O gerencialismo e a ética do bem comum: a questão da motivação

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O gerencialismo e a ética do bem comum: a questão da motivação
VII Congreso Internacional del CLAD sobre la Reforma del Estado y de la Administración Pública, Lisboa, Portugal, 8-11 Oct. 2002
O gerencialismo e a ética do bem comum:
a questão da motivação para o trabalho nos serviços públicos
Jean-François Chanlat
Professor Titular Hec-Montreal
Professor Associado, Laboratório Crepa, Universidade de Paris-Daupline.
Publicar uma obra tratando da motivação para o trabalho no setor público é ao mesmo tempo
essencial e audacioso. Essencial por um lado, porque os serviços públicos representam hoje um papel
determinante em todos os países industrializados em certo número de setores (Saúde, Educação,
Cultura, Serviços Sociais) e, por outro lado, porque o Estado cumpre sempre funções centrais na vida
coletiva mesmo no contexto de liberalização que conhecemos hoje (Frémeaux, 2001). Audacioso, já
que geralmente, para muita gente, os serviços públicos ficam associados à imagem de funcionários
pouco inclinados a trabalhar e preocupados principalmente por suas vantagens e seus privilégios, idéia
aliás mais ou menos difundida dependendo das épocas e das camadas sociais desde Courteline. Mas,
interessar-se pela motivação para o trabalho dos empregados do serviço público talvez seja também e
sobretudo interrogar-se sobre a questão do mal-estar profissional que se observa em nossos dias num
grande número de serviços públicos aqui e acolá no mundo inteiro. De fato, não passa um dia sem que
a imprensa alardeie o “blues”do pessoal dos hospitais, o estresse dos professores, o mal-estar dos
funcionários, etc. As pesquisas sobre tais assuntos são muitas, como atestam os diversos artigos deste
trabalho. Quando se começa a falar de motivação num ambiente de trabalho, é geralmente porque se
enfrenta uma desmobilização e uma perda de sentido no universo em questão (Sievers, 1990). O que
será que está acontecendo hoje para que o temor da motivação no trabalho esteja ficando popular no
setor público? E o que se deve pensar das particularidades do trabalho nesse setor para que os
empregados do setor público venham a ser novamente motivados?
Essas duas perguntas em torno das quais vai se articular nosso artigo identificam-se de certa
maneira às interrogações feitas a respeito da evolução do lugar e do estatuto do funcionário no recente
congresso internacional das ciências administrativas que houve em Atenas no último mês de julho :
“Como conseguir o melhor para os serviços públicos? Como conservar os serviços daqueles
que possuem as capacidades e a experiência necessárias e são capazes dos melhores
desempenhos? Como inspirar, manter e cultivar os valores de dedicação ao serviço, de
integridade, de receptividade, de engajamento e de procura da qualidade? Tais são os
desafios que a administração pública de hoje deve vencer.” (Kudrycka, 2001)
No que nos diz respeito, a questão da motivação para o trabalho no setor público está ligada
estreitamente a duas coisas, de um lado às transformações que esse setor evidentemente conheceu nos
vinte últimos anos, e do outro ao esquecimento de certas especificidades desse tipo de atividades.
A ASCENSÃO DO GERENCIALISMO NO SETOR PÚBLICO
Durante as últimas duas décadas, temos assistido nas nossas sociedades a mudanças importantes
que tiveram uma influência determinante sobre a maneira como se percebia o Estado e como por
conseguinte consideravam-se os serviços públicos. A crise do Estado-Providência, o desmoronamento
das experiências socialistas, a hegemonia da empresa privada como modelo organizacional eficiente e
do mercado como mecanismo de regulação das trocas, têm de fato influenciado profundamente não só
a nossa visão da ação pública, mas também as políticas, os programas, as estruturas e a cultura das
organizações estatais.
Esse surto neo-liberal, como alguns o têm qualificado (Passet, 2000), provocou ao mesmo
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tempo na maioria dos países do mundo cortes orçamentários mais ou menos importantes, a privatização
de numerosas empresas estatais, até mesmo de certos serviços públicos, grandes programas de
modernização de serviços permanecendo públicos, e uma ameaça mais ou menos velada de
privatização caso tais reformas não dessem certo nos serviços interessados. Doravante, como lembrava
um relator do Congresso de Atenas já citado:
“nesse novo ambiente, o funcionário deve ser ao mesmo competitivo e eficiente e dispor
das mesmas aptidões que os empregados do setor privado”, e nesse novo modelo de
gerenciamento público, “a gestão do setor público deve ser similar à do setor
privado”(Kudryck, 2001).
O universo dos serviços públicos enfrenta assim às claras a subida do que temos chamado
managerialismo (Mintzberg, 1989; Chanlat, 1998). Por managerialismo entendemos o sistema de
descrição, explicação e interpretação do mundo a partir das categorias da gestão privada. As
manifestações desse managerialismo ao nosso redor são múltiplas. Em primeiro lugar, a nível
lingüístico, pode-se facilmente constatar quanto as palavras gestão, management, gerir, manager,
gestionário pertencem hoje em dia ao vocabulário naturalmente utilizado nas trocas do dia-a-dia. (por
exemplo, em muitos casos, nossas emoções não se expressam, gerem-se). Depois, a nível
organizacional, pode-se notar quanto as noções e os princípios administrativos oriundos da empresa
privada (eficiência, produtividade, desempenho, competência, liderança empresarial, qualidade total,
cliente, produto, marketing, excelência, reengenharia etc.) tem invadido amplamente as escolas, as
universidades, os hospitais, as administrações, os serviços sociais, os museus, os teatros, as entidades
sem finalidade lucrativa, até as igrejas. Enfim, pode-se observar quanto os empresários, os gestionários
constituem um grupo influente. A figura do gerente tendo-se tornado sem dúvida uma das figuras
centrais da sociedade contemporânea onde brilha esse novo espírito do capitalismo de que nos falam
Boltanski e Chapiello (1999).
Essa presença crescente do pensamento gerencial no universo dos serviços públicos está
também estreitamente associada à crítica ferina feita ao modelo burocrático por numerosos auditores,
políticos, empresários ou cidadãos reclamando organizações mais flexíveis, mais dinâmicas e mais
inovadoras (Osborne e Gaebler, 1992; Peters, 1992). Se algumas dessas críticas não são sem
fundamento, longe disso, deve-se reconhecer que muitos desses discursos esquecem às vezes as razões
que têm historicamente levado à formação da burocracia (Weber, 1971), e porque esse modelo tão
criticado tem sido o modelo das empresas privadas no início do século passado, notadamente na
Alemanha (Meyer, 1995). Isto é tanto mais importante a considerar quanto mais as formas
organizacionais ficam enraizadas numa sociedade e numa cultura dadas. Isso explica que a visão que se
pode ter da burocracia é historicamente muito diferente dos dois lados do Atlântico (Jackall, 1988;
Meyer, 1995) tendo os Estados Unidos uma concepção amplamente anti-estatal enquanto a Europa e
notadamente a Alemanha e a França sempre atribuíram uma legitimidade muito grande à presença do
Estado nas atividades sócio-econômicas. Não é pois por acaso que as críticas mais ferozes da
burocracia tenham vindo de autores anglo-saxônicos, para não dizer americanos. Tom Peters chega até
a falar de seu ódio da burocracia (1992). O terreno sócio-histórico onde nasceram os predispunha a tal
excesso.
No decorrer dos últimos meses, o discurso mudou um pouco. As grandes diatribes contra o
Estado, a burocracia e sua ineficiência lendária deram lugar a discursos mais favoráveis à ação pública
e suas virtudes na atividade sócio-econômica. De um lado, o relaxamento da economia geral, a crise da
nova economia, o estalo da bolha especulativa, as críticas dos movimentos anti-globalização, os
problemas de regulação tanto na escala nacional quanto na internacional (vaca louca, ratificação dos
acordos de Kyoto, condições de trabalho nos países emergentes, etc.), do outro lado os desempenhos
mais do que pífios de certos serviços privatizados (rede ferroviária britânica, distribuição de energia na
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Califórnia,...) ou fortemente privatizados (sistema de saúde US) (Farmer e Rylko-Bauer, 2001),
recolocaram de fato em dia o papel dos dispositivos reguladores e a pertinência dos serviços públicos.
Os atentados de setembro nos Estados Unidos acentuando essa tomada de consciência através da
descoberta dos efeitos desastrosos da privatização da segurança aérea nos Estados Unidos, a qual tinha
confiado essa missão fundamental, como acaba de o lembrar o sociólogo Ulrich Beck, “a trabalhadores
de tempo parcial altamente flexível, cujo salário inferior ao dos empregados de fast-food está em torno
de 6 dólares por hora. Essas funções de vigilância, centro do sistema da segurança civil interna, foram
pois asseguradas por pessoas ‘formadas’ em apenas algumas horas e conservando não mais que seis
meses em média seu emprego na segurança fast-food” (Beck, 2001)
Tal constatação nos faz voltar às razões que levaram as sociedades a adotar burocracias públicas
e aos objetivos que lhes eram destinados, preliminar indispensável, em nossa opinião, a qualquer
reflexão sobre a motivação para o trabalho nos serviços públicos.
BREVE VOLTA ÀS ORIGENS DA BUROCRACIA
Devemos a Max Weber a primeira reflexão fundamental a esse respeito, reflexão ainda muito
atual. Que nos diz ele? Lembra-nos que o advento da burocracia moderna, a qual aparece grosso modo
na virada do século XX, é a ilustração, no campo das organizações, de um processo mais amplo de
racionalização do mundo iniciado no Ocidente há vários séculos (Weber, 1971). Dentro desse processo,
a direção administrativa burocrática é o meio de assegurar o tipo de dominação que ele qualifica de
racional-legal. Esse modelo de organização apresenta-se mais eficiente que os tipos antigos
(carismático e tradicional) já que se apóia sobre o profissionalismo, o saber, a competência, a
integridade, a impersonalidade, a independência e certa ética do bem comum ou do interesse geral. Em
outras palavras, a burocracia se impõe pelo fato de atender às exigências de uma sociedade racional
movida ao mesmo tempo por imperativos de eficiência e imperativos democráticos (a igualdade de
todos diante da lei e dos serviços). Weber acrescenta também uma idéia fundamental, a saber que a
vida social nas sociedades modernas se desenvolve em diversas ordens de existência. Somos pois
submetidos a leis diferentes conforme as esferas interessadas. Para Weber, não se pode transferir um
éthos guiando uma conduta profissional particular a uma outra conduta. Assim, o éthos do burocrata e o
do homem de negócios não são compatíveis, pois eles pertencem a universos sociais diferentes.
Reencontramos uma idéia próxima daquela apresentada por Boltanski e Thévenot quando falam dos
mundos e particularmente do mundo cívico na sua obra De La Justification (1991).
Se acompanharmos o ponto de vista weberiano, a ascensão do managerialismo, à qual
assistimos há uns quinze anos nos serviços públicos, é então algo não evidente. Porque transferindo
princípios, valores e procedimentos oriundos da esfera da empresa privada para o setor público, aqueles
e aquelas que advogam isso silenciam freqüentemente certos elementos-chaves da atividade de todo
serviço público e as especificidades de cada um deles. Pode-se pois facilmente entender que essas
mudanças não se façam sem problemas e que numerosos empregados dos serviços públicos fiquem
perdidos nesses novos discursos. Pode-se também entender porque a carreira na administração pública
não tem mais o atrativo que podia ter junto à elites universitárias interessadas normalmente pela causa
pública, notadamente nos Estados Unidos (Clight, 1999). Ora, a natureza do serviço público não é
redutível àquela de uma empresa privada. Ela remete a embates sociais que interessam a ética do bem
comum cujo “objeto, como lembra Petrella, é a riqueza comum, a saber o conjunto dos princípios, das
regras, das instituições e dos meios que permitem promover e garantir a existência de todos os
membros de uma sociedade humana. No plano imaterial, um dos elementos do bem comum é
constituído pelo tríptico reconhecimento-respeito-tolerância nas relações com o outro. No plano
material, o bem comum estrutura-se em torno do direito ao acesso justo para todos à alimentação, ao
alojamento, à energia, à educação, à saúde, ao transporte, à informação, à democracia e à expressão
artística”. (Petrella, 1996)
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É neste espírito que em nossos países, o Estado, caução da solidariedade nacional, desenvolveu
serviços públicos no século passado. Fazendo isso, dava-lhes uma especificidade que remetia a um
universo não mercantil cuja vocação era servir o interesse geral e assegurar a justiça social. (Kuttner,
1997).
A ÉTICA DO TRABALHO NOS SERVIÇOS PÚBLICOS :
UM PODEROSO FATOR DE MOTIVAÇÃO AO TRABALHO ?
O trabalho, contrariamente a certos pontos de vista (Rifkin, 1997) constitui sempre um elemento
central da identidade de nossos contemporâneos. Quando indivíduos, homens ou mulheres, perdem seu
emprego, eles descobrem o aspecto estruturante que a vida profissional ocupa na sua existência.
Mesmo que o trabalho não seja tudo (Meda, 1998) ele permanece a grande fonte de renda e um fator
chave da identidade pessoal (Sainsaulieu, 1997; Castel, 1995; Francfort, Osty, Sainsaulieu e Uhalde,
1995; Dubar, 2000). A construção de si passa em larga medida por este processo de reconhecimento
profissional assim como o bem-estar pessoal (Dejours, 1993); Brunstein, 1999).
Os empregos do setor público oferecem uma variedade de situações a esse respeito. O que há de
comum, com efeito, entre um professor, uma enfermeira, um funcionário, um carteiro, um policial, um
bombeiro, a não ser sua ligação ao serviço público, a tarefa de cada um ou cada uma sendo muito
diferente.. Pode-se dizer o mesmo dentro de um universo de trabalho particular (ensino, saúde, serviços
sociais, serviços de utilidade pública, etc.). No entanto, se os empregos podem ser muito variados, é
certo que cada um deles mobiliza os fatores que fazem com que um trabalho seja interessante, a saber
uma certa carga de trabalho (físico, cognitivo, afetivo),um grau mais ou menos elevado de autonomia
(poder sobre o ser) um reconhecimento mais ou menos elevado (saber, saber fazer, e saber ser) e um
amparo social mais ou menos forte. Conforme os empregos e os contextos, podemos ter um círculo
virtuoso: uma boa carga de trabalho, um bom grau de autonomia, um forte reconhecimento do que a
gente faz e poder contar com amparo social adequado. Pode-se também observar a situação inversa:
carga de trabalho exigente sem autonomia, sem reconhecimento e sem amparo social. Estas duas
situações constituem pólos opostos. Na realidade do trabalho cotidiano, podem ser observadas
configurações múltiplas. As conseqüências para as pessoas e para as organizações não serão as mesmas
dependendo da distância em que a pessoa se encontra desses dois extremos (Chanlat, 1999).
Em conseqüência das mudanças que evocamos acima, é interessante considerar brevemente os
efeitos que elas tiveram sobre cada um desses fatores (carga de trabalho, autonomia, reconhecimento e
amparo social) já que eles não deixam de ter conseqüências sobre a motivação para o trabalho. Nem
precisa dizer que essas mudanças variam conforme os empregos assumidos e as organizações, certos
empregos sendo mais expostos do que outros (Gollac e Volkoff, 2000). Como não é intenção deste
artigo fazer um balanço sobre cada um dos empregos do setor público, contentaremo-nos em lembrar
os principais elementos comuns que pudemos notar depois do surgimento desse novo modelo de
gerência pública orientada para o desempenho e a produtividade.
O primeiro diz respeito ao aumento da carga de trabalho que parece compartilhada por muitos
empregados do setor público em razão da redução do pessoal e dos novos imperativos de desempenho e
produtividade. Em estreita relação com a carga de trabalho, própria do empregado do serviço público,
notadamente para aqueles e aquelas que estão em contato direto com o público, nota-se uma pressão
maior da parte dos usuários dos serviços oferecidos. Esta pressão tem várias origens: discurso sobre a
importância do cliente, exigências crescentes dos cidadãos para com sua administração, dificuldades
sociais crescentes (desemprego, precariedade, pobreza, miséria,...) subida da incivilidade (ensino,
transporte,...).
O segundo remete ao grau de autonomia. Em muitos casos, se há um verdadeiro apelo para
aumentar a responsabilidade e a imputabilidade dos empregados do setor público e notadamente dos
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funcionários, esta vontade gerencial não deixa de se enfrentar com as contradições e incoerências da
realidade. Isto porque a hierarquia está freqüentemente bastante presente e a autonomia bastante
reduzida, ainda mais porque a chegada de novas tecnologias da informação parece ter tido como
conseqüência produzir um sentimento de maior controle da hierarquia. Mas isso não impede que os
serviços funcionem, já que, como todo o mundo sabe, os atores recompõem em certa medida o
prescrito para poder cumprir seu trabalho em situação (Bernoux, 1995; Reynaud, 1989; Dejours, 1993).
O terceiro se refere ao reconhecimento. No decorrer dos últimos vinte anos, os empregados do
setor público e notadamente os funcionários sofreram mais ou menos fortemente o discurso sobre sua
suposta ineficiência, sua fraca produtividade, até sua verdadeira utilidade. Na maioria dos países
industrializados, muitos são os que esconderam sua condição de funcionário público para não ser
ridicularizados nos encontros sociais. É preciso entender que o discurso de certos políticos, até de
ministros em certos casos, somados às críticas recorrentes da imprensa e do meio dos negócios,
afetaram profundamente a imagem que os funcionários tinham de si mesmos. Ora, o reconhecimento,
como mostra a psicodinâmica do trabalho, está no âmago do prazer e do sofrimento no trabalho
(Dejours, 1990; 1993). Como poderiam os funcionários serem motivados se, não somente não têm
sempre os meios de trabalhar, mas também são objeto de escárnio da população, e até de seu ministro
de tutela, como se viu na França no campo da Educação. Atinge-se aí um elemento central de sua
identidade profissional.
O quarto diz respeito ao apoio social oferecido pelos colegas, os superiores, os subordinados ou
os usuários dos serviços. Aí novamente, depende dos ambientes e das sociedades. Mesmo encontrandose caso de forte apoio social da parte da população, como na França durante greves, podemos observar
o oposto em outros universos geográficos, notadamente na América do Norte. Observa-se também,
com a introdução de novas práticas de gestão do pessoal, particularmente o recurso crescente ao
contrato de duração determinado, ao tempo parcial e à terceirização, uma fragmentação das equipes de
trabalho que não deixa de ter conseqüências sobre a qualidade das prestações efetuadas, como têm
mostrado os acontecimentos de setembro já citados. Com isso, rompe-se também uma característica
fundamental do serviço público, a segurança do emprego, a qual é uma condição necessária para
manter a neutralidade e a independência do funcionário.
Finalmente, há um quinto elemento constitutivo de todo trabalho de serviço público que se
evoca regularmente nos discursos mas que nem sempre é levado em conta na realidade das mudanças, é
o componente ético que lhe é peculiar. Embora toda ação social seja orientada por valores (Pharo,
2000), as que guiam a ação pública remetem a uma ética específica, a do bem comum. Como vimos
anteriormente, o surgimento da burocracia e do funcionário no sentido moderno desses termos não se
dissocia de um processo social mais geral de separação das esferas da existência (público/privado,
princípios pessoais/virtudes cívicas) e de uma vontade de assegurar a todos os cidadãos uma igualdade
de serviços (du Gay, 1994; 2000). As qualidades que reconhecemos ao bom funcionário ou ao bom
empregado do serviço público (dedicação, integridade, igualdade de tratamento) ilustram essa vontade
de despersonalizar a função administrativa. De fato, todas essas qualidades procuram distanciar a
pessoa do posto ocupado a fim de que ela não misture as duas coisas, como podia ser o caso antes
(Weber, 1971). Se o burocrata pode ter sentimentos pessoais, e certamente os tem, ele não pode agir de
modo arbitrário. Pois sua ação está sempre orientada pela sua ética profissional, a qual deve sempre
levar em conta o interesse geral e ser guiada pela ética.. É por isso que toda forma de patrocínio ou de
corrupção fica proibida.. Assim, como escreve Paul du Gay:
“a burocracia representa um importante recurso político e ético nos regimes de democracia
liberal porque serve a separar a administração da coisa pública dos absolutismos morais
privados” (1994, p.141).
Sem a emergência da burocracia e do burocrata não teria havido essa separação que está no
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coração da democracia liberal entre as virtudes cívicas e os princípios pessoais. Por conseguinte,
contrariamente ao que pensam certos críticos desse modelo de organização, a ética do serviço público,
que força o funcionário a deixar de lado suas posições pessoais, participa da consolidação das nossas
democracias. A contrario, a introdução de formas empresárias de gestão no sistema público talvez seja
uma ameaça a essa separação das ordens de existência, já que doravante todas as esferas serão
reguladas pelo mesmo éthos, o dos negócios. O funcionário, caução tradicional do interesse geral e do
bem comum, deverá de agora em diante obedecer às exigências dos clientes, até mesmo do seu chefe
imediato, como acontece segundo a pesquisa realizada por Robert Jackall, nas empresas americanas
(1998). A imparcialidade, o tratamento igualitário e o interesse geral correm o risco de desaparecer a
longo prazo em benefício de mecanismos cada vez mais mercantis.
É por exemplo o que constatam peritos para o sistema de saúde americano: “O risco, quando as
estruturas médicas comunais trabalham com sociedades privadas, é que esta parceria force a
organização pública a visar os aderentes do programa em vez do conjunto da população. Além disso.
Pode ser que a filosofia gerencial proiba operar ou empreender operações de prevenção ficando sem
efeito sobre a baixa dos custos... A importância concedida aos resultados financeiros incentiva
claramente os organismos médicos a evitar os pacientes de alto risco e a se concentrar somente sobre
seus aderentes em vez de fazer esforços de prevenção destinados ao conjunto da população”. (Lewin, in
Farmer e Rylko Bauer, 2001). O debate recente entre os laboratórios farmacêuticos e os Estados de
países emergentes sobre o preço do remédio e a orientação das pesquisas médicas fornece outro belo
exemplo.
Para nós, essa questão é importante já que ela fica no centro da reflexão sobre o lugar e o papel
dos serviços públicos, tanto nos países desenvolvidos quanto nos países em desenvolvimento, como
também nos países em transição para a economia de mercado. Mas ela se faz num contexto muito
diferente de uma região para a outra. Quando os países desenvolvidos vão falar de ética, eles o fazem
num contexto de ‘privatização’ da ação pública, os países em desenvolvimento o fazem no contexto de
uma vontade de edificação de uma verdadeira burocracia weberiana, a qual não existe, para desespero
dos financiadores internacionais, e os países em transição o fazem no contexto de saída de uma
burocracia ideologizada.
No caso de nossos países, o que queremos defender aqui como idéia, é que a problemática da
motivação no trabalho dos empregados do serviço público não se baseia somente sobre elementos
comuns a todo trabalho profissional, ela deve levar em conta a ética particular ligada à ação pública.
Quando examinamos o discurso dos empregados, ficamos impressionados, particularmente na França,
pela referência regular ao interesse geral, à igualdade, à solidariedade, numa palavra aos grandes
princípios que fundamentam a República. Foi o que puderam observa por exemplo Francfort, Osty,
Sainsaulieu e Uhalde na sua pesquisa sobre os mundos sociais da empresa através da emergência do
que eles apresentaram como o modelo profissional de serviço público (1995). Se esta ética republicana
é tradicionalmente forte na França em razão de sua estreita associação com o que fundamenta a honra
de uma profissão (d”Iribane, 1993), é claro que ela existe em outros países. Ora, não haverá fator mais
motivador do que essa ética de bem comum que supostamente encarna o empregado do serviço
público? De fato, quantos professores, médicos, funcionários grandes e pequenos, trabalhadores
sociais, bombeiros são animados por essa ética nas suas ações cotidianas? Muito mais do que se pensa.
Os americanos acabam de redescobri-lo de maneira trágica com a catástrofe do World Trade Center
onde centenas de policiais e bombeiros encontraram a morte levando socorro a seus concidadãos. Estes
últimos tornaram-se verdadeiros heróis num país que costuma mandar para os infernos seus serviços
públicos. Tais sentimentos reaparecem periodicamente nesse tipo de situação. Quando da terrível
tempestade que se abateu sobre a França em dezembro de 99, a EDF (Eletricidade da França) viu
chegarem espontaneamente a maioria de seus técnicos, aposentados ou não, para ajudar a restabelecer a
eletricidade. Observou-se a mesma atitude quando da formidável tempestade de gelo que sofreu o
Quebec há alguns anos.
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O orgulho de pertencer a uma categoria que se define pelo serviço dos outros é um poderoso
fator de motivação quando realmente assim vivido. Ao introduzir práticas de gestão oriundas do setor
privado, os reformadores deveriam pensar duas vezes. Pois, sem o saber, eles podem afetar o que
fundamenta a ação de utilidade pública no que ela tem de mais específico, a ética do interesse geral e a
defesa da justiça.
Tal afirmação pode parecer arcaica para alguns. Entendemo-lo facilmente. Numa época em que
o que vale mais são o sucesso individual, a performance informatizada e as tiranias da intimidade, falar
em ética do bem comum como fator de motivação pode parecer totalmente defasado. Mas, como
sabemos por outro lado que toda vida coletiva é impossível sem um mínimo de cooperação e
solidariedade, este lembrete da especificidade da ação pública é indispensável. Com efeito, o que seria
de nós se os serviços públicos não existissem ou estivessem muito enfraquecidos? Em certo número de
setores onde a lógica do mercado e da empresa privada não pode ser aplicada, sabemos que
enfrentaríamos graves problemas de justiça social (Kuttner, 1998; Passet, 2001).
Neste início de terceiro milênio que se abre diante de um grande número de incertezas
ambientais e sociais, não é inútil insistir sobre a importância do bem comum e do interesse geral, sobre
as instituições que lhes são associadas, os organismos públicos e o pessoal encarregados deles, os
empregados dos serviços públicos. Ao lembrar a importância e o papel que representa a ética do bem
comum nesse tipo de trabalho, queremos dizer a todos e a todas que não pode haver reflexão sobre a
motivação para o trabalho no setor público sem apelar para essa noção. Tal lembrete nos parece tanto
mais crítico quanto mais, como vimos, a administração pública enfrenta novos discursos importados do
setor privado sem levar sempre em conta esses elementos que ao mesmo tempo garantem a separação
das esferas, isto é, em certa medida, o pluralismo ao qual estamos todos apegados, e participam da
mobilização dos empregados. Ao reintroduzir o papel da ética nesta questão da motivação para o
trabalho no setor público, abrimos as portas para uma revalorização do político e dos ideais
democráticos.
Historicamente, não há desenvolvimento equilibrado sem uma burocracia competente, íntegra,
independente e dedicada à causa do bem comum. “A solidariedade está na base do desenvolvimento
social e do funcionamento eficaz da economia de um país”(Petrella,1996). Os reformadores do setor
público devem notar isso se não quiserem uma diminuição da qualidade dos serviços e uma
desmobilização de seu pessoal. Para nós o novo gerenciamento público não pode, em caso nenhum,
ignorá-lo. Pois os grandes ideais éticos estão na base de toda ação de serviço público e parte integrante
de toda democracia digna deste nome (Arnsperger e Van Parijs, 2000).
Lembremo-nos com efeito da famosa advertência que nos dava Max Weber na virada do século
XX nos termos seguintes :
“Quando o cumprimento do dever profissional não pode ser diretamente ligado aos valores
espirituais e culturais mais elevados – ou, inversamente, quando não pode ser sentido como
uma simples coerção econômica - o indivíduo renuncia em geral a justificá-lo. Nos Estados
Unidos, no lugar mesmo do seu paroxismo, a perseguição da riqueza, despojada de seu
sentido ético-religioso, tende hoje a associar-se às paixões puramente agonísticas, o que lhe
confere quase sempre a característica de um esporte...” Para os últimos homens desse
desenvolvimento da civilização, estas palavras poderiam se tornar verdade : “Especialistas
sem visão e voluptuosos sem coração, este nada pensa ter galgado um degrau de
humanidade nunca alcançado até então”. (1972)
Um século mais tarde, seríamos tão diferentes?
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VII Congreso Internacional del CLAD sobre la Reforma del Estado y de la Administración Pública, Lisboa, Portugal, 8-11 Oct. 2002
SINTESE BIOGRÁFICA
Prof. Dr. Jean-François Chanlat.
Ph.D (Université de Montreal, departamento de sociologia, 1985),
M.Sc. (Université de Montreal, departamento de sociologia, 1978),
B.A.A. (École de Hautes Études Commerciales de Montreal, 1972).
Professor titular. École des HEC de Montréal;
Professor associado. IECS, Université Robert Schuman, Strasbourg;
Professor visitante em várias universidades da Europa, América Latina e África;
Diretor e participante de numerosas bancas de teses de mestrado e doutorado (15) e trabalhos dirigidos
(25)
Autor de vários livros e capítulos de livros(25)
Autor de vários artigos de revistas(21), de publicações eletrônicas (1), relatórios de pesquisas e notas
de leitura.(11)
Participação em numerosas conferências a caractere acadêmico(140) e profissional(20)
Presidente, animador e organizador de colóquios e conferências.
Endereço:
2147, avenue Vendôme, app.18- Montreal, Québec, H2V 1V4 – Canadá.
21, rue des Bonnes Gens- Strabourg, 67000 – França.
No. Telefone: Escritório: (512) 340-6359 – Canadá, 03-90-41-43-07 – França
Residência: (512) 489-8517 – Canadá, 03-88-21-95-29 – França.
[email protected] e/ou [email protected]
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