CONCÍLIO VATICANO II E A VIDA CONSAGRADA

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CONCÍLIO VATICANO II E A VIDA CONSAGRADA
CONCÍLIO VATICANO II
E A VIDA CONSAGRADA
The Second Vatican Council and the Consecrated Life
Aquilino Bocos Merino, cmf *
RESUMO: A presente reflexão inicia localizando a história da vida da Igreja, e mais especificamente
da vida religiosa antes do Concílio Vaticano II, seu contexto e suas perspectivas. Em seguida situa
a vida religiosa nos documentos conciliares, ressaltando seus valores e atualidade, bem como o
frescor de sua proposta, reconhecendo nela todo o valor eclesial e o caráter de “sinal claríssimo
do reino dos céus”. Não sem tensões a vida religiosa evolui. O Sínodo sobre a vida e missão dos
consagrados tornou-se um marco sem precedentes na história da Igreja. O autor escolheu quatro
2. pontos que retratam as grandes mudanças da vida consagrada: o espiritual; , o antropológico,
o eclesiológico e o missionário. Eles se inter-relacionam e se complementam.
Passados estes cinquenta anos do Concílio, os consagrados vão descobrindo sua própria
identidade carismática e tratam de vivê-la com paixão, no meio de um mundo secular,
pluricultural e globalizado. Bem cedo se fez a releitura da vida religiosa, desde a LG, AG, GS e o
MR como uma missão no mundo. E este novo espírito vem entusiasmando a vida consagrada.
PALAVRAS CHAVE: Vida consagrada, identidade, missão, Igreja, renovação.
ABSTRACT: This reflection starts locating, specifically, Religious Life before the second Vatican
Council, its context and its perspectives. Then, it situates the Religious Life in the conciliar
documents, highlighting its values and actuality, as well as the freshness of its proposal,
recognizing in it the whole ecclesial value and the character of being a “clearest sign of the
kingdom of heaven”. Not without tensions, the Religious Life has developed. The Synod on the life
and mission of Consecrated persons became an unprecedented milestone in the history of the
Church. The author chose four points that depict the major changes of the Consecrated Life: the
spiritual, the anthropological, the ecclesiological and the missionary. They are interrelated and
complement each other.
Along these past fifty years of the Council, Consecrated persons are discovering their own
charismatic identity and try to live it with passion, in the midst of a secular, multicultural and
globalized world. Early was done the rereading of Religious Life since the LG, AG, GS and MR as a
mission in the world. And the Consecrated Life has been enthused by this new spirit.
KEYWORDS: Consecrated Life, identity, mission, church, renovation.
* É autor de inúmeros artígos, conferencias, exercícios, assessor de congregações e institutos de vida consagrada.
Escreveu dezenas de livros; o último lançado neste ano: “Un relato del Espíritu La vida consagrada postconciliar.
Ë uma das figuras mais conhecidas da vida consagrada espanhola. Foi superior provincial e geral de sua
congregação por varias vezes. Foi membro da Sagrada Congregação dos Religiosos. É assessor de inúmeros
institutos de vida consagrada.
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INTRODUÇÃO
Não haverá Faculdade de Teologia, Centro de Estudos Religiosos, Revista,
Editorial que não dedique neste ano uma recordação merecida ao Concílio
Vaticano II. Foi inaugurado a 11 de outubro de 1962 por João XXIII. Ao ser
perguntado pelo objetivo que queria conseguir do Concílio, abriu a janela para a
Praça de São Pedro e disse:“Isto vai fazer o Concílio: que entre um pouco de ar fresco
na Igreja”. Naquele feliz dia começava o “aggiornamento”, “a nova primavera”, “um
novo pentecostes” para a Igreja, segundo havia indicado o Papa Bom em outras
ocasiões. A Igreja iniciava uma parábola de renovação voltando “às simples e
puras linhas das origens” em liberdade e caridade .
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O Concílio foi uma visita muito especial do Espírito a sua Igreja e à
humanidade . Seus efeitos perduram nos amplos horizontes abertos para o Povo
de Deus e nos caminhos traçados para sucessivas gerações. Estamos vivendo um
tempo de graça. Deus visitou seu povo. O Concílio continua sendo jovem e atual
pela novidade que imprime o Espírito. A celebração dos 50 anos de seu começo
nos move a todos entre a memória e a esperança. Suscitará alegres recordações
e motivos para a admiração e o compromisso porque, quanto mais se conhece
sua preparação, seu desenvolvimento e sua aceitação, mais se aprecia o dom de
Deus. Permanece como constante convite à conversão e a prosseguir em suas
intuições e propostas.
A todo o Povo de Deus se lhe oferece uma belíssima oportunidade para
adentrar-se na mística do Concílio e continuar a corrente de abertura, diálogo,
discernimento e construção da família dos filhos de Deus. Os religiosos aderem a
esta celebração com gratidão, lucidez crítica e confiança 1.
I. ANTECEDENTES
Ao final da década dos anos cinquenta, as vocações religiosas e sacerdotais
eram abundantes. Todas as formas de vida cristã gozavam de estabilidade.
Destaco esta palavra porque parecera que a serenidade e a ordem eram valores
adquiridos. Porém o certo é que já emergiam mudanças em diversas frentes do
1 Sobre a vida religiosa e sua renovação postconciliar tem-se publicado muitas obras e não
poucos artigos. SANTIAGO M. G ONZÁLEZ, (ED), Los frutos do Cambio. Balance da renovação da vida
consagrada. PCl, Madrid, 2006. AA.VV., Aportes da vida religiosa a a teologia latinoamericana y do
Caribe. Hacia el futuro. Memorias do Congreso CLAR 50 años, Memorias Clar, Bogotá, 2009. J OSÉ
R OVIRA: a vida consagrada hoy. Renovação. Desafios. Vitalidade . PCl, Madrid, 2011. AQUILINO B OCOS
MERINO, Un relato do Espírito, a vida consagrada postconciliar, PCl, Madrid, 2011. S.P. ARNOLD, ¿A
dónde vamos? Una teologia da vida consagrada para un tiempo de crisis y esperanza, Paulinas,
Lima, 2012. Quase todas as revistas de vida religiosa têm dedicado ou estão dedicando números
monográficos sobre o Concilio e a vida consagrada.
pensamento, das ciências humanas, da política, da economia. No interior da vida
religiosa, durante muitos anos imperaram os princípios da tradição e da norma
estabelecida, que davam uma segura continuidade . Havia contribuído para isso a
solida formação na sobriedade, a disciplina, a humildade, a obediência e o estudo.
Toda normativa, do instituto ou da Igreja, era aceita sem discussão. As práticas
de piedade eram devocionais e o estilo de vida estava marcado pela ascética.
As comunidades se regiam pela uniformidade, ao ritmo de horários e costumes
inalteráveis. Formava-se para a integração no grupo e para levar adiante as obras
próprias, que gozavam de prestigio pela qualidade de seus serviços. Os leigos
que trabalhavam nelas eram colaboradores contratados.
Os centros de formação estavam cheios. As inquietudes giravam mais
sobre a formação e a condução de tanta energia que sobre qualquer outro
aspecto da vida religiosa. Tudo quanto aparecia como novidade influenciava
a juventude que buscava mais liberdade, autodeterminação, especialização e
maior inserção nas realidades sofredoras da sociedade. Notava-se a passagem
da sociedade rural para a industrial e os imperativos da razão tornavam
ostensivos o peso da modernidade. Entrecruzavam-se, por um lado, as correntes
de pensamento personalista, existencialista, vitalista e historicista e, por outro,
começavam a ser frequentados os mestres da suspeita (Marx, Nietzsche e Freud)
e discípulos. Abriam-se novas perspectivas desde as emergentes espiritualidade
, liturgia, ecumenismo, bíblia e teologia. Os movimentos culturais propiciavam
outra forma de ver o homem e sua relação com Deus e com o mundo. Daí que
se ressaltavam as palavras como: busca, abertura, inovação, promoção, cambio,
renovação e progresso.
Começou a questionar-se a compreensão da vida religiosa como estado
de perfeição. Tanto os movimentos leigos como os sacerdotais, rechaçavam
a teologia das duas vias: a dos preceitos e a dos conselhos evangélicos. A vida
religiosa começou a ver-se minada em sua posição privilegiada para alcançar
a perfeição. Tinha-se começado a ensaiar outra forma de celebrar o mistério
pascal, outro modo de entender a vocação desde a gratuidade, a liberdade e a
responsabilidade 2.
“Testemunhas da cidade de Deus” é o título do livro do jesuíta P. René
Carpentier. De alguma maneira foi o indicador da mudança de uma compreensão
da vida religiosa desde o direito e a moral até a teologia. Até então, geralmente,
2
Em muitas comunidades se liam os livros de C. Marmión, O. Casel, R. Guardini, K. Adam, J.
Guitton, J. Leclercq, R. Garrigou-Lagrange, A. Stolz. Th. Merton, Y. M. Congar, etc. Pouco antes do
Concilio se estenderam as “fraternidade s operárias”e as cartas do P. Voillaume, recolhidas no «Au
coeur des masses». Começavam a difundir-se as orientações espirituais do Prado (A. Ancel). No
Natal desse mesmo ano recebia o premio Nobel da Paz um “frade” dominicâno: o P. Dominique
Georges Pire.
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nos noviciados e casas de formação, os livros mais procurados eram o Catecismo
dos votos do P. Pierre Cotel e os comentários jurídico-morais em torno aos
conselhos evangélicos de pobreza, castidade e obediência e a vida comum.
Quando apareceu João XXIII estávamos há oito anos de grande
congresso de renovação, celebrado em Roma em 1950, qualificado por Pio XII
de acontecimento extraordinário nunca visto até então, no que o Pontífice
demonstrou seu grande interesse pela “acomodada renovação” da vida e do
apostolado dos religiosos.
Logo se abriram canais de colaboração entre os Institutos religiosos
através das Uniões de Superiores Gerais, Confederações e Federações. Surgiam
do espírito corporativo marcado pela encíclica Mystici Corporis.
II. O CONCÍLIO E A RENOVAÇÃO DA VIDA RELIGIOSA
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1. O acontecimento e os textos
Os germens de novidade se concentraram, se harmonizaram e
dinamizaram, sob a ação do Espírito, para que o Povo de Deus iniciasse seu
caminho de renovação. Quarenta e sete anos após sua conclusão, surpreende
que os documentos conservem um frescor tão sedutor. Hoje as novas gerações
entram em contato com o Concílio Vaticano II através da história, dos textos, das
análises e dos comentários. Propõe-se voltar às origens da vida cristã: à Palavra de
Deus, ao mistério de Cristo e da Igreja e a missão salvadora. Incitou-se a afrontar
responsavelmente os desafios de um mundo complexo, cheio de ansiedade e de
esperança por sua vez. Ensinou-se, desde a pedagogia divina, a propor e não
a impor, a defender a causa de Deus e os direitos dos pobres e a caminhar no
Espírito rumo à comunhão de todos os homens.
2. A proposta conciliar sobre a vida religiosa
Neste contexto, o Concílio pediu à vida religiosa reviver suas origens
carismáticas e assumir o seguimento de Jesus segundo o Evangelho; a participar
na vida da Igreja, a empenhar-nos na causa dos mais necessitados e a potencializar
a audácia missionária. É fácil falar sobre a história dos textos relativos à vida
religiosa, sobretudo na Constituição Lumen gentium (LG) e no Decreto Perfectae
caritatis (PC). Outros dos decretos importantes são Christus Dominus e Ad Gentes.
Porém também os outros documentos falam aos religiosos.
Foi de transcendental importância a inclusão de um capítulo dedicado
aos religiosos na Constituição dogmática sobre a Igreja depois haver falado da
vocação universal à santidade. Máxime, num momento em que não faltavam
aqueles que se perguntavam se era oportuno em nosso tempo o estado religioso
ou chegavam a duvidar de sua legitimidade 3. O Concílio afirma a origem divina da
vida religiosa e sua pertença de maneira indiscutível à vida e santidade da Igreja
(LG 44). A vida religiosa é uma realidade na Igreja e da Igreja, toda ela chamada
à santidade 4. É parte integrante do Povo de Deus e, por isso mesmo, não é uma
realidade isolada. Fala-se em correlação ao ministério ordenado e com o laicato.
Reconhecida a vida consagrada em todo seu valor eclesial e seu caráter
de “signo claríssimo do reino dos céus”(PC 1), os Padres conciliares estabeleceram
um programa para sua renovação. Os princípios e critérios ficaram expressos
nos nºs. 2 e 3 do decreto Perfectae caritatis. Nós nos acostumamos tanto a ler
e refletir sobre eles, que já não nos surpreende a profundidade e maturidade
que encerram. Quando se fazia a proposta de renovação para a vida religiosa, já
estavam aprovadas ou muito avançadas as quatro grandes constituições: sobre a
Igreja, liturgia, divina revelação e Igreja e o mundo contemporâneo.
3. Recepção, processo de renovação e múltiplas ajudas
A recepção do Concílio não foi igual em todos os setores da Igreja nem em
todos os continentes. Tampouco o foi para todos os Institutos religiosos. |A inicial
experiência de gozo e esperança era notória na imensa maioria dos membros
do Povo de Deus, porém ficou empanada pelas turbulências sociais e culturais
nos povos (pensemos no maio francês) e alguns fatos eclesiais, entre os quais
cabe destacar a reação ante a Humanae vitae. Foi notória a luta entre a fascinação
pelo novo e o mito da imutabilidade . Nos primeiros anos pós-conciliares, ainda
admitindo a autoridade do Concílio, tiveram maior influencia as controvérsias
dos teólogos que os conteúdos doutrinais. Não se estudou com a devida atenção
“toda”a doutrina conciliar. Emergiu o pluralismo teológico e foram muito diversas
as propostas pastorais. A vida religiosa refletiu esta simultânea euforia generalizada
e os não poucos lamentos. As tensões na Igreja e na vida religiosa produziram
suas vítimas. Nisso tudo estava o modo diversificado de pensar, de interpretar e
de atuar na Igreja e no mundo. Um mundo em transformação acelerada era caldo
3
4
Cf. R. SCHULTE, a vida religiosa como signo, em G. BARAUNA (Ed.), em “La Iglesia do Vaticano II”, Juam
Flors, Barcelona, 1965, pp. 1091-1092.
Implícitamente se exclui a opinião dos que consideravam a vida religiosa como uma estrutura
de origem humana, intermediária entre os dois gêneros de vida assinalados por Graciano: hierarquia e laicato.
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de cultivo para a liberalização de tudo o que fora ordem estabelecida e suscitar
a contestação.
As fontes evangélicas e as leis de renovação foram bem acolhidas pelos
religiosos. O ponto crucial onde começou a prova para a vida religiosa foi a práxis
da “suficiente e prudente experiência” (PC 4). O Concílio a cria necessária. Aqueles
que viveram incorretamente as experiências, acabaram se evadindo. Outros,
diante das primeiras dificuldades, tentaram dar marcha ré causando verdadeiras
frustrações. A maioria seguiu a via do discernimento, em docilidade ao Espírito,
ao magistério da Igreja e ao conselho dos experts, e saiu fortalecida em sua
vocação consagrada. Dão conta disso as avaliações dos sucessivos capítulos
gerais e provinciais e das muitas assembleias de revisão.
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No caminho de renovação houve coragem e risco. Os religiosos podemos
ter errado em alguns momentos ou, acaso, ter sido infiéis em outros, porém o
resultado tem sido positivo. Assim o avaliou João Paulo II na mensagem de 2 de
fevereiro de 2005. Provavelmente os dados mais favoráveis são: a compreensão
da vida consagrada, o estudo dos carismas fundacionais, a elaboração das novas
constituições e a expansão missionária. Não temos caminhado sós. Quem
pode esquecer a Evangelica testificatio (Pablo VI), a Vita consecrata (Juam Pablo
II) o os discursos de Bento XVI? Assim mesmo tem-se que agradecer os densos
documentos da Congregação para os Institutos religiosos e sociedades de vida
apostólica, episcopados, conferências de religiosos, revistas e publicações,
teólogos, homens e mulheres de governo e peritos em formação, etc., os quais
nos ajudaram muito.
A intensa vida sinodal da Igreja nestes vinte últimos anos tem aberto
horizontes e há suscitado novos compromissos na vida consagrada para com os
leigos, sacerdotes e bispos. Os religiosos tem intensificado a colaboração com os
leigos e tem partilhado o carisma com grande incidência na espiritualidade e
na missão. Tem crescido o voluntariado e os associados. O Sínodo sobre a vida
e missão dos consagrados é um marco sem precedentes na história da Igreja. Os
Sínodos continentais têm promovido o anúncio de Jesus Cristo e evangelho e
tem fomentado a unidade e a pluralidade da missão eclesial. Os congressos
internacionais de consagrados celebrados em Roma (1993, 1997 e 2004) têm
revelado o elevado número de sinais novos de vida religiosa nos distintos
continentes.
III. PONTOS CARDIAIS NA RENOVAÇÃO
Quando se analisa a mudança na vida religiosa, surgem muitos pontos de
vista e todos eles incompletos. É difícil sintetizar em poucas palavras um processo
tão complexo em estímulos e reações e tão rico em matizes pelas múltiplas
referencias o implicações sociais, eclesiais, carismáticas, etc. Por outro lado, é fácil
encontrar pareceres contrapostos procedentes de experiências de signo diverso.
Escolhi quatro pontos que considero retratem os grandes giros da
vida consagrada: o espiritual, o antropológico, o eclesiológico e o missionário.
Eles se inter-relacionam e se complementam. No transfundo ficam aquelas
perguntas sempre abertas ao longo do processo de renovação: Para onde nos
leva o Espírito? Que quer Deus de nós? Que nos pede a Igreja? Que é o que mais
necessita nosso mundo? Perguntas que se fazem as sucessivas gerações afetadas
pelo desenvolvimento econômico, pela transição política, pela transformação
cultural e religiosa e pela influência da onda da secularização e da pósmodernidade . Subjazem as tensões e os esforços para superar as dialéticas
entre carisma e instituição, liberdade e obediência, oração e ação, cultura e
culturas, Igreja universal e Igreja particular, comunidade e indivíduo, igualdade
e diferença, masculino e feminino, unidade e pluralismo, etc. Estão latentes as
grandes opções operativas que, sucessivamente, vão assumindo os institutos no
discernimento dos sinais dos tempos e dos lugares. E uma apreciação: que as
mulheres consagradas têm contribuído muito decisivamente à renovação da vida
religiosa e da Igreja.
1. Espiritualidade da nova aliança
Ainda que os religiosos tenhamos posto em primeiro lugar o princípio
da vida espiritual para a renovação, sou depois de sofrer as intensas crises de
identidade , de pertença eclesial e comunitária e de disponibilidade missionária,
é que nos demos conta do sentido profundo e do alcance totalizador deste
princípio. Agora somos mais conscientes da necessidade de por a pessoa de
Jesus no centro de nossa vida e missão e apreciamos melhor nossa consagração
como selo da aliança do amor que Deus nos tem. O Sínodo sobre a vida consagrada
destacou a espiritualidade como o primeiro desafio. Ecos do mesmo são os
convites a voltar às origens carismáticas, recuperar o essencial, viver em fidelidade
criativa, avivar a paixão por Cristo e pela humanidade , etc. Esta volta às raízes
tem levado a enfatizar a sede de Deus e a viver como discípulos, testemunhas
e missionários (Aparecida). A docilidade à ação do Espírito é o melhor antídoto
ante qualquer assomo de pelagianismo.
Com o Concílio se abriu uma nova era na espiritualidade . Sua forma
de conceber o homem no mundo e na história, a reflexão sobre o mistério do
Reino e da Igreja, o reconhecimento do protagonismo do Espírito Santo nela, ou
o destaque dado à Palavra de Deus e à Liturgia, o apreço à presença de Maria
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na história da salvação, a sensibilidade manifestada a favor de as culturas e o
compromisso com os mais pobres e excluídos da sociedade, o impulso dado à
vida missionária e ao ecumenismo, etc., são elementos que possibilitam uma
nova compreensão da vida cristã e tem animado a vivenciá-la de forma mais
dinâmica e integradora; encarnada em as culturas e sempre aberta a os desafios
de cada momento histórico. A espiritualidade neste momento tem especiais
implicações e ressonâncias comunitárias e de compromisso com a justiça . O
itinerário é marcado pelo Espírito, que é quem promove no cristão o seguimento
de Jesus, a vivencia do Mistério Pascal, particularmente na Eucaristia e a práxis
das Bem-aventuranças, da contemplação e da oração, do combate espiritual e da
ascese. As exigências não vêm do exterior, antes do amor com o que Deus nos faz
um povo santo e de sua propriedade.
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A espiritualidade não é genérica nem abstrata. O teólogo Von Balthasar
chegou a dizer que a espiritualidade é o rosto subjetivo da teologia. De fato,
após um período de reflexão, surge outro de práxis, de vivência do reflexionado.
E assim, estamos vendo que o desenvolvimento da teologia das formas de
vida cristã e da inculturação da fé e do carisma, está dando um perfil preciso
à espiritualidade , ressaltando a necessidade de compromisso nos diversos
contextos culturais e sociais. A espiritualidade está apontando para a comunhão
que adquire valor simbólico, profético e escatológico na missão evangelizadora e
humanizadora da Igreja. Situa-nos entre o mistério das origens e a meta à que
aspiramos.
Para a espiritualidade da vida consagrada tem sido decisiva a volta
aos Fundadores. Sua presença, sua memória, seus escritos e seu estilo de vida
e de apostolado fizeram com que os religiosos vissem seus Institutos, aos que
consideravam instituições societárias, como comunidades de pessoas animadas
por um mesmo Espírito, sempre em caminho e abertas a todos os desafios. São
os fundadores os que nos têm ensinado o caminho de espiritualidade com sua
peculiar forma de seguir a Jesus, de viver em Jesus segundo o Espírito, quem em
cada um dos momentos e em cada circunstancia da história nos impele a viver
em plenitude a filiação, a fraternidade e a missão. Os fundadores nos introduzem
na configuração com o Jesus pobre, totalmente dedicado às coisas do Padre,
compassivo e misericordioso, solícito pelos mais necessitados. Têm nos ensinado
a exercer a profecia e a promover a dignidade humana. Com seu exemplo e
doutrina ajudam a integrar as dinâmicas básicas e os meios adequados para o
crescimento. O elevado número de beatificações e canonizações nestes últimos
trinta anos, em grande parte fundadoras e fundadores, tem estimulado a vida de
santidade nos Institutos, pois tem sido ocasião para avivar a consciência de sua
presença na comunidade congregacional e de que eles caminham para frente
em sua vida e serviço.
Muitos outros fios tecem esta espiritualidade de nova aliança: o
testemunho martirial, o laicato e, em especial, o papel da mulher; os pobres e
os direitos humanos; a justiça, a paz e a salvaguarda da criação; os movimentos
comunitários, o diálogo ecumênico, inter-religioso e intercultural, etc.
2. Giro antropológico e a mulher consagrada
No início dos anos setenta houve quem considerava que as três grandes
tendências que marcavam a evolução da vida consagrada eram a humanização,
a secularização e aprofundamento religioso e evangelização. Porém, ao querer
sinalar o núcleo de esta evolução, dizia que esta se nutre e recebe apoio da nova
experiência da existência humana que atua nos outros aspectos.
A estas alturas podemos dizer que a pessoa tem sido o valor mais
apreciado. Três fatores têm contribuído para isso: 1) o desenvolvimento das ciências
humanas: antropologia, psicologia e sociologia; 2) a compreensão teológica da
pessoa como imagem da Trindade; 3) o reconhecimento das liberdades e direitos
dos povos, culturas e religiões. Dentro de as grandes correntes de pensamento e
de as influencias sócio-religiosas e culturais, vamos nos encontrando com grandes
questões que tem afetado em cheio à vivencia da consagração, dos votos, da vida
fraterna. Recordemos os grandes desafios da secularização, o sexismo, a autonomia
e a liberação, a pobreza no mundo, as injustiças e a violência, a cultura da morte, a
práxis de uma economia selvagem, o individualismo hedonista e o comunitarismo
asfixiante. A resposta foi sendo dada a partir de diferentes frentes e como sinal
dela resta uma linguagem que sinaliza palavras como: autonomia, liberdade,
fraternidade , diálogo, solidariedade, participação, história, futuro, gênero, cultura,
pluralismo, encontro, compromisso, fidelidade , autenticidade , etc. Como dizia
Rahner, “cada época tem uma serie de conceitos chave que sintetizam sua própria
tarefa e seus anelos”. Como também podemos dizer que cada continente tem
suas palavras e conceitos que são chaves para desvelar sua específica situação.
Tem sido notória a passagem da fuga do mundo à inserção no mundo
com o consequente interesse por todo o ser humano e todo o criado. Nada do
que sucede aos povos e no planeta é alheio aos religiosos. As calamidade s, as
pobrezas e enfermidade s, as angustias e decepções dos homens e mulheres lhes
afetam. A opção pelos pobres e a experiência de vida entre os marginados tem feito
repensar a forma de ver a vida, o estilo de comportamento e a localização de seus
serviços.
Os consagrados e as consagradas querem ser reconhecidos e levados
a sério em sua plena condição humana. A eleição dos conselhos evangélicos de
castidade, pobreza e obediência, “longe de ser um empobrecimento dos valores
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autenticamente humanos, se apresenta muito mais como uma transfiguração dos
mesmos”. (…)“Aqueles que seguem os conselhos evangélicos, ao mesmo tempo que
buscam a própria santificação, propõem, por assim dizer, uma «terapia espiritual»
para a humanidade , posto que rechaçam a idolatria das criaturas e tornam visível
de algum modo o Deus vivente. A vida consagrada, especialmente nos momentos
de dificuldade, é uma bênção para a vida humana e mesmo para a vida eclesial”
(VC 87).
À medida que se tem ressaltado a visão da pessoa como ser em relação,
sujeito livre e responsável, vai-se refazendo a vida comunitária, a formação, o
apostolado, o governo, a administração de bens. Cada vez contam mais o diálogo,
a participação e o trabalho em equipe. No documento sobre “Orientações sobre
a formação nos Institutos religiosos” (1990) se expressa a justa preocupação pela
formação integral da pessoa, sem a qual é impossível construir uma vida religiosa
madura e significativa. O formando aprende a conjugar os verbos que expressam a
vida e missão desde o “nós” e, assim, cultiva a pertença, fomenta o testemunho da
fraternidade e o leva a abraçar com entusiasmo o trabalho apostólico.
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Desejosos de estar na vanguarda da missão evangelizadora, os religiosos
optaram por privilegiar a promoção humana, a inserção no mundo do trabalho,
com a devida profissionalização, e a participação na política. Foram iluminadoras
as orientações do documento, todavia de grande atualidade , Religiosos e promoção
humana (1980). Mais tarde, diante da degradação das relações funcionais, que
derivou para o individualismo, surgiu a sede de relações mais genuinamente
fraternas em as comunidade s religiosas. Isto motivou uma reflexão para fazer
ver que a comunidade é, antes de tudo, um dom que se deve acolher, celebrar e
expressar; é lugar onde que se lega a ser irmãos e é lugar e sujeito da missão (A
vida fraterna em comunidade , 1994). O futuro das comunidades renovadas, sinais de
comunhão e estímulo para a fraternidade universal, depende da maturidade das
pessoas que as integram. O desafio da globalização e da pós-modernidade , com tudo
o que comporta de provisoriedade (“liquidez”) nas relações, requer um cuidadoso
exercício da liberdade e um maior discernimento para integrar contrastes: o local e
o mundial, o individual e o coletivo, o feminino e o masculino.
Três quartas partes das pessoas consagradas são mulheres. Estas, com as
mulheres de seu tempo, tem afirmado e oferecido os valores de sua feminidade
. Uma constatação tão elementar atualmente tem um eco muito diferente do
que poderia ter nos anos cinquenta. Por diferentes motivos foi crescendo o
reconhecimento do papel e da missão da mulher consagrada na sociedade e na
Igreja, ainda que permaneçam metas a serem alcançadas. Acabou o patriarcalismo.
Já não podemos falar de dignidade da pessoa sem destacar tanto a autonomia
como a reciprocidade dos gêneros. São iluminadores os estudos sobre a igualdade,
a diferença e a inter-relação. Na vida consagrada contamos com muitas e ricas
contribuições em chave feminina. Os elementos essenciais (votos e comunidade)
e as dinâmicas de formação e governo, vistos desde a ótica feminina, adquirem
outras matizes. As mulheres consagradas, com sua dedicação sem limites e sua
alegria, são sinal da ternura de Deus para com a humanidade . Através delas
melhoram as relações humanas na Igreja e na vida consagrada. É difícil pensar
projetos de vida e missão na Igreja sem contar com as mulheres consagradas. É
maravilhosa sua colaboração na formação. Seu zelo apostólico, sua capacidade de
entrega aos mais pobres e necessitados, sua sensibilidade para com os enfermos
e oprimidos, tornam insubstituíveis suas contribuições na Igreja e na sociedade.
3. Sendo e fazendo a Igreja
Outro dos giros dados pelos religiosos tem sido, sem dúvida, o
eclesiológico. A consciência de ser Igreja desde suas origens, e não uma simples
estrutura institucional sobreposta, tem ficado bastante clara ao largo da história.
Sou quando o direito tem prevalecido sobre a teologia e se obscureceu esta em
favor da instituição e organização eclesial, chega-se a postergar a eclesialidade
da vida consagrada. Em seus longos anos de pontificado, João Paulo II defendeu
reiteradamente a eclesialidade da vida consagrada. Chegou a dizer: “Jesus
mesmo, chamando algumas pessoas a deixar tudo para seguí-lo, inaugurou este
gênero de vida que, sob a ação do Espírito, se desenvolveu progressivamente ao
longo dos séculos nas diversas formas da vida consagrada. O conceito de uma Igreja
formada unicamente por ministros sagrados e leigos não corresponde, portanto, às
intenções de seu divino Fundador tal e como resulta dos Evangelhos e dos demais
escritos neotestamentarios” (VC 29).
Os religiosos mudaram não só em sua forma de pensar, mas também na
de agir. No seu conjunto, tem maior consciência de sua pertença à Igreja e estão
contribuindo mais generosamente em sua missão evangelizadora. Esta afirmação
não é gratuita. Pode-se verificar com a simples comparação entre o modo de levar
as obras apostólicas no final dos anos cinquenta e as atuais planificações das
atividades catequéticas, educativas, sanitárias e sociais, inspiradas e orientadas
desde o Magistério pontifício e da respectiva Conferencia episcopal. Hoje
a Igreja é compreendida e vivida como “communio personarum”, como uma
comunidade de carismas e ministérios, na qual tem sua missão específica os
Pastores, os ministros ordenados, os leigos e os consagrados. Daí a importância
das relações com os bispos e com os leigos. Cabe esperar que as relações entre
Bispos e Religiosos cheguem a ser mais distendidas e harmoniosas e prossiga
fomentando a cooperação com os leigo. Os problemas concretos que emergem
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no dia a dia não podem obscurecer o horizonte que temos marcado: fazer da
Igreja casa e escola de comunhão (NMI, 43).
Talvez o ponto mais instigante seja a harmonia entre o universal e o
local na pertença e serviço à Igreja. Os religiosos carregam dentro de sua
vocação a referencia à Igreja universal, porém hão de viver e agir na Igreja local.
Os conflitos mais comuns derivam da falta de compreensão ou de tato neste
ponto. Não é um problema exclusivo dos religiosos, pois acontece o mesmo
com outras instituições ou associações de fiéis e movimentos. Continua
sendo uma questão pendente nos seminários e nas casas de formação a
Igreja particular e a vida religiosa. Quantos eclesiólogos tem incluído em seus
tratados a vida consagrada à luz dos documentos da Igreja? Quantos religiosos
terão lido a exortação pós-sinodal Pastores gregis?
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A eclesiologia das igrejas particulares e da colegialidade episcopal
tem influenciado na centralização e descentralização da Igreja e dos
institutos de vida consagrada. Quanto aos religiosos, a influência se faz notar,
especialmente, no governo e na ação pastoral.
Há outros testes de fiabilidade da eclesialidade dos religiosos difíceis
de aplicar, porém que aí estão como sinais de que sua vida e seu trabalho
estão transidos de amor à Igreja. Penso em tanta gente que vive gozosamente
sua vocação, que transmitem com alegria o evangelho do Reino, que sofrem
com tudo aquilo que faz sofrer ao Papa, aos Pastores e à comunidade cristã,
que tem à flor de pele mensagens de esperança, que sabem suportar as
contrariedades com paciência, que aceitam a enfermidade e a passagem
dos anos com serenidade e confiança, que olham a morte com aquela paz
de quem sabe que Jesus e Maria veem ao seu encontro. Sim, a eclesialidade
se proba no dia a dia da fé, do amor e da esperança. Muitas vezes tenho visto
religiosas e religiosos viver e trabalhar em situações infra-humanas, correndo
a mesma sorte dos mais pobres, e tenho dado graças por sua generosa
entrega, sua capacidade de sacrifício, seu amor à gente pobre e excluída e
seu desejo de criar uma comunidade que ore, viva a fraternidade e disponha
de meios para uma educação elementar e um serviço básico de saúde.
4. De coração na missão evangelizadora
Os institutos de vida apostólica, dos que basicamente estamos falando,
colocaram no pós- concílio um grandíssimo interesse em reafirmar a unidade
de vida dos religiosos. Tudo isso deve estar imbuído de Espírito apostólico, e
toda a ação apostólica, informada de Espírito religioso (cf. PC 8). Bem cedo se
fez a releitura da missão da vida religiosa desde a LG, AG, GS e o MR. O Sínodo
sobre a evangelização do mundo contemporâneo, tirou a vida religiosa da
crise de intimismo e de disponibilidade por ter-se metido em seu mundo
interior. Ajudaram também Puebla e Santo Domingo. Outros dois golpes
vieram com a encíclica Redemptoris missio (1991) e os Sínodos continentais.
A missão começa a considerar-se como epifania do mistério de amor, que é
a vida da Trindade, e se destacam como elementos essenciais a gratuidade,
a acolhida, a contemplação, a oração, o sofrimento e a compaixão orientados,
por sua vez, à gloria da Trindade. A missão não é só ação, senão também
paixão. No centro da missão está Jesus, o Filho, o ungido por o Espírito, que
proclamou o Reino de Deus e aparece a Igreja como sacramento e servidora
de este Reino. Sem deixar de destacar que o protagonismo pertence ao
Espírito Santo, a missão adquire outros nomes correlacionados entre si, como
anuncio, conversão, testemunho , diálogo, justiça , libertação, inculturação e
solidariedade .
As grandes opções da vida religiosa no exercício da missão tem sido:
a opção pelos pobres, que estava incoada no Concílio e ficou muito explícita
a partir de Medellín; a opção pela “missio ad gentes”, que aponta para a Ásia,
África e o Leste Europeu; e a opção pela fraternidade universal, que parte
da “civilização do amor” e da “espiritualidade de comunhão”. Muitos dos
deslocamentos dos religiosos para lugares de novas pobrezas e muitas das
atividades que criam laços, fazem pontes e estabelecem vínculos solidários,
só são compreensíveis a partir destas três grandes opções sucessivas e, por
sua vez, interdependentes.
A atenção prestada à missão tem suscitado abertura, nova sensibilidade
ante o mais urgente, tem dado sentido e estímulo à espiritualidade , ao
governo, à formação e à gestão de bens, que se traduz em solidariedade ,
e tem provocado a seleção e revisão de presenças e serviços. A missão está
aglutinando, em torno ao carisma fundacional, os leigos e a quantos cooperam
na transformação do mundo segundo o desígnio de Deus; está promovendo
a colaboração inter-congregacional; e está motivando a reorganização dos
Institutos ou a reestruturação das obras. É verdade que esta reorganização não
se faz unicamente por motivos apostólicos, senão também como resultado da
precariedade de forças em ativo. Porém não se pode considerar como mera
estratégia humana. Os religiosos vão se dando conta do momento em que se
encontram e querem reorganizar-se para viver mais evangelicamente e servir
melhora as Igrejas. Este duplo objetivo só pode ser logrado com uma forte
dose de espiritualidade , purificação e despojamento. A renovação, pedida
no n. 3 do PC, continua e se demostra neste nobre intento.
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IV. NESTE MOMENTO DA VIDA CONSAGRADA
1. Nem tão brilhante, nem tão obscuro
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Os quatro pontos indicados permitem entrever a mudança que ocorreu
na vida religiosa, ao menos em sua compreensão e como tendência de
comportamento. Porque nem tudo tem sido questão de ideias. É difícil medir
quanto tem havido, durante o processo de renovação recorrido, de conversão a
Jesus Cristo e a sua missão, de oração e discernimento, de renúncias e novos
projetos, de compromissos e retificações; em definitiva, de experiência de vida
segundo o Espírito. Não faltam mártires nem homens e mulheres que se tenham
distinguido por sua santidade e que têm incoados os processos de beatificação.
Ao longo destes cinquenta anos foram reconhecidos novos institutos de vida
consagrada. Sem citar todos os ganhos alcançados, que são amostras de que
a vida religiosa está viva e tem futuro, convém destacar que os religiosos se
recolocaram na Igreja abandonando toda tentativa de concorrer com os outros
cristãos e procuram firmar-se na fraternidade e na solidariedade. Sabe-se, por sua
vez, que são diferentes e complementares na Igreja. Vão descobrindo sua própria
identidade carismática e tratam de vivê-la com paixão, porém sem orgulho, no
meio de um mundo secular, pluricultural e globalizado. O momento atual lhes
faz pensar, sopesar e olhar para frente com confiança. Não se tem percorrido o
caminho em vão.
Se comparamos os números dos membros da vida consagrada com os
de 1958, o decréscimo tem sido notório. Os abandonos da vida religiosa foram
numerosos e são muito poucos os que decidem ingresar nela. Estes datos e o fato
de que não faltam vozes dissonantes com o magistério da Igreja e que algunos
parecen ser francotiradores na ação pastoral, fazem com que alguns ponham em
dúvida o processo de renovação da vida consagrada e seus frutos. Mais ainda, se
perguntam se as tradicionais formas de vida religiosa esgotaram seu ciclo de vida
e se não devem surgir outros modos de expressar os compromissos evangélicos
pelo Reino. A isto, já respondeu João Paulo II: “a vida consagrada não só tem
desempenhado no passado um papel de ajuda e apoio à Igreja, mas igualmente
é um dom precioso e necessário também para o presente e o futuro do povo de
Deus (…). Poderá haver históricamente uma ulterior variedade de formas. Porém
não mudará a substância de uma opção que se manifesta no radicalismo do dom de
si mesmo por amor ao Senhor Jesus e, nele, a cada membro da familia humana”(VC
3). Tem-se dito que os religiosos tem sofrido. Muito, porém do que realmente lhes
dói não é a incomprensão, nem a marginalização, mas a superação e a falsificação
de suas origens e de suas fidelidades.
Numa ponderada consideração sobre a realidade da vida religiosa, é
elementar reconhecer a situação de precariedade e debilidade progressiva que
vamos tendo e tem-se que admitir fatos negativos que se devem afrontar com
responsabilidade e corrigir com caridade. Não obstante, convem notar que não
é a lógica da utilidade ou da eficacia, mas a da gratuidade e da gratidão, a do
mistério pascal e a esperança, a da fidelidade e a generosidade , a que se teria
de empregar para julgar com realismo a qualidade da vida consagrada. A Palavra
de Deus faz referência a que não são os carros e cavalos os que dão a força, mas
antes o poder do Senhor. Os religiosos têm se questionado sobre sua fidelidade
ao Senhor e à Igreja, sobre a falta de vocações, têm trabalhado intensamente na
pastoral vocacional e têm-se autoculpabilizado, quiças mais além da coenta, por
não ter atualmente mais vocações.
Devemos ser realistas, é verdade. Porém não basta ver tudo negativo. É
realista quem assume a realidade em sua totalidade e mantem a convicção de
que esta é emergente, rica em possibilidades e generosa em oportunidades para
afirmar outra perspectiva de futuro não menos valiosa. Quantos se perguntam
porquê os religiosos, em sua imensa maioria, mesmo sabendo das dificuldades
que atravessam, se sentem felizes em sua vocação? Sabem donde vêm e para
onde vão. Desde a experiencia acumulada, ao longo da história5, recomendam
seu destino ao Senhor da Vida. Os religiosos estão habituados à revisão pessoal,
comunitária e congregacional. Captam o que vale a curto e longo prazo, aceitam
os correctivos no caminhar e sorriem quando lhes prognosticam a data de sua
estinção 6. Também é realismo contar com que a vida consagrada, por seu carisma
e missão, leva em suas entranhas a universalidade e a capacidade de percorrer a
via da interculturalidade . Não vão faltar religiosos que saiam de seus países, onde
há vocações, e vão a outros onde se lhes necessita.
2. “Ab ipso ferro” e despertando a aurora
Frei Luis de León, em seu escudo, nos empresta algo similar para definir
hoje o momento que atravessamos: “Ab ipso ferro”, que ele toma de Horácio,
quando diz: “como encina porfazha destrozada/ (del Álgido, feraz en fronda espesa),/
en cada desgarrón, do hierro mismo,/ recibe nuevos bríos, savia nueva”7.A diminuição
e a precariedade não são, em si, prenúncio de morte . A poda contribui no
fortalecimento das plantas. Da ferida, do despojamento e da purificação costuma
surgir nova vida. Depende da resposta que damos ao momento presente. O
mysterium crucis abre a porta para a transfiguração, para a ressurreição.
5
6
7
Cf. L. MOULIN, El mundo viviente de los religiosos, E. Nacional, Madrid, 1966. R, HOSTIE, Vida y morte
de as órdenes religiosas, DDB, Bilbao, 1973.
Um sinal de vida é que de 1984 a 2006 foram aprovados 216 Institutos de vida consagrada de
direito diocesano e 154 receberam a aprovação pontificia.
HORACIO, Odas-Epodos, 4,4. Espasa Calpe, Madrid, 1967, p. 131.
37
Não é o ocaso, sim a aurora o que se avista no horizonte da vida religiosa
atual. Porém, é preciso despertar a aurora. Os religiosos sabem que se encontram
num inverno, Todavia, o inverno não é a morte, mas antes a preparação para uma
vida pujante e vigorosa. Sabem que a noite está passando e que a aurora se
aproxima. Os versículos 2 e 3 do salmo 107 expressam muito bem os sentimentos
que brotam de seu coração: “Deus meu, meu coração está firme, para ti cantarei
e tocarei, gloria mia. Desperta, citara e harpa; despertarei a aurora”. Como o
salmista, o religioso se sente animado para despertar a aurora. Sabe que as trevas
não são capazes de sufocar a luz verdadeira. Despertar a aurora não significa
desprezarmos com o sorriso ao ver um novo dia, como se nos contentáramos em
sobreviver um dia mais tranquilos. Não. Despertar a aurora é pôr-nos todos frente
à luz e a vida, a verdade e a justiça; é mostrar que há uma outra maneira de ser
homens , concidadãos, que confessam sua fé, que são sinais de fraternidade e
que entregam sua vida desinteressadamente por os demais.
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A renovação da vida religiosa tem bastante semelhança com a profecia
de Ezequiel (37,1-14), que se acha inacabada. Como se nos continuasse faltando
esse último toque do Espírito para caminhar com garbo e estabelecer-nos em
nosso solo, em nossa pátria e tornar-nos “povo de Deus”. Múltiplos indícios fazem
crer que o Espírito colocou no coração dos consagrados mais sede do que agua
viva, maior afã pela busca do rosto de Deus e do que sobrecarga de tensão
escatológica. A resposta a tanto dom está gravada em duas palavras: “fidelidade
criativa”. A vida religiosa tem futuro quando se enfrenta com os desafios mais
radicais e não o tem quando se enreda em batalhazinhas internas ou em litígios
com quem deve trabalhar para a glória de Deus.
Em nossa sociedade há um culto excessivo à aparência e se sente especial
prazer pela simulação. Foi sequestrado o pensamento serio e, longe de nos
esforçar para recuperar a interioridade e a autenticidade ; estamos nos deixando
envolver pelo encanto de novas formalidades. Da chamada ao essencial que,
com tanta insistência grita de Bento XVI, só resta um eco longínquo. Não chega
a comprometer a vida. Este é um de nossos desafios: oferecer autenticidade e
ultimidade. Não garantimos o futuro da vida religiosa desde a ligeireza no uso de
nossa liberdade, desde nossa rotina ou superficialidade, nem desde a aparência e o
espetáculo, senão desde a coerência e a generosa entrega. Temos que perguntarnos se estamos respondendo aos grandes desafios do mundo contemporâneo
que progride a margem de todo vínculo religioso; que passa pelo sequestro da
linguagem e pela ajuda e buscar da verdade que nos liberta e nos salva; que
vamos a inovar para superar o divórcio entre fé e cultura e para cooperar na
defesa da vida e na salvaguarda da criação.
Diz-se que os religiosos abusam da profecia. Tenho a impressão de que,
se de algo há que criticar aos religiosos, é de terem-se inibido, de ser temerosos e
pouco livres no exercício da atrevida profecia de sus fundadores. Não é bom para
a Igreja que os religiosos percam a criatividade e se estanquem. Urge mostrar
que se vive desde a ultimidade escatológica. Nossa inibição pode acontecer por
carência de mística e de ardente caridade apostólica; por indigencia não estudo
e não análise crítica das situações culturais, sociais e políticas; e por falta de
imaginação para descobrir e oferecer indicadores do caminho segundo o Espírito.
Por isso, penso que a vida religiosa precisa menos autoflagelação e mais estímulo.
A vida religiosa possui uma grande energia que a urge continuar sendo sinal
e estímulo para o Povo de Deus. É consciente da força do Reino de Deus quando
Jesus diz que se parece à levadura na massa e ao grão de mostarda semeado na
terra. João Paulo II o expressava assim: “A vocação à vida consagrada no horizonte
de toda a vida cristã , apesar de suas renúncias e suas provas, e mais ainda: graças
a elas, é caminho «de luz», sobre o que vela o olhar do Redentor: «Levantai-vos, não
tenhais medo»” (VC 40). A vida religiosa tem futuro, se contempla, se oferece, se
testemunha, se colabora, em definitiva se vive em Cristo, prega seu evangelho
e… pensa menos em si mesma.
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3. A mensagem de Aparecida
Uma das grandes convicções da Igreja e da vida consagrada, reafirmadas
no período pós-conciliar e confirmada em Aparecida, é que não nasceram para si
mesmas, para estar voltada para dentro e para estar-se mudando continuamente.
Seguindo a Jesus, homem para os demais, a Igreja e a vida religiosa cobram vigor
quando, esquecendo-se de si mesmas vivem a paixão por Deus e pelos homens .
Aparecida, com sua proposta de “Discípulos e missionários”, é um
programa de futuro. A espiritualidade da aproximação ao Mestre, da atenção
na escuta e do caminhar juntos, da disponibilidade missionária, é um modo de
reafirmar o essencial, de dar vez ao outro, de ampliar a tenda do encontro; é dizer,
de construir a grande família dos Filhos de Deus8.
Aparecida oferece à Igreja e nela à vida consagrada a oportunidade de
expandir-se. A análise da realidade , o reconhecimento das comunidades de base,
a eclesiologia de comunhão, o por em seu centro em Jesus, que é por sua pessoa,
sua palavra, sua eucaristia; que é por no centro os mais pobres e excluídos; é um
grande projeto missionário.
Nestes últimos anos tem-se insistido em que é tempo de estabelecer
vínculos, criar laços, edificar pontes. Aumentaremos a tenda se vivemos e
convocamos. Viver é estar unidos à vida e dar fruto no amor (cf. Jn 15, 1-17).
8
Sobre a vida religiosa em Aparecida, cf. a conferencia de Aparecida: interpelação y estímulo. VidRel, 104 (2008), pp. 1-80.
Aparecida é uma porta para a esperança. Ela nos pede para
estarmos atentos ao “grito dos pobres” e solidarizar-nos com eles - o que é
critério de verificação e de autenticidade de nossa vida consagrada. Nesta
atitude temos de estar por coerência evangélica e carismática 9. A vida
fraterna em nossas comunidades é sinal inequívoco da presença do
ressuscitado e parábola de evangelização. Tenhamos aberta a via do diálogo
em todas suas formas (cultural, religioso, geracional, inter-congregacional e de
vida). Temos de suplicar ao Espírito que cure nossos corações, que nos liberte
de toda escravidão e que nos encha de compaixão para passar à outra
margem das necessidades mais prementes e tornar mais humano nosso
mundo segundo o desígnio de Deus.
Sempre tem sido sinais de esperança que ajudam a caminhar e encarar
com serenidade o futuro: a busca do rosto de Deus, a escuta assídua de sua
Palavra e a profecia da “vida samaritana”. Existe um futuro onde há vida segundo
o Espírito. Onde há alegria pascal.
40
Tradução: Hr.
9
Cf. Aparecida, n. 391, 396, 398.