Literatura e cinema: algumas reflexões sobre

Transcrição

Literatura e cinema: algumas reflexões sobre
Literatura e cinema: algumas reflexões sobre a produção
voltada para o público infantil
Fábio Augusto Steyer
Universidade Estadual de Ponta Grossa – PR
A atual produção cinematográfica voltada para o público infantil é
bastante diversificada. Há desde roteiros originais até adaptações das mais
variadas obras teatrais e literárias, entre as quais têm se destacado nos últimos
anos as versões fílmicas de livros também direcionados ao público juvenil,
como Harry Potter, Crônicas de Nárnia, Ponte Para Terabítia, etc. Há uma
predominância de filmes de fantasia, que nos remetem ao universo dos contos
de fadas e mesmo da mitologia. Temos obras que pura e simplesmente são
inspiradas em histórias infantis e juvenis, sendo muitas vezes atualizações do
enredo para os dias de hoje; outras que procuram reproduzir de forma mais (ou
menos) fiel a história original; e aquelas que, de certa forma, “desorganizam”,
no bom sentido, o texto tal como ele havia sido escrito, e que muitas vezes
misturam, inclusive, personagens de várias histórias.
É neste último caso que podemos enquadrar os dois filmes que
pretendemos analisar. “Deu a Louca na Chapeuzinho” (EUA, 2005), de Cory
Edwards, e “Xuxa Abracadabra” (Brasil, 2003), de Moacyr Góes, são obras que
têm como tema principal os contos de fadas, misturando seus enredos e
personagens, incluindo atualizações nas histórias, desestruturando a ordem
natural das ações e proporcionando uma visão polifônica e aberta de clássicos
como Chapeuzinho Vermelho, Branca de Neve e os Sete Anões, Os Três
Porquinhos, João e Maria, etc.
Sabemos que hoje em dia é extremamente difícil trabalhar com os
alunos em sala de aula os clássicos da literatura infantil e juvenil. A
concorrência com o computador e os meios audiovisuais parece ser o
problema mais óbvio, mas não é o único. O caráter moralizante das versões
mais tradicionais de muitos contos de fadas proporciona apenas uma visão
bastante fechada das obras. O preceito moral é dado e pronto. E o trabalho
com outras versões nem sempre é fácil, até pela conotação erótica que muitas
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delas compreendem. Além disso, o livro didático de Língua Portuguesa e
Literatura, por si só, fecha mais ainda a interpretação dos contos, na medida
em que direciona a compreensão do aluno para determinados aspectos em
detrimento de outros. Isso ocorre tanto a partir da utilização de trechos isolados
das obras, das atividades propostas aos alunos e mesmo das ilustrações das
histórias, que muitas vezes induzem os estudantes a criarem uma determinada
imagem das personagens e cenas. É a visão didática que acaba se
sobressaindo sobre a literária. E assim, não formamos leitores de literatura,
pois todo o seu aspecto lúdico e ficcional se perde. Como diria Eni Orlandi 1 , o
discurso “autoritário” prevalece sobre o discurso “lúdico”. Ou seja: a polissemia,
a liberdade de interpretação, a visão plural e aberta da obra literária são
substituídos por uma verdade absoluta que me diz o que é certo e o que é
errado, ou que direciona minha compreensão do texto.
Parece-nos que os filmes em questão, ao “desorganizarem” (no bom
sentido, como já dissemos) essa visão “autoritária” das versões tradicionais dos
contos de fadas, podem contribuir de maneira significativa para que se resgate,
no trabalho com os alunos, o aspecto lúdico e ficcional tão próprio da
Literatura. Isso permite ainda que sejam feitas ainda relações as mais diversas
possíveis com a realidade do mundo contemporâneo e com outros códigos e
linguagens midiáticos e artísticos, desestruturando uma visão fechada e
parafrásica e construindo múltiplas visões acerca das obras, aproximando-se
da idéia de polissemia.
Vejamos como isso acontece nos filmes em questão. Em “Xuxa
Abracadabra”, temos a história de duas crianças que literalmente “entram” num
livro que é, na verdade, o mundo dos contos de fadas. Lá elas contracenam
com Chapeuzinho Vermelho, Branca de Neve, Gato de Botas, João e Maria,
Pinóquio, etc., e devem enfrentar (junto com a protagonista Xuxa Meneghel, é
claro), um vilão misterioso que está desestruturando a vida dos moradores da
floresta encantada, lugar onde vivem as personagens dos contos infantis. Um
primeiro aspecto a destacar é a constante interação entre mundo real e mundo
da fantasia. Assim, além das crianças entrarem no mundo dos contos de fadas,
as personagens das histórias infantis vêm para o mundo real. É o caso de
1
ORLANDI, Eni Pulcinelli. A linguagem e seu funcionamento; as formas do discurso.
Campinas: Pontes, 1987.
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Pinóquio e do Lobo Mau. Este último é, quando está na vida real, um lobo de
verdade, que assusta as crianças. E na floresta encantada não tem nada de
mau, sendo uma versão cômica da tradicional personagem.
Outra forma de quebrar as fronteiras entre real e fantástico é a forma
como no filme aparece a figura do narrador. Ele freqüentemente interage com
as personagens, conversando com elas e mesmo dando opiniões sobre que
está acontecendo. A desorganização da estrutura normal das ações e
personagens das histórias aparece de forma clara nas gozações que são feitas
durante o filme. Assim, quando a rainha da Branca de Neve pergunta ao
espelho mágico sobre o caçador que deve matar a jovem na floresta, ele
responde: “O caçador? O caçador é aquela bolha que a senhora já sabe, né?”.
Ou então quando a mesma rainha (interpretada por Cláudia Raia), disfarçada
de velhinha, vai dar a maçã envenenada à personagem de Xuxa Meneghel (e
não à Branca de Neve, como na versão tradicional), esta diz à bruxa que não
vai cair naquela cilada, e que sabe que a velhinha é uma bruxa, que a maçã
está envenenada, obrigando a rainha a usar outra estratégia para o
envenenamento.
As referências a questões da realidade contemporânea também
contribuem para essa desestruturação da ordem natural das coisas. A vovó de
Chapeuzinho Vermelho, vivida por Eva Todor, é totalmente “zen”, e nas poucas
vezes em que aparece no filme está meditando. Maria (de João e Maria),
quando capturada pela rainha da Branca de Neve (e aí temos uma
interpenetração de histórias) diz que vai recorrer ao sindicato de personagens
dos contos de fadas. E o príncipe, questionado por Branca de Neve sobre a
ausência de seu cavalo branco, diz que entrou num consórcio e ainda não foi
sorteado.
Em “Deu a Louca na Chapeuzinho” as estratégias são bastante
parecidas. O enredo é sobre um misterioso ladrão de doces que está acabando
com todas as confeitarias da floresta. Os suspeitos: Chapeuzinho Vermelho,
sua avó (a doceira mais famosa do lugar), o Lobo e um lenhador. O
interessante é que cada um deles conta para a polícia uma versão diferente da
história. E aí já começa a polissemia. E essas versões diferentes vão se
entrecruzando, no decorrer da trama, de modo a solucionar o mistério.
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Quanto às personagens, fica clara a desorganização das versões
tradicionais, o que inclui alguns acréscimos e sujeitos de outros contos infantis.
Os Três Porquinhos são policiais e comem a comida da cena do crime. O chefe
das investigações é um sapo (quase igual ao Caco, da série televisiva Os
Muppets), que parece ter saído de um filme policial “noir”. O Lobo é um
jornalista investigativo, que está na floresta como repórter a mando de seu
jornal. A vovó de Chapeuzinho Vermelho é praticante de esportes radicais.
Chapeuzinho luta artes marciais. Há ainda um coelhinho (o vilão da trama) e
um bode enfeitiçado por uma bruxa, que só pode se comunicar cantando. Ah, e
o lenhador é na verdade um vendedor de doces que sonha em trabalhar no
mundo da publicidade vendendo um creme para calos (!).
Alguns diálogos do filme remetem à contemporaneidade. Isso
acontece, por exemplo, quando Chapeuzinho, ao ver o Lobo, diz: “Você de
novo?!?! O que eu preciso fazer, conseguir um mandado de segurança?” Em
outros momentos, ironizam algumas passagens da história. O sapo policial
pergunta a Chapeuzinho: “Então o lobo estava vestido como a sua avó?” Ela
responde que sim. E o sapo pergunta de novo: “E você caiu nessa?” Ela
responde: “Claro que não!”.
Destaque ainda para uma bela canção do filme, num momento da
trama em que Chapeuzinho está confusa, triste, sem saber o que fazer. A
música diz que naquele momento “vermelho é azul”, associando a cor azul à
incerteza e à solidão da personagem naquele momento. Tudo acompanhado
por uma também bela fotografia totalmente em tons azuis, apenas nesta parte
do filme. E também para a próxima reportagem especial do Lobo, que anuncia,
no final, que vai se dedicar a investigar três porquinhos que abriram uma
construtora cujas casas “não agüentam um sopro”.
Parece-nos, portanto, que esse tipo de “desorganização” dos contos
de fadas nos filmes em questão, se trabalhado em conjunto com as versões
tradicionais (e outras, quando isso for possível) e mesmo com a visão
fragmentada, direcionada e fechada do livro didático, pode proporcionar
interessantes formas de trabalho dos textos com os alunos. A partir das
diferentes versões, eles poderiam formar também as suas, relacionando as
histórias com a sua realidade e com seu próprio mundo infantil e juvenil. Isso
estimularia uma visão polissêmica das histórias, preocupada com a recepção
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dos contos de fadas (e aí se trata de pensar mesmo uma perspectiva voltada
para a Estética da Recepção) e com uma efetiva formação de leitores de
Literatura.
Como vimos, as relações entre Cinema e Literatura não podem ser
vistas a partir do tradicional e ultrapassado ponto de vista que atestava a
superioridade de uma sobre a outra. Era aquela velha história: o livro sempre é
melhor do que o filme. Bobagem, ao meu ver. Cinema e Literatura possuem
linguagens totalmente diferentes, que devem ser respeitadas e analisadas em
suas especificidades. E no caso de “Deu a Louca na Chapeuzinho” e “Xuxa
Abracadabra”, parece que os filmes podem dar uma efetiva contribuição para
que se evolua a um discurso menos “autoritário” e mais próximo do “lúdico”.
Basta saber aproveitar a complementaridade destas duas linguagens tão
importantes para o mundo contemporâneo.