inclusão social e democracia deliberativa na

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inclusão social e democracia deliberativa na
INCLUSÃO
SOCIAL
E
DEMOCRACIA
DELIBERATIVA
NA
AMÉRICA LATINA1
Sonia Fleury2
1- DEMOCRACIA, DESIGUALDADE E EXCLUSÃO
Na próxima semana estará sendo lançado o Informe sobre el Desarrollo de la
Democracia en América Latina 2004, do Programa de las Naciones Unidas para
el Desarrollo (PNUD).3 Este relatório representa um grande esforço para
estabelecer um marco teórico comum que nos permita analisar a situação
política e social na região, definindo um conjunto de indicadores para comparar
as condições de desenvolvimento da democracia na região. Juntamente com as
informações produzidas periodicamente pelo Latinobarômetro4 o relatório do
PNUD contribui para lançar luz sobre uma possível resposta à pergunta que nos
parece crucial: é a democracia compatível com a exclusão social?
Considerando que a região está vivendo sob regime democrático há cerca de 25
anos, o informe das Nações Unidas faz um balanço deste período e conclui:
1- En América Latina se reconoce hoy el derecho al voto universal, sin
restricción alguna de peso significativo.
2- Las reformas estructurales de la economía (políticas impositivas, de comercio
internacional, financieras, privatizaciones, legislación laboral) tuvieron una
aplicación sostenida.
1
Palestra realizada no Encuentro de Egresados del Programa INDES – Honduras, “La Inclusión
Social:una Perspectiva de Gerencia Social en las Estrategias de Reducción de la Pobreza”, 1517 de Abril de 2004
2
Professora da Escola Brasileira de Administração Pública e de Empresa – EBAPE da
Fundação Getulio Vargas, onde coordena o Programa de Estudos da Esfera Pública
www.ebape.fgv.br/pp/peep
[email protected]
3
PNUD, 2004 – Informe sobre el Desarrollo Democrático en América Latina
Latinobarómetro, 2003 – La Democracia y la Economía, www.latinobarometro.org
4
1
3- El promedio regional del PBI per capita no varió de manera significativa en
los últimos 20 años (En 1980, el PBI per capita era de US$ 3.739 a valores
constantes de 1995 y en 2000 era de US 3.952).
4- Los niveles de pobreza experimentaron una leve disminuición en términos
relativos (el porcentaje de pobres ponderado por tamaño de población para la
región era de 45% en 1990 y de 41,8% en 2001). Sin embargo, en términos
absolutos, el número de habitantes que se situaba por debajo de la línea de
pobreza aumentó (de 190 millones en 1990 para 209 milliones en 2001).
5- No se redujeron los niveles de desigualdad (en 1990 el coeficiente Gini,
promedio regional ponderado por población era de 0,554 y subió a 0,580 en
1999). La región posee los niveles de desigualdad más altos del mundo en la
distribuición del ingreso.
6- Durante los últimos 15 años la situación laboral ha desmejorado en casi toda
la región. El desempleo y la informalidad aumentaron siginificativamente y
cayó la protección social de los trabajadores.
Todos estes dados nos levam a responder afirmativamente à pergunta colocada
anteriormente, isto é, sustentamos que a democracia foi compatível com a
exclusão social neste último quarto de século em nossa região. Poderíamos
mesmo hipotetizar que a instauração dos regimes democráticos e a canalização
das demandas sociais para os canais de representação e as arenas
parlamentares,
reduziu
os
riscos
de
convulsão
social
e
crises
de
ingovernabilidade, impossíveis de seguirem sendo controlados exclusivamente
pelos mecanismos repressivos que caracterizaram as ditaduras dos anos 70 e
80.
Apesar do regime democrático não ter gerado condições mais igualitárias na
região, especialmente em um período em que se reduziu a participação estatal e
se fomentou a economia de mercado, tanto a democracia como a economia de
mercado são vistos, pela população, como condições imprescindíveis para que
os
países
possam
se
desenvolver
(respectivamente,
67%
e
57%,
Latinobarômetro, 2003). No entanto, estas atitudes favoráveis à democracia e à
2
economia
de
mercado,
não
garantem
coerência
nas
percepções
e
comportamentos que assegurem a sua sustentabilidade, já que, segundo o
mesmo informe do Latinobarômetro, 80% dos entrevistados afirmam que, apesar
do desenvolvimento econômico e melhoras em saúde e educação, há exclusão
e se sentem extremamente vulneráveis ao desemprego.
No mesmo informe, outros dados significativos apontam a ausência de uma
cultura política democrática, baseada na confiança tanto nas instituições, quanto
no governo e nas demais pessoas. Ao contrário, predominam percepções e
atitudes que mostram a vulnerabilidade da democracia, tais como desconfiança,
medo do desemprego, indiferença em relação ao regime, redução da confiança
no conjunto de instituições, baixos índices de confiança e aprovação dos
governos vistos, na maioria das vezes, como corruptos, além de baixos níveis de
satisfação com a democracia. Neste sentido, as ameaças à governabilidade
democrática seguem presentes no cenário latino-americano, recolocando a
discussão sobre a democracia desde o prisma da governabilidade. Em outros
termos, é a presença de ameaças à governabilidade que recoloca e faz
aprofundar a discussão sobre a democracia na região.
A problemática da gobernabilidade envolve tanto o fortalecimento da capacidade
do governo para assegurar os bens públicos em uma sociedade, como tambem
a existência de normas e valores compartilhados – hoje, denominados capital
social - que organizem as interações coletivas, gerando condições para uma
ação cooperativa entre os diferentes atores e agentes sociales. As instituições,
como regras formais ou informais, e as organizações são construções sociais
criadas para reduzir as incertezas nas transações humanas (North, 1993)5.
Desta forma, induzem à cooperação e afetam o desempenho final da economía
e das instituições políticas (Puttnam,1996).6
A discussão em torno ao problema do déficit crônico de gobernabilidade na
América Latina, retoma as hipóteses explicativas tradicionais, atribuindo-o, por
5
North, Douglas (1993). Instituciones, Cambio Institucional y Desempeño Económico. Fondo de
Cultura Económica, Mexico
6
Putnam, R. (1996) – Comunidade e democracia; a Experiência da Itália Moderna, Editora FGV,
Rio de Janeiro.
3
um lado, ao excesso de demandas geradas como conseqüência da
democratização, criando uma desproporção entre aquelas e os recursos
disponiveis. Por outro lado, a hipótese sustentada pela teoria da modernização,
para a qual uma rápida modernização pode levar a uma revolução das
expectativas crescentes, colocaria o desenvolvimento econômico como condição
de possibilidade de preservação da democracia política. As numerosas críticas à
teoria da modernização desenvolvidas a partir dos anos 70, por diversos
autores, terminaram por concluir que não há um nível particular desejável de
desenvolvimento econômico que constitua um pre-requisito para a democracia
(Altman, 2001)7, para concluir com a afirmação de Amartya Sen (1999:7),
analisando as evidências das investigações sobre a relação entre estes dois
fenômenos: “Se todos os estudos comparativos são vistos em conjunto, a
hipótese de que não há uma clara relação entre o crescimento econômico e a
democracia em qualquer direção se mantem extremamente plausível”.
8
Ao
contrário, a política passou a ser considerada um pré-requisito para a
sustentabilidade de instituições legítimas e a adoção de pol’ticas públicas que
sejam efetivas e funcionem em benefício de toda a cidadania. Esta posição é
defendida por Payne et al (2003)9 ao afirmar que “Contraria a una línea de
pensamiento vigente en el pasado, la tarea de construir un sistema democrático
legítimo, representativo y eficaz no es algo que pueda postegarse hasta que
exista un nivel adecuado de desarrollo. Más bien, considerando que es
indispensable para fortalecer las instituciones y poner en práctica políticas
públicas efectivas y duraderas, el buen funcionamiento democrático es una
condición sine qua non para un desarrollo equitativo y sostenible.”(pp.13)
No entanto, estas afirmações podem ser melhor classificadas como wishful
thinking, considerando os resultados das percepções e atitudes da população,
7
Altman, David (2001) – “Democracia política y desarrollo económico: ¿Existe alguna
relación?”in Instituciones y Desarrollo, http//:www.iigov.org/pnud/bibliote/
O autor inclui entre os críticos da teoria da modernização Coleman, Cardozo e Faletto,
Wallerstein, Rustow , O’Donnell e Barrington Moore.
8
Sen, Amartya (1999) . “Democracy as a Universal Value”. Journal of Democracy 10 (3): 3-17
citado por Altman, D. 2001
4
aferidas periodicamente pelo Latinobarômetro que demonstram as contradições
em relação ao apoio à democracia, tendo em vista a desconfiança nas
instituições e a degradação dos níveis de vida e das condições de trabalho na
região.
Mais ainda, os acontecimentos recentes demonstram que a existência de
eleições está longe de assegurar que os governantes eleitos sejam capazes de
cumprir o seu mandato, tendo sido literalmente retirados do poder pelas massas
populares, sendo seus governos identificados como corruptos e/ou ineficazes.
Uma boa parte dos analistas atribuem à fragilidade da arquitetura políticoinstitucional - em especial a ausência do Estado de Direito e as debilidades do
sistema partidário e ao funcionamiento precário do parlamento - o déficit que
ameaça a gobernabilidade na região. Para estes autores a governabilidade é
uma decorrência da institucionalização da democracia. As explicações para a
permanente crise de governabilidade na região atribuem à combinação do
regime presidencialista com um sistema partidário altamente fragmentado e com
baixa identidade ideológica, o que resulta em um modelo de um instável
presidencialismo de coalizões (Mainwaring, 1993)10. O principal problema destas
análises é a redução da problemática da governabilidade ao encaminhamento
de
uma reforma política que conduza ao parlamentarismo e a restrição ao
funcionamento dos pequenos partidos. A simplificação da questão deixa de lado
as origens dos problemas, situadas no âmbito da preservação e acomodação
das relações de poder entre as oligarquias políticas e econômicas, garantindo a
estabilidade da vigência de sua condição de mando a partir de processos de
barganha e troca de favores, que descaracterizam os partidos e instabilizam o
poder executivo.
A identificação da democracia como o estado democrático de direito –
democratic rule of law – é defendida por O’Donnell (2001:69): “La democracia no
es tan solo un régimen democrático, sino también un modo particular de relación
9
Payne, J. M., Zovatto, D., Carrillo, F. Allamand A. (2003). La Política Importa. Democracia y
Desarrollo en América Latina. BID. Washington
10
Mainwaring, Scott – “Presidentialism, Multipartism and Democracy: The Difficult Combination”.
Comparative Political Studies No. 26, vol. 2
5
entre estado y ciudadanos, y entre los proprios ciudadanos, bajo un tipo de
estado de derecho que, junto con la ciudadanía política, sostiene la ciudadanía
civil y una red completa de rendición de cuentas”. 11
Os direitos civis e os direitos políticos seriam o principal apoio do pluralismo,
além de serem uma condensação de relações de poder
dos indivíduos e
associações. Portanto, sua extensão a todos os cidadãos na vigência do Estado
de Direito, completada com as condições de rendição de contas do exercício do
poder seriam as condições para considerar os indivíduos como sujeitos jurídicos,
ou cidadãos, portadores de direitos e deveres derivados de seu pertenecimento
político, sendo-lhes atribuída autonomia pessoal e responsabilidade por suas
ações.
O coração da democracia residiria na extensão dos direitos civis e na efetividade
da legalidade estatal em difundir-se igualmente sobre o território nacional. Para
O’Donnell (2002)12, em muitas das democracias latino-americanas persistem
áreas “marrons”, às quais a legalidade do estado não chega a alcançar,
prevalecendo aí relações de poder personalistas,
patrimoniais e mafiosas.
Nestes casos, o Estado seria territorialmente evanescente e as burocracias
colonizadas por interesses privados.
Retomando a questão inicialmente colocada, sobre a compatibilização
entre democracia e exclusão social, podemos agora aprofundar nossa
análise e afirmar que esta compatilização é possível, sempre e quando,
restringimos a democracia a um regime democrático, mesmo que com
eleições periódicas e institucionalizadas, relativamente livres, para o
acesso às principais posições governamentais. Nesta concepção, os
direitos de participação se identificariam com os mecanismos de
representação.
No entanto, no momento em que a existência de regimes democráticos, com
sistemas eleitoriais competitivos e formas institucionalizadas de representação,
não parece garantir condições de governabilidade na região, o debate teve que
11
O’Donnell, Guillermo (2001). “La Irrenunciabilidad del Estado de Derecho” in Instituciones y
Desarrollo, 8/9, Mayo. Instituto Internacional de Gobernabilidad. Barcelona
6
incorporar outros atributos da democracia, seja em relação à cultura política,
seja em relação à institucionalidade e funcionamento estatal. Neste sentido, são
apontados os déficits de estatalidade e a subordinação da lógica burocrática à
lógica patrimonial e clientelista, como responsáveis pela não democratização do
Estado, gerando a persistência de fenômenos como a corrupção e a
inefetividade das políticas públicas.
Ao apontar a persistência de um modelo econômico excludente, como o fator
central para a fragilização das instituições democráticas, especialistas sustentam
que, no caso da América Latina, cujo desenvolvimento econômico e social tem
como traço mais notório precisamente o elevado nível de desigualdade e
exclusão, a gobernabilidade democrática não pode separar-se da busca de
soluções para a inclusão social e a redução da desigualdades. A criação de
mecanismos de integração social - definida por Calderón (1995)13 como “a
capacidade da sociedade para construir cidadania ativa, eliminar as barreiras
discriminatórias no mercado e diseminar uma cultura de solidaridade” - é
novamente reposta no cenário político.
Em outro momento afirmei que “el problema central de gobernabilidad en América
Latina esta fundamentado en la convivencia paradójica entre una orden jurídica y
política basada en el principio de igualdad básica entre los ciudadanos y la
preservación simultánea del mayor nivel de desigualdad en el acceso a la distribución
de riquezas y a los bienes públicos. La pérdida de legitimidad del pacto corporativo y
de los actores tradicionales vinculados al Estado desarrollista
requiere la
construcción de un nuevo pacto de poder que contemple las transformaciones que se
procesaron con el adensamiento reciente del tejido social y sea capaz de incorporar,
plenamente, a aquellos que hoy se encuentran excluidos.
Sin embargo, las
posibilidades de generar estrategias de institucionalización del poder y cohesión
social están determinadas por la reducción del poder del Estado y por la inserción de
12
O’ Donnell, Guillermo (2002). “Notes on the State of Democracy in Latin America”. UNDP
13
Calderon, F. (1995). "Governance, Competitiveness and Social Integration" in
CEPAL Review. Santiago: nº 57, pp. 45-56
7
estas sociedades en una economía globalizada, profundizando la disyuntiva entre
economía/política, estado/nación.” (Fleury, 2003)14
Um dado muito significativo apontado pelo informe do Latinobarômetro (2003)
mostra que 50% dos entrevistados identifica como fator mais importante para
confiar nas instituições públicas o fato delas tratarem a todos como iguais. A
população tem, por conseguinte, consciência de que a democracia requer o
exercício da cidadania, como dimensão igualitária de inclusão na comunidade
política apesar da precariedade da cultura cívica prevalecente. Neste sentido,
para a população da América Latina, a democracia transcende o regime político
e deve ser identificada com a construção da cidadania.
Ao transpor a racionalidade política em direção à uma racionalidade social, o
debate sobre a democracia tem que encontrar seus fundamentos para além da
mera institucionalização das regras da competição política. O retorno do
cidadão, como fundamento do poder político, se impõe. No entanto, a
concepção de cidadania ainda envolve muitas questões polêmicas, o que nos
leva a perguntar que entendemos por cidadania.
Não cabe lugar a dúvidas de que o conceito de cidadania se relaciona
diretamente com a construção da democracia (Fleury,199715), sendo que
diferentes paradigmas democráticos se traduzem em distintas concepções ou
ênfases em relação aos elementos da cidadania. A existência de um sistema
político baseado no suposto de uma igualdade básica dos cidadãos é a
essência mesma da democracia. Ainda que o conceito de democracia não tenha
o mesmo significado para todos, segundo Bobbio (1994)16, podemos encontrar
pelo menos dois significados prevalecentes, em ambos os quais a questão da
igualdade está colocada, ainda que de formas distintas. Em um primeiro caso,
encontramos a ênfase posta no estabelecimento do conjunto de regras de
14
Fleury, Sonia (2003). “Legitimidad, Estado y Cultura Política” in Calderón, F. (Coord) - ¿ Es
Sostenible la Globalización en América Latina? Debates con Manuel Castells, Vol II, México,
Fondo de Cultura Económica.
15
Fleury, Sonia (1997) – Estados sem Cidadãos. Rio de Janeiro. Fiocruz
16
Bobbio, N. 1994. Liberalismo e Democracia. Sao Paulo: Editora Brasilense,
6a. edición, p. 37.
8
exercício de poder político e na não discriminação das preferências de qualquer
cidadão pelo poder judiciário – a chamada “poliarquia” (Dahl, 1997)17. Neste
caso, a igualdade é identificada como a igualdade formal diante da lei, e se
refere mais ao requisito da pluralidade do que a uma sociedade sem
desigualdades. Em outra concepção da democracia, oriunda da tradição
comunitária, a ênfase está posta no ideal que o governo democrático deveria
inspirar-se, no ideal da igualdade. Em lugar de uma democracia formal trata-se
aqui de uma democracia substancial, no qual a noção de igualdade deve
contemplar também os resultados.
Segundo O’Donnell (2002)18 no documento que serviu de base teórica para o
mencionado Informe do PNUD 2004, o cidadão deve ser visto como um
agente, isto é um ser autônomo, razoável e responsável, que goza de dois
tipos de direitos, direitos que são liberdades, tais como associação, expressão,
acesso à informação, e direitos de participação, entendida como eleger e
eventualmente ser eleito para posições de governo. Outra concepção que
adotamos de cidadania, entendida como dimensão pública dos indivíduos,
pressupõe um modelo de integração e de sociabilidade, que transcende os
interesses egoístas do indivíduo no mercado, em direção à uma atitude
generosa e solidária. A transição de uma comunidade de relações
interpessoais primárias para a comunidade abstrata dos cidadãos foi alcançada
pela participação, racional e afetiva, em uma comunidade política formalmente
constituída como Estado-nação.
A visão liberal da cidadania está fundada no individualismo possessivo19, cujo
cálculo racional utilitário o levaria a tomar decisões que maximizassem sua
ganância. Os direitos civis e políticos são os atributos da cidadania, contra-face
do regime democrático e de um Estado que trata a todos igualmente. A
expansão da cidadania para englobar os direitos sociais, que transcendem a
concepção formal de igualdade e a visão individualista da cidadania, em direção
17
18
DAHL, Robert (1997) – Poliarquia, São Paulo, EDUSP
O’Donnell, Gillermo (2002) – op. cit, pag. 27
9
a um pacto societário baseado em um princípio de justiça acordado, é algo que
foge
à
concepção
liberal
apresentada,
impondo-se
apenas
como
desenvolvimento histórico no curso da cidadania.
As dificuldades teóricas para inserir os direitos sociais como atributos da
cidadania são decorrentes da antinomia entre direitos civis e sociais, sendo os
primeiros expressão das liberdades e os segundos de poderes. Bobbio (1992)20
distingue, entre os direitos humanos, aqueles que asseguram liberdades dos
indivíduos, as liberdades negativas, como de credo, opinião, de pensamento, de
ter propriedade etc., referem-se a garantias de que o poder político não poderá
restringir as liberdades genéricas dos indivíduos. De outra natureza são os
direitos políticos e os sociais, que requerem uma intervenção direta do Estado
para assegurá-los. Além disso, já não se aplicam ao indivíduo genérico e sim a
sujeitos concretos – crianças, mulheres, idosos, indígenas – requerendo, por
conseguinte, a consideração de suas singularidades.
Bobbio chama atenção para o fato de que os direitos que são liberdades se
baseiam em um suposto estado natural dos homens, no qual a liberdade
precederia a sociabilidade. Os direitos sociais, ao contrário, são histórica e não
naturalmente fundados, tratando-se de exigências que se concretizam na
demanda de uma intervenção pública, somente podendo ser satisfeitas em um
determinado nível de desenvolvimento econômico e tecnológico.
Outro autor que trata com profundidade o tema da igualdade e da liberdade é
Amartya Sen (1995)21, que considera que a subordinação da igualdade à
liberdade – pelos libertários – ou a subordinação da liberdade à igualdade –
pelos igualitários – seriam, ambos, erros categóricos, na medida em que a
liberdade e a igualdade não são valores alternativos. “A liberdade se encontra
entre os possíveis campos de aplicação da igualdade e a igualdade se encontra
entre os possíveis esquemas distributivos da liberdade”. (Sen, 1995, p. 35) Para
19
Macpherson, C.B. 1979. A Teoria Política do Individualismo Possessivo. De Hobbes até Locke.
Rio de Janeiro. Paz e Terra.
20
Bobbio, N. 1992. A Era dos Direitos. Rio de Janeiro: Editora Campus.
Sen, Amartya. 1995. Nuevo Examen de la Desigualdad. Madrid: Editorial
Alianza.
21
10
sair dessa falsa contradição propõe a distinção entre liberdade e os meios para
alcançá-la. Introduz, além disso, a noção de capacidade, como a essência da
liberdade real. As capacidades são as oportunidades que tem uma pessoa para
obter o seu bem-estar.
A discussão teórica sobre o estatuto dos direitos sociais no interior da
concepção de cidadania tem consequências importantes para a comprensão do
seu desenvolvimento histórico na América Latina, já que um dos aspectos
singulares do processo de consolidação democrática na região é a reposição da
disjuntiva entre os diferentes elementos que compõem a cidadania, generando
cursos particulares, eivados de contradições. Enquanto os direitos políticos se
encontram praticamente universalizados, os direitos civis todavía não estão
garantidos, e os direitos sociais, em muitos casos, sofrem retrocessos como
conseqüência dos planos recessivos de ajuste econômico.
O fato de que os direitos civis tenham antecedido aos diretos políticos nos
paises desenvolvidos, enquanto na América Latina vivemos o processo inverso,
levou O’Donnell (1998)22 a identificar nossas democracias como não cívicas,
com o predomínio de uma cidadania de baixa densidade pois, os direitos civis e
as liberdades políticas são os principais suportes do pluralismo e da diversidade,
ademais de criarem condições para o exercício de uma autoridade burocrática
que rende contas de seus atos. Por estas razões, a proposta de O'Donnell se
orienta à conquista dos direitos civis como uma questão estratégica na
consolidação da democracia na região, assumindo que a desigualdade é
também produto da ausência do Estado de Direito.
A distinção entre reformas legais e o fortalecimento do Estado de Direito, no
entanto, permite demonstrar que o problema não está na inexistência de um
marco legal mas sim nos usos e abusos do sistema legal, o que permite a
impunidade dos poderosos, a corrupção dos funcionários e a aplicação da lei
22
O'Donnell, Guillermo. Polyarchies and the (un)Rule of Law in Latin America. West Bend,
Indiana: Kellogg Institute, Notre Dame University, 1998
11
como forma de punição aos politicamente desprotegidos. Da Mata (1983)23,
discorre sobre a prevalência desta institucionalidade oculta, que opera como
norma, organizando as interações sociais a partir da desigualdade cristalizada
na hierarquia vigente de poder, e não da igualdade entronizada na lei.
Para além da construção de um marco institucional fortalecido, o que se
evidencia é a extrema segmentação da sociedade civil, levando Oxhorn (1998)24
a afirmar que, ao contrário do círculo virtuoso de incorporação dos direitos
cidadãos descrito por Marshall (1967)25 ao analizar o caso inglês, a democracia
na América Latina continua restringindo o potencial da sociedad civil.
Sem dúvidas, não há evidências, teóricas ou históricas, consistentes para indicar
que a construção da cidadania na região deverá passar, primeiramente, por
assegurar os direitos civis, construindo democracias formais, para depois
enfrentar o problema distributivo, assegurando os direitos sociais.
Ao contrário, a questão social foi e continua a ser o lugar de constituição de
atores sociais que buscam inserir na arena política suas necessidades,
transformadas politicamente em demandas. Da mesma forma, é através das
políticas sociais que o Estado interpela os cidadãos, resignificando os conteúdos
conflitivos por meio de tecnologias apropriadas, despolitizando as demandas a
ele dirigidas e, finalmente, redefinidindo o significado da cidadania. Mais ainda, a
política social pode ser vista como uma meta-política, proposta por Santos
(1993)26, na medida em que a política social política social provê os princípios
que permitem ordenar opções trágicas, entre distribuição e concentração de
riquezas. Para o autor toda política social efetiva seria uma política redistributiva,
o que a eleva à condição de meta-política. Para nós, no entanto, a política social
23
Da Matta, Roberto (1983). “Você sabe com quem está falando? Uma discussão entre o
indivíduo e pessoa no Brasil” in Carnavais: Malandros e Heróis: para uma sociologia do
dilema brasileiro. Rio de Janeiro: Zahar.
24
Oxhorn, Philip. "Social Inequality, Civil Society and the Limits of Citizenship in
Latin America". Trabajo presentado en el Congreso de LASA, Chicago,
Illinois, 1998ª.
25
26
Marshall, T.H. Cidadania, Classe Social e Status. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1967
Santos, Wanderley Guilherme . 1993. Razoes da Desordem. Rio de Janeiro:
Editora Rocco.
12
é uma política meta-política porque estabelece critérios para inclusão e/ ou
exclusão dos indivíduos na comunidade política dos cidadãos.
A constitução de atores políticos, formas organizativas, articulações inovadoras
entre
Estado/mercado/comunidade,
demonstram
que
a
consciência
e
participação da cidadania estão se processando no âmbito das políticas e
direitos sociais, reafirmando que este continua sendo o nosso curso particular de
construção da democracia.
Para Genro (1997)27 “a reivindição cidadã começa como um processo de
construção de milhares de organizações que promovem a auto-organização da
comunidade em torno dos seus interesses particulares, predominantemente
situados na esfera da reprodução, criando uma esfera pública não estatal, que
gera novas formas de autonomia e inclusão alternativas”. Estas organizações
são mediadoras da ação política direta dos cidadãos, criando condições para
inserir seus interesses e reformar o exercício do poder político ao nível local.
Nossa tese é que a construção da democracia na região introduz a
reivindicação cidadã de um direito de quinta geração (para além dos
direitos civis, políticos, sociais e difusos), que corresponde à demanda por
uma gestão deliberativa das políticas públicas, em especial, das políticas
sociais.
Até o momento desconhecemos os mecanismos requeridos para que se
construa um novo desenho institucional do Estado que permita a articulação
desta nova realidade do poder local em um pacto político que garanta a
governabilidade do Estado nacional e fortaleça sua posição nos foruns supra
nacionais.
No entanto, esta não é uma hipótese a ser excluída, haja vista a capacidade de
inovação social e transformação da esfera pública que estamos assistindo ao
nível local e microsocial, de tal forma que o local é hoje um laboratório de
transformações políticas e administrativas, muitas das quais se generalizam,
posteriormente, no âmbito nacional.
13
2- DEMOCRACIA DELIBERATIVA E INCLUSÃO SOCIAL
O modelo hegemônico de concepção da democracia no século XX, afasta-se
das origens clássicas do conceito, visto como governo dos cidadãos, cujo
fundamento do poder político é a noção da soberania popular, que se expressa
como vontade geral inalienável e indivisível. (Bobbio, Matteucci e Pasquino,
1995)28 Schumpetter (1984:336)29 critica a concepção da clássica da
democracia fundada na realização do bem comum, para defini-la em termos
procedimentais, como um método: “o método democrático é aquele acordo
institucional para se chegar a decisões políticas em que os indivíduos adquirem
o poder de decisão através de uma luta competitiva pelos votos da população”.
Na mesma linha Bobbio (1986:18-19)30 fala da democracia como “caracterizada
por um conjunto de regras (primárias ou fundamentais) que estabelecem quem
está autorizado a tomar as decisões coletivas e com quais procedimentos…
sendo a regra fundamental da democracia a regra da maioria”.
O esvaziamento do conteúdo moral da democracia absolutiza os aspectos
formais e procedimentais em detrimento dos valores relacionados ao bem
comum, à igualdade e à participação ativa dos cidadãos. As regras da
democracia dizem respeito a como se deve chegar às decisões, mas não ao
conteúdo destas decisões.
O modelo institucional que concretiza esta concepção de democracia é a
representação, por meio da qual as vontades individuais expressas através do
27
GENRO, Tarso.1997. "O Novo Espaço Público. 21 Teses para a Criação de uma Política
Democrática e Socialista" em Genro (coord) Porto da Cidadania, Artes e Ofícios, Porto
Alegre.
28
Bobbio, Matteuchi, Pasquino (1995) – Dicionário de Política,7a. Edição, Brasília, Editora UNB
29
SCHUMPETER (1984) – Capitalismo, Socialismo e Democracia, Rio de
Janeiro, Zahar Editores
30
BOBBIO, Norberto (1986) – O Futuro da Democracia – Uma Defesa das
Regras do Jogo, 3a. Edição, São Paulo, Paz e Terra
14
voto em alternativas que são oferecidas pelos partidos políticos, são agregadas
e autorizam o exercício do poder de forma legítima. Este modelo hegemônico
da democracia representativa desconhece a experiência corporativa da socialdemocracia que gerou, ao lado dos mecanismos de representação, formas de
conselhos como mecanismos de confrontação dos interesses e de negociação
de consensos entre atores socialmente constituídos.
A estruturação das atividades políticas que permitiu a compatibilização entre
democracia de massas e o capitalismo é identificada por Offe (1984:36131) como
decorrente de dois arranjos institucionais que permitiram a mercantilização da
política e a politização da economia privada, quais sejam, a democracia
partidária competitiva e o Welfare State Keynesiano.
Com a crise do Welfare State, acentua-se também o descrédito em relação à
democracia representativa como mecanismo eficaz de agregação de interesses
e resolução de conflitos e os problemas de governabilidade que vêm sendo
crescentemente enfrentados pela desconfiança nas autoridades governamentais
e nos processos decisórios sobre as políticas públicas. Fatores como o
crescente poder de veto do capital, a complexificação, burocratização e
tecnificação do processo de planejamento governamental, as negociações
informais entre grupos de interesse e burocratas, são apontados como
responsáveis belo baixo potencial de criação de unidade política através da
democracia representativa (Offe, 1990).
Entre os muitos críticos da democracia representativa encontra-se Hirsch (1992),
que aponta como seus limites a ausência mecanismos que assegurem a
prestação de contas, a influência e possibilidade de participação da população.
Defende o corporativismo como forma de representação funcional dos
interesses que tem como vantagens a introdução na classe política de pessoas
que não são puramente políticos profissionais e a democratização da influência
informal, que atualmente só existiria para os grupos mais poderosos. Sua
31
OFFE, Claus (1990) – “La Separación de Forma y Contenido en la
Democracia Liberal”I OFFE- Contradicciones en el Estado del Bienestar, México,
Alianza Editorial
15
proposta é uma combinação virtuosa, baseada na diferenciação funcional entre
a democracia representativa e os mecanismos corporativos de representação
dos interesses. Na sua visão os fóruns corporativos não têm o propósito de
legislar ou supervisionar o governo, sendo seu objetivo a consulta, a
coordenação da atividade econômica e a negociação de ganhos e sacrifícios.
Recentemente, fenômenos universais como a perda de legitimidade das
instituições democráticas tais como os partidos e o parlamento, a fragmentação,
complexificação e auto-organização da sociedade civil e a redução do poder dos
Estados nacionais têm levado à uma demanda crescente por uma nova e radical
institucionalidade democrática, capaz de introduzir o direito à participação como
parte da condição de cidadania.
Além da ausência de condições materiais que assegurem o consentimento o
contexto atual difere profundamente da etapa da social democracia Keynesiana
considerando-se a relação atual entre Estado e sociedade, já que a política foi
descentrada, deslocando a ênfase dada ao processo decisório estatal, para as
prática do cotidiano. Vários autores chamam atenção para a profunda
transformação cultural representada pelo papel ativo dos movimentos sociais na
ampliação
do
político,
no
reconhecimento
da
diversidade
cultural
no
questionamento acerca da capacidade da democracia representativa de
representar agendas e identidades específicas, enfim de representar a
diferença. (Santos e Avritzer, 2002).32
Como conseqüência destas transformações e adensamento do tecido social, um
pacto societário não poderá ser restrito aos atores corporativos, vinculados à
organização na esfera da produção, mas devem englobar todos os demais
atores que se organizaram em tempos mais recentes, alredor das questões da
reprodução.
Fraser (2001)33 identifica no declínio de uma dada gramática da política,
correspondente à política de classe, o deslocamento do eixo da contestação
32
SANTOS, Boaventura e AVRITZER, Leonardo (2002) – “Introdução: Para Ampliar o Cânone
Democrático” in SANTOS (org) – Democratizar a Democracia
33
FRASER, Nancy (2001) – “Social Justice in the Knowledge Society:
Redistribution, Recognition, and Participation” www.wissensgesellschaft.org
16
desde a redistribuição até o reconhecimento das identidades e diferenças,
incluindo questões relativas a gênero, raça, etnia, sexualidade, etc.
A busca de uma nova institucionalidade para a democracia, que seja capaz de
atender conjuntamente aos princípios de reconhecimento, participação e
redistribuição, marca o momento atual. Trata-se de uma articulação entre
inovação social e inovação institucional que permitiria a construção de uma nova
institucionalidade para a democracia.
A democracia passa a ser vista, mais do que um procedimento, como uma
prática social na qual se constróem as identidades coletivas, uma nova
gramática de organização da sociedade que permite a redefinição dos vínculos
sociais, a inclusão de novos temas e atores, a ampliação do político.
Mais do que um conjunto de regras, a democracia implica o reconhecimento do
outro, a inclusão de todos os cidadãos em uma comunidade política, a promoção
da participação ativa e o combate à toda forma de exclusão. Enfim, a
democracia requer o primado de um principio de justiça social, além de sujeitos
políticos e instituições. A opção por uma democracia concertada em torno a
consensos estratégicos, onde as políticas sejam negociadas com os diferentes
atores sociais envolvidos no processo e cujos interesses serão afetados é
recomendada
em
situações
de
alta
complexidade,
envolvendo
fortes
expectativas e interesses altamente contraditórios, em especial em sociedades
com elevado grau de fragmentação social e econômica.
Este modelo de funcionamento atende aos requisitos que a teoria democrática
contemporânea identifica como o modelo de Democracia Deliberativa. Segundo
Elster (1998)34 o ressurgimento da idéia da democracia deliberativa, depois de
tantos anos de hegemonia do modelo de democracia representativa, está
influenciado pela produção teórica de Habermas, que vê no processo de
discussão entre cidadãos livres e iguais a possibilidade de transformação, mais
34
ELSTER, Jon (1998) – “Deliberation and Constitution Making”in Ester (editor) – Deliberative
Democracy, Cambridge, The Cambridge University Press
17
que a simples agregação das preferências.
Habermas (1996:297)35 vê o
procedimento democrático como aquele que não se baseia em direitos
universais ou em uma substância ética, mas nas regras do discurso e formas de
argumentação, cuja normatividade é tomada da ação orientada para a busca de
entendimento. Neste sentido, além da agregação de interesses, o procedimento
democrático permitiria a possibilidade de transformação dos interesses por meio
da troca de informações e argumentações.
No modelo de Democracia Deliberativa a cidadania deve ser concebida como
construção de sujeitos políticos em um paradoxal processo de inserção em uma
comunidade política ao mesmo tempo que construção de autonomia ativa,
definida por Oliveira (2001)36 como o gozo da plena capacidade de intervir nos
negócios da sociedade. Neste sentido, saímos do invólucro liberal e
individualista da cidadania em direção a uma concepção que comporta,
conjuntamente, a subjetividade, a normalização e a emancipação (Santos,
1994)37. Longe da passiva visão do cidadão como portador autônomo de
direitos, capaz de fazer opções racionais, pensamos o cidadão como parte de
um coletivo em construção, sendo sua autonomia a capacidade de forjar as
soluções e opções sociais.
Para além de seus determinantes materiais os processos de inclusão e de
exclusão fundam-se em uma dimensão simbólica, ou civilizatória. Por meio
desta, definem-se e reproduzem-se as regras e rituais de inclusão/exclusão, em
uma comunidade político/jurídica (de cidadãos), mas que é, fundamentalmente,
uma comunidade de sentidos (Fleury 2003)38. A esfera pública, como ordem
simbólica relacional é o espaço em que os sujeitos assim constituídos afirmam
sua identidade e trocam significados que dão sentido e direção à suas ações.
Mesmo a dimensão jurídica da cidadania transcende a condição individual de
portador de direitos e é vista sob o prisma do reconhecimento como “um sujeito
35
HABERMAS, Jürgen (1996) – Between Facts and Norms,second print, Cambridge, The MIT
Press
36
OLIVEIRA, Francisco (2001) – O que é formação para a Cidadania? www.abong.org.br
37
SANTOS, Boaventura S. (1994) – Pelas Mãos de Alice. O social e o Político na PósModernidade. Edições Afrontamento. Porto.
18
é capaz de considerar-se, na experiência do reconhecimento jurídico, como uma
pessoa que partilha com todos os outros membros de sua coletividade as
propriedades que capacitam para a participação numa formação discursiva da
vontade” (Honnneth, 2003:197).39
Diferentemente do modelo da democracia representativa, no qual os
participantes submetem-se a normas previamente aceitas para eleger entre
alternativas, na democracia deliberativa as próprias normas são objeto de
deliberação. A única norma previamente aceita é aquela que diz que o processo
decisório coletivo deve contar com a participação de todos que serão afetados
pela decisão ou por seus representantes. Este seria o componente democrático.
Já o componente deliberativo diz respeito a que o processo decisório seja feito
por meio de argumentos que são oferecidos pelos participantes que estão
comprometidos com os valores da racionalidade e da imparcialidade (Ester,
1998).
A democracia deliberativa é definida por Cohen (1998)40 como a decisão coletiva
que emerge de arranjos que agregam escolhas coletivas que são estabelecidas
em condições de livre e pública argumentação entre iguais, que são governados
por estas decisões”. O modelo deliberativo é uma concepção substantiva e não
meramente procedimental da democracia, envolvendo valores como o
igualitarismo e a justiça social. “Os participantes são substancialmente iguais no
sentido que a distribuição de poder e recursos não molda suas chances de
contribuir para a deliberação, nem esta distribuição joga um papel autoritativo
em sua deliberação”. (Cohen, 1998)
Grande ênfase é dada à troca de informações entre os participantes, o que
permitiria a transformação dos pontos de vista e à exigência de argumentar em
defesa de suas posições, o que favoreceria o entendimento e a geração de
consensos mais amplos. O processo decisório não é para eleger entre
alternativas, mas para gerar novas alternativas, o que possibilitaria maior
38
Fleury. Sonia. 2003. La Expansión de la Ciudadanía in Varios Autores. Bogotá, Pontificia
Universidad Javeriana
39
HONNETH, Axel (2003). Luta por Reconhecimento. A Gramática Moral dos Conflitos Sociais.
São Paulo, Editora 34.
19
inovação social. Finalmente, é esperado que as decisões assim tomadas
propiciem maior justiça redistributiva e sejam mais sustentáveis.
A contribuição de Nancy Fraser (2003)41 para este debate é importante, na
medida em que ela procura distinguir o caráter bifronte da inclusão/exclusão,
distinguindo-se dos autores que privilegiam o reconhecimento e nele subsumem
a redistribuição. Para esta autora a exclusão social é uma injustiça que se situa
na interseção das dimensões do reconhecimento e redistribuição. Portanto,
políticas de inclusão devem considerar ambas, nenhuma das duas dimensões
sendo suficientes.
As iniqüidades socio-econômicas são resultado de uma longa tradição de
cultura política autoritária e excludente. Nestes casos, só a radicalização da
democracia, com a inclusão daqueles que foram alijados do poder em um jogo
aberto e institucionalizado de negociação e/ou deliberação pode romper o
círculo vicioso da política, caracterizado pela alienação da cidadania, ausência
de responsabilidade dos representantes e autoritarismo da burocracia.
De um conjunto de experiências de deliberação que se estão processando na
América Latina emerge a proposta de democratização radical do Estado e da
necessidade de publicizá-lo mediante a criação de instrumentos que permitam ir
além do controle social, viabilizando a construção de uma esfera pública de cogestão dos recurso públicos. (Fedozzi, 2000)42 Nossa curta experiência
democrática
nos
mostra
um
desequilíbrio
entre
estado/sociedade,
executivo/legislativo onde uma forte tradição tecnocrática e autoritária impede o
diálogo franco entre estado e sociedade.
Contudo, a esfera pública não pode ser identificada meramente à sociedade
civil, em uma posição ingênua que não diferencia as formas de associação,
tratando como iguais os clubes, empresas e outras instituições autônomas.
Existe, atualmente uma forte tendência a buscar nas organizações autônomas
da sociedade civil a essência da esfera pública por oposição à heteronomia da
40
COHEN, Joshua (1998) – “Democracy and Liberty” in Ester (editor) - op. cit.
FRASER, Nancy (2003) . “Redistribución, Reconocimiento y Exclusión Social” in Varios
Autores – Inclusión Social y Nuevas Cidadanías. Pontificia Universidad Javeriana. Bogotá.
41
42
FEDOZZI, Luciano - O Poder da Aldeia, Porto Alegre, Tomo Editorial
20
cidadania, que é definida pelo Estado. É necessário fugir desta falsa oposição,
confirmando o papel central da noção de direitos na modelagem de novas
formas de pensamento e ação das organizações sociais, universalizando
demandas particulares e disseminando a percepção dos direitos através da ação
coletiva.
As lutas pela inclusão na condição de cidadania, iniciada pelos movimentos e
organizações sociais a partir da identificação de suas carências e da
incapacidade do Estado em atendê-las, têm sido, na América Latina, o principal
fator de dinamização e transformação, tanto da sociedade quanto do Estado.
O papel do Estado no processo de inclusão social é sublinhado por Reis (1993),
quando afirma que o nível de carência entre os setores populares é tão agudo
que o Estado, em nossas sociedades, termina por ser o agente produtor da
própria capacidade de reivindicação popular. Sua proposta é que a incorporação
cidadã, nessas circunstancias, somente será possível se o Estado for capaz de
institucionalizar esta relação, transformando os setores marginalizados em seus
clientes reais sem recorrer a mecanismos de manipulação política.
No entanto, mais que um conjunto de benefícios, o desafio da cidadania é
construir um sentido de pertencimento. Segundo Teles (1994:45)43 “é impossível
fazer dos direitos referências que estruturem identidades cidadãs numa
sociedade que destitui, por todos os lados, cada um e todos, de um lugar de
reconhecimento”. Para a autora a ausência de espaços de reconhecimento de
vínculos propriamente civis, traduz-se na dificuldade de formular os dramas
cotidianos (individuais e coletivos) na linguagem pública dos direitos, remetendoos aos códigos morais da vida privada. Portanto, a democratização da esferapública “depende de espaços públicos de representação e negociação, nos
quais os direitos possam se firmar como medida no gerenciamento dos conflitos
e como parâmetro no reordenamento da vida econômica e social”.
A reconstrução da esfera pública deve ser claramente identificada como parte da
luta pela hegemonia e constituição de um novo bloco no poder, que atravessa o
43
TELLES, Vera. “Sociedad Civil, Derechos y Espacios Públicos”. In Villas-Boas, Renata
21
Estado (Poulantzas, 1981)44 e requer novos aparatos, tecnologias e processos
de exercício do poder, que inscrevam as novas relações de poder na ossatura
organizacional do Estado.
Neste sentido, o modelo da democracia deliberativa não abre mão do Estado, ao
contrário, reconhece a necessidade de radicalizar a transformação de seu
aparato institucional para permitir a inclusão, na agenda das políticas públicas,
dos interesses dominados, em um processo simultâneo de transformação da
institucionalidade e construção de identidades coletivas.
Este processo em nada se assemelha à desconstrução do Estado operada pelos
governos democraticamente eleitos na América Latina, com forte apoio do
sistema financeiro internacional, levando à desmontagem dos sistemas
existentes de proteção social e das políticas universalistas em direção a um
modelo de individualização do risco e da proteção transformada em mercadoria.
Como pode ser agora demonstrado com dados, a combinação de uma visão
reducionista da democracia e da cidadania com o predomínio do mercado e dos
interesses do capital financeiro elevou os índices de desigualdade e não
combateu a exclusão social na região. A conseqüência são os elevados níveis
de desencanto da população com a institucionalidade democrática.
Este doloroso processo histórico reafirma nossa tese de que o
enfrentamento da exclusão só se dará em um novo formato de democracia,
capaz de reconhecer os excluídos como cidadãos, gerar espaços públicos
de participação, controle social e concertação, além de implementar
políticas públicas efetivamente redistributivas.
Alguns requisitos devem ser cumpridos neste processo como o fortalecimento
da autoridade estatal e do seu real poder de ação em contexto internacional e
nacional. Nacionalmente, já tratamos da necessidade de publicizar o Estado,
abrindo-o aos interesses da cidadania. Para tanto, é imprescindível retirar os
Estados latino-americanos da rota perversa de acumulação do capital financeiro
internacional, retomando a indução de um curso de desenvolvimento regional e
44
(org) – Participación popular en los gobiernos locales. SP: Pólis, 1994
POULANTZAS, N. El Estado, El Poder, El Socialismo. RJ: Graal, 1981.
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nacional que assegure emprego, renda, capacidade fiscal e políticas
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