O REGIME DISCIPLINAR DIFERENCIADO FRENTE AOS

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O REGIME DISCIPLINAR DIFERENCIADO FRENTE AOS
1
O REGIME DISCIPLINAR DIFERENCIADO FRENTE AOS
PRINCIPIOS CONSTITUCIONAIS DO DIREITO PENAL
Christiane Pinto Thomazatti
Resumo: O presente artigo visa fazer uma análise do Regime Disciplinar
Diferenciado (RDD) frente aos direitos e garantias fundamentais do ser humano
trazidos pelo art. 5º da Constituição Federal, bem como ao princípio da
dignidade da pessoa humana elencado em seu artigo 1º. Farei ainda uma
análise de tal regime frente ao principio da presunção de inocência, principio
este que norteia a interpretação das leis penais. Há que se analisar ainda, se o
referido regime cumpre com a finalidade da pena que se traduz na reeducação
e ressocialização do apenado. Defenderei, portanto, a tese de que o Regime
Disciplinar Diferenciado é inconstitucional.
Palavras chave: Regime Disciplinar Diferenciado; Inconstitucionalidade;
Direitos e Garantias Fundamentais; Princípios.
Abstract: The present essay aims at doing an analysis of the Differentiated
Disciplinary Regimen facing to the rights and the human being's fundamental
warranties brought by the 5th article of the Federal Constitution, as well as to
the human dignity principle enrolled in its 1st article. It also makes an analysis
of such regimen facing to the innocence presumption principle which orientates
the penal laws interpretation, and the referred regimen accomplishes with the
punishment purpose which can itself translates into the convicted rehabilitation
and resocialization, and it also defends the theory in which the Differentiated
Disciplinary Regimen is unconstitutional.
Key words: Differentiated Disciplinary Regimen; Unconstitutionality; Rights and
Fundamental Warranties; Principles.
Introdução
A criminalidade é um dos principais problemas enfrentados pelo
nosso País, conseqüentemente, a violência urbana. Vivemos
em
um
País
onde a classe abastada é minoria, e o que predomina é a miséria, e a
desigualdade social. Entretanto, é grande o desinteresse do Estado para
combater essa desigualdade. Pode se dizer que a violência urbana que tanto
assola a sociedade é fruto de políticas que não combatem a desigualdade
social.
2
Por sua vez, as casas de custódia superlotadas não estão prontas
para exercerem seu papel para com os apenados, o de cumprir com a
finalidade da pena: reeducação e ressocialização para que possam ser
”devolvidos” ao convívio social.
Devido a série de rebeliões ocorridas no início desta década em São
Paulo, Rio de Janeiro e Paraná, foi emitida a resolução da Secretaria de
Administração Penitenciária (SAP) 26/2001 que inseriu o Regime Disciplinar
Diferenciado (RDD) no Estado de São Paulo, levando posteriormente à edição
da Lei nº 10.792/2003 inserindo-o em âmbito Nacional.
Ocorre que o regime acima citado se caracteriza pela sua rigidez e
severidade que chegam a ultrapassar os limites da dignidade da pessoa
humana. Suas regras acabam por infringir os princípios consagrados na
Constituição Federal.
No RDD, o preso, condenado ou provisório, que cometa falta grave
que constitua crime doloso, ou represente alto risco para o bom funcionamento
do estabelecimento prisional, ou seja, suspeito de envolvimento em
organizações criminosas, é submetido a isolamento em cela individual, sem
assistência religiosa, educacional ou laboral, com duas horas para o banho de
sol.
A Constituição Federal de 1988 traz em seu art. 5º os direitos e
garantias fundamentais tais como: a proibição à tortura e a tratamento
desumano ou degradante, o direito à assistência religiosa aos presos, a
proibição às penas cruéis, o respeito à integridade física e moral dos presos,
bem como à assistência da família e do advogado. O objetivo deste trabalho
será discutir se o regime disciplinar diferenciado resguarda estes direitos e
garantias inerentes aos seres humanos, bem como se tal regime está em
conformidade com os princípios constitucionais e com os princípios do direito
penal.
O presente estudo objetiva fazer uma análise sobre o regime
disciplinar diferenciado (RDD) frente aos princípios constitucionais, alicerce do
Estado Democrático de Direito, elencados pela Constituição Federal, em seu
art. 1º, bem como à inobservância dos direitos e garantias fundamentais do ser
humano trazidos pelo seu art. 5º.
3
Apontarei ainda as deficiências do sistema penitenciário brasileiro,
sua falta de estrutura, o que gera, de forma incessante, os conflitos que
perturbam a ordem interna dos estabelecimentos prisionais. Logo, pode-se
dizer que o regime disciplinar diferenciado é fruto do descaso do Estado para
com estas instituições. Portanto, não é justo que em virtude dessa deficiência
nas penitenciarias, pessoas tenham seus direitos e garantias fundamentais,
bem como a sua dignidade humana ignorados e desrespeitados por tal regime.
Há que se ressaltar que o RDD é, ainda, uma afronta ao principio
norteador das leis penais. Principio este que motiva a interpretação das
mesmas em beneficio do réu (Principio do in dúbio pró réo), bem como também
o principio da presunção de inocência, remetendo-nos ao pressuposto de que
todo réu é inocente até o transito em julgado da sentença condenatória. O fato
de poderem os presos provisórios, ou seja, aqueles ainda não condenados ser
inseridos no RDD, é uma afronta incontestável a estes dois princípios.
1. Aspectos inconstitucionais do regime disciplinar diferenciado
Após ter enfrentado um longo período ditatorial, o Brasil iniciou
movimento de redemocratização do Estado sendo a Constituição Federal de
1988 o reflexo mais marcante deste movimento. Dentre os fundamentos da
Republica Federativa do Brasil está a formação de um Estado Democrático de
Direito, que dentre outros, tem como principio básico a dignidade da pessoa
humana, elencada em seu art. 1º.
Alexandre de Moraes conceitua, que “o Estado Democrático de
Direito significa a exigência de reger-se por normas Democráticas, com
eleições livres, periódicas e pelo povo, bem como o respeito das autoridades
políticas aos direitos e garantias fundamentais”.1
Assim, os princípios basilares do Estado Democrático de Direito
implicam que as leis infraconstitucionais sejam editada e interpretadas em
conformidade com os preceitos constitucionais. Logo, qualquer lei editada no
Brasil deve observar todos os princípios e normas previstos na Constituição
Federal de 1988. Deste modo, as leis que regulamentam matéria de Direito
Penal ou Processual Penal devem estar em conformidade com a Lei Maior.
1
MORAES, Alexandre. Direito Constitucional, 21ª ed. São Paulo: Atlas, 2007, p.17
4
Na hipótese de uma lei infraconstitucional desrespeitar os preceitos
trazidos pela Constituição, esta norma será passível de exclusão do
ordenamento jurídico, podendo ser esta desconformidade formal ou material.
Pode-se dizer, então, que toda matéria de Direito seja qual for o
ramo deve estar atenta aos princípios constitucionais. É com este raciocínio
que o presente artigo analisa o Regime Disciplinar Diferenciado.
Com
o
advento
da
lei
10.792/2003,
as
criticas
de
inconstitucionalidade que recaiam sobre a Resolução SAP nº 26, quanto à
formalidade, já que a constituição federal não atribui aos Estados competência
para legislar matéria de Direito Penal, tornam-se ultrapassadas. Contudo, ainda
permanece a crítica no que concerne a violações aos princípios constitucionais
penais.
O controle constitucional material de uma lei se faz quando analisa
esta frente aos preceitos constitucionais. Paulo Bonavides define: “o controle
material de constitucionalidade é delicadíssimo em razão do elevado teor de
politicidade de que se reveste, pois incide sobre o conteúdo da norma, desce
ao fundo da lei, outorga a quem o exerce competência com que decidir sobre o
teor e a matéria da regra jurídica. Busca acomodá-lo aos cânones da
constituição, ao seu espírito, à sua filosofia, aos seus princípios políticos e
fundamentais”.2
De acordo com a definição de Alexandre de Moraes: “controlar a
constitucionalidade significa verificar a adequação (compatibilidade) de uma lei
ou de um ato normativo com a constituição, verificando seus requisitos formais
e materiais.”3
Ao fazer uma analise do Regime Disciplinar Diferenciado frente aos
princípios constitucionais, é flagrante sua inconstitucionalidade, uma vez que
viola os princípios e garantias fundamentais de nossa lei maior.
2
3
BONAVIDES, Paulo. Ciência Política, 10ª ed. São Paulo: Malheiros. 2005, p.299
MORAES, Alexandre, op cit, p.676
5
1.1 Princípio da dignidade da pessoa humana e princípio da presunção de
inocência
No que concerne ao principio da dignidade da pessoa humana temos
na definição de Maria Celina Bodin de Moraes que “para distinguir os seres
humanos, diz-se que detém uma substância única, uma qualidade própria
apenas dos humanos; uma dignidade inerente à espécie humana”. Destaca
ainda que “ao ordenamento jurídico, enquanto tal, não cumpre determinar seu
conteúdo, suas características, ou permitir que se avalie essa dignidade [...]
esclareça-se que não se trata de acatar uma posição jus naturalista, mas de
ressaltar que, evidentemente, antes de se incorporarem os princípios às
constituições, foi imperioso que se reconhecesse os ser humano como sujeito
de direito e, assim, detentor de uma dignidade própria, cuja base (lógica) é o
universal direito da pessoa humana”.4
Para Alexandre de Moraes “a dignidade da pessoa humana concede
unidade aos direitos e garantias fundamentais sendo inerente à personalidade
humana. Esse fundamento afasta a idéia de predomínio das concepções
transpessoalistas de Estado e Nação em detrimento da liberdade individual.” 5
A Declaração Universal dos Direitos Humanos de 1948, em seu
art.1º informa: “todas as pessoas nascem livres e iguais em dignidade e
direitos”.
Após vivenciar vinte anos de regime autoritário o Brasil, através da
Constituição Federal de 1988, em seu art. 1º, coloca o principio da dignidade
da pessoa humana como alicerce fundamental para a República, base
fundamental do Estado Democrático de Direito.
Christiano Chaves de Farias escreve: “importa destacar que o mais
precioso valor da ordem jurídica brasileira, erigido como fundamental pelo
CF/88, foi a dignidade da pessoa humana, que como consectário impõe a
elevação do ser humano ao centro de todo o sistema jurídico, no sentido de
que as normas são feitas para a pessoa e sua realização existencial, devendo
4
MORAES, Maria Celina Bodin de. Danos à pessoa humana. Rio de Janeiro: Renovar, 2003,
p.77,82.
5
MORAES, Alexandre, op cit, p.16.
6
garantir-lhe o mínimo de direitos fundamentais que sejam vocacionados para
lhe proporcionar vida com dignidade.”6
Define ainda dignidade como “qualidade intrínseca e distintiva de
cada ser humano que o faz merecedor do mesmo respeito e consideração por
parte do Estado e da comunidade, implicando, neste sentido um complexo de
direitos e deveres fundamentais que asseguram a pessoa tanto contra qualquer
ato de cunho desumano ou degradante, como venham a lhe garantir as
condições existenciais mínimas para uma vida saudável, alem de propiciar e
promover sua participação ativa e co-responsável nos direitos a própria
existência e da vida em comunhão com os demais seres humanos. Dignidade
da pessoa humana, nessa ordem de idéias, expressam uma gama de valores
humanizadores e civilizatórios incorporados ao sistema jurídico brasileiro, com
reflexos multidisciplinares”.
Analisando o Regime Disciplinar Diferenciado frente ao principio da
dignidade da pessoa humana, há que se ressaltar que o cerceamento
provisório da liberdade do ser humano deve ser disciplinado pelo Estado, com
o objetivo de aproveitar este período em que a pessoa é afastada do convívio
social para prepará-lo para ser reinserido à sociedade. Este é o principal
fundamento da pena de prisão que tem por finalidade a reforma e readaptação
social dos condenados.
A Lei de Execução Penal (LEP) em seu art. 1º diz: “a execução penal
tem por objetivo efetivar as disposições de sentença ou decisão criminal e
proporcionar condições para a harmônica integração social do condenado e do
interno”.
Conforme se verifica nos diplomas acima mencionados, a lei não
proíbe o castigo de isolamento, contudo, deve ser aplicado apenas em casos
excepcionais, quando aplicado deve assegurar ao preso um acompanhamento
médico para que se avalie seu estado físico-mental, garantindo sua
integridade.
O “jus puniendi” do Estado ao tentar assegurar ou garantir a
restauração da paz social, deve se pautar em alguns limites, dentre eles o
principio da dignidade da pessoa humana. O Estado não pode se manter
6
FARIAS, Christiano Chaves. Direito Civil: Teoria Geral. 2ª ed. São Paulo: Lúmen
Júris.2005,v.1.,p.96,98.
7
apático com relação aos limites impostos pela condição humana do acusado,
por mais reprovável que tenha sido sua conduta deve ter um tratamento digno.
O fato de poderem os presos provisórios ser enquadrados no RDD é
uma violação gritante ao principio supramencionado, uma vez que os presos
que esperam um julgamento têm sua pena antecipada, contrariando ainda o
que prevê o art. 5º LVII da Constituição Federal, qual seja, “ninguém será
considerado culpado até o transito injulgado da sentença penal condenatória”,
o que se traduz no principio da presunção de inocência.
É flagrante o desrespeito a esta garantia constitucional, pois prevê a
possibilidade de aplicação de uma pena ao preso provisório, que ainda não foi
levado a julgamento. Logo, ele é presumidamente inocente.
É possível constatar ainda como violação ao principio da presunção
de inocência uma vez que a importância do fato típico não é suficiente para
presumir a personalidade do autor, pois é necessário que haja dados que
informem ser ele, enquanto preso, uma ameaça à paz, à ordem e à segurança
do estabelecimento prisional. É inadmissível punir alguém porque ele
representa um risco, sem ao menos ter cometido um fato que sirva de
parâmetro para qualificar sua periculosidade, não se deve punir pelo que é,
pela personalidade, mas sim pelo fato cometido.
De acordo com Renato Marcão, “ao contrário do que reclama o caput
do art. 52 a inclusão do preso provisório ou condenado, nacional ou estrangeiro
no Regime Disciplinar Diferenciado, o parágrafo 1º do mesmo artigo não exige
que tenham eles praticado crime doloso durante o período de permanência no
estabelecimento prisional. Para a inclusão no RDD basta que apresentem um
alto risco para a ordem do estabelecimento penal ou da sociedade. O problema
crucial reside em especificar, em cada caso, o que se deve considerar como de
alto risco para a ordem e a segurança do estabelecimento penal ou da
sociedade; não sendo demais lembrar que o fato de o preso ter envolvimento
com organizações criminosas ou pertencer a quadrilha ou bando constitui
fundamento distinto regulamentado pelo parágrafo 2º do art. 52”.7
Nas palavras de Cezar Roberto Bitencourt, “com o Regime
Disciplinar Diferenciado o governo brasileiro passa a adotar o prescrito direito
7
MARCÃO, Renato. Curso de Execução Penal. São Paulo: Saraiva. 2008, p.40-41.
8
penal de autor, de cunho fascista, ressuscitado por movimentos sociais do
Direito Penal do Inimigo.” Afirma ainda que “a lei 10792/2003 não faz previsões
relacionadas a fatos, mas a determinados tipos de autores, submetidos a
isolamento não pela prática de algum crime, mas sim, pelo fato de
representarem um alto risco, uma ameaça ao convívio social, uma avaliação
um tanto subjetiva”. E continua: “para as instâncias de controle não importa o
que se faz “Direito Penal de Fato”, mas sim quem faz “Direito Penal de Autor”.8
1.2 Princípio da legalidade
O artigo 5º inciso XXXIX da Constituição Federal assegura que “não
há crime sem lei anterior que o defina, nem pena sem prévia cominação legal”,
o que se traduz no princípio da legalidade.
Alexandre de Moraes defende que “tal principio visa combater o
poder arbitrário do estado”.9
As condutas tipificadas como crime devem ter uma descrição clara e
objetiva de forma a não deixar espaço para interpretações arbitrárias e
equivocadas. Analisando o RDD frente a esta definição é possível perceber
que o legislador criou tipos penais genéricos e vazios na redação dos
parágrafos primeiro e segundo da lei de execução penal.
À medida que o legislador permite tipos penais genéricos e
subjetivos,
deixa
margem
para
aplicações
arbitrárias
por
parte
da
administração penitenciária, posto que se o administrador apenas suspeitar
que alguém faça parte ou comande uma organização criminosa, poderá
transferi-lo para o Regime Disciplinar Diferenciado.
De acordo com Rômulo de Andrade Moreira, “o que seria fundada a
suspeita? Afinal, a presunção constitucional não é de não-culpabilidade? E o
que seria mesmo uma organização criminosa? Como se sabe, não há no Brasil
uma lei que traga tal definição, ferindo-se, destarte, o principio da legalidade,
também índole constitucional.”10
8
BITENCOURT, Cezar Roberto. Código Penal Comentado. São Paulo: Saraiva. 2007, p.157.
MORAES, Alexandre. op cit, p.36.
10
MOREIRA, Rômulo de Andrade. Regime Disciplinar Diferenciado (RDD):
inconstitucionalidade. Jurisprudência comentada. Disponível em:
<http://www.jusnavigandi.com.br/doutrina>. Acesso em 11/maio/2008.
9
9
Na mesma linha de pensamento destaca Renato Marcão que “as
fundadas suspeitas de envolvimento ou participação, a qualquer titulo, em
organizações criminosas, quadrilha ou bando como causa de inserção do
condenado ou do preso provisório em Regime Disciplinar Diferenciado, nos
termos do parágrafo 2º do artigo 52 da lei 7.210/84, com a redação da lei
10.792/2003,
devem
ter
relação
com
atos
por
ele
praticados
no
estabelecimento prisional, cuja ordem e segurança esse estabelecimento
prisional tem por finalidade resguardar. Não há na lei 9.034 de 03 de maio de
1995, o em qualquer outra uma definição do que venha a ser organização
criminosa, quadrilha ou bando tema que se insere no estudo do artigo 288 do
código penal”.11
Faz consignar ainda que “a lei nº 11.343, de 23 de agosto de 2006
(nova lei de drogas) referindo-se a organizações ou associações criminosas
fala ainda sobre a existência de grupo “obviamente criminoso”, figura que
também até agora não recebeu qualquer definição legal e escapa da previsão
contida no novo artigo 52 da lei de execução penal, a descortinar mais uma
vez, a falta de cuidado e conhecimento sistêmico do legislador penal, quase
sempre imprudente, mesmo em se tratando de tema que deveria despertar
particular preocupação.”
É evidente a inconstitucionalidade do RDD à luz do principio da
legalidade, uma vez que torna possível uma punição rígida ao preso submetido
ao regime em tela, por recair sobre ele uma suspeita, uma suposição de que
seja um integrante de uma organização criminosa, quadrilha ou bando.
Acerca
da
expressão
“alto
risco
para
a
segurança
do
estabelecimento ou da sociedade” vale ressaltar que é muito subjetivo o
estabelecimento de um parâmetro para aferir se alguém ameaça a vida em
grupo. Que tipo de conduta caracterizaria este alto risco?
Nas palavras de Renato Marcão “é necessário que a sanção seja
individualizada e proporcional à conduta, aferindo caso a caso a natureza e a
gravidade da infração praticada, bem como as circunstancias do fato e a
pessoa do faltoso”.¹¹
11
MARCÃO, Renato. op cit, p. 41.
10
Como se pode verificar desta afirmação, a sanção deve ser aplicada
levando-se em conta uma conduta, um ato praticado. Ocorre que nas hipóteses
dos parágrafos 1º e 2º do artigo 52 da Lei de Execução Penal não há definição
de condutas, mas sim, presunções extremamente abstratas e subjetivas.
É incontestável a violação do principio da legalidade e da tipicidade
em matéria penal, descrito no a art. 5º, inciso XXXIX, pois deixa margem para
aplicação de uma sanção severa, sem que na maioria das vezes haja uma
conduta típica, transferindo assim, arbitrariamente o preso para o isolamento,
em uma cela individual por até 360 dias.
1.3 Princípio non bis in idem
A interpretação que se tem, da redação do art. 52 da LEP é que a
aplicação do RDD gera uma nova pena, além daquela imposta pelo juiz
processante, uma vez que prevê que o preso inserido neste regime fique
isolado até o prazo de 360 dias, sem prejuízo de repetição por nova falta grave
de mesma espécie, até o limite de 1/6 da pena aplicada, sendo as visitas
semanais restringidas com duração máxima de duas horas, evita-se o contato
do apenado com seus familiares, podendo sair da cela por apenas duas horas
diárias destinadas ao banho de sol, deixando margem a uma indagação: e nos
dias em que estiver chovendo? O preso permanecera na cela durante as vinte
e quatro horas do dia em total isolamento?
A aplicação da pena prevista nas normas do RDD, em razão das
condutas descritas no art. 52 da LEP, não consta no rol dos delitos tipificados
pelo Código Penal. Assim, é portadora de um vicio de constitucionalidade,
posto que atinja a liberdade do infrator, sem que lhe seja assegurada a garantia
do devido processo legal.
Analisando o RDD frente ao principio “non bis in idem”, é possível
verificar mais uma vez que este padece de inconstitucionalidade, uma vez que
o caput do referido artigo dispõe que a pratica de crime doloso constitui falta
grave, cabendo a aplicação do RDD, ensejando à aplicação de duas sanções
pelo mesmo fato, ou seja, a prática do mesmo crime doloso abre espaço para
aplicação de uma sanção penal e de uma sanção administrativa que não deixa
de ser também uma sanção penal.
11
1.4 Princípio do devido processo legal
O artigo 60 da lei 10.792/2003 dispõe que “a autoridade
administrativa poderá decretar o isolamento preventivo do faltoso pelo prazo de
10 dias. A inclusão do preso em Regime Disciplinar Diferenciado, no interesse
da disciplina e da averiguação do fato, dependerá de despacho do juiz
competente”. É evidente a violação do principio do devido processo legal,
previsto pelo artigo 5º, LIV da Constituição Federal: “ninguém será privado de
sua liberdade ou de seus bens sem o devido processo legal”, pois confere à
autoridade administrativa o poder de decretar o isolamento, ainda que
preventivo, sem que este tenha pleno conhecimento das causas de sua
acusação, mitigando-lhe o contraditório e a ampla defesa.
Nas palavras de Renato Marcão: “é imprescindível, sob pena de
constrangimento ilegal e nulidade do procedimento que se assegure ao preso o
direito à ampla defesa e ao contraditório”.12
Destaca ainda que “a decretação do isolamento preventivo reclama a
constatação e demonstração, em despacho judicial fundamentado, de dois
requisitos básicos: “fumus boni júris” e “periculum in mora”.
1.5 Princípio da inafastabilidade da jurisdição e princípio do juiz natural
É possível constatar ainda a violação do RDD ao principio elencado
no art. 5º, XXXV da Constituição Federal “a lei não excluíra da apreciação do
poder judiciário lesão ou ameaça de direito”, qual seja, princípio da
inafastabilidade da jurisdição. Assim, o isolamento preventivo não deve ser
decretado sem que haja uma decisão fundamentada da autoridade judiciária.
No que concerne ao juízo competente, seria o juiz que processou ou
da execução? O artigo 60 foi omisso nesse sentido, uma vez que não
especificou de quem é a competência.
O posicionamento majoritário, citando Guilherme de Souza Nucci13, é
de que o juiz competente seja o da execução. Contudo, implica o desrespeito
12
MARCÃO, Renato. op cit, p. 45,47.
12
ao juiz natural, pois o crime cometido e a forma de execução são aspectos que
atingem a individualização da pena no processo do cognitivo, pois são fatores
adstritos à culpabilidade, e não à individualização da execução. Portanto, o
juízo competente para apreciar o despacho deveria ser o juízo processante.
1.6 Artigo 5º, IV da Lei 10.792/2003
A Constituição Federal em seu art. 133 dispõe que ao advogado é
indispensável para administração da justiça. Sendo promulgada mais tarde a lei
8.096/94 que em seu art. 7º destaca alguns direitos dos advogados, tais como:
ingressar livremente nas salas e dependências de audiências, em delegacias e
prisões, mesmo fora do expediente e independentemente da presença de seus
titulares, entre outros.
Por sua vez, a lei 10.792/2003, em seu art. 5º, IV dispõe que o
Regime Disciplinar Diferenciado poderá ser regulamentado para: “disciplinar o
cadastramento e agendamento prévio das entrevistas dos presos provisórios
ou condenados com seus advogados, regularmente constituídos nos autos da
ação penal ou processo de execução criminal, conforme o caso”.
Tal dispositivo exige um cadastramento e um agendamento prévio
para que o advogado possa visitar seu cliente, sendo assim mitigada a
atividade desses profissionais que terão de agendar o encontro e esperar o
prazo de dez dias para obtê-lo, somente provando por meio de documentação
a urgência do encontro que lhe será concedida reunião de imediato. Logo, ao
cerceamento de defesa do preso.
2. Aplicação das normas constitucionais
Nas palavras de Rômulo de Andrade Moreira, “desde o surgimento
do estado moderno, encontra-se constitucionalizado o lineamento das regras
pelas quais se admite a supressão da natural liberdade de locomoção da
pessoa, “pari passu” à correspondente consolidação dos direitos e garantias do
13
NUCCI, Guilherme de Souza. Individualização da Pena. São Paulo: Revista dos Tribunais,
2008, p. 274.
13
cidadão, tendentes a evitar o abuso do poder estatal em matéria tão
delicada”.14
Conforme já foi dito, a Constituição Federal de 88, em seu artigo 5º,
incisos II, III, XXXV, XXXIX, XLVI, XLVII, XLIX, entre outros, estabelece alguns
padrões mínimos fora dos quais a privação da liberdade deve ser tida como
ilegal, em face dos quais o presente artigo analisa o RDD.
Vale ressaltar que a Lei Maior foi além, com a crescente
universalização das regras de direitos humanos, inovando ao introduzir o
parágrafo 1º e 2º no rol de direitos fundamentais, garantindo a eficácia imediata
dos direitos e garantias fundamentais e abrindo a possibilidade de incrementar
ainda por força de dispositivos contidos em tratados do direito internacional dos
direitos humanos.
Rômulo de Andrade Moreira faz consignar ainda que “embora se
trate de inovação em nosso país, a iniciativa seguiu o exemplo do artigo 16º, 1,
da Constituição da República Portuguesa de 1976 mediante a qual ao elenco
de direitos fundamentais adicionou-se uma cláusula aberta, através da qual
surgiu a oportunidade e buscar, fora do texto constitucional, formalmente
considerado, outras previsões de direitos humanos”.15
Assim, a função do Estado de proteger e promover a dignidade
humana indica a impossibilidade de lhes conferir outra hierarquia que não a
constitucional, mesmo quando provenham de tratados internacionais ratificados
pelo Brasil. Neste caso, é possível constatar que o parágrafo 3º do artigo 5º
reconheceu como fontes de normas de direitos humanos os princípios
constitucionais e os tratados internacionais. Logo, estes, se não se integram
formalmente à Constituição, materialmente devem ser tratados como de
hierarquia superior às leis ordinárias.
É devido à essa nova e abrangente concepção dos direitos
fundamentais, que se faz possível encontrar, para além dos dispositivos
formalmente constitucionais, outros, com a mesma natureza jurídica dos
primeiros, direitos estes dos quais pode o jurista utilizar como parâmetro para
verificar a constitucionalidade de dispositivos introduzidos por lei ordinária,
como é o caso da lei 10.792/2003.
14
15
MOREIRA, Rômulo de Andre. op cit, p.01
MOREIRA, Rômulo de Andre. op cit, p.02
14
Ainda que não se reconhecesse a natureza constitucional das
normas provenientes de tratado internacional de direitos humanos ratificados
pelo Brasil, é incontestável que o conteúdo do parágrafo 3º do art. 5º da
Constituição Federal de 1988 sirva ao menos para conferir maior clareza e
precisão aos dispositivos de nossa Lei Maior que não encontrem, no direito
interno, a necessária complementação.
Portanto, as eventuais compatibilidades do Regime Disciplinar
Diferenciado com a Constituição Federal devem ser analisadas também
levando-se em conta o disposto nos Tratados Internacionais de Direitos
Humanos, tais como a Declaração Universal dos Direitos Humanos, o Pacto
Internacional dos Direitos Civis e Políticos e a Convenção contra a Tortura e
outros Tratamentos ou Penas Cruéis, Desumanos ou Degradantes, nos âmbito
da Nações Unidas, bem como a Convenção Americana de Direitos Humanos e
a Convenção Interamericana para Prevenir e Punir a Tortura, vale citar ainda
as Regras Mínimas para o Tratamento do Preso da Organização das Nações
Unidas, que mesmo não sendo Tratado Internacional, vêm sendo reconhecidas
como meio de interpretação dos mesmos.
Conclusão
O Regime Disciplinar Diferenciado veio como um bálsamo para
aliviar a sensação de insegurança pública, bem como surgiu como uma
maneira de disciplinar os internos de um estabelecimento prisional. O RDD é
uma ferramenta de controle social dentro do cárcere. Conforme demonstrado
ao longo deste trabalho o objetivo do RDD é combater a criminalidade, punindo
aqueles que supostamente sejam integrantes de facções criminosas ou que
representem um alto risco para a sociedade ou para o próprio estabelecimento,
ou ainda, que cometam falta grave que constitua crime doloso.
Ocorre que, em nenhum momento da elaboração da Resolução SAP
26/2001 e da Lei 10.792/2003, o legislador se preocupou com o texto
constitucional, implantando em nosso ordenamento jurídico, um regime que
fere a Constituição Federal em seus princípios fundamentais. Exemplo disso é
a afronta clara ao principio da dignidade da pessoa humana, impondo ao preso
submetido ao RDD um isolamento de até 360 dias em cela individual, sem
15
assistência religiosa ou educacional, privando o apenado do contato com sua
família, pois o direito de visita semanal é de duas horas, bem como do contato
com seu advogado, também garantia fundamental prevista em nossa Lei Maior,
uma vez que só poderá receber a visita de seu advogado mediante
agendamento prévio.
A implantação do RDD pela Resolução SAP 26/2001 foi criticada por
apresentar um vicio constitucional formal, pois foi elaborada pelo Secretario da
Administração Penitenciária de São Paulo, afrontando a competência privativa
da União para legislar sobre matéria penal. Todavia, com o advento da Lei
10.792/2003,
esta
discussão
tornou-se obsoleta,
recaindo então
sua
inconstitucionalidade quanto à sua matéria, uma vez que fere os direitos e
garantias fundamentais e os princípios elencados por nossa Lei Maior.
Em suma, o RDD é um reflexo de um Estado que não consegue se
organizar para combater a criminalidade, para deixar uma pseudo-sensação de
segurança e controle do sistema prisional efetivando um regime dessa
natureza, fechadíssimo, ferindo todo o arcabouço de um Estado Democrático
de Direito.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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Saraiva. 2007.
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Jurisprudência
comentada.
Disponível
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