fundamentalismo e democracia: desafios políticos e

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fundamentalismo e democracia: desafios políticos e
FUNDAMENTALISMO E DEMOCRACIA: DESAFIOS POLÍTICOS E
EDUCACIONAIS
Telmo Marcon 1 - UPF
Grupo de Trabalho: Diversidade e Inclusão
Agência Financiadora: Universidade de Passo Fundo (UPF)
Resumo
Objetiva-se no presente artigo analisar a tensão existente entre fundamentalismo e democracia
e as suas implicações políticas e pedagógicas. Justifica-se essa preocupação devido a crescente
tendência de posturas fundamentalista pautadas em pressupostos questionáveis, oriundos de
diferentes bases, que desembocam em comportamentos intolerantes e afrontamos princípios da
diversidade, da democracia e da pluralidade que, segundo Hannah Arendt, é a condição
humana. Reconhecer a condição humana plural traz um conjunto de implicações sociais,
políticas, epistêmicas, pedagógicas e ético-morais. A condição humana plural vem sendo
atacada e ameaçada por fundamentalismos religiosos, culturais, de gênero, militares ou de
mercado, com todas as implicações daí decorrentes. O artigo, de natureza bibliográfica, é
resultado de um processo de investigação que vem sendo desenvolvido sobre democracia e
educação e que, nesse recorte, trata da tensão entre democracia e fundamentalismo. O texto
enfoca de modo prioritário elementos constitutivos dos fundamentalismos na medida em que
essa postura coloca em questão a própria democracia, aqui compreendida como forma de
governo, mas também como modos de vida associados (DEWEY). O enfoque principal é
analisar o fundamentalismo na medida em que afronta e coloca em risco a própria democracia.
Neste sentido, a democracia não é o foco principal. Buscando dar conta dessa proposição, o
artigo tem a seguinte estrutura: inicia com uma introdução problematizando a relação
fundamentalismo e democracia; segue com a análise de alguns pressupostos fundamentalistas
derivados de posturas epistêmicas dogmáticas (no âmbito das ciências), os fundamentalismos
político-militar e religiosos. Na sequência, são destacados alguns pressupostos da condição
humana plural e o lugar da democracia. Nas considerações finais, apontam-se alguns desafios
de uma educação democrática e as condições para o reconhecimento da pluralidade
sociocultural.
1
Doutor em História Social pela PUC/SP; pós-doutorado em educação intercultural pela UFSC. Professor e
pesquisador junto ao Programa de pós-Graduação em Educação (mestrado e doutorado) da Universidade de
Passo Fundo. E-mail: [email protected].
Palavras-chave: Democracia. Fundamentalismo. Educação. Pluralidade.
Introdução
Um breve diagnóstico dos grandes desafios contemporâneos não pode passar a margem
das guerras travadas entre países, mas também de conflitos e confrontos existentes no âmbito
interno das nações, envolvendo sujeitos mobilizados por múltiplas razões: políticas, éticas,
raciais, econômicas, religiosas e epistemológicas. São práticas de violência que proliferam em
diferentes sociedades e contextos, motivadas por pressupostos que podem ser caracterizados
como fundamentalistas. Subjacente aos fundamentalismos, existe sempre uma compreensão
absoluta de verdade que é condição para negar os demais posicionamentos. Perpassam, nessas
posturas, dicotomias entre o bem e o mal, sendo que o bem está sempre do lado da verdade e a
maldade, em contraposição, precisa ser eliminada. Essas posturas dicotômicas não são novas
na história da humanidade. No entanto, nas últimas décadas, elas vêm ganhando características
cada vez mais agressivas e desembocando em ações destrutivas e na intensificação da
intolerância em relação ao que é diferente. Atitudes xenofóbicas estão sendo defendidas
publicamente em diferentes espaços, potencializadas por redes sociais. Essas atitudes são
contestadas por muitos, mas exaltadas por tantos outros. A condição humana plural (ARENDT,
1989) é negada em nome de posturas assumidas como verdades que impedem a própria
convivência. É nesse contexto que práticas individuais e grupais, mas também ações de Estado,
assumem características fundamentalistas porque tratam de eliminar o oponente ou quem possa
ameaçar determinados interesses e projetos, seja real ou fantasioso.
Nesse contexto, marcado por enfrentamentos, confrontos e extermínios, ou mesmo de
perseguições, que resultam em migrações forçadas de refugiados em busca de abrigo em terras
estrangeiras, as possibilidades de convivência humana ficam profundamente fragilizadas.
Efetivamente, não dá para desconsiderar as destruições que daí resultam, nem as marcas que
ficam naqueles que sofrem as agressões. Em contraposição, é exatamente nesses contextos
encharcados de pessimismos e violência que a democracia ganha relevância. A democracia é
aqui compreendida na sua forma representativa, ou forma de governo, mas também como modo
de vida associado como concebe Dewey (1979). Quanto às formas de governo, a democracia
pode assumir múltiplas formas e as experiências em curso em muitos países atesta essa
pluralidade (SANTOS, 2009). Na introdução dessa obra, Santos e Avritzer (2009, p. 71) tratam
da perda da demodiversidade que é definida como “a coexistência pacífica ou conflituosa de
diferentes modelos e práticas democráticas”. As pesquisas apresentadas nessa obra evidenciam
a existência de múltiplas experiências de processos democráticos, ou seja, convivem práticas
de dominação e exclusão com múltiplas formas de organizar o poder e a gestão, não apenas em
relação a processos eletivos, mas também de democracia participativa.
Na perspectiva da democracia concebida como modos de vida associados à educação
ganha centralidade, ou seja, não há como pensar em participação efetiva sem uma preparação
para tal e somente a educação pode criar essas condições (DEWEY, 1979; TEIXEIRA, 1997;
BENEVIDES, 1996). A formação democrática é condição para que as pessoas convivam em
sociedade. Por isso, ela não pode ser pensada apenas no âmbito formal. Essa compreensão de
democracia tem de estender-se para os diferentes âmbitos da sociedade e nos diferentes espaços
educativos informais, não formais e escolares. Sem esses pressupostos básicos, fica difícil
pensar nas possibilidades da convivência entre diferentes sujeitos, bem como na pluralidade
enquanto condição humana. A pluralidade, diz Arendt (1989, p. 16), “é a condição da ação
humana pelo fato de sermos todos os mesmos, isto é, humanos, sem que ninguém seja
exatamente igual a qualquer pessoa que tenha existido, exista ou venha a existir”. Em outras
palavras, o reconhecimento da pluralidade enquanto condição humana tem de ser desenvolvido
e a educação tem essa função, ou seja, não é algo espontâneo.
Pressupostos fundamentalistas
As exigências postas pela democracia como forma de governo e como modo de vida
associado colidem frontalmente com qualquer tipo de fundamentalismo. Mesmo que os debates
sobre fundamentalismos estejam ganhando mais espaço nas últimas décadas, ainda são poucas
as publicações que tratam especificamente dessa temática, além do que parte expressiva das
produções enfoca fundamentalismos religiosos. Mesmo com esses limites, é possível
sistematizar alguns pressupostos mais gerais que dão sustentação a esse fenômeno. Um
primeiro esforço deve ser o de ampliar o conceito de fundamentalismo para além das
manifestações que ocorrem no âmbito de religiões. Para tanto, será feita uma breve incursão
sobre como isso ocorre no âmbito da ciência (epistemologia), da política e das religiões.
Existem outras perspectivas para abordar o fenômeno para além dessas: fundamentalismo ético
(SILVA, 2014, p. 203-212) e de mercado. Bonome (2009, p. 63) diz que o fundamentalismo
pode estar na “economia, na política, nas leis do mercado, nas atividades artísticas, literárias,
esporte e até mesmo no lazer”. Há discussões que associam fundamentalismo com terrorismo
como as pesquisas de Chonsky (1999a; 1999b; 2005; 2008) e de Mattos (2002). Esse leque
pode ser ampliado dependendo da compreensão e definição que se dá ao conceito.
O que os autores que se debruçam sobre o tema entendem por fundamentalismo? Boff
(2002, p. 25) dá a seguinte definição: “fundamentalismo representa a atitude daquele que
confere caráter absoluto ao seu ponto de vista”. Neste sentido, diz que não é uma doutrina, “mas
uma forma de interpretar e viver a doutrina. É assumir a letra das doutrinas e normas sem cuidar
de seu espírito e de sua inserção no processo sempre cambiante da história, que obriga a
contínuas interpretações e atualizações, exatamente para manter sua verdade essencial”. Ao
longo dessa obra referida, Boff traz situações que justificam e fundamentam essa compreensão,
especialmente no âmbito da tradição católica, protestante e islâmica. Distintos grupos
apropriaram-se da mesma doutrina ao longo da história e produziram inúmeras interpretações,
muitas das quais colidem frontalmente. As reflexões de Bonome (2009, p. 74) ajudam a pensar
essa questão:
Embora não se possa generalizar, a visão de mundo fundamentalista pode gerar, em
níveis diferentes, atitudes de exclusão, xenofobia, rejeição, violência e terror. O
fundamentalista é aquele que pela leitura literal de escritos tidos como sagrados, por
um lado interpreta a vontade soberana e inquestionável da divindade, e por outro lado,
essa literalidade das escrituras recebe reforço da experiência mística do grupo.
O fenômeno do fundamentalismo está profundamente marcante na atualidade, não
apenas em relação à religião, embora essa dimensão esteja mais evidente e também porque parte
dos conflitos atuais esteja aí ancorada. Das posturas fundamentalistas, diz Boff, decorrem
consequências: “quem se sente portador de uma verdade absoluta não pode tolerar outra
verdade, e seu destino é a intolerância”. Por sua vez, a intolerância “gera o desprezo do outro,
e o desprezo, a agressividade e a agressividade, a guerra contra o erro a ser combatido e
exterminado. Irrompem conflitos religiosos com incontáveis vítimas” (2002, p. 25). Parece
estar aqui o cerne do fundamentalismo: a posição arrogante na defesa de uma verdade, a partir
da qual todas as demais situações são julgadas, condenadas e excluídas. Dentro dessa
compreensão mais ampla, entende-se que o fundamentalismo não é apenas uma expressão de
manifestações religiosas, mas se estende para a ética, a economia, a ciência e a política.
Por que os fundamentalismos de matriz religiosa vêm se multiplicando nas últimas
décadas? Em primeiro lugar, cabe uma observação no sentido de que grupos fundamentalistas
sempre existiram, mesmo apresentando configurações distintas. Uma das críticas que Jesus fez
aos fariseus, há dois mil anos, diz respeito à hipocrisia, ou seja, à forma como interpretavam
trechos do Antigo Testamento visando justificar seus interesses e suas práticas. Daqui deriva a
palavra farisaico que significa hipócrita, ou seja, aquele que prega princípios ético-morais aos
outros, mas não a si mesmo. Em segundo, que as justificativas religiosas tendem a fundamentarse num plano metafísico, portanto, envolvem dimensões que são apresentadas como verdades
e sobre as quais é difícil qualquer argumento racional. Um conceito de verdade daí decorrente
compreende os fenômenos como sendo totais, ou seja, não resta qualquer possibilidade de
reflexão crítica. Em terceiro, os fundamentalistas religiosos tendem a fundamentar suas
posições em documentos reconhecidos pela humanidade, especialmente a Bíblia e o Alcorão.
A questão, no entanto, não diz respeito a esses dois importantes textos sagrados, mas à forma
como são interpretados. Os fundamentalistas elegem alguns fragmentos para justificar
determinadas práticas ou comportamentos (hábitos alimentares, vestimentas, questões de
gênero). Ao serem descontextualizados, esses textos são interpretados de modo absoluto e essas
interpretações tornam-se padrão de referência para todos os seguidores. Quando essas
interpretações deixam de ser apenas religiosas e ganham conotações políticas ou militares, a
situação torna-se bem mais complexa.
Estamos vivenciando momentos em que projetos religiosos estão adentrando os espaços
especificamente políticos. No Brasil, isso efetiva-se na eleição de representantes de igrejas para
cargos políticos em todas as esferas ou mesmo constituindo uma bancada denominada
evangélica, que reúne parlamentares de distintos partidos que têm na religião um ponto em
comum. Além disso, inúmeros grupos religiosos dominam meios de comunicação de massa
(jornais, rádios e canais de televisão). É preciso, no entanto, observar que nem todos os que
atuam nesses meios de comunicação assumem posturas fundamentalistas, embora seja
expressivo os que podem ser definidos como tal. Quando grupos fundamentalistas ganham
força política e amparo militar, os riscos para a democracia, aqui entendida num sentido amplo,
são enormes. Mais complexo ainda é quando uma compreensão de verdade impera,
especialmente orientada por uma dicotomia que se estabelece entre o bem e o mal. Nessas
situações, não há alternativas a não ser eliminar os que são representantes do mal. Nesse
contexto, não há qualquer espaço para o diálogo, para a diversidade e a pluralidade.Com o
objeto de aprofundar como posturas fundamentalistas tornam-se reais serão abordadas três
perspectivas: no âmbito epistemológico (ciência), político-militar e religioso.
Fundamentalismo epistêmico
Não são novas as críticas feitas a determinadas posturas epistemológicas assumidas por
algumas perspectivas no âmbito das ciências. A título de ilustração pode-se fazer referência a
dois autores que vêm questionando, nas últimas décadas, pressupostos que conduziram certas
áreas das ciências a posturas dogmáticas e, neste sentido, poder-se-ia caracterizá-las como
fundamentalistas. Trata-se das pesquisas de Boaventura de Sousa Santos (1989; 2004; 2010a;
1010b) e de Immanuel Wallerstein (2006; 2007; 2013). Por caminhos próprios, esses dois
investigadores fundamentaram críticas à epistemologia positivista por estabelecer uma rigorosa
divisão entre o conhecimento verdadeiro e o falso. Dessa postura decorrem várias implicações
políticas e socioculturais. Como dizem esses autores, o estabelecimento de uma linha divisória
rigorosa entre o verdadeiro e o falso implicou a exclusão de conhecimentos e experiências. O
esforço de Boaventura de Sousa Santos vai no sentido de formular uma crítica radical ao modelo
de ciência que ele denomina hegemônico. O esforço empreendido por ele e seus colaboradores,
oriundos de múltiplos países e continentes, não apenas do continente Europeu ou da América
do Norte, evidencia a existência de múltiplas formas de conhecimento e experiências que a
ciência hegemônica tratou de excluir ou de negligenciar. É essa a perspectiva que aponta num
dos seus textos fundamentais: “para uma sociologia das ausências e por uma sociologia das
emergências”. Esse texto é um capítulo de uma obra densa que aprofunda um conjunto de temas
e questões que é o Gramática do tempo: por uma nova cultura política (SANTOS, 2008). Nessa
e em outras publicações, perpassa uma crítica relativa aos riscos e às implicações de uma visão
dogmática de ciência que reconhece alguns conhecimentos e desqualifica tantos outros como
não sendo científicos. A negação de um diálogo hermenêutico, como reivindica o autor, é um
indício da existência de posturas fundamentalistas, mesmo que ambos não utilizem esse
conceito. O esforço empreendido por um grupo expressivo de pesquisadores condensado na
obra “Epistemologia do Sul”, organizada por Santos e Menezes (2010), é de ampliar o leque de
conhecimentos reconhecidos e validados pelas ciências. Na introdução dessa obra, os
organizadores apresentam várias justificativas para pensar a epistemologia do sul, entre as
quais, o epistemicídio, entendido como “a supressão dos conhecimentos locais perpetrada por
um conhecimento alienígena” (2010, p. 16). Em outras palavras, o estabelecimento de critérios
epistêmicos rigorosos validou alguns conhecimentos e excluiu tantos outros. O
fundamentalismo epistêmico estabeleceu uma linha divisória rigorosa entre o verdadeiro e o
falso. Num certo sentido, essa é a mesma lógica estabelecida pelos fundamentalistas que
dicotomizam o bem e o mal.
Fundamentalismo político-militar
É expressivo o poderio político-militar de certos grupos e países. Pesquisas e
publicações, especialmente após os incidentes de 11 de setembro de 2001 nos Estados Unidos,
evidenciam o recrudescimento de posturas fundamentalistas não apenas em relação a Bin
Laden, aos Talibãs e a outros grupos religiosos. A grande mídia ocidental tem tratado o
fundamentalismo, de um modo geral, como sendo um problema do Oriente e como
consequência da religião islâmica. Essa é uma visão profundamente limitada e preconceituosa,
especialmente porque a emergência de grupos extremistas não é expressão de toda a população,
mas de grupos fundamentalistas. O que ocorre com grupos religiosos que se apoiam na Bíblia
e interpretam-na de modo parcial e dogmático é o mesmo que acontece com seguidores do
Alcorão, ou seja, nem todos fazem as mesmas interpretações. A obra de Yousafzai e Lamb
(2013) contém inúmeras situações descritas que diferenciam as interpretações do Alcorão feitas
pelos defensores da tese que as meninas deveriam frequentar escola e dos Talibãs que,
embasados no mesmo Alcorão, defendiam exatamente o contrário.
Ao mesmo tempo em que o governo norte-americano e a grande mídia assumiram
posturas parciais em relação ao ocorrido em 11 de setembro de 2001, outros autores, como
Noam Chonsky, discutem outros elementos e dimensões das políticas e ações de governos
norte-americanos desde a década de 1960. Suas pesquisas contribuem para explicitar posturas
fundamentalistas para além da matriz religiosa, embora essa também se faça presente. As
sistemáticas investidas militares norte-americanas no Oriente Médio, assim como na América
Latina, desde os anos de 1960 (CHOMSKY, 2005; 1999b), colocam em pauta inúmeros
elementos que decorrem de posturas fundamentalistas. Essas partem de uma concepção
dicotômica entre o bem e o mal e a necessidade de intervenção do bem para eliminar o mal.
Boff (2009, p. 30) fala na demonização do inimigo: “os ocidentais tendem a ver nos
muçulmanos as figuras do fanático religioso e do terrorista. Os muçulmanos tendem a ver nos
ocidentais os ateus práticos, os materialistas crassos e os secularistas ímpios”. O
recrudescimento do discurso de George W. Bush contra o mal, encarnado em Bin Laden,
contrapunha-se ao papel redentor dos Estados Unidos na defesa do bem e da democracia. A
conclusão a que chega Boff (2009, p. 41) é de que o fundamentalismo trata de revidar o terror
com o terror, “pois ele busca conferir vitória à única verdade e ao único bem e destruir a falsa
verdade e ao mal. Foi o que ambos, Bush e Bin Laden, fizeram” (grifos do autor)
Em relação aos riscos decorrentes de posturas fundamentalistas, especialmente quando
associadas ao terrorismo, há uma produção de representações que passam a produzir efeitos
políticos, militares, culturais e sociais. Segundo Bonome, “no fundamentalismo, identificar o
inimigo como fantasma é um primeiro indício para rotulá-lo de diabólico, contrário a Deus e,
portanto, possível de eliminação” (2009, p. 34). Produzem-se discursos de que forças do mal
pretendem destruir o bem, incluindo a democracia. O mal precisa ser combatido com todas as
forças, inclusive militares. Ainda, segundo Bonome (2009, p. 29), “mesmo não sabendo se as
notícias são verídicas, a relação entre terrorismo e fundamentalismo se cristalizou no imaginário
de muitas pessoas...”. Esse discurso vem produzindo resultados paradoxais: de um lado, o apoio
massivo de setores convencidos de que países são fundamentalistas, por conseguinte,
terroristas, que pretendem acabar com a sociedade americana e, de outro, vozes isoladas que
buscam desconstruir esses discursos sob o pretexto de que não se auto justificam e nem se
sustentam. Essa é uma importante contribuição de Chomsky.
Fundamentalismo religioso
Como foi observado anteriormente, grande parte das críticas aos fundamentalismos
dirige-se às religiões, especialmente às que seguem o Alcorão. É evidente que qualquer análise
sociológica, política, antropológica, filosófica ou histórica, não pode desconsiderar o poder das
religiões na constituição das concepções de mundo, conforme pensa Gramsci (1986). A crítica
de parte da tradição marxista às religiões, concebidas como pura alienação, comprometeu uma
compreensão dialética dos fenômenos religiosos e suas interferências em práticas sociais e
políticas. Expressivos movimentos sociais constituíram-se ancorados em fundamentos
religiosos compreendidos como promotores de uma mística transformadora que deu condições
para resistir às adversidades climáticas, políticas e militares.
Onde reside o problema do fundamentalismo religioso? Em primeiro lugar, é preciso
reconhecer que o fundamentalismo não é exclusivo dos seguidores do Alcorão. Em segundo,
que interpretações fundamentalistas estão presentes em todas as religiões. Como isso se
manifesta? Basicamente, na forma como se interpreta os textos sagrados. A respeito disso, há
certo consenso entre os pesquisadores do assunto. As críticas formuladas por Lutero no século
XVI colocaram em questão o poder exclusivo da hierarquia da igreja católica na interpretação
das escrituras. Neste sentido, foram muito importantes. No entanto, a livre interpretação dos
textos sagrados tem seus problemas. As interpretações que seguidores de diferentes religiões
estão fazendo hoje de textos sagrados colidem frontalmente com todos os avanços exegéticos e
hermenêuticos, especialmente os desenvolvidos desde o século XIX. Não há como
compreender um texto produzido num contexto relativamente estranho sem perguntar pelas
razões em que foi escrito, o que foi registrado, quem escreveu e qual o sentido das palavras
dentro dos contextos culturais que foram elaborados. Essas questões são fundamentais, mas
muitos não se fazem. Ao contrário, tomam textos produzidos em contextos socioculturais muito
distintos dos atuais e reproduzem literalmente o conteúdo desses textos, sem qualquer mediação
hermenêutica. Em razão disso, proliferam interpretações fundamentalistas que se fazem
presentes entre católicos, evangélicos, protestantes e islâmicos que interpretam a Bíblia ou o
Alcorão de modo problemático e comprometedor.
A condição humana plural e a democracia
O reconhecimento de que as sociedades são plurais constitui-se num dos primeiros
passos. Aparentemente trivial, a ideia de pluralidade pressupõe a existência de diferentes
sujeitos que produzem suas intepretações, assumem pontos de vista próprios e, por
consequência, elaboram distintos projetos sociais, políticos e culturais. A intransigência em
relação ao outro evidencia-se com muita intensidade quando se acirram os pontos de vista
pessoais ou de grupos em relação a determinados temas e assuntos. Isso ficou evidente quando
das discussões visando à elaboração dos planos estaduais e municipais de educação, logo após
a aprovação do Plano Nacional. As pressões de grupos religiosos para a supressão de temas
relativos à educação sexual na escola, questões de gênero e da diversidade num sentido mais
amplo, atestam o quanto ainda é forte a intransigência em relação a determinadas questões. No
próprio Congresso Nacional brasileiro, a bancada evangélica é expressão de uma articulação de
militantes religiosos em defesa de determinadas ideias e projetos. A forma como isso dá-se
aponta para posturas fundamentalistas e coloca em questão a ideia de democracia.
Partindo do pressuposto que a diversidade não é resultante de discursos, mas constitutiva
da própria realidade, coloca-se uma questão fundamental: ou aceita-se e reconhece essa
pluralidade ou ela é negada. É nessa encruzilhada que se coloca em questão a ideia de que a
democracia não é apenas uma forma de organização política, mas também constitutiva de
modos de vida, ou seja, implica a possibilidade de conviver socialmente com o outro. Neste
sentido, retomando as ideias de John Dewey, um importante pensador norte-americano, a
democracia não é inerente à natureza humana no sentido que nascemos democratas, mas é uma
possibilidade. Para tanto, é fundamental questionar, na radicalidade, a pressuposição de
fundamentos externos e alheios à vontade dos sujeitos. O ponto de partida, diz Dewey, é
repudiar “o princípio da autoridade externa”, ou seja, a negação de um princípio metafisico
legitimador da autoridade. Em contrapartida, diz que é necessária a aceitação e o interesse
deliberado e somente a educação faz isso (1979, p. 93). A democracia implica, dentro dessa
perspectiva, num processo educativo. Através dela, formam-se sujeitos críticos, éticos,
participativos e responsáveis. A crítica que Dewey faz ao princípio da autoridade externa
justifica-se porque diferentes tradições buscaram e ainda insistem no pressuposto de uma
autoridade externa que pode ser religiosa, politica, econômica ou militar e, em nome dela,
exercer determinado poder. A democracia pressupõe a superação do poder emanado de
qualquer “autoridade externa” porque pressupõe que essa autoridade seja decorrente da
soberania popular. Ela pressupõe que os cidadãos assumem efetivamente a condição de sujeitos
e de que o poder que emana desses sujeitos organizados e em condições de deliberar constituase efetivamente na base da democracia. Isso traz um conjunto de implicações, entre os quais o
de que a participação não nasce espontaneamente, mas deve ser construída pela educação, ou
seja, através de uma formação democrática. Ao tratar da educação para a democracia,
Benevides (1996, p. 226) destaca seu papel a partir de duas dimensões:
a formação para os valores republicanos e democráticos e a formação
para a tomada de decisões políticas em todos os níveis, pois numa
sociedade verdadeiramente democrática ninguém nasce governante ou
governado, mas pode vir a ser, alternativamente - e mais de uma vez no
curso da vida - um ou outro.
Nesse contexto, a educação passa a ser concebida como condição para a formação
democrática e, por conseguinte, a superação de qualquer tipo de fundamentalismo. Em outras
palavras, a democracia exige processos educativos que formem os sujeitos para que possam
agir de tal forma que reconheçam a existência de outras perspectivas. Como bem reconhece o
próprio Dewey, mas também Durkheim (1967), num outro contexto e com preocupações
pedagógicas muito distintas, não nascemos democratas ou seres sociais. Por caminhos distintos
e com posturas políticas muito diferenciadas, esses dois autores atribuem à educação o papel
de formadora para a democracia ou, conforme Durkheim, preparadora para a vida social, visto
que a criança nasce egoísta e não um ser social. É a educação que introduz e prepara a criança
para a vida social.
A incapacidade de conviver socialmente com a diversidade e a intolerância frente o
outro é reveladora da dificuldade de reconhecer a pluralidade como condição humana e os
limites de compreensão e de intervenção no mundo a partir dos distintos pontos de vista e dos
diferentes lugares sociais e políticos. Conviver com a diversidade exige um conjunto de
procedimentos e valores: primeiro, reconhecer a contingência individual, em segundo, que
existem pessoas que pensam diferentemente e podem contribuir na avaliação de nossas próprias
posições e, terceiro, o desafio de reconhecer que a diversidade não se constitui em obstáculo,
mas é condição para o próprio diálogo. A diversidade e o confronto de posições distintas criam
possibilidades pedagógicas para o crescimento, desde que nos coloquemos na condição de
aprendizes. Isso exige humildade e capacidade dialógica, pressupostos que todas as posturas
fundamentalistas negam peremptoriamente.
O fundamentalismo parte do pressuposto que existe um lugar de verdade, a partir do
qual é possível agir e organizar o mundo. Como nos adverte Gadamer (2000; 1996), quando
miramos uma obra de arte não vemos apenas traços objetivos, uma forma única e um significado
predeterminado objetivamente. Vemos muitas possibilidades e ao mesmo tempo
experimentamos sensações distintas. A obra de arte é uma expressão dessa capacidade plural
que o homem tem em termos de criatividade e de diversidade de olhares.
Conclusões
As políticas educacionais que vêm sendo formuladas no Brasil desde a Constituição de
1988 consagram o princípio da diversidade, da formação cidadã e da gestão democrática. Desse
ponto de vista, há uma preocupação importante que foi ganhando contornos formais
expressivos. No entanto, entre o normativo e a prática persiste sempre um hiato que, no caso
brasileiro, é bastante elástico. Assim, a educação democrática, aqui entendida não apenas como
a apropriação conceitual, mas também enquanto vivência efetiva da democracia nos diversos
espaços sociais, mas de modo particular nos escolares, cria condições para questionar posturas
dogmáticas e fundamentalistas. O confronto com posições diferentes em relação a temas como:
o mundo do trabalho, as tendências do mercado financeiro, os rumos das políticas educacionais,
as polêmicas sobre gênero e educação sexual, a educação das relações étnico-raciais,
quilombola e indígena, entre outros, dão uma amostra do que significa educar para uma vida
democrática e a superação de posturas fundamentalistas fechadas que obstaculizam qualquer
avanço teórico e político, bem como problematiza, com seriedade, as possibilidades de
convivência com a diversidade.
Mesmo com avanços em relação à formulação de políticas educacionais democráticas e
cidadãs, visando dar conta de sujeitos que historicamente ficaram à margem, ainda são imensos
os desafios para democratizar efetivamente as instituições e as relações socioculturais. Há, de
um lado, avanços importantes, mas, de outro, inúmeros entraves e resistências. A cultura
autoritária brasileira, como bem analisou Da Matta, aparece muitas vezes dissimulada de
democracia. Isso fica evidente quando as políticas educacionais estabelecem exigências de
discutir relações étnico-raciais nas instituições educativas. Muitas experiências atestam avanços
importantes, mas em tantas outras situações simplesmente paira um silêncio. Não há uma
contestação formal, mas, na prática, é como se houvesse. Neste sentido, fica evidente que damos
passos importantes, mas os desafios ainda são grandes.
Ao finalizar essas reflexões evidencia-se que a educação tem um papel importante na
formação democrática. Os espaços de educação formal têm de contribuir, neste sentido, numa
dupla dimensão: na formação de sujeitos democráticos que tenham condições de compreender
e trabalhar com a pluralidade e também experienciem, nos próprios espaços escolares, vivências
democráticas. Ao vivermos em sociedade, é fundamental reconhecer que a pluralidade não é
algo marginal ou periférico. Ela tem de ser reconhecida e trabalhada pedagogicamente, somente
assim é possível romper com fundamentalismos de qualquer natureza e a democracia possa
constituir-se efetivamente e modos de vida associado. No entanto, enquanto pessoas e grupos
mobilizam-se a partir de pressupostos fundamentalistas religiosos, políticos, étnicos, culturais
e militares, a democracia terá dificuldade para avançar. É preciso ter consciência de que essa
tensão é parte da dinâmica social e precisa capacidade argumentativa para reverter toda
tendência xenofóbica, excludente, antidemocrática.
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