inclusão social e democracia deliberativa na
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INCLUSÃO SOCIAL E DEMOCRACIA DELIBERATIVA NA AMÉRICA LATINA1 Sonia Fleury2 1- DEMOCRACIA, DESIGUALDADE E EXCLUSÃO Na próxima semana estará sendo lançado o Informe sobre el Desarrollo de la Democracia en América Latina 2004, do Programa de las Naciones Unidas para el Desarrollo (PNUD).3 Este relatório representa um grande esforço para estabelecer um marco teórico comum que nos permita analisar a situação política e social na região, definindo um conjunto de indicadores para comparar as condições de desenvolvimento da democracia na região. Juntamente com as informações produzidas periodicamente pelo Latinobarômetro4 o relatório do PNUD contribui para lançar luz sobre uma possível resposta à pergunta que nos parece crucial: é a democracia compatível com a exclusão social? Considerando que a região está vivendo sob regime democrático há cerca de 25 anos, o informe das Nações Unidas faz um balanço deste período e conclui: 1- En América Latina se reconoce hoy el derecho al voto universal, sin restricción alguna de peso significativo. 2- Las reformas estructurales de la economía (políticas impositivas, de comercio internacional, financieras, privatizaciones, legislación laboral) tuvieron una aplicación sostenida. 1 Palestra realizada no Encuentro de Egresados del Programa INDES – Honduras, “La Inclusión Social:una Perspectiva de Gerencia Social en las Estrategias de Reducción de la Pobreza”, 1517 de Abril de 2004 2 Professora da Escola Brasileira de Administração Pública e de Empresa – EBAPE da Fundação Getulio Vargas, onde coordena o Programa de Estudos da Esfera Pública www.ebape.fgv.br/pp/peep [email protected] 3 PNUD, 2004 – Informe sobre el Desarrollo Democrático en América Latina Latinobarómetro, 2003 – La Democracia y la Economía, www.latinobarometro.org 4 1 3- El promedio regional del PBI per capita no varió de manera significativa en los últimos 20 años (En 1980, el PBI per capita era de US$ 3.739 a valores constantes de 1995 y en 2000 era de US 3.952). 4- Los niveles de pobreza experimentaron una leve disminuición en términos relativos (el porcentaje de pobres ponderado por tamaño de población para la región era de 45% en 1990 y de 41,8% en 2001). Sin embargo, en términos absolutos, el número de habitantes que se situaba por debajo de la línea de pobreza aumentó (de 190 millones en 1990 para 209 milliones en 2001). 5- No se redujeron los niveles de desigualdad (en 1990 el coeficiente Gini, promedio regional ponderado por población era de 0,554 y subió a 0,580 en 1999). La región posee los niveles de desigualdad más altos del mundo en la distribuición del ingreso. 6- Durante los últimos 15 años la situación laboral ha desmejorado en casi toda la región. El desempleo y la informalidad aumentaron siginificativamente y cayó la protección social de los trabajadores. Todos estes dados nos levam a responder afirmativamente à pergunta colocada anteriormente, isto é, sustentamos que a democracia foi compatível com a exclusão social neste último quarto de século em nossa região. Poderíamos mesmo hipotetizar que a instauração dos regimes democráticos e a canalização das demandas sociais para os canais de representação e as arenas parlamentares, reduziu os riscos de convulsão social e crises de ingovernabilidade, impossíveis de seguirem sendo controlados exclusivamente pelos mecanismos repressivos que caracterizaram as ditaduras dos anos 70 e 80. Apesar do regime democrático não ter gerado condições mais igualitárias na região, especialmente em um período em que se reduziu a participação estatal e se fomentou a economia de mercado, tanto a democracia como a economia de mercado são vistos, pela população, como condições imprescindíveis para que os países possam se desenvolver (respectivamente, 67% e 57%, Latinobarômetro, 2003). No entanto, estas atitudes favoráveis à democracia e à 2 economia de mercado, não garantem coerência nas percepções e comportamentos que assegurem a sua sustentabilidade, já que, segundo o mesmo informe do Latinobarômetro, 80% dos entrevistados afirmam que, apesar do desenvolvimento econômico e melhoras em saúde e educação, há exclusão e se sentem extremamente vulneráveis ao desemprego. No mesmo informe, outros dados significativos apontam a ausência de uma cultura política democrática, baseada na confiança tanto nas instituições, quanto no governo e nas demais pessoas. Ao contrário, predominam percepções e atitudes que mostram a vulnerabilidade da democracia, tais como desconfiança, medo do desemprego, indiferença em relação ao regime, redução da confiança no conjunto de instituições, baixos índices de confiança e aprovação dos governos vistos, na maioria das vezes, como corruptos, além de baixos níveis de satisfação com a democracia. Neste sentido, as ameaças à governabilidade democrática seguem presentes no cenário latino-americano, recolocando a discussão sobre a democracia desde o prisma da governabilidade. Em outros termos, é a presença de ameaças à governabilidade que recoloca e faz aprofundar a discussão sobre a democracia na região. A problemática da gobernabilidade envolve tanto o fortalecimento da capacidade do governo para assegurar os bens públicos em uma sociedade, como tambem a existência de normas e valores compartilhados – hoje, denominados capital social - que organizem as interações coletivas, gerando condições para uma ação cooperativa entre os diferentes atores e agentes sociales. As instituições, como regras formais ou informais, e as organizações são construções sociais criadas para reduzir as incertezas nas transações humanas (North, 1993)5. Desta forma, induzem à cooperação e afetam o desempenho final da economía e das instituições políticas (Puttnam,1996).6 A discussão em torno ao problema do déficit crônico de gobernabilidade na América Latina, retoma as hipóteses explicativas tradicionais, atribuindo-o, por 5 North, Douglas (1993). Instituciones, Cambio Institucional y Desempeño Económico. Fondo de Cultura Económica, Mexico 6 Putnam, R. (1996) – Comunidade e democracia; a Experiência da Itália Moderna, Editora FGV, Rio de Janeiro. 3 um lado, ao excesso de demandas geradas como conseqüência da democratização, criando uma desproporção entre aquelas e os recursos disponiveis. Por outro lado, a hipótese sustentada pela teoria da modernização, para a qual uma rápida modernização pode levar a uma revolução das expectativas crescentes, colocaria o desenvolvimento econômico como condição de possibilidade de preservação da democracia política. As numerosas críticas à teoria da modernização desenvolvidas a partir dos anos 70, por diversos autores, terminaram por concluir que não há um nível particular desejável de desenvolvimento econômico que constitua um pre-requisito para a democracia (Altman, 2001)7, para concluir com a afirmação de Amartya Sen (1999:7), analisando as evidências das investigações sobre a relação entre estes dois fenômenos: “Se todos os estudos comparativos são vistos em conjunto, a hipótese de que não há uma clara relação entre o crescimento econômico e a democracia em qualquer direção se mantem extremamente plausível”. 8 Ao contrário, a política passou a ser considerada um pré-requisito para a sustentabilidade de instituições legítimas e a adoção de pol’ticas públicas que sejam efetivas e funcionem em benefício de toda a cidadania. Esta posição é defendida por Payne et al (2003)9 ao afirmar que “Contraria a una línea de pensamiento vigente en el pasado, la tarea de construir un sistema democrático legítimo, representativo y eficaz no es algo que pueda postegarse hasta que exista un nivel adecuado de desarrollo. Más bien, considerando que es indispensable para fortalecer las instituciones y poner en práctica políticas públicas efectivas y duraderas, el buen funcionamiento democrático es una condición sine qua non para un desarrollo equitativo y sostenible.”(pp.13) No entanto, estas afirmações podem ser melhor classificadas como wishful thinking, considerando os resultados das percepções e atitudes da população, 7 Altman, David (2001) – “Democracia política y desarrollo económico: ¿Existe alguna relación?”in Instituciones y Desarrollo, http//:www.iigov.org/pnud/bibliote/ O autor inclui entre os críticos da teoria da modernização Coleman, Cardozo e Faletto, Wallerstein, Rustow , O’Donnell e Barrington Moore. 8 Sen, Amartya (1999) . “Democracy as a Universal Value”. Journal of Democracy 10 (3): 3-17 citado por Altman, D. 2001 4 aferidas periodicamente pelo Latinobarômetro que demonstram as contradições em relação ao apoio à democracia, tendo em vista a desconfiança nas instituições e a degradação dos níveis de vida e das condições de trabalho na região. Mais ainda, os acontecimentos recentes demonstram que a existência de eleições está longe de assegurar que os governantes eleitos sejam capazes de cumprir o seu mandato, tendo sido literalmente retirados do poder pelas massas populares, sendo seus governos identificados como corruptos e/ou ineficazes. Uma boa parte dos analistas atribuem à fragilidade da arquitetura políticoinstitucional - em especial a ausência do Estado de Direito e as debilidades do sistema partidário e ao funcionamiento precário do parlamento - o déficit que ameaça a gobernabilidade na região. Para estes autores a governabilidade é uma decorrência da institucionalização da democracia. As explicações para a permanente crise de governabilidade na região atribuem à combinação do regime presidencialista com um sistema partidário altamente fragmentado e com baixa identidade ideológica, o que resulta em um modelo de um instável presidencialismo de coalizões (Mainwaring, 1993)10. O principal problema destas análises é a redução da problemática da governabilidade ao encaminhamento de uma reforma política que conduza ao parlamentarismo e a restrição ao funcionamento dos pequenos partidos. A simplificação da questão deixa de lado as origens dos problemas, situadas no âmbito da preservação e acomodação das relações de poder entre as oligarquias políticas e econômicas, garantindo a estabilidade da vigência de sua condição de mando a partir de processos de barganha e troca de favores, que descaracterizam os partidos e instabilizam o poder executivo. A identificação da democracia como o estado democrático de direito – democratic rule of law – é defendida por O’Donnell (2001:69): “La democracia no es tan solo un régimen democrático, sino también un modo particular de relación 9 Payne, J. M., Zovatto, D., Carrillo, F. Allamand A. (2003). La Política Importa. Democracia y Desarrollo en América Latina. BID. Washington 10 Mainwaring, Scott – “Presidentialism, Multipartism and Democracy: The Difficult Combination”. Comparative Political Studies No. 26, vol. 2 5 entre estado y ciudadanos, y entre los proprios ciudadanos, bajo un tipo de estado de derecho que, junto con la ciudadanía política, sostiene la ciudadanía civil y una red completa de rendición de cuentas”. 11 Os direitos civis e os direitos políticos seriam o principal apoio do pluralismo, além de serem uma condensação de relações de poder dos indivíduos e associações. Portanto, sua extensão a todos os cidadãos na vigência do Estado de Direito, completada com as condições de rendição de contas do exercício do poder seriam as condições para considerar os indivíduos como sujeitos jurídicos, ou cidadãos, portadores de direitos e deveres derivados de seu pertenecimento político, sendo-lhes atribuída autonomia pessoal e responsabilidade por suas ações. O coração da democracia residiria na extensão dos direitos civis e na efetividade da legalidade estatal em difundir-se igualmente sobre o território nacional. Para O’Donnell (2002)12, em muitas das democracias latino-americanas persistem áreas “marrons”, às quais a legalidade do estado não chega a alcançar, prevalecendo aí relações de poder personalistas, patrimoniais e mafiosas. Nestes casos, o Estado seria territorialmente evanescente e as burocracias colonizadas por interesses privados. Retomando a questão inicialmente colocada, sobre a compatibilização entre democracia e exclusão social, podemos agora aprofundar nossa análise e afirmar que esta compatilização é possível, sempre e quando, restringimos a democracia a um regime democrático, mesmo que com eleições periódicas e institucionalizadas, relativamente livres, para o acesso às principais posições governamentais. Nesta concepção, os direitos de participação se identificariam com os mecanismos de representação. No entanto, no momento em que a existência de regimes democráticos, com sistemas eleitoriais competitivos e formas institucionalizadas de representação, não parece garantir condições de governabilidade na região, o debate teve que 11 O’Donnell, Guillermo (2001). “La Irrenunciabilidad del Estado de Derecho” in Instituciones y Desarrollo, 8/9, Mayo. Instituto Internacional de Gobernabilidad. Barcelona 6 incorporar outros atributos da democracia, seja em relação à cultura política, seja em relação à institucionalidade e funcionamento estatal. Neste sentido, são apontados os déficits de estatalidade e a subordinação da lógica burocrática à lógica patrimonial e clientelista, como responsáveis pela não democratização do Estado, gerando a persistência de fenômenos como a corrupção e a inefetividade das políticas públicas. Ao apontar a persistência de um modelo econômico excludente, como o fator central para a fragilização das instituições democráticas, especialistas sustentam que, no caso da América Latina, cujo desenvolvimento econômico e social tem como traço mais notório precisamente o elevado nível de desigualdade e exclusão, a gobernabilidade democrática não pode separar-se da busca de soluções para a inclusão social e a redução da desigualdades. A criação de mecanismos de integração social - definida por Calderón (1995)13 como “a capacidade da sociedade para construir cidadania ativa, eliminar as barreiras discriminatórias no mercado e diseminar uma cultura de solidaridade” - é novamente reposta no cenário político. Em outro momento afirmei que “el problema central de gobernabilidad en América Latina esta fundamentado en la convivencia paradójica entre una orden jurídica y política basada en el principio de igualdad básica entre los ciudadanos y la preservación simultánea del mayor nivel de desigualdad en el acceso a la distribución de riquezas y a los bienes públicos. La pérdida de legitimidad del pacto corporativo y de los actores tradicionales vinculados al Estado desarrollista requiere la construcción de un nuevo pacto de poder que contemple las transformaciones que se procesaron con el adensamiento reciente del tejido social y sea capaz de incorporar, plenamente, a aquellos que hoy se encuentran excluidos. Sin embargo, las posibilidades de generar estrategias de institucionalización del poder y cohesión social están determinadas por la reducción del poder del Estado y por la inserción de 12 O’ Donnell, Guillermo (2002). “Notes on the State of Democracy in Latin America”. UNDP 13 Calderon, F. (1995). "Governance, Competitiveness and Social Integration" in CEPAL Review. Santiago: nº 57, pp. 45-56 7 estas sociedades en una economía globalizada, profundizando la disyuntiva entre economía/política, estado/nación.” (Fleury, 2003)14 Um dado muito significativo apontado pelo informe do Latinobarômetro (2003) mostra que 50% dos entrevistados identifica como fator mais importante para confiar nas instituições públicas o fato delas tratarem a todos como iguais. A população tem, por conseguinte, consciência de que a democracia requer o exercício da cidadania, como dimensão igualitária de inclusão na comunidade política apesar da precariedade da cultura cívica prevalecente. Neste sentido, para a população da América Latina, a democracia transcende o regime político e deve ser identificada com a construção da cidadania. Ao transpor a racionalidade política em direção à uma racionalidade social, o debate sobre a democracia tem que encontrar seus fundamentos para além da mera institucionalização das regras da competição política. O retorno do cidadão, como fundamento do poder político, se impõe. No entanto, a concepção de cidadania ainda envolve muitas questões polêmicas, o que nos leva a perguntar que entendemos por cidadania. Não cabe lugar a dúvidas de que o conceito de cidadania se relaciona diretamente com a construção da democracia (Fleury,199715), sendo que diferentes paradigmas democráticos se traduzem em distintas concepções ou ênfases em relação aos elementos da cidadania. A existência de um sistema político baseado no suposto de uma igualdade básica dos cidadãos é a essência mesma da democracia. Ainda que o conceito de democracia não tenha o mesmo significado para todos, segundo Bobbio (1994)16, podemos encontrar pelo menos dois significados prevalecentes, em ambos os quais a questão da igualdade está colocada, ainda que de formas distintas. Em um primeiro caso, encontramos a ênfase posta no estabelecimento do conjunto de regras de 14 Fleury, Sonia (2003). “Legitimidad, Estado y Cultura Política” in Calderón, F. (Coord) - ¿ Es Sostenible la Globalización en América Latina? Debates con Manuel Castells, Vol II, México, Fondo de Cultura Económica. 15 Fleury, Sonia (1997) – Estados sem Cidadãos. Rio de Janeiro. Fiocruz 16 Bobbio, N. 1994. Liberalismo e Democracia. Sao Paulo: Editora Brasilense, 6a. edición, p. 37. 8 exercício de poder político e na não discriminação das preferências de qualquer cidadão pelo poder judiciário – a chamada “poliarquia” (Dahl, 1997)17. Neste caso, a igualdade é identificada como a igualdade formal diante da lei, e se refere mais ao requisito da pluralidade do que a uma sociedade sem desigualdades. Em outra concepção da democracia, oriunda da tradição comunitária, a ênfase está posta no ideal que o governo democrático deveria inspirar-se, no ideal da igualdade. Em lugar de uma democracia formal trata-se aqui de uma democracia substancial, no qual a noção de igualdade deve contemplar também os resultados. Segundo O’Donnell (2002)18 no documento que serviu de base teórica para o mencionado Informe do PNUD 2004, o cidadão deve ser visto como um agente, isto é um ser autônomo, razoável e responsável, que goza de dois tipos de direitos, direitos que são liberdades, tais como associação, expressão, acesso à informação, e direitos de participação, entendida como eleger e eventualmente ser eleito para posições de governo. Outra concepção que adotamos de cidadania, entendida como dimensão pública dos indivíduos, pressupõe um modelo de integração e de sociabilidade, que transcende os interesses egoístas do indivíduo no mercado, em direção à uma atitude generosa e solidária. A transição de uma comunidade de relações interpessoais primárias para a comunidade abstrata dos cidadãos foi alcançada pela participação, racional e afetiva, em uma comunidade política formalmente constituída como Estado-nação. A visão liberal da cidadania está fundada no individualismo possessivo19, cujo cálculo racional utilitário o levaria a tomar decisões que maximizassem sua ganância. Os direitos civis e políticos são os atributos da cidadania, contra-face do regime democrático e de um Estado que trata a todos igualmente. A expansão da cidadania para englobar os direitos sociais, que transcendem a concepção formal de igualdade e a visão individualista da cidadania, em direção 17 18 DAHL, Robert (1997) – Poliarquia, São Paulo, EDUSP O’Donnell, Gillermo (2002) – op. cit, pag. 27 9 a um pacto societário baseado em um princípio de justiça acordado, é algo que foge à concepção liberal apresentada, impondo-se apenas como desenvolvimento histórico no curso da cidadania. As dificuldades teóricas para inserir os direitos sociais como atributos da cidadania são decorrentes da antinomia entre direitos civis e sociais, sendo os primeiros expressão das liberdades e os segundos de poderes. Bobbio (1992)20 distingue, entre os direitos humanos, aqueles que asseguram liberdades dos indivíduos, as liberdades negativas, como de credo, opinião, de pensamento, de ter propriedade etc., referem-se a garantias de que o poder político não poderá restringir as liberdades genéricas dos indivíduos. De outra natureza são os direitos políticos e os sociais, que requerem uma intervenção direta do Estado para assegurá-los. Além disso, já não se aplicam ao indivíduo genérico e sim a sujeitos concretos – crianças, mulheres, idosos, indígenas – requerendo, por conseguinte, a consideração de suas singularidades. Bobbio chama atenção para o fato de que os direitos que são liberdades se baseiam em um suposto estado natural dos homens, no qual a liberdade precederia a sociabilidade. Os direitos sociais, ao contrário, são histórica e não naturalmente fundados, tratando-se de exigências que se concretizam na demanda de uma intervenção pública, somente podendo ser satisfeitas em um determinado nível de desenvolvimento econômico e tecnológico. Outro autor que trata com profundidade o tema da igualdade e da liberdade é Amartya Sen (1995)21, que considera que a subordinação da igualdade à liberdade – pelos libertários – ou a subordinação da liberdade à igualdade – pelos igualitários – seriam, ambos, erros categóricos, na medida em que a liberdade e a igualdade não são valores alternativos. “A liberdade se encontra entre os possíveis campos de aplicação da igualdade e a igualdade se encontra entre os possíveis esquemas distributivos da liberdade”. (Sen, 1995, p. 35) Para 19 Macpherson, C.B. 1979. A Teoria Política do Individualismo Possessivo. De Hobbes até Locke. Rio de Janeiro. Paz e Terra. 20 Bobbio, N. 1992. A Era dos Direitos. Rio de Janeiro: Editora Campus. Sen, Amartya. 1995. Nuevo Examen de la Desigualdad. Madrid: Editorial Alianza. 21 10 sair dessa falsa contradição propõe a distinção entre liberdade e os meios para alcançá-la. Introduz, além disso, a noção de capacidade, como a essência da liberdade real. As capacidades são as oportunidades que tem uma pessoa para obter o seu bem-estar. A discussão teórica sobre o estatuto dos direitos sociais no interior da concepção de cidadania tem consequências importantes para a comprensão do seu desenvolvimento histórico na América Latina, já que um dos aspectos singulares do processo de consolidação democrática na região é a reposição da disjuntiva entre os diferentes elementos que compõem a cidadania, generando cursos particulares, eivados de contradições. Enquanto os direitos políticos se encontram praticamente universalizados, os direitos civis todavía não estão garantidos, e os direitos sociais, em muitos casos, sofrem retrocessos como conseqüência dos planos recessivos de ajuste econômico. O fato de que os direitos civis tenham antecedido aos diretos políticos nos paises desenvolvidos, enquanto na América Latina vivemos o processo inverso, levou O’Donnell (1998)22 a identificar nossas democracias como não cívicas, com o predomínio de uma cidadania de baixa densidade pois, os direitos civis e as liberdades políticas são os principais suportes do pluralismo e da diversidade, ademais de criarem condições para o exercício de uma autoridade burocrática que rende contas de seus atos. Por estas razões, a proposta de O'Donnell se orienta à conquista dos direitos civis como uma questão estratégica na consolidação da democracia na região, assumindo que a desigualdade é também produto da ausência do Estado de Direito. A distinção entre reformas legais e o fortalecimento do Estado de Direito, no entanto, permite demonstrar que o problema não está na inexistência de um marco legal mas sim nos usos e abusos do sistema legal, o que permite a impunidade dos poderosos, a corrupção dos funcionários e a aplicação da lei 22 O'Donnell, Guillermo. Polyarchies and the (un)Rule of Law in Latin America. West Bend, Indiana: Kellogg Institute, Notre Dame University, 1998 11 como forma de punição aos politicamente desprotegidos. Da Mata (1983)23, discorre sobre a prevalência desta institucionalidade oculta, que opera como norma, organizando as interações sociais a partir da desigualdade cristalizada na hierarquia vigente de poder, e não da igualdade entronizada na lei. Para além da construção de um marco institucional fortalecido, o que se evidencia é a extrema segmentação da sociedade civil, levando Oxhorn (1998)24 a afirmar que, ao contrário do círculo virtuoso de incorporação dos direitos cidadãos descrito por Marshall (1967)25 ao analizar o caso inglês, a democracia na América Latina continua restringindo o potencial da sociedad civil. Sem dúvidas, não há evidências, teóricas ou históricas, consistentes para indicar que a construção da cidadania na região deverá passar, primeiramente, por assegurar os direitos civis, construindo democracias formais, para depois enfrentar o problema distributivo, assegurando os direitos sociais. Ao contrário, a questão social foi e continua a ser o lugar de constituição de atores sociais que buscam inserir na arena política suas necessidades, transformadas politicamente em demandas. Da mesma forma, é através das políticas sociais que o Estado interpela os cidadãos, resignificando os conteúdos conflitivos por meio de tecnologias apropriadas, despolitizando as demandas a ele dirigidas e, finalmente, redefinidindo o significado da cidadania. Mais ainda, a política social pode ser vista como uma meta-política, proposta por Santos (1993)26, na medida em que a política social política social provê os princípios que permitem ordenar opções trágicas, entre distribuição e concentração de riquezas. Para o autor toda política social efetiva seria uma política redistributiva, o que a eleva à condição de meta-política. Para nós, no entanto, a política social 23 Da Matta, Roberto (1983). “Você sabe com quem está falando? Uma discussão entre o indivíduo e pessoa no Brasil” in Carnavais: Malandros e Heróis: para uma sociologia do dilema brasileiro. Rio de Janeiro: Zahar. 24 Oxhorn, Philip. "Social Inequality, Civil Society and the Limits of Citizenship in Latin America". Trabajo presentado en el Congreso de LASA, Chicago, Illinois, 1998ª. 25 26 Marshall, T.H. Cidadania, Classe Social e Status. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1967 Santos, Wanderley Guilherme . 1993. Razoes da Desordem. Rio de Janeiro: Editora Rocco. 12 é uma política meta-política porque estabelece critérios para inclusão e/ ou exclusão dos indivíduos na comunidade política dos cidadãos. A constitução de atores políticos, formas organizativas, articulações inovadoras entre Estado/mercado/comunidade, demonstram que a consciência e participação da cidadania estão se processando no âmbito das políticas e direitos sociais, reafirmando que este continua sendo o nosso curso particular de construção da democracia. Para Genro (1997)27 “a reivindição cidadã começa como um processo de construção de milhares de organizações que promovem a auto-organização da comunidade em torno dos seus interesses particulares, predominantemente situados na esfera da reprodução, criando uma esfera pública não estatal, que gera novas formas de autonomia e inclusão alternativas”. Estas organizações são mediadoras da ação política direta dos cidadãos, criando condições para inserir seus interesses e reformar o exercício do poder político ao nível local. Nossa tese é que a construção da democracia na região introduz a reivindicação cidadã de um direito de quinta geração (para além dos direitos civis, políticos, sociais e difusos), que corresponde à demanda por uma gestão deliberativa das políticas públicas, em especial, das políticas sociais. Até o momento desconhecemos os mecanismos requeridos para que se construa um novo desenho institucional do Estado que permita a articulação desta nova realidade do poder local em um pacto político que garanta a governabilidade do Estado nacional e fortaleça sua posição nos foruns supra nacionais. No entanto, esta não é uma hipótese a ser excluída, haja vista a capacidade de inovação social e transformação da esfera pública que estamos assistindo ao nível local e microsocial, de tal forma que o local é hoje um laboratório de transformações políticas e administrativas, muitas das quais se generalizam, posteriormente, no âmbito nacional. 13 2- DEMOCRACIA DELIBERATIVA E INCLUSÃO SOCIAL O modelo hegemônico de concepção da democracia no século XX, afasta-se das origens clássicas do conceito, visto como governo dos cidadãos, cujo fundamento do poder político é a noção da soberania popular, que se expressa como vontade geral inalienável e indivisível. (Bobbio, Matteucci e Pasquino, 1995)28 Schumpetter (1984:336)29 critica a concepção da clássica da democracia fundada na realização do bem comum, para defini-la em termos procedimentais, como um método: “o método democrático é aquele acordo institucional para se chegar a decisões políticas em que os indivíduos adquirem o poder de decisão através de uma luta competitiva pelos votos da população”. Na mesma linha Bobbio (1986:18-19)30 fala da democracia como “caracterizada por um conjunto de regras (primárias ou fundamentais) que estabelecem quem está autorizado a tomar as decisões coletivas e com quais procedimentos… sendo a regra fundamental da democracia a regra da maioria”. O esvaziamento do conteúdo moral da democracia absolutiza os aspectos formais e procedimentais em detrimento dos valores relacionados ao bem comum, à igualdade e à participação ativa dos cidadãos. As regras da democracia dizem respeito a como se deve chegar às decisões, mas não ao conteúdo destas decisões. O modelo institucional que concretiza esta concepção de democracia é a representação, por meio da qual as vontades individuais expressas através do 27 GENRO, Tarso.1997. "O Novo Espaço Público. 21 Teses para a Criação de uma Política Democrática e Socialista" em Genro (coord) Porto da Cidadania, Artes e Ofícios, Porto Alegre. 28 Bobbio, Matteuchi, Pasquino (1995) – Dicionário de Política,7a. Edição, Brasília, Editora UNB 29 SCHUMPETER (1984) – Capitalismo, Socialismo e Democracia, Rio de Janeiro, Zahar Editores 30 BOBBIO, Norberto (1986) – O Futuro da Democracia – Uma Defesa das Regras do Jogo, 3a. Edição, São Paulo, Paz e Terra 14 voto em alternativas que são oferecidas pelos partidos políticos, são agregadas e autorizam o exercício do poder de forma legítima. Este modelo hegemônico da democracia representativa desconhece a experiência corporativa da socialdemocracia que gerou, ao lado dos mecanismos de representação, formas de conselhos como mecanismos de confrontação dos interesses e de negociação de consensos entre atores socialmente constituídos. A estruturação das atividades políticas que permitiu a compatibilização entre democracia de massas e o capitalismo é identificada por Offe (1984:36131) como decorrente de dois arranjos institucionais que permitiram a mercantilização da política e a politização da economia privada, quais sejam, a democracia partidária competitiva e o Welfare State Keynesiano. Com a crise do Welfare State, acentua-se também o descrédito em relação à democracia representativa como mecanismo eficaz de agregação de interesses e resolução de conflitos e os problemas de governabilidade que vêm sendo crescentemente enfrentados pela desconfiança nas autoridades governamentais e nos processos decisórios sobre as políticas públicas. Fatores como o crescente poder de veto do capital, a complexificação, burocratização e tecnificação do processo de planejamento governamental, as negociações informais entre grupos de interesse e burocratas, são apontados como responsáveis belo baixo potencial de criação de unidade política através da democracia representativa (Offe, 1990). Entre os muitos críticos da democracia representativa encontra-se Hirsch (1992), que aponta como seus limites a ausência mecanismos que assegurem a prestação de contas, a influência e possibilidade de participação da população. Defende o corporativismo como forma de representação funcional dos interesses que tem como vantagens a introdução na classe política de pessoas que não são puramente políticos profissionais e a democratização da influência informal, que atualmente só existiria para os grupos mais poderosos. Sua 31 OFFE, Claus (1990) – “La Separación de Forma y Contenido en la Democracia Liberal”I OFFE- Contradicciones en el Estado del Bienestar, México, Alianza Editorial 15 proposta é uma combinação virtuosa, baseada na diferenciação funcional entre a democracia representativa e os mecanismos corporativos de representação dos interesses. Na sua visão os fóruns corporativos não têm o propósito de legislar ou supervisionar o governo, sendo seu objetivo a consulta, a coordenação da atividade econômica e a negociação de ganhos e sacrifícios. Recentemente, fenômenos universais como a perda de legitimidade das instituições democráticas tais como os partidos e o parlamento, a fragmentação, complexificação e auto-organização da sociedade civil e a redução do poder dos Estados nacionais têm levado à uma demanda crescente por uma nova e radical institucionalidade democrática, capaz de introduzir o direito à participação como parte da condição de cidadania. Além da ausência de condições materiais que assegurem o consentimento o contexto atual difere profundamente da etapa da social democracia Keynesiana considerando-se a relação atual entre Estado e sociedade, já que a política foi descentrada, deslocando a ênfase dada ao processo decisório estatal, para as prática do cotidiano. Vários autores chamam atenção para a profunda transformação cultural representada pelo papel ativo dos movimentos sociais na ampliação do político, no reconhecimento da diversidade cultural no questionamento acerca da capacidade da democracia representativa de representar agendas e identidades específicas, enfim de representar a diferença. (Santos e Avritzer, 2002).32 Como conseqüência destas transformações e adensamento do tecido social, um pacto societário não poderá ser restrito aos atores corporativos, vinculados à organização na esfera da produção, mas devem englobar todos os demais atores que se organizaram em tempos mais recentes, alredor das questões da reprodução. Fraser (2001)33 identifica no declínio de uma dada gramática da política, correspondente à política de classe, o deslocamento do eixo da contestação 32 SANTOS, Boaventura e AVRITZER, Leonardo (2002) – “Introdução: Para Ampliar o Cânone Democrático” in SANTOS (org) – Democratizar a Democracia 33 FRASER, Nancy (2001) – “Social Justice in the Knowledge Society: Redistribution, Recognition, and Participation” www.wissensgesellschaft.org 16 desde a redistribuição até o reconhecimento das identidades e diferenças, incluindo questões relativas a gênero, raça, etnia, sexualidade, etc. A busca de uma nova institucionalidade para a democracia, que seja capaz de atender conjuntamente aos princípios de reconhecimento, participação e redistribuição, marca o momento atual. Trata-se de uma articulação entre inovação social e inovação institucional que permitiria a construção de uma nova institucionalidade para a democracia. A democracia passa a ser vista, mais do que um procedimento, como uma prática social na qual se constróem as identidades coletivas, uma nova gramática de organização da sociedade que permite a redefinição dos vínculos sociais, a inclusão de novos temas e atores, a ampliação do político. Mais do que um conjunto de regras, a democracia implica o reconhecimento do outro, a inclusão de todos os cidadãos em uma comunidade política, a promoção da participação ativa e o combate à toda forma de exclusão. Enfim, a democracia requer o primado de um principio de justiça social, além de sujeitos políticos e instituições. A opção por uma democracia concertada em torno a consensos estratégicos, onde as políticas sejam negociadas com os diferentes atores sociais envolvidos no processo e cujos interesses serão afetados é recomendada em situações de alta complexidade, envolvendo fortes expectativas e interesses altamente contraditórios, em especial em sociedades com elevado grau de fragmentação social e econômica. Este modelo de funcionamento atende aos requisitos que a teoria democrática contemporânea identifica como o modelo de Democracia Deliberativa. Segundo Elster (1998)34 o ressurgimento da idéia da democracia deliberativa, depois de tantos anos de hegemonia do modelo de democracia representativa, está influenciado pela produção teórica de Habermas, que vê no processo de discussão entre cidadãos livres e iguais a possibilidade de transformação, mais 34 ELSTER, Jon (1998) – “Deliberation and Constitution Making”in Ester (editor) – Deliberative Democracy, Cambridge, The Cambridge University Press 17 que a simples agregação das preferências. Habermas (1996:297)35 vê o procedimento democrático como aquele que não se baseia em direitos universais ou em uma substância ética, mas nas regras do discurso e formas de argumentação, cuja normatividade é tomada da ação orientada para a busca de entendimento. Neste sentido, além da agregação de interesses, o procedimento democrático permitiria a possibilidade de transformação dos interesses por meio da troca de informações e argumentações. No modelo de Democracia Deliberativa a cidadania deve ser concebida como construção de sujeitos políticos em um paradoxal processo de inserção em uma comunidade política ao mesmo tempo que construção de autonomia ativa, definida por Oliveira (2001)36 como o gozo da plena capacidade de intervir nos negócios da sociedade. Neste sentido, saímos do invólucro liberal e individualista da cidadania em direção a uma concepção que comporta, conjuntamente, a subjetividade, a normalização e a emancipação (Santos, 1994)37. Longe da passiva visão do cidadão como portador autônomo de direitos, capaz de fazer opções racionais, pensamos o cidadão como parte de um coletivo em construção, sendo sua autonomia a capacidade de forjar as soluções e opções sociais. Para além de seus determinantes materiais os processos de inclusão e de exclusão fundam-se em uma dimensão simbólica, ou civilizatória. Por meio desta, definem-se e reproduzem-se as regras e rituais de inclusão/exclusão, em uma comunidade político/jurídica (de cidadãos), mas que é, fundamentalmente, uma comunidade de sentidos (Fleury 2003)38. A esfera pública, como ordem simbólica relacional é o espaço em que os sujeitos assim constituídos afirmam sua identidade e trocam significados que dão sentido e direção à suas ações. Mesmo a dimensão jurídica da cidadania transcende a condição individual de portador de direitos e é vista sob o prisma do reconhecimento como “um sujeito 35 HABERMAS, Jürgen (1996) – Between Facts and Norms,second print, Cambridge, The MIT Press 36 OLIVEIRA, Francisco (2001) – O que é formação para a Cidadania? www.abong.org.br 37 SANTOS, Boaventura S. (1994) – Pelas Mãos de Alice. O social e o Político na PósModernidade. Edições Afrontamento. Porto. 18 é capaz de considerar-se, na experiência do reconhecimento jurídico, como uma pessoa que partilha com todos os outros membros de sua coletividade as propriedades que capacitam para a participação numa formação discursiva da vontade” (Honnneth, 2003:197).39 Diferentemente do modelo da democracia representativa, no qual os participantes submetem-se a normas previamente aceitas para eleger entre alternativas, na democracia deliberativa as próprias normas são objeto de deliberação. A única norma previamente aceita é aquela que diz que o processo decisório coletivo deve contar com a participação de todos que serão afetados pela decisão ou por seus representantes. Este seria o componente democrático. Já o componente deliberativo diz respeito a que o processo decisório seja feito por meio de argumentos que são oferecidos pelos participantes que estão comprometidos com os valores da racionalidade e da imparcialidade (Ester, 1998). A democracia deliberativa é definida por Cohen (1998)40 como a decisão coletiva que emerge de arranjos que agregam escolhas coletivas que são estabelecidas em condições de livre e pública argumentação entre iguais, que são governados por estas decisões”. O modelo deliberativo é uma concepção substantiva e não meramente procedimental da democracia, envolvendo valores como o igualitarismo e a justiça social. “Os participantes são substancialmente iguais no sentido que a distribuição de poder e recursos não molda suas chances de contribuir para a deliberação, nem esta distribuição joga um papel autoritativo em sua deliberação”. (Cohen, 1998) Grande ênfase é dada à troca de informações entre os participantes, o que permitiria a transformação dos pontos de vista e à exigência de argumentar em defesa de suas posições, o que favoreceria o entendimento e a geração de consensos mais amplos. O processo decisório não é para eleger entre alternativas, mas para gerar novas alternativas, o que possibilitaria maior 38 Fleury. Sonia. 2003. La Expansión de la Ciudadanía in Varios Autores. Bogotá, Pontificia Universidad Javeriana 39 HONNETH, Axel (2003). Luta por Reconhecimento. A Gramática Moral dos Conflitos Sociais. São Paulo, Editora 34. 19 inovação social. Finalmente, é esperado que as decisões assim tomadas propiciem maior justiça redistributiva e sejam mais sustentáveis. A contribuição de Nancy Fraser (2003)41 para este debate é importante, na medida em que ela procura distinguir o caráter bifronte da inclusão/exclusão, distinguindo-se dos autores que privilegiam o reconhecimento e nele subsumem a redistribuição. Para esta autora a exclusão social é uma injustiça que se situa na interseção das dimensões do reconhecimento e redistribuição. Portanto, políticas de inclusão devem considerar ambas, nenhuma das duas dimensões sendo suficientes. As iniqüidades socio-econômicas são resultado de uma longa tradição de cultura política autoritária e excludente. Nestes casos, só a radicalização da democracia, com a inclusão daqueles que foram alijados do poder em um jogo aberto e institucionalizado de negociação e/ou deliberação pode romper o círculo vicioso da política, caracterizado pela alienação da cidadania, ausência de responsabilidade dos representantes e autoritarismo da burocracia. De um conjunto de experiências de deliberação que se estão processando na América Latina emerge a proposta de democratização radical do Estado e da necessidade de publicizá-lo mediante a criação de instrumentos que permitam ir além do controle social, viabilizando a construção de uma esfera pública de cogestão dos recurso públicos. (Fedozzi, 2000)42 Nossa curta experiência democrática nos mostra um desequilíbrio entre estado/sociedade, executivo/legislativo onde uma forte tradição tecnocrática e autoritária impede o diálogo franco entre estado e sociedade. Contudo, a esfera pública não pode ser identificada meramente à sociedade civil, em uma posição ingênua que não diferencia as formas de associação, tratando como iguais os clubes, empresas e outras instituições autônomas. Existe, atualmente uma forte tendência a buscar nas organizações autônomas da sociedade civil a essência da esfera pública por oposição à heteronomia da 40 COHEN, Joshua (1998) – “Democracy and Liberty” in Ester (editor) - op. cit. FRASER, Nancy (2003) . “Redistribución, Reconocimiento y Exclusión Social” in Varios Autores – Inclusión Social y Nuevas Cidadanías. Pontificia Universidad Javeriana. Bogotá. 41 42 FEDOZZI, Luciano - O Poder da Aldeia, Porto Alegre, Tomo Editorial 20 cidadania, que é definida pelo Estado. É necessário fugir desta falsa oposição, confirmando o papel central da noção de direitos na modelagem de novas formas de pensamento e ação das organizações sociais, universalizando demandas particulares e disseminando a percepção dos direitos através da ação coletiva. As lutas pela inclusão na condição de cidadania, iniciada pelos movimentos e organizações sociais a partir da identificação de suas carências e da incapacidade do Estado em atendê-las, têm sido, na América Latina, o principal fator de dinamização e transformação, tanto da sociedade quanto do Estado. O papel do Estado no processo de inclusão social é sublinhado por Reis (1993), quando afirma que o nível de carência entre os setores populares é tão agudo que o Estado, em nossas sociedades, termina por ser o agente produtor da própria capacidade de reivindicação popular. Sua proposta é que a incorporação cidadã, nessas circunstancias, somente será possível se o Estado for capaz de institucionalizar esta relação, transformando os setores marginalizados em seus clientes reais sem recorrer a mecanismos de manipulação política. No entanto, mais que um conjunto de benefícios, o desafio da cidadania é construir um sentido de pertencimento. Segundo Teles (1994:45)43 “é impossível fazer dos direitos referências que estruturem identidades cidadãs numa sociedade que destitui, por todos os lados, cada um e todos, de um lugar de reconhecimento”. Para a autora a ausência de espaços de reconhecimento de vínculos propriamente civis, traduz-se na dificuldade de formular os dramas cotidianos (individuais e coletivos) na linguagem pública dos direitos, remetendoos aos códigos morais da vida privada. Portanto, a democratização da esferapública “depende de espaços públicos de representação e negociação, nos quais os direitos possam se firmar como medida no gerenciamento dos conflitos e como parâmetro no reordenamento da vida econômica e social”. A reconstrução da esfera pública deve ser claramente identificada como parte da luta pela hegemonia e constituição de um novo bloco no poder, que atravessa o 43 TELLES, Vera. “Sociedad Civil, Derechos y Espacios Públicos”. In Villas-Boas, Renata 21 Estado (Poulantzas, 1981)44 e requer novos aparatos, tecnologias e processos de exercício do poder, que inscrevam as novas relações de poder na ossatura organizacional do Estado. Neste sentido, o modelo da democracia deliberativa não abre mão do Estado, ao contrário, reconhece a necessidade de radicalizar a transformação de seu aparato institucional para permitir a inclusão, na agenda das políticas públicas, dos interesses dominados, em um processo simultâneo de transformação da institucionalidade e construção de identidades coletivas. Este processo em nada se assemelha à desconstrução do Estado operada pelos governos democraticamente eleitos na América Latina, com forte apoio do sistema financeiro internacional, levando à desmontagem dos sistemas existentes de proteção social e das políticas universalistas em direção a um modelo de individualização do risco e da proteção transformada em mercadoria. Como pode ser agora demonstrado com dados, a combinação de uma visão reducionista da democracia e da cidadania com o predomínio do mercado e dos interesses do capital financeiro elevou os índices de desigualdade e não combateu a exclusão social na região. A conseqüência são os elevados níveis de desencanto da população com a institucionalidade democrática. Este doloroso processo histórico reafirma nossa tese de que o enfrentamento da exclusão só se dará em um novo formato de democracia, capaz de reconhecer os excluídos como cidadãos, gerar espaços públicos de participação, controle social e concertação, além de implementar políticas públicas efetivamente redistributivas. Alguns requisitos devem ser cumpridos neste processo como o fortalecimento da autoridade estatal e do seu real poder de ação em contexto internacional e nacional. Nacionalmente, já tratamos da necessidade de publicizar o Estado, abrindo-o aos interesses da cidadania. Para tanto, é imprescindível retirar os Estados latino-americanos da rota perversa de acumulação do capital financeiro internacional, retomando a indução de um curso de desenvolvimento regional e 44 (org) – Participación popular en los gobiernos locales. SP: Pólis, 1994 POULANTZAS, N. 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