análise sobre o regime disciplinar diferenciado (RDD) frente aos princípios constitucionais, alicerce do Estado Democrático de Direito, elencados pela Constituição Federal, em seu art. 1º, bem como à inobservância dos direitos e garantias fundamentais do ser humano trazidos pelo seu art. 5º. 3 Apontarei ainda as deficiências do sistema penitenciário brasileiro, sua falta de estrutura, o que gera, de forma incessante, os conflitos que perturbam a ordem interna dos estabelecimentos prisionais. Logo, pode-se dizer que o regime disciplinar diferenciado é fruto do descaso do Estado para com estas instituições. Portanto, não é justo que em virtude dessa deficiência nas penitenciarias, pessoas tenham seus direitos e garantias fundamentais, bem como a sua dignidade humana ignorados e desrespeitados por tal regime. Há que se ressaltar que o RDD é, ainda, uma afronta ao principio norteador das leis penais. Principio este que motiva a interpretação das mesmas em beneficio do réu (Principio do in dúbio pró réo), bem como também o principio da presunção de inocência, remetendo-nos ao pressuposto de que todo réu é inocente até o transito em julgado da sentença condenatória. O fato de poderem os presos provisórios, ou seja, aqueles ainda não condenados ser inseridos no RDD, é uma afronta incontestável a estes dois princípios. 1. Aspectos inconstitucionais do regime disciplinar diferenciado Após ter enfrentado um longo período ditatorial, o Brasil iniciou movimento de redemocratização do Estado sendo a Constituição Federal de 1988 o reflexo mais marcante deste movimento. Dentre os fundamentos da Republica Federativa do Brasil está a formação de um Estado Democrático de Direito, que dentre outros, tem como principio básico a dignidade da pessoa humana, elencada em seu art. 1º. Alexandre de Moraes conceitua, que “o Estado Democrático de Direito significa a exigência de reger-se por normas Democráticas, com eleições livres, periódicas e pelo povo, bem como o respeito das autoridades políticas aos direitos e garantias fundamentais”.1 Assim, os princípios basilares do Estado Democrático de Direito implicam que as leis infraconstitucionais sejam editada e interpretadas em conformidade com os preceitos constitucionais. Logo, qualquer lei editada no Brasil deve observar todos os princípios e normas previstos na Constituição Federal de 1988. Deste modo, as leis que regulamentam matéria de Direito Penal ou Processual Penal devem estar em conformidade com a Lei Maior. 1 MORAES, Alexandre. Direito Constitucional, 21ª ed. São Paulo: Atlas, 2007, p.17 4 Na hipótese de uma lei infraconstitucional desrespeitar os preceitos trazidos pela Constituição, esta norma será passível de exclusão do ordenamento jurídico, podendo ser esta desconformidade formal ou material. Pode-se dizer, então, que toda matéria de Direito seja qual for o ramo deve estar atenta aos princípios constitucionais. É com este raciocínio que o presente artigo analisa o Regime Disciplinar Diferenciado. Com o advento da lei 10.792/2003, as criticas de inconstitucionalidade que recaiam sobre a Resolução SAP nº 26, quanto à formalidade, já que a constituição federal não atribui aos Estados competência para legislar matéria de Direito Penal, tornam-se ultrapassadas. Contudo, ainda permanece a crítica no que concerne a violações aos princípios constitucionais penais. O controle constitucional material de uma lei se faz quando analisa esta frente aos preceitos constitucionais. Paulo Bonavides define: “o controle material de constitucionalidade é delicadíssimo em razão do elevado teor de politicidade de que se reveste, pois incide sobre o conteúdo da norma, desce ao fundo da lei, outorga a quem o exerce competência com que decidir sobre o teor e a matéria da regra jurídica. Busca acomodá-lo aos cânones da constituição, ao seu espírito, à sua filosofia, aos seus princípios políticos e fundamentais”.2 De acordo com a definição de Alexandre de Moraes: “controlar a constitucionalidade significa verificar a adequação (compatibilidade) de uma lei ou de um ato normativo com a constituição, verificando seus requisitos formais e materiais.”3 Ao fazer uma analise do Regime Disciplinar Diferenciado frente aos princípios constitucionais, é flagrante sua inconstitucionalidade, uma vez que viola os princípios e garantias fundamentais de nossa lei maior. 2 3 BONAVIDES, Paulo. Ciência Política, 10ª ed. São Paulo: Malheiros. 2005, p.299 MORAES, Alexandre, op cit, p.676 5 1.1 Princípio da dignidade da pessoa humana e princípio da presunção de inocência No que concerne ao principio da dignidade da pessoa humana temos na definição de Maria Celina Bodin de Moraes que “para distinguir os seres humanos, diz-se que detém uma substância única, uma qualidade própria apenas dos humanos; uma dignidade inerente à espécie humana”. Destaca ainda que “ao ordenamento jurídico, enquanto tal, não cumpre determinar seu conteúdo, suas características, ou permitir que se avalie essa dignidade [...] esclareça-se que não se trata de acatar uma posição jus naturalista, mas de ressaltar que, evidentemente, antes de se incorporarem os princípios às constituições, foi imperioso que se reconhecesse os ser humano como sujeito de direito e, assim, detentor de uma dignidade própria, cuja base (lógica) é o universal direito da pessoa humana”.4 Para Alexandre de Moraes “a dignidade da pessoa humana concede unidade aos direitos e garantias fundamentais sendo inerente à personalidade humana. Esse fundamento afasta a idéia de predomínio das concepções transpessoalistas de Estado e Nação em detrimento da liberdade individual.” 5 A Declaração Universal dos Direitos Humanos de 1948, em seu art.1º informa: “todas as pessoas nascem livres e iguais em dignidade e direitos”. Após vivenciar vinte anos de regime autoritário o Brasil, através da Constituição Federal de 1988, em seu art. 1º, coloca o principio da dignidade da pessoa humana como alicerce fundamental para a República, base fundamental do Estado Democrático de Direito. Christiano Chaves de Farias escreve: “importa destacar que o mais precioso valor da ordem jurídica brasileira, erigido como fundamental pelo CF/88, foi a dignidade da pessoa humana, que como consectário impõe a elevação do ser humano ao centro de todo o sistema jurídico, no sentido de que as normas são feitas para a pessoa e sua realização existencial, devendo 4 MORAES, Maria Celina Bodin de. Danos à pessoa humana. Rio de Janeiro: Renovar, 2003, p.77,82. 5 MORAES, Alexandre, op cit, p.16. 6 garantir-lhe o mínimo de direitos fundamentais que sejam vocacionados para lhe proporcionar vida com dignidade.”6 Define ainda dignidade como “qualidade intrínseca e distintiva de cada ser humano que o faz merecedor do mesmo respeito e consideração por parte do Estado e da comunidade, implicando, neste sentido um complexo de direitos e deveres fundamentais que asseguram a pessoa tanto contra qualquer ato de cunho desumano ou degradante, como venham a lhe garantir as condições existenciais mínimas para uma vida saudável, alem de propiciar e promover sua participação ativa e co-responsável nos direitos a própria existência e da vida em comunhão com os demais seres humanos. Dignidade da pessoa humana, nessa ordem de idéias, expressam uma gama de valores humanizadores e civilizatórios incorporados ao sistema jurídico brasileiro, com reflexos multidisciplinares”. Analisando o Regime Disciplinar Diferenciado frente ao principio da dignidade da pessoa humana, há que se ressaltar que o cerceamento provisório da liberdade do ser humano deve ser disciplinado pelo Estado, com o objetivo de aproveitar este período em que a pessoa é afastada do convívio social para prepará-lo para ser reinserido à sociedade. Este é o principal fundamento da pena de prisão que tem por finalidade a reforma e readaptação social dos condenados. A Lei de Execução Penal (LEP) em seu art. 1º diz: “a execução penal tem por objetivo efetivar as disposições de sentença ou decisão criminal e proporcionar condições para a harmônica integração social do condenado e do interno”. Conforme se verifica nos diplomas acima mencionados, a lei não proíbe o castigo de isolamento, contudo, deve ser aplicado apenas em casos excepcionais, quando aplicado deve assegurar ao preso um acompanhamento médico para que se avalie seu estado físico-mental, garantindo sua integridade. O “jus puniendi” do Estado ao tentar assegurar ou garantir a restauração da paz social, deve se pautar em alguns limites, dentre eles o principio da dignidade da pessoa humana. O Estado não pode se manter 6 FARIAS, Christiano Chaves. Direito Civil: Teoria Geral. 2ª ed. São Paulo: Lúmen Júris.2005,v.1.,p.96,98. 7 apático com relação aos limites impostos pela condição humana do acusado, por mais reprovável que tenha sido sua conduta deve ter um tratamento digno. O fato de poderem os presos provisórios ser enquadrados no RDD é uma violação gritante ao principio supramencionado, uma vez que os presos que esperam um julgamento têm sua pena antecipada, contrariando ainda o que prevê o art. 5º LVII da Constituição Federal, qual seja, “ninguém será considerado culpado até o transito injulgado da sentença penal condenatória”, o que se traduz no principio da presunção de inocência. É flagrante o desrespeito a esta garantia constitucional, pois prevê a possibilidade de aplicação de uma pena ao preso provisório, que ainda não foi levado a julgamento. Logo, ele é presumidamente inocente. É possível constatar ainda como violação ao principio da presunção de inocência uma vez que a importância do fato típico não é suficiente para presumir a personalidade do autor, pois é necessário que haja dados que informem ser ele, enquanto preso, uma ameaça à paz, à ordem e à segurança do estabelecimento prisional. É inadmissível punir alguém porque ele representa um risco, sem ao menos ter cometido um fato que sirva de parâmetro para qualificar sua periculosidade, não se deve punir pelo que é, pela personalidade, mas sim pelo fato cometido. De acordo com Renato Marcão, “ao contrário do que reclama o caput do art. 52 a inclusão do preso provisório ou condenado, nacional ou estrangeiro no Regime Disciplinar Diferenciado, o parágrafo 1º do mesmo artigo não exige que tenham eles praticado crime doloso durante o período de permanência no estabelecimento prisional. Para a inclusão no RDD basta que apresentem um alto risco para a ordem do estabelecimento penal ou da sociedade. O problema crucial reside em especificar, em cada caso, o que se deve considerar como de alto risco para a ordem e a segurança do estabelecimento penal ou da sociedade; não sendo demais lembrar que o fato de o preso ter envolvimento com organizações criminosas ou pertencer a quadrilha ou bando constitui fundamento distinto regulamentado pelo parágrafo 2º do art. 52”.7 Nas palavras de Cezar Roberto Bitencourt, “com o Regime Disciplinar Diferenciado o governo brasileiro passa a adotar o prescrito direito 7 MARCÃO, Renato. Curso de Execução Penal. São Paulo: Saraiva. 2008, p.40-41. 8 penal de autor, de cunho fascista, ressuscitado por movimentos sociais do Direito Penal do Inimigo.” Afirma ainda que “a lei 10792/2003 não faz previsões relacionadas a fatos, mas a determinados tipos de autores, submetidos a isolamento não pela prática de algum crime, mas sim, pelo fato de representarem um alto risco, uma ameaça ao convívio social, uma avaliação um tanto subjetiva”. E continua: “para as instâncias de controle não importa o que se faz “Direito Penal de Fato”, mas sim quem faz “Direito Penal de Autor”.8 1.2 Princípio da legalidade O artigo 5º inciso XXXIX da Constituição Federal assegura que “não há crime sem lei anterior que o defina, nem pena sem prévia cominação legal”, o que se traduz no princípio da legalidade. Alexandre de Moraes defende que “tal principio visa combater o poder arbitrário do estado”.9 As condutas tipificadas como crime devem ter uma descrição clara e objetiva de forma a não deixar espaço para interpretações arbitrárias e equivocadas. Analisando o RDD frente a esta definição é possível perceber que o legislador criou tipos penais genéricos e vazios na redação dos parágrafos primeiro e segundo da lei de execução penal. À medida que o legislador permite tipos penais genéricos e subjetivos, deixa margem para aplicações arbitrárias por parte da administração penitenciária, posto que se o administrador apenas suspeitar que alguém faça parte ou comande uma organização criminosa, poderá transferi-lo para o Regime Disciplinar Diferenciado. De acordo com Rômulo de Andrade Moreira, “o que seria fundada a suspeita? Afinal, a presunção constitucional não é de não-culpabilidade? E o que seria mesmo uma organização criminosa? Como se sabe, não há no Brasil uma lei que traga tal definição, ferindo-se, destarte, o principio da legalidade, também índole constitucional.”10 8 BITENCOURT, Cezar Roberto. Código Penal Comentado. São Paulo: Saraiva. 2007, p.157. MORAES, Alexandre. op cit, p.36. 10 MOREIRA, Rômulo de Andrade. Regime Disciplinar Diferenciado (RDD): inconstitucionalidade. Jurisprudência comentada. Disponível em: <http://www.jusnavigandi.com.br/doutrina>. Acesso em 11/maio/2008. 9 9 Na mesma linha de pensamento destaca Renato Marcão que “as fundadas suspeitas de envolvimento ou participação, a qualquer titulo, em organizações criminosas, quadrilha ou bando como causa de inserção do condenado ou do preso provisório em Regime Disciplinar Diferenciado, nos termos do parágrafo 2º do artigo 52 da lei 7.210/84, com a redação da lei 10.792/2003, devem ter relação com atos por ele praticados no estabelecimento prisional, cuja ordem e segurança esse estabelecimento prisional tem por finalidade resguardar. Não há na lei 9.034 de 03 de maio de 1995, o em qualquer outra uma definição do que venha a ser organização criminosa, quadrilha ou bando tema que se insere no estudo do artigo 288 do código penal”.11 Faz consignar ainda que “a lei nº 11.343, de 23 de agosto de 2006 (nova lei de drogas) referindo-se a organizações ou associações criminosas fala ainda sobre a existência de grupo “obviamente criminoso”, figura que também até agora não recebeu qualquer definição legal e escapa da previsão contida no novo artigo 52 da lei de execução penal, a descortinar mais uma vez, a falta de cuidado e conhecimento sistêmico do legislador penal, quase sempre imprudente, mesmo em se tratando de tema que deveria despertar particular preocupação.” É evidente a inconstitucionalidade do RDD à luz do principio da legalidade, uma vez que torna possível uma punição rígida ao preso submetido ao regime em tela, por recair sobre ele uma suspeita, uma suposição de que seja um integrante de uma organização criminosa, quadrilha ou bando. Acerca da expressão “alto risco para a segurança do estabelecimento ou da sociedade” vale ressaltar que é muito subjetivo o estabelecimento de um parâmetro para aferir se alguém ameaça a vida em grupo. Que tipo de conduta caracterizaria este alto risco? Nas palavras de Renato Marcão “é necessário que a sanção seja individualizada e proporcional à conduta, aferindo caso a caso a natureza e a gravidade da infração praticada, bem como as circunstancias do fato e a pessoa do faltoso”.¹¹ 11 MARCÃO, Renato. op cit, p. 41. 10 Como se pode verificar desta afirmação, a sanção deve ser aplicada levando-se em conta uma conduta, um ato praticado. Ocorre que nas hipóteses dos parágrafos 1º e 2º do artigo 52 da Lei de Execução Penal não há definição de condutas, mas sim, presunções extremamente abstratas e subjetivas. É incontestável a violação do principio da legalidade e da tipicidade em matéria penal, descrito no a art. 5º, inciso XXXIX, pois deixa margem para aplicação de uma sanção severa, sem que na maioria das vezes haja uma conduta típica, transferindo assim, arbitrariamente o preso para o isolamento, em uma cela individual por até 360 dias. 1.3 Princípio non bis in idem A interpretação que se tem, da redação do art. 52 da LEP é que a aplicação do RDD gera uma nova pena, além daquela imposta pelo juiz processante, uma vez que prevê que o preso inserido neste regime fique isolado até o prazo de 360 dias, sem prejuízo de repetição por nova falta grave de mesma espécie, até o limite de 1/6 da pena aplicada, sendo as visitas semanais restringidas com duração máxima de duas horas, evita-se o contato do apenado com seus familiares, podendo sair da cela por apenas duas horas diárias destinadas ao banho de sol, deixando margem a uma indagação: e nos dias em que estiver chovendo? O preso permanecera na cela durante as vinte e quatro horas do dia em total isolamento? A aplicação da pena prevista nas normas do RDD, em razão das condutas descritas no art. 52 da LEP, não consta no rol dos delitos tipificados pelo Código Penal. Assim, é portadora de um vicio de constitucionalidade, posto que atinja a liberdade do infrator, sem que lhe seja assegurada a garantia do devido processo legal. Analisando o RDD frente ao principio “non bis in idem”, é possível verificar mais uma vez que este padece de inconstitucionalidade, uma vez que o caput do referido artigo dispõe que a pratica de crime doloso constitui falta grave, cabendo a aplicação do RDD, ensejando à aplicação de duas sanções pelo mesmo fato, ou seja, a prática do mesmo crime doloso abre espaço para aplicação de uma sanção penal e de uma sanção administrativa que não deixa de ser também uma sanção penal. 11 1.4 Princípio do devido processo legal O artigo 60 da lei 10.792/2003 dispõe que “a autoridade administrativa poderá decretar o isolamento preventivo do faltoso pelo prazo de 10 dias. A inclusão do preso em Regime Disciplinar Diferenciado, no interesse da disciplina e da averiguação do fato, dependerá de despacho do juiz competente”. É evidente a violação do principio do devido processo legal, previsto pelo artigo 5º, LIV da Constituição Federal: “ninguém será privado de sua liberdade ou de seus bens sem o devido processo legal”, pois confere à autoridade administrativa o poder de decretar o isolamento, ainda que preventivo, sem que este tenha pleno conhecimento das causas de sua acusação, mitigando-lhe o contraditório e a ampla defesa. Nas palavras de Renato Marcão: “é imprescindível, sob pena de constrangimento ilegal e nulidade do procedimento que se assegure ao preso o direito à ampla defesa e ao contraditório”.12 Destaca ainda que “a decretação do isolamento preventivo reclama a constatação e demonstração, em despacho judicial fundamentado, de dois requisitos básicos: “fumus boni júris” e “periculum in mora”. 1.5 Princípio da inafastabilidade da jurisdição e princípio do juiz natural É possível constatar ainda a violação do RDD ao principio elencado no art. 5º, XXXV da Constituição Federal “a lei não excluíra da apreciação do poder judiciário lesão ou ameaça de direito”, qual seja, princípio da inafastabilidade da jurisdição. Assim, o isolamento preventivo não deve ser decretado sem que haja uma decisão fundamentada da autoridade judiciária. No que concerne ao juízo competente, seria o juiz que processou ou da execução? O artigo 60 foi omisso nesse sentido, uma vez que não especificou de quem é a competência. O posicionamento majoritário, citando Guilherme de Souza Nucci13, é de que o juiz competente seja o da execução. Contudo, implica o desrespeito 12 MARCÃO, Renato. op cit, p. 45,47. 12 ao juiz natural, pois o crime cometido e a forma de execução são aspectos que atingem a individualização da pena no processo do cognitivo, pois são fatores adstritos à culpabilidade, e não à individualização da execução. Portanto, o juízo competente para apreciar o despacho deveria ser o juízo processante. 1.6 Artigo 5º, IV da Lei 10.792/2003 A Constituição Federal em seu art. 133 dispõe que ao advogado é indispensável para administração da justiça. Sendo promulgada mais tarde a lei 8.096/94 que em seu art. 7º destaca alguns direitos dos advogados, tais como: ingressar livremente nas salas e dependências de audiências, em delegacias e prisões, mesmo fora do expediente e independentemente da presença de seus titulares, entre outros. Por sua vez, a lei 10.792/2003, em seu art. 5º, IV dispõe que o Regime Disciplinar Diferenciado poderá ser regulamentado para: “disciplinar o cadastramento e agendamento prévio das entrevistas dos presos provisórios ou condenados com seus advogados, regularmente constituídos nos autos da ação penal ou processo de execução criminal, conforme o caso”. Tal dispositivo exige um cadastramento e um agendamento prévio para que o advogado possa visitar seu cliente, sendo assim mitigada a atividade desses profissionais que terão de agendar o encontro e esperar o prazo de dez dias para obtê-lo, somente provando por meio de documentação a urgência do encontro que lhe será concedida reunião de imediato. Logo, ao cerceamento de defesa do preso. 2. Aplicação das normas constitucionais Nas palavras de Rômulo de Andrade Moreira, “desde o surgimento do estado moderno, encontra-se constitucionalizado o lineamento das regras pelas quais se admite a supressão da natural liberdade de locomoção da pessoa, “pari passu” à correspondente consolidação dos direitos e garantias do 13 NUCCI, Guilherme de Souza. Individualização da Pena. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2008, p. 274. 13 cidadão, tendentes a evitar o abuso do poder estatal em matéria tão delicada”.14 Conforme já foi dito, a Constituição Federal de 88, em seu artigo 5º, incisos II, III, XXXV, XXXIX, XLVI, XLVII, XLIX, entre outros, estabelece alguns padrões mínimos fora dos quais a privação da liberdade deve ser tida como ilegal, em face dos quais o presente artigo analisa o RDD. Vale ressaltar que a Lei Maior foi além, com a crescente universalização das regras de direitos humanos, inovando ao introduzir o parágrafo 1º e 2º no rol de direitos fundamentais, garantindo a eficácia imediata dos direitos e garantias fundamentais e abrindo a possibilidade de incrementar ainda por força de dispositivos contidos em tratados do direito internacional dos direitos humanos. Rômulo de Andrade Moreira faz consignar ainda que “embora se trate de inovação em nosso país, a iniciativa seguiu o exemplo do artigo 16º, 1, da Constituição da República Portuguesa de 1976 mediante a qual ao elenco de direitos fundamentais adicionou-se uma cláusula aberta, através da qual surgiu a oportunidade e buscar, fora do texto constitucional, formalmente considerado, outras previsões de direitos humanos”.15 Assim, a função do Estado de proteger e promover a dignidade humana indica a impossibilidade de lhes conferir outra hierarquia que não a constitucional, mesmo quando provenham de tratados internacionais ratificados pelo Brasil. Neste caso, é possível constatar que o parágrafo 3º do artigo 5º reconheceu como fontes de normas de direitos humanos os princípios constitucionais e os tratados internacionais. Logo, estes, se não se integram formalmente à Constituição, materialmente devem ser tratados como de hierarquia superior às leis ordinárias. É devido à essa nova e abrangente concepção dos direitos fundamentais, que se faz possível encontrar, para além dos dispositivos formalmente constitucionais, outros, com a mesma natureza jurídica dos primeiros, direitos estes dos quais pode o jurista utilizar como parâmetro para verificar a constitucionalidade de dispositivos introduzidos por lei ordinária, como é o caso da lei 10.792/2003. 14 15 MOREIRA, Rômulo de Andre. op cit, p.01 MOREIRA, Rômulo de Andre. op cit, p.02 14 Ainda que não se reconhecesse a natureza constitucional das normas provenientes de tratado internacional de direitos humanos ratificados pelo Brasil, é incontestável que o conteúdo do parágrafo 3º do art. 5º da Constituição Federal de 1988 sirva ao menos para conferir maior clareza e precisão aos dispositivos de nossa Lei Maior que não encontrem, no direito interno, a necessária complementação. Portanto, as eventuais compatibilidades do Regime Disciplinar Diferenciado com a Constituição Federal devem ser analisadas também levando-se em conta o disposto nos Tratados Internacionais de Direitos Humanos, tais como a Declaração Universal dos Direitos Humanos, o Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos e a Convenção contra a Tortura e outros Tratamentos ou Penas Cruéis, Desumanos ou Degradantes, nos âmbito da Nações Unidas, bem como a Convenção Americana de Direitos Humanos e a Convenção Interamericana para Prevenir e Punir a Tortura, vale citar ainda as Regras Mínimas para o Tratamento do Preso da Organização das Nações Unidas, que mesmo não sendo Tratado Internacional, vêm sendo reconhecidas como meio de interpretação dos mesmos. Conclusão O Regime Disciplinar Diferenciado veio como um bálsamo para aliviar a sensação de insegurança pública, bem como surgiu como uma maneira de disciplinar os internos de um estabelecimento prisional. O RDD é uma ferramenta de controle social dentro do cárcere. Conforme demonstrado ao longo deste trabalho o objetivo do RDD é combater a criminalidade, punindo aqueles que supostamente sejam integrantes de facções criminosas ou que representem um alto risco para a sociedade ou para o próprio estabelecimento, ou ainda, que cometam falta grave que constitua crime doloso. Ocorre que, em nenhum momento da elaboração da Resolução SAP 26/2001 e da Lei 10.792/2003, o legislador se preocupou com o texto constitucional, implantando em nosso ordenamento jurídico, um regime que fere a Constituição Federal em seus princípios fundamentais. Exemplo disso é a afronta clara ao principio da dignidade da pessoa humana, impondo ao preso submetido ao RDD um isolamento de até 360 dias em cela individual, sem 15 assistência religiosa ou educacional, privando o apenado do contato com sua família, pois o direito de visita semanal é de duas horas, bem como do contato com seu advogado, também garantia fundamental prevista em nossa Lei Maior, uma vez que só poderá receber a visita de seu advogado mediante agendamento prévio. A implantação do RDD pela Resolução SAP 26/2001 foi criticada por apresentar um vicio constitucional formal, pois foi elaborada pelo Secretario da Administração Penitenciária de São Paulo, afrontando a competência privativa da União para legislar sobre matéria penal. Todavia, com o advento da Lei 10.792/2003, esta discussão tornou-se obsoleta, recaindo então sua inconstitucionalidade quanto à sua matéria, uma vez que fere os direitos e garantias fundamentais e os princípios elencados por nossa Lei Maior. Em suma, o RDD é um reflexo de um Estado que não consegue se organizar para combater a criminalidade, para deixar uma pseudo-sensação de segurança e controle do sistema prisional efetivando um regime dessa natureza, fechadíssimo, ferindo todo o arcabouço de um Estado Democrático de Direito. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS BITENCOURT, Cezar Roberto. Código Penal Comentado, São Paulo: Saraiva. 2007. BONAVIDES, Paulo. Ciência Política, 10ª. ed. São Paulo: Malheiros. 2005. BRASIL, Constituição (1988), Constituição da República Federativa do Brasil, promulgada em 05 de Outubro de 1988: atualizada até EC nº 56. Brasília: Senado Federal. 1988. ______, Lei (1984), Lei 7.210 instituiu a Lei de Execução Penal, Brasília: Congresso Nacional, 1984. ______, Lei (2003), Lei 10.792 modificando arts. da Lei de Execução Penal. Brasília: Congresso Nacional, 2003. ______, resolução nº 14, criando as regras mínimas para o tratamento de preso no Brasil. Publicada em DOU de 02/12/1994. Brasília: Conselho Nacional de Política Criminal e Penitenciária. 16 FARIAS, Christiano Chaves. Direito Civil: Teoria Geral. 2ª ed. São Paulo: Lúmen Júris, 2005. v.1. MARCÃO, Renato. Curso de Execução Penal. São Paulo: Saraiva. 2008. MORAES, Alexandre. Direito Constitucional. 21ª. ed. São Paulo: Atlas.2007. MORAES, Maria Celina Bodin de. Danos à pessoa humana. Rio de Janeiro: Renovar. 2003. MOREIRA, Rômulo de Andrade. Regime Disciplinar Diferenciado (RDD): Inconstitucionalidade. Jurisprudência comentada. Disponível em: <http://www.jusnavigandi.com.br/doutrina>. Acesso em 11/maio/2008. NUCCI, Guilherme de Souza. Individualização da Pena. São Paulo: Revista dos Tribunais. 2008.