1ªs Atas Museu de Lamego PDF

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1ªs Atas Museu de Lamego PDF
Geraldo Coelho Dias
ATAS das 1as
CONFERÊNCIAS MUSEU DE LAMEGO / CITCEM - 2013
HISTÓRIA E PATRIMÓNIO NO/DO DOURO: INVESTIGAÇÃO E DESENVOLVIMENTO
Available online at www.museudelamego.pt
ABREVIATURAS
COMISSÃO ORGANIZADORA
ML Museu de Lamego
CITCEM Centro de Investigação Transdisciplinar Cultura, Espaço e Memória
DRCN Direção Regional de Cultura do Norte
FLUC Faculdade de Letras da Universidade do Porto
ESTGL - IPV Escola Superior de Tecnologia e Gestão
de Lamego - Instituto Politécnico de Viseu
DL Diocese de Lamego
PNDI Parque Natural do Douro Internacional
MFM Museu do Ferro de Moncorvo
CNRS Centre national de la recherche scientifique,
Lyon
Alexandra Braga (ML -DRCN)
Álvaro Bonito (ESTGL - IPV)
Gaspar Martins Pereira (FLUC / CITCEM)
Luís Sebastian (ML - DRCN)
Nuno Resende (FLUC / CITCEM)
Paula Montes Leal (FLUC / CITCEM)
Organização
Liga dos Amigos do Museu de Lamego
Lamego
Apoios
Índice
O LEGADO DE CISTER NO DOURO
Geraldo Amadeu Coelho Dias, OSB
Cister no Douro: Cultura, Espiritualidade e Desenvolvimento........................................................ 13
Luís Sebastian
Mosteiro de S. João de Tarouca: da investigação à musealização..................................................... 21
HISTÓRIA E PATRIMÓNIO
Manuel Real
O significado da basílica do Prazo (Vila Nova de Foz Côa), na alta Idade Média duriense.......................... 65
Ana Sampaio e Castro
Vias medievais nos coutos monásticos de S. João de Tarouca e Sta. Maria de Salzedas.......................... 105
Nuno Resende
«É esta Cidade situada a forma de uma lua crescente»: a implantação dos edifícios religiosos e a expansão urbanística de Lamego entre os séculos XVI e XVIII....................................................................... 125
ARQUEOLOGIA NO/DO DOURO
Susana Cosme
O contributo das pequenas 'villae' rústicas na economia e povoamento dos séculos IV-VII no Douro.......... 141
Paulo Dórdio
Investigação e desenvolvimento no Plano de Salvaguarda do Património do Aproveitamento Hidroeléctrico do
Baixo Sabor............................................................................................................... 151
Pedro Pereira
'De vino ac vineas' vinicultura romana no Vale do Douro........................................................... 173
António Sá Coixão
1980-2013 / 33 Anos de investigação arqueológica nos concelhos de Vila Nova de Foz Côa e Mêda........... 183
HISTÓRIA NO/DO DOURO
Carla Sequeira
A oposição à Ditadura Militar e Estado Novo na Região Duriense (1926-1949).................................. 193
Manuela Vaquero
O Tribunal da Inquisição de Lamego.................................................................................... 201
Gaspar Martins Pereira
Entre a Etnografia e a História: os romances durienses de Alves Redol........................................... 211
Otília Lage
Revoltas populares no Douro Vinhateiro (Carrazeda de Ansiães e Lamego), no início da I República: Significados
e representações sociais a partir da imprensa da época............................................................. 221
HISTÓRIA, PATRIMÓNIO E ACÇÃO LOCAL/REGIONAL
Teresa Soeiro
‘Requiem’ pelo património fluvial do Douro........................................................................... 233
Nelson Campos
PARM (Projecto Arqueológico da Região de Moncorvo) breve balanço de 30 anos de actividade em prol do património cultural algures no Douro Superior.......................................................................... 247
Alexandra Cerveira Lima
«Arquivo de Memória». Entre o Coa, o Águeda e o Douro Internacional.......................................... 261
Introdução
Luís Sebastian
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A
primeira edição das Conferências do
Museu de Lamego é a concretização de
uma aspiração: criar um espaço anual
de debate, partilha e divulgação da atividade científica desenvolvida em torno do território
duriense, com especial enfoque na área das ciências
sociais e humanas.
A opção estratégica adotada para a região do Douro, assumindo o Turismo Cultural como uma das principais áreas de desenvolvimento económico, acarreta
consequentemente a obrigatoriedade de a região possuir uma intensa atividade de investigação científica. O
Turismo Cultural, sobretudo dependente do património histórico, seja ele material ou imaterial, é apenas
possível se sustentado no profundo conhecimento do
território, dos seus imóveis e sítios históricos, das suas
tradições, e enfim, de toda a complexa multiplicidade
de fenómenos que constituem qualquer herança histórica, tanto mais rica quanto mais multifacetada e milenar, como é o caso da região dominada pelo rio Douro.
Como alicerce que é, da qualidade deste conhecimento base depende toda a qualidade da construção
da “história” que é narrada em cada ação ou suporte de
comunicação, do desdobrável ao livro, das exposições
às opções tomadas na conservação e musealização de
imóveis e sítios históricos.
A produção deste conhecimento assenta por sua vez
na capacidade de se conseguir desenvolver na, e para,
a região uma intensa e qualificada atividade científica
em áreas basilares, como sendo a História, História da
Arte, Arqueologia ou Etnologia. Bem mais diretas na
sua ação, áreas como as da Conservação e Restauro, ou
Arquitetura na sua vertente patrimonial, vivem de um
permanente aperfeiçoamento de soluções, técnicas e
materiais, apenas possível com investigação, para além
da óbvia e preciosa acumulação de experiências.
Assim, a criação de um espaço anual de debate,
partilha e divulgação científica, que aspira a tornar-se a longo prazo um espaço de referência a este nível,
impõe-se naturalmente como uma necessidade e uma
vantagem, pelo contributo que pretende dar ao incentivo e fomento dessa mesma atividade científica.
Mas não basta produzir conhecimento. Este é inútil
se não divulgado e disponibilizado atempadamente.
Não se tratando de uma área científica exata, todo o
conhecimento produzido está à nascença destinado a
desatualizar-se, pelo que a imediata e gratuita divulgação on-line das atas das conferências é uma preocupação indissociável desta iniciativa.
Atendendo por sua vez ao papel histórico e cultural central que Lamego sempre desempenhou na
região Duriense, e nesta, a posição que o Museu de Lamego assume, entende-se igualmente que este museu
se proponha a ser o palco anual de um encontro de
referência para a região do Douro.
Neste ponto, e nesta primeira edição, salienta-se
o carácter verdadeiramente regional da iniciativa, e a
forma como a cidade a soube fazer sua. Contando naturalmente com o apoio da Direção Regional de Cultura do Norte, instituição a que o Museu de Lamego se
encontra afeto, deve-se sobretudo ao apoio, antes de
mais, dos próprios cidadãos, organizados na Liga dos
Amigos do Museu de Lamego. A estes juntam-se as
instituições basilares na região - Diocese de Lamego e
o Município de Lamego –, as instituições de formação
superior da cidade – Escola Superior de Tecnologia
e Gestão e Escola de Hotelaria e Turismo do Douro
- Lamego –, mas também, e de forma especialmente
gratificante, empresas da região, diretamente ligadas
ao turismo, como o Hotel Lamego ou a Casa de Santo
António de Britiande, à indústria dos vinhos, como a
Quinta de Mosteirô, ou à área da comunicação, como a
Soltagiga. Para eles vai o nosso agradecimento.
Por fim, atendendo à preocupação inicialmente
formulada da qualidade da produção científica produzida, procuramos nesta primeira edição a colaboração
do Centro de Investigação Transdisciplinar Cultura,
Espaço e Memória (CITCEM), da Faculdade de Letras
da Universidade do Porto. Centro de investigação que
reúne o maior número de investigadores académicos
que na atualidade desenvolvem o seu trabalho sobre a
região duriense, impôs-se desde logo como o parceiro
óbvio. À sua direção e colaboradores agradecemos a
forma imediata como souberam fazer da mera ideia
um projeto seu.
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Mesa Redonda
O legado de
Cister no Douro
Geraldo Amadeu Coelho Dias, OSB
Luís Sebastian
Nuno Resende
Amândio Barros
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Cister no Douro:
Um suplemento de alma
e um novo dinamismo operacional
texto: Geraldo Coelho Dias, OSB/CITCEM
Resumo
A dimensão vital de espiritualidade que a observância conventual de Cister acarreta, veio dar um
suplemento de alma ao trabalho que a mesma observância exerce e exige, na medida em que, ele também,
ajudará à santificação da alma e não apenas ao sustento do corpo.
Assim, a Ordem de Cister veio trazer um suplemento de alma e de espiritualidade à região do Douro,
mormente à zona de Tarouca, bem como o estímulo
do trabalho e do enriquecimento agrícola.
Palavras-chave
Cister; Trabalho; Estilo gótico; Douro.
Abstract
The vital dimension of spirituality observed by the
Cistercian Order, brought a supplement of soul to manual labour – the kind of labour that is emphasised
and required by the Order –, to the extent that it will
also help the sanctification of the soul and not only the
sustenance of the body.
Thus the Cistercian Order has brought a supplement of soul and spirituality to the Douro region – especially to the area of Tarouca –, as well as the stimulation of labour and agricultural enrichment.
Keywords
Cister; Labour; Gothic; Douro.
S
audando-vos a todos vós, que tivestes a generosa ousadia de vir ouvir-nos, queremos,
desde já, afirmar-vos: a dimensão vital de
espiritualidade que a observância conventual de Cister acarreta, veio dar um suplemento de
alma ao trabalho que a mesma observância exerce e
exige, na medida em que, ele também, ajudará à santificação da alma e não apenas ao sustento do corpo.
Por sua vez, a Ordem de Cister veio trazer um suplemento de alma e de espiritualidade à região do Douro,
mormente à zona de Tarouca, bem como o estímulo
do trabalho e do enriquecimento agrícola. De facto, os
monges estimularam as populações no aproveitamento da terra e seus bens.
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Geraldo Coelho Dias
I - INTRODUÇÃO: ORIGEM DE CISTER
N
o século X, os monges de Cluny deram à
Regra de S. Bento um notável grau de institucionalização; a sua Ordem ganhara influência política e religiosa; em termos de mentalidade dominava mesmo a Cristandade. Alguns monges,
porém, sentiam a necessidade do regresso aos ideais
primeiros do monaquismo e mesmo à «literalidade»
da Regra de S. Bento. Nasceu, desse modo, a reforma
beneditina de Cister, sob a conduta de «três monges
rebeldes!» – Roberto, Alberico e Estêvão Harding1 –,
que, partindo do mosteiro beneditino de Molesmes,
arrancaram para a floresta pantanosa e erma de Cister. Foi assim que apareceu na Igreja de Cristo um
movimento carismático envolvente, guiado por ideais
de austeridade, interioridade, solidão, disciplina e trabalho, que iria restituir à velha cepa do monaquismo
novo alor e redobrado dinamismo.
Na verdade, foi a 21 de Março de 1089 que se fundou Cister, na Borgonha. Mas esse movimento talvez
não passasse duma bravata espiritual dos ditos três
monges rebeldes, se o espírito de Deus não tivesse conduzido para ali, corria o ano de 1112, o jovem fogoso
e idealista, Bernardo de Fontaines (1090-1153), com
29 familiares. Esta foi a irrigação fertilizante, o adubo
misterioso para o êxito da fundação nascente. Na verdade, quando Bernardo, abade de Claraval, morreu,
em 1153, os mosteiros cistercienses já eram 343 e estavam espalhados por toda a Europa. Com a sua mística entusiasmada para a construção na terra, através
dos mosteiros, duma «feliz visão de paz» («beata pacis
visio»), o dinâmico e lutador Bernardo, sempre que
«Deus estava em causa» na sociedade cristã, lá aparecia a ajudar o Papa, a estimular os reis, a dinamizar os
bispos, a entusiasmar os monges. Para ele, «fugir do
mundo» não era deixar a Igreja. Caso curioso e singular o deste monge, amante do silêncio e do retiro,
que, todavia, afirmava ousadamente «nós os monges
não devemos ficar mergulhados nos nossos pântanos,
como sapos que somos, e limitar-nos a coaxar»2. Por
isso intervém nos grandes problemas teológicos da
Igreja e nas questões políticas entre reis, faz apologia
contra os outros monges que criticam a visão de Cister,
combate a riqueza dos homens da Igreja, excomunga
1 RAYMOND, M. – Tres monjes rebeldes. Madrid: Ediciones Studium, 1956.
2 BERNARDUS Claravallensis – Epístola 48, 3. Cfr. «Obras completas de
S. Bernardo», VII, «Cartas». Madrid, 1990, 220.
os hereges, prega a Cruzada, escreve imensas cartas e
dá conselhos. Bernardo é um dinâmico cidadão da Europa Medieval, o «Doutor melífluo», embora, às vezes,
mais pareça destilar fel que mel. A sua acção promoveu, de forma determinante, o monaquismo cisterciense; é ela que explica o êxito de Cister.
Os seus mosteiros aproveitaram a evolução da arte
românica e construíram-se ao gosto do estilo gótico
incipiente; alguns deles ficaram como exemplares paradigmáticos daquele estilo arquitectónico que, alguns,
exageradamente, chamam «estilo cisterciense» ou «estilo Bernardino»3: Claraval, Fontenay, Sénanque, Thoronet, Casamari, Fossanova, Poblet, Alcobaça, para só
enumerar estes que, ainda hoje, causam admiração e
atraem turistas, são Património da Humanidade.
De maneira geral, os historiadores entusiasmam-se, sublinhando e estudando os aspectos mais salientes do sucesso de Cister, pondo o assento particularmente na arquitectura, acentuando o trabalho manual
com autêntico desenvolvimento agrícola, sobretudo
com as granjas trabalhadas pelos monges conversos,
e relevando a espantosa, senão mesmo taumatúrgica,
difusão dos mosteiros e acréscimo de monges. Qual,
então, a chave ou o segredo de tal sucesso? O arrojo, a
capacidade, a disciplina dos cistercienses? Sem dúvida,
mas, por trás de tudo isso, estava uma espiritualidade dinâmica, assente na fidelidade à Regra de S. Bento
dentro do rigor da literalidade e que, sobretudo, se traduzia por uma mística apaixonada e dinâmica, baseada no perfeito seguimento de Cristo.
É toda essa epopeia de espiritualidade e de arte,
de religião e de cultura, que o belo livro da jovem e
entusiasmada arquitecta portuguesa Ana Maria Martins procura trazer à colação e dar a conhecer ao nosso
povo, que, hoje, parece totalmente esquecido do que
foi Cister e do que deve aos monges cistercienses. Nesse sentido, o livro faz uma artística viagem pelos mosteiros cistercienses portugueses. A cultura e a arte precisam, não há dúvida, de espíritos assim, abertos, sem
preconceitos, mas apaixonados pelo estudo da arte, da
cultura, da religião, aquilo, enfim, que emblematiza,
dignifica e enobrece uma sociedade.
3 KINFRT, Terryl N. – L’Europe cistercienne. Zodiaque, 1997 (Tradução
do Inglês); LERROUX- DHURS, Jean-François – Las Abadias Cistercienses.
História y Arquitectura. Colonia: Koesemann, 1999 (Tradução do francês);
TOBIN, Stephen – Les Cisterciens. Moînes et monastêres. Paris: Cerf, 1995;
MARTINS, Ana Maria – Arquitecturas de Cister em Portugal. A actualidade
das suas reabilitações e a sua inserção no território. Universidad de Sevilla.
Departamiento de História, Teoria y Composición Arquitectónicas, 2011, 3
vols. (Tesis doctoral); OSSWALD, Walter – Mosteiros Cistercienses em Portugal. Pequeno roteiro. Porto: Edições Afrontamento, 2012.
Cister do Douro
II - A NOVIDADE DE CISTER
O
Mosteiro Novo, Cister, tinha sido fundado em 21/III/1098. Fazendo, agora, o
seu estudo, os historiadores são levados a
concluir que, na Europa, pelos anos de 1153, aquela
ordem religiosa marcava uma novidade e um sucesso
assinaláveis na Igreja Católica e no mundo cristão europeu. Nesse ano de 1153, os mosteiros cistercienses
eram, como referimos, 343 e, ao findar do século XII,
contavam-se 525 abadias. Estes índices de crescimento
pareceram tão exagerados, já ao tempo, que o Capítulo
Geral da Ordem, em 1152, até proibiu novas fundações, sem dúvida levado pelo princípio de que «quem
muito abarca pouco aperta».
Administrativamente, os mosteiros eram autónomos, mas os Capítulos Gerais da Ordem, realizados
todos os anos em Cister, impuseram uma visita anual e
determinaram uma tal qual uniformidade, que propiciava uma verdadeira unidade de disciplina e de acção.
S. Bernardo, o dinâmico e contemplativo abade de
Claraval, tornara-se um cidadão da Europa Medieval,
como já referimos anteriormente, aconselhando Papas, assistindo bispos, dirigindo reis, pregando a Cruzada, combatendo hereges. Ele foi, indiscutivelmente,
a mais-valia de Cister a ponto de o seu discípulo de
Claraval, Bernardo Paganelli, se ter tornado Papa com
o nome de Eugénio III (1145-1153).
Por último, depois de alguma resistência e hesitação, permitira-se a fundação de mosteiros femininos,
que abriam às mulheres o ideal de perfeição proposto
para os monges. O mosteiro de Tat, na Bretanha, França, em1123, foi o primeiro mosteiro feminino a abraçar a disciplina e observância cistercienses.
A data de 20 de Agosto de 1153 assinala a morte
de S. Bernardo de Fontaine ou Claraval, abade duma
das últimas abadias mães cistercienses (1115), depois
de Cister, La Ferté, Pontigny e Morimond. Aquele ano
de 1153 é, portanto, uma espécie de termómetro de
aferimento para avaliarmos o que distingue Cister de
Cluny, donde se separara, e para ajuizarmos do resultado da obra dos três «monges rebeldes», que fundaram Cister e lhe deram alma.
Duma maneira geral, os historiadores entusiasmam-se, sublinhando e estudando os aspectos mais
salientes deste sucesso, a partir do afinco ao trabalho e
do sucesso na construção artística. Façamos a análise
do sucedido.
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III - IMPORTÂNCIA DOS IRMÃOS LEIGOS
P
onto marcante e fundamental foi aquele em
que a ordem recusou ter servos a trabalhar
pelos monges, e isso foi tão decisivo que levou à aceitação e criação dos irmãos conversos ou leigos, reconhecidos como verdadeiros monges. Eles cultivariam terras, amanhariam granjas, apascentariam
rebanhos, plantariam vinhas, fabricariam ferramentas,
construiriam mosteiros.
Com eles, a Ordem de Cister seria auto-suficiente. Uma espécie de fundamentalismo, todavia, no que
toca ao trabalho manual, prescrito pela Regra, acabaria por levar os cistercienses à auto-suficiência e à
abastança no sustento dos seus mosteiros. Mantendo
o voto de estabilidade, típico da Regra beneditina, e
procurando fugir à tentação de viver à custa de dádivas, Cister conservaria o princípio da propriedade comunitária de bens, podendo o terreno da fundação ser
cedido por um rei ou um nobre, mas, depois, pelo seu
trabalho, os monges deveriam ser garantes do seu próprio sustento. Não poderiam, por isso, aceitar dádivas
de dinheiro, não teriam servos a trabalhar em sua vez,
nem administrariam paróquias ou outros benefícios
eclesiásticos donde colhessem bens de estola ou pé de
altar. Vestir-se-iam de burel rude, mesmo por tingir
e, portanto, esbranquiçado (daí o nome de «monges
brancos», para os distinguir dos cluniacenses «monges negros»), não comeriam carnes nem beberiam
vinho, mas eles próprios, «com o suor do seu rosto»
(Gn. 3,19) cultivariam as suas terras, amanhariam os
campos e granjas semeando os cereais, plantariam as
hortas e vinhas, apascentariam os rebanhos, fabricariam as ferramentas, construiriam os seus mosteiros e
casas. Para melhor poder fazer a harmonia da oração
e do trabalho, Cister iria abrir-se ao grupo dos laboratores, criando, como dissemos, a classe dos irmãos
conversos ou leigos, barbati, não dedicados ao culto
divino propriamente dito e, por essa razão, mais livres
e disponíveis para trabalhos manuais. Esta seria uma
das grandes descobertas de Cister e isso explicará o
êxito económico desta empresa que recusa, à partida,
as dádivas e esmolas dos senhores feudais.
O serviço nas famosas granjas ou quintas cultivadas directamente pelos conversos, mesmo à distância dos mosteiros, permitiriam a independência
dos monges face ao poder económico dos senhores e
possibilitariam o sustento dos mosteiros. Além disso,
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Geraldo Coelho Dias
Cister recusou as dádivas de terras e heranças de bens,
evitando, assim, uma espécie de hipotecagem do seu
monaquismo aos interesses e políticas dos grandes
senhores feudais. Por outro lado, não administravam
paróquias, nem recebiam benefícios eclesiásticos. Por
isso, a recusa de benesses temporais ajudava e forçava a necessidade do trabalho dos monges, dando-lhes,
contudo, a liberdade da independência económica.
Nos primeiros cem anos de fidelidade e fervor, foi
com estes elementos de defesa, que se afirmou a Ordem de Cister. Uma espécie de ânimo guerreiro, de
cavaleiresca nobreza, como queria S. Bernardo, devia animar aqueles monges, autênticos milites Christi.
Valeria a pena aqui recordar aquele animoso texto da
1ª carta, dirigida ao sobrinho, que tinha querido esquivar-se ao rigor de Cister trocando-o pela suave observância de Cluny. Como seria importante recordar
o texto em que fala do exemplo activo de seu irmão
carnal, Gerardo, falecido em 1143: «Não era somente
o maior nas coisas grandes, mas também nas pequenas. Por exemplo, quem superou a perícia de Gerardo nos edifícios, nos campos, nas hortas, nas águas e,
finalmente, nos ofícios e trabalhos dos camponeses?
Digo, em coisas desse género, escapava alguma coisa
à sagacidade de Gerardo? Com facilidade era mestre
de pedreiros, ferreiros, agricultores, hortelãos, sapateiros, tecelões. Embora na opinião de todos fosse o mais
experimentado, só nos seus olhos não era experimentado»4.
Aqui poderíamos recordar o testemunho do historiador beneditino do século XIII, Odalrico Vital, e
o estudo profundo de Terryl Kinder e outros contemporâneos, que bem provam a dimensão laboral dos
primitivos cistercienses. Depois, bem depois, com a
mística inicial já mortiça, Cister caiu na normalidade
de qualquer instituição.
IV - A ARTE DA CONSTRUÇÃO E A ESPIRITUALIDADE DO GÓTICO
A
arte gótica não é uma novidade introduzida por Cister, mas um aproveitamento de
contemporaneidade e espiritualidade. De
facto, dentro do trabalho manual dos cistercienses,
não podemos deixar de exaltar a arquitectura e a arte
4 BERNARDUS Claravallensis – Sermones in Cantica Canticorum. Sermo XXVII: Obitum fratris Gerardi luget. In «PL», 183, 903-911; Cfr. «Obras
Completas de S. Bernardo», V, 364-386, nº 7, 376-377.
de estilo gótico que, posteriormente, os cistercienses,
por causa daqueles arcos em ogiva, como mãos erguidas, cultivaram com esmero e até religiosidade nos
seus mosteiros, a ponto de lhe chamarem a arte bernardina.
Estabelecendo o estilo inicial de vida cisterciense, a
«Carta Caritatis» seria como que a Constituição da Ordem e os «Instituta» determinados pelo Capítulo Geral
de 1134 seriam a determinação concreta do ideal e da
disciplina. Por essa altura, já S. Bernardo emprestava
à Ordem Cisterciense a mais-valia do seu dinamismo
apostólico e a doutrina da sua mística e espiritualidade
incomparáveis. Tenham-se presentes a «Apologia», os
entusiasmantes 86 sermões sobre o Cântico dos Cânticos, as excitantes e empolgantes 426 cartas, etc. Se
a sua propaganda inflamou a Europa para a segunda
Cruzada em Vézelai, em 1145, como é que este santo
monge não havia de atrair e empolgar os seus irmãos
de hábito e de fervor no Reino de Deus e de Jesus Cristo? Claro que os monges de Cister deram o contributo
do seu trabalho e da sua consagração; eles foram o instrumentum conjunctum da acção divina; mas, no plano
humano do ideal, a mística que os animava e a espiritualidade que os movia foram o carburante dessa gesta
que se propagou incandescente na Europa do século
XII «como centelha num canavial» (Sab. 3,6).
Vejam o rasto do trabalho na agricultura e na vinha que os cistercienses nos deixaram. Por isso é que
o turismo moderno, mesmo em Portugal, procura restaurar os roteiros cistercienses, levar-nos a admirar o
trabalho artístico-arquitectural das suas abadias, o incentivo das suas granjas de cultura e de vinha!
Por último, analisemos um pouco a obra das construções monásticas, a que os estudiosos modernos,
historiadores e arquitectos, são mais sensíveis para
realçar o êxito de Cister. Inicialmente, eram os próprios monges que construíam os seus mosteiros e igrejas, geralmente em madeira. É óbvio que, entre eles,
houve gente capaz: arquitectos, artistas, operários.
Disso temos vários testemunhos desde S. Bernardo,
que aponta até o próprio irmão carnal, Gerardo, falecido em 1143, a quem fez um grande elogio, como
vimos.
No princípio, tudo era pequeno e pobre. S. Bernardo, só em 1135, depois de estabelecidos os «Instituta»,
é que se rendeu às insistências do seu prior para construir nova igreja, onde se pudesse desenrolar convenientemente a vida litúrgica da comunidade.
De facto, inicialmente, Cister, na ânsia de simplici-
Cister do Douro
dade e rigor, suprimira todas as orações comunitárias
supra-rogatórias de Cluny, que tinham tornado demasiado pesada a celebração do Ofício Divino (Ofício
dos Defuntos, Salmos familiares ou pelos familiares,
e até as missas privadas). Por isso é que o abade Hugo,
cluniacense de Reading, respondendo à «Apologia» de
S. Bernardo, ironizava, dizendo que os cistercienses
queriam aproveitar o tempo para dormir: «Para uma
noite mais profunda, o dormir pode, com certeza, ser
tranquilo, porque, a matinas, apenas se devem ruminar os pouquinhos salmos, que a Regra prescreve, e
nada mais. Os salmos pelos familiares, os ofícios pelos
defuntos e, finalmente, as gloriosas cantilenas, que a
Igreja conserva, não são cantados, e, uma vez recitados
os poucos e raríssimos salmos, consumis quase toda
a noite a dormir»5. Na realidade, só aos Domingos e
Dias Santos é que alguns deles vinham ao seu mosteiro
e só comungariam 12 vezes por ano. Nos tempos de
aperto de trabalhos agrícolas, todos partiam a ajudar
e, na Eucaristia, só tomavam parte os que estavam no
mosteiro ou os doentes, prática que S. Bernardo justificava distinguindo a «caridade da verdade» (caridade
afectiva: amar a Deus) e a «verdade da caridade» (caridade efectiva: servir o próximo).
Dentro deste espírito de trabalho, impõe-se voltar
a sublinhar que, ao contrário de Cluny, vigorava entre
eles a recusa das dádivas de terras e heranças, evitando, assim, a referida hipotecagem do seu monaquismo
aos interesses e políticas dos grandes senhores feudais.
A recusa de benesses temporais ajudava e forçava a
necessidade do trabalho dos monges, dando-lhes a liberdade da independência. Era desta maneira que eles
queriam entender a Regra de S. Bento à letra («Literalitas/Puritas/Rectitudo Regulae»). S. Pedro Damião6
dizia que quase andavam esquecidos do «pondus diei
et aestus», isto é, do peso do dia e do calor (Mt. 20,12)
com que tinham de ganhar o pão de cada dia.
Este afinco ao trabalho é, pois, o ponto de partida
para outros motivos que nos ajudam a compreender o
sucesso deste novo modo de viver o monaquismo.
5 Apud WILMART, A. – Une risposte de l´ancien monachisme au manifeste de S. Bernard. «Revue Bénédictine», 50 (1984), 335s.
6 PETRUS DAMIANI – Epístola V. In «PL» cxlv, 380.
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V - CISTER EM PORTUGAL E NO VALE DO
RIO DOURO
A
perda dos documentos dos princípios de
Cister no nosso país, no incêndio do Seminário de Viseu, em 1848, fez com que a
origem histórica dos cistercienses em Portugal ande
bastante nebulosa e envolta em lenda, como prova
Miguel de Oliveira7. Mas é toda uma epopeia de espiritualidade e de arte, de religião e de cultura, como sublinha o monge precursor dos estudos históricos sobre
os cistercienses em Portugal, D. Maur Cocheril, nos
seus vários escritos, que um recente guia do Doutor
Walter Osswald muito bem aproveitou.
Cister chegou relativamente tarde a Portugal, no
ocidente europeu, que S. Bernardo considerava uma
«terra longínqua», mas também aqui foi influente, barroquizando-se embora com os ouropéis da arte. Hoje,
os seus mosteiros estão quase todos em ruínas, e até já
nem têm monges. Em resumo, também, aqui, o sucesso de Cister conheceu o triste ciclo da morte, embora
permaneça firme e estável essa maravilha de arte que é
o Mosteiro de Alcobaça!
Para além da estéril discussão, histórico-lendária,
acerca da prioridade Lafões-Tarouca e da figura emblemática de Fr. João Cirita, melhor diria «eremita»,
não há dúvida que é à volta da região de Tarouca, cercana de Lamego, que a Ordem de Cister emerge entre
nós8. E, hoje ainda, por lá estão as ruínas dos mosteiros
de Tarouca, Salzedas, com todo o problema da igreja
velha, e ainda os de S. Pedro das Águias e de Santa Maria de Aguiar.
Pode-se, com relativa ousadia, afirmar que o mosteiro de Tarouca é o primeiro da Ordem de Cister a
estabelecer-se em Portugal, tendo recebido carta de
couto do rei D. Afonso Henriques, em 1140. Teria
havido ali antes monges beneditinos? Não me parece
provável, quando muito, talvez uma pequena Tebaida
de eremitas.
As origens do mosteiro cisterciense de Tarouca
perdem-se em pequenas historietas encontradas no
cartório, quando ainda existia e foi manuseado por
7 OLIVEIRA, Pe. Miguel de – Origens da Ordem de Cister em Portugal.
«Revista de História». Coimbra, tomo V (1951), 317-353; MARQUES, Maria Alegria – Estudos sobre a Ordem de Cister em Portugal. Lisboa: Edições
Colibri/Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra, 1988.
8 Cister no Vale do Douro. Porto: Ed. Afrontamento/GEHVID, 1999;
COCHERIL, D. Maur – Routier des Abbayes Cisterciennes du Portugal. Paris: Fundação Calouste Gulbenkian/Centro Cultural Português, 1978.
18
Geraldo Coelho Dias
monges e estudiosos. Infelizmente toda a documentação se perdeu no incêndio do Seminário de Viseu, em
1848, pelo que não a podemos controlar. A lenda de
João Cirita e dos oito monges enviados por S. Bernardo, que nos foi transmitida por Fr. António Brandão
(Livro das Doações - 1º, 2º, 3º, 4º docs.) e que está reproduzida nos azulejos da actual capela-mor, não passa disso mesmo.
Provável é que o mosteiro tivesse origem num eremitério anterior, e disso parece prova o padroado de S.
João, e por volta de 1140 assumisse a Regra Beneditina
segundo a observância de Cister; pelo menos é isso que
podemos deduzir do confronto entre os documentos
de 1140 e 1145, quando, expressamente, se refere a observância de Cister. Um documento de 1147 já fala de
dois monges de Claraval: «Fratres claravalenses. Prior
eorum in Taurauca comorantes». A partir daí, o mosteiro cresceu e alargou-se, inclusive, com a dádiva por
D. Afonso Henriques do couto de Santa Eulália (Abril
de 1144), junto à foz do Douro, importante por causa
do peixe e do sal, que os monges precisavam. Entretanto, na região, os monges iam trabalhando campos e
granjas. E foi essa a mais-valia que eles vieram trazer à
região. Disso, aliás, no tempo do abade Geraldo (11631170), provieram os bens e as várias granjas, onde, ao
longo dos tempos, fabricavam o vinho, tão abundante
e precioso na região. A bula «Quoties illud», do Papa
Alexandre III, emitida em 4/VI/1163, tomou os monges de Tarouca sob a sua protecção, inseridos na abadia-mãe de Claraval, e confirmou os bens recebidos.
Almeida Fernandes9 foi o primeiro investigador
que tentou inventariar as granjas e propriedades rurais
dos primórdios da Ordem naquela zona de Tarouca,
os seus edifícios e as suas culturas, sobretudo de trigo
e vinho e que foram conseguidas por doações ou aquisições. Recentemente, outros estudiosos têm desenvolvido o tema. Assim, podemos referir os trabalhos de
Maria do Céu Simões Tereno10, que, para Tarouca, fala
de granjas em Mondim da Beira, Almofala, Granjinha,
Arcas, Sever, Souto Redondo, Alvite, Leomil e Quinta
do Granjão, dando importância ao Celeiro de Mondim de Baixo. A mesma autora indica para Salzedas as
granjas da Quinta do Pinhô, antiga granja de Cimbres,
Granja da Ucanha, perto do achado arqueológico do
que teria sido a primitiva implantação da abadia, etc.
Poder-se-ia ir mais longe, mas este trabalho teve, sobretudo, a preocupação de apresentar uma perspectiva
geral da implantação cisterciense nesta zona.
Poderíamos ainda referir granjas esquecidas do
mosteiro de Santa Maria de Aguiar, como a do Cibrão,
a de Tourões ou La Sacristia.
E numa visão mais alargada não deixaríamos de falar da exploração feita pelo mosteiro novo de S. Pedro
das Águias, que, hoje, é um bom exemplo de exploração vinícola.
Quanto ao estudo da vinha e do vinho, há um trabalho de síntese devido a Maria Amélia Albuquerque11. Segundo esta investigadora, os monges prepararam terrenos, ergueram quintas, introduziram novas
técnicas de tratamento, trouxeram novas castas, numa
palavra, activaram no Douro o cultivo da vinha, aquilo
que, hoje, honrosamente, constitui o Douro como Património Mundial da Humanidade.
Em relação ao mosteiro de S. João de Tarouca, a
grande quinta produtora de vinho era a Quinta do
Mosteiro, na foz do rio Varosa, que, à altura da extinção das ordens religiosas, tinha 118 pipas de vinho no
valor de 300.000 réis. Junto a esta, o mosteiro possuía
ainda a vinha da Formiga e a vinha do Bacelo.
Ao mosteiro de Salzedas pertenciam as grandes
quintas da Folgosa, chamada, hoje, Quinta dos Frades, e a de Monsul, ambas situadas pouco acima do
rio Douro na margem esquerda. Em Monsul, que, de
há muito, está na posse da família Archer de Carvalho,
vimos nós grande quantidade de documentação, já de
tempos antigos, que, do ponto de vista cultural, bem
valeria a pena ser estudada.
É evidente que muito do vinho era para venda, pois
o universo dos monges, conforme os índices dos mosteiros ao tempo da expulsão de 1834, sendo numeroso,
não conseguiria bebê-lo todo.
Termino, pois. Aqui têm, os caros amigos, como os
humildes e laboriosos monges de Cister, procurando
uma vida espiritualmente empenhada, não deixaram
de cultivar e desenvolver estas terras agrestes mas fecundas do Douro. E venham lá, agora, os próceres da
democracia republicana, ufanos e vingativos, dizer que
os «frades eram preguiçosos, calaceiros e parasitários»!
9 FERNANDES, A. Almeida – Acção dos monges cistercienses de Taroucas. «Revista de Guimarães», 83 (1973), 37-51.
10 TERENO, Maria do Céu Simões – Granjas dos Coutos dos Mosteiros de
Tarouca e Salzedas. In «Tarouca e Cister. Homenagem a Leite de Vasconcelos». Tarouca, 2004, 261-285.
11 ALBUQUERQUE, Maria Amélia – A vinha e o vinho nos Mosteiros
Cistercienses do Douro. In «IV Congreso Internacional sobre El Cister en
Portugal y en Galícia. Actas». Ourense, 2009, tomo I, 215-223.
Mosteiro de S. João de Tarouca:
Da investigaçção à musealização
texto: Luís Sebastian - Museu de Lamego / DCRN
([email protected])
Palavras-chave
Monastery of S. João de Tarouca (Portugal); Cister;
Investigation; musealization
Resumo
O mosteiro masculino cisterciense de S. João de Tarouca foi fundado em 1140. Extinto em 1834, as suas
dependências monásticas foram vendidas em hasta
pública, sendo estas reaproveitadas como pedreira e
quase totalmente desmanteladas. Monumento Nacional desde 1956, foi sujeito a uma intensiva escavação
arqueológica entre 1998 e 2007, da responsabilidade
do agora extinto Instituto Português do Património
Arquitetónico (IPPAR). Já em 2008, pela mão da Direção Regional de Cultura do Norte, é integrado num
projeto de abrangência regional centrado no Vale do
Rio Varosa, subsidiário ao Vale do Rio Douro, Património da Humanidade, numa rede de monumentos
abertos de forma integrada à fruição pública, tendo
ainda por núcleo principal o Mosteiro de Santa Maria
de Salzedas e o Convento de Santo António de Ferreirim. Em curso desde 2009, este projeto encontra-se em
avançado estado de realização, com a recuperação do
edifício da igreja e a musealização da área arqueológica do Mosteiro de S. João de Tarouca já concluídas.
Palavras-chave
Mosteiro de S. João de Tarouca (Portugal); Cister;
Investigação; musealização
Abstract
(812 de 750 caracteres)
The male Cistercian monastery of S. John Tarouca
was founded in 1140. Closed in 1834, its monastic dependencies were sold at auction, which are reused as
a quarry and almost completely dismantled. National
Monument since 1956, was subjected to intensive archaeological excavation between 1998 and 2007, the
responsibility of the now defunct Instituto Português
do Património Arquitetónico (IPPAR). In 2008, by the
hand of the Direção Regional de Cultura do Norte, is
part of a region-wide project centered in Vale do Rio
Varosa, subsidiary to the Douro River Valley, a World Heritage Site, a network of monuments seamlessly
open to public enjoyment, with an extra main core of
the Monastery of Santa Maria Salzedas and Convent
of Santo António Ferreirim. Ongoing since 2009, this
project is in an advanced state of completion, with the
recovery of the church building and musealization the
archaeological area of the Monastery of S. John Tarouca already completed.
Key-words
Monastery of S. João de Tarouca (Portugal); Cister;
Investigation; musealization
22
Luís Sebastian
“Mosteiro de S. João de Tarouca:
da investigação à musealização12”
1. INTRODUÇÃO
O
Mosteiro de S. João de Tarouca, pertencente à Ordem de Cister, foi fundado em
1140, tendo a sua construção sido iniciada em 1154. Com a extinção das ordens religiosas em
Portugal em 1834, o recheio do mosteiro é vendido em
hasta pública, tal como os edifícios das dependências
monásticas, sendo a sua biblioteca e cartório depositados no Seminário de Viseu, onde viriam a desaparecer
durante um incêndio em 1841.
Após a sua venda, os edifícios correspondentes
às dependências monásticas foram reaproveitados
como pedreira, tendo sido totalmente desmantelados
os edifícios medievais e boa parte dos edifícios de século XVII e XVIII. O edifício correspondente à igreja
conservou-se graças ao facto de ter sido convertido em
igreja paroquial.
Tendo esta sido classificada Monumento Nacional
em 1956, apenas em 1978 esta proteção foi estendida
a toda a área monástica. Sucessivamente afeto à Direção Geral de Edifícios e Monumentos Nacionais
(DGEMN), Instituto Português do Património Cultural (IPPC), Instituto Português do Património Arquitetónico e, desde 2007, à Direção Regional de Cultura do Norte, o Mosteiro de S. João de Tarouca foi
inicialmente inserido em 1996 num abrangente plano
de recuperação e valorização de complexos monásticos cistercienses, por altura da comemoração dos
900 anos da Ordem de Cister. É neste âmbito que a
sua escavação arqueológica se inicia em abril de 1998,
estendendo-se até novembro de 2007, tendo durante
este período contado com uma equipa de investigação
permanente constituída por uma dezena de técnicos da
área da arqueologia e conservação e restauro.
Já em 2008, a Direção Regional de Cultura do Norte propõe-se integrar o Mosteiro de S. João de Tarouca
num projeto de abrangência regional centrado no Vale
do Rio Varosa, subsidiário ao Vale do Rio Douro, Património da Humanidade, numa rede de monumentos abertos de forma integrada à fruição pública, ten12 Este texto é uma versão atualizada da comunicação intitulada “Mosteiro de S. João de Tarouca, Projecto de Requalificação: 1998-2010”, apresentada no ”Congresso Património 2010”, realizado na Faculdade de Engenharia do Porto nos dias 14-16 Abril de 2010, organizado por esta e pela
Direção Regional de Cultura do Norte.
do ainda por núcleo principal o mosteiro masculino
cisterciense de Santa Maria de Salzedas (Tarouca) e o
convento masculino franciscano de Santo António de
Ferreirim (Lamego). Realizado o estudo preparatório nesse mesmo ano, em abril de 2009 é apresentada
candidatura à linha de financiamento europeia ON2
– Douro Infraestrutural. Tendo esta sido contemplada
com o solicitado financiamento, em novembro de 2009
iniciam-se as primeiras obras no âmbito deste projeto,
incidindo exatamente sobre a igreja do Mosteiro de S.
João de Tarouca, para em agosto de 2012 voltar a ser
alvo de intervenção, desta feita com a musealização da
área escavada arqueologicamente.
2. PROJETO DE REQUALIFICAÇÃO DO MOSTEIRO DE S. JOÃO DE TAROUCA: 1998-2013
O
acentuado estado de degradação do conjunto e a reduzida informação documental
levou a que o projeto de requalificação desenvolvido desde então se baseasse em grande medida
na componente arqueológica, passando pela escavação
exaustiva da totalidade da área correspondente ao núcleo central das dependências monásticas, compostas
pelos edifícios medievais.
Para além do natural papel desenvolvido pela Arqueologia no acompanhamento das ações de restauro
do edificado, a investigação arqueológica estendeu-se
ainda à paisagem e território, tendo a produção de
informação histórica tido em especial atenção o seu
aproveitamento como conteúdo de divulgação local –
centro interpretativo; musealização da área arqueológica - e remota – publicações; divulgação on-line.
Assim, se o projeto de recuperação do Mosteiro de
S. João de Tarouca teve sempre por principais vetores
a conservação, recuperação, valorização e divulgação,
a componente arqueológica teve como principais objetivos o diagnóstico prévio e acompanhamento das
ações de conservação e recuperação, a valorização do
conjunto pela produção de informação histórica e, por
fim, a potenciação e desenvolvimento de atividades
tendo por suporte a informação histórica produzida.
2.1. Zona Especial de Proteção: 1999
De forma a proteger a forte interligação entre o
mosteiro e a paisagem rural envolvente, não só pri1 - Zona Especial de Proteção do Mosteiro de S. João de Tarouca,
estabelecida em 1999 (Luís Sebastian sobre Carta Militar Portuguesa).
23
24
Luís Sebastian
mordial do ponto de vista visual, mas igualmente pelo
seu significado histórico, dado o importante papel destes cenóbios cistercienses no desenvolvimento agrícola
e populacional da região durante o período medieval,
foi estabelecida em 1999 uma vasta Zona Especial de
Proteção, demarcada segundo os limites de visibilidade (Figura 1).
2.2. Resgate do espaço monástico – aquisição
progressiva: 1996-2007
Tendo as dependências monásticas sido vendidas
em hasta pública a um só adquirente, a sua partilha
por herança durante várias gerações levou a que toda
a área interior da cerca de clausura se encontrasse dividida por dezenas de diferentes proprietários à altura
do início do projeto em 1996. Este facto impôs a necessidade de adquirir progressivamente todas as diferentes parcelas até, uma vez mais, se recuperar a integridade de toda a área de clausura. Este longo processo
de aquisições, iniciado ainda em 1996, prolongou-se
até 2007, faltando apenas a aquisição de duas parcelas
3 - Aspeto geral da torre sineira antes e depois da sua recuperação entre 1998 e 1999 (Humberto Vieira; Luís Sebastian).
2 - Área da cerca monástica progressivamente adquirida pelo
Estado Português entre 1996 e 2007 (Luís Sebastian).
para que todo o complexo monástico se encontre sob
a tutela do Estado Português (Figura 2).
2.3. Escavação e recuperação da torre sineira:
1998-1999
Dentro da componente de acompanhamento das
ações de conservação e recuperação do edificado, entre 1998 e 1999 procedeu-se ao registo prévio e acompanhamento do desmantelamento da torre sineira de
século XVIII, passando pela escavação do seu interior,
utilizado como zona de despejos de lixos domésticos,
destacando-se ao nível arqueológico a quantidade, va-
riedade e riqueza dos materiais exumados. A recolocação do campanário original resultou por sua vez não
só na recuperação total da estrutura, mas igualmente
na libertação da fachada da igreja, até então e desde
princípios de século XX parcialmente encoberta por
uma pequena torre sineira, improvisada a partir do
reaproveitamento do campanário da torre sineira de
século XVIII, agora recuperada (Figura 3).
2.4 Recuperação do interior da igreja: 1998-2004
Entre 1998 e 2004 decorreram diversas ações de
conservação e restauro do interior da igreja, incidindo sobre a pintura inserida nos diversos retábulos,
espaldares ou emolduradas individualmente; sobre o
mobiliário, com destaque para o arcaz da sacristia; a
cobertura azulejar e a pintura dos tetos da sacristia e
capela-mor (MONAR, 2002).
Ainda em 1998 foi iniciada a instalação do sistema
de drenagem de humidades sob o lajeado da igreja, incluindo calhas técnicas com o objetivo da total eliminação visual de cablagens elétricas. Iniciada na sacris-
Mosteiro de S. João de Tarouca
25
4 - Aspeto geral dos trabalhos de restauro da pintura do teto da capela-mor da igreja em 2004 (Luís Sebastian).
26
5 - Aspeto geral das ruínas monásticas antes da desmatação e limpeza em 1998 (José Eduardo Mendes).
tia, esta operação estender-se-ia em 2003 ao cruzeiro e
braços do transepto (Figura 4).
2.5 Desmatação e limpeza do interior da cerca de
clausura: 1998-2006
De acordo com o prosseguimento da aquisição das
diversas parcelas pelas quais se encontrava dividida a
área de clausura, procedeu-se à sua desmatação e limpeza entre 1998 e 2006, incluindo pontuais ações de
consolidação das ruínas, com destaque para as capelas
de século XVIII de Santo António e Santa Umbelina
(Figura 5 e 6).
6 - Aspeto geral das ruínas monásticas após a desmatação e limpeza entre 1998 e 2006 (Ana Castro).
27
2.6 Limpeza e consolidação do “Aljube”: 2004 /
2006
Ligeiramente apartado do conjunto de edifícios
monásticos, o edifício popularmente designado de
“Aljube”, correspondente a uma monumental construção medieval de função ainda incerta, foi alvo de
desmatação e limpeza no ano de 2004. Em 2006 procedeu-se por sua vez ao desentulhamento do seu interior, seguido do reequilíbrio e consolidação das suas
paredes (Figura 7 e 8).
7 - Aspeto geral das ruínas do “Aljube” antes e após a sua desmatação e limpeza em 2004 (Luís Sebastian).
8 - Aspeto geral dos trabalhos de 2006 de desentulhamento do
interior do “Aljube”, reequilíbrio e consolidação de paredes
(Ana Castro; Luís Sebastian).
28
Luís Sebastian
2.7 Recuperação funcional do “Moinho do Convento”: 2006
Anexo ao “Aljube”, o localmente designado “Moinho do Convento”, com atividade documentada pelo
menos desde século XVII, foi alvo de restauro funcional em 2006, tendo-se reparado os dois mecanismos
de rodízio segundo a técnicas tradicionais da região
(Figura 9).
9 - Alguns aspetos gerais dos trabalhos de recuperação do
“Moinho do Convento” em 2006 (Luís Sebastian).
Mosteiro de S. João de Tarouca
29
2.8 Escavação arqueológica: 1998-2007
Contudo, e naturalmente, a escavação da área
correspondente às dependências monásticas originais absorveu a grande parte dos meios arqueológicos instalados no local. Constituindo-se uma equipa
permanente de 2 Arqueólogos, 1 Técnico Superior de
Conservação e Restauro, 2 Desenhadores Técnicos de
Arqueologia, 1 Assistente de Conservação, 3 Assistentes de Arqueólogo e 2 Operários de Arqueologia, esta
procedeu entre 1998 e 2007 à escavação de uma área
contínua superior a 3500m2, à qual se juntam 20 sondagens de avaliação prévia, acompanhamento e salvaguarda (Figura 10, 11 e 12).
10 - Alguns aspetos gerais da área de escavação arqueológica antes e depois da sua realização entre 1998 e 2007
(José Eduardo Mendes; Luís Sebastian).
Luís Sebastian
Mosteiro de S. João de Tarouca
31
12 - Planta geral da área de escavação arqueológica (Hugo Pereira & Luís Sebastian & Sílvia Pereira).
11 - Planta geral da área de escavação arqueológica – organização e desenvolvimento dos trabalhos (Luís Sebastian & Ana
Castro).
32
Luís Sebastian
13 - Sistema informático de armazenamento e gestão de informação “Arqueo”
– exemplo do armazenamento e gestão de informação cerâmica (Luís Sebastian).
Mosteiro de S. João de Tarouca
2.8.1 Escavação arqueológica: 1998-2007 – Indicadores de progresso
O enorme volume de espólio recuperado obrigou
ao correspondente esforço ao nível da sua limpeza,
consolidação, reintegração, inventariação, registo,
acondicionamento e estudo. Como indicadores, aponta-se a recolha de 395 moedas, 1.389 objetos metálicos,
1.434 elementos arquitetónicos e, em claro destaque,
um conjunto estimado de 300.000 fragmentos cerâmicos, com 140.473 fragmentos lavados, marcados
e inventariados, resultando em 4.714 peças reconstituídas, incluindo 389 ações de conservação e 106 de
restauro, com registo gráfico de 1.803 peças e fotográfico de 377. Este esforço de registo traduziu-se ainda
no desenho de 163 elementos arquitetónicos e 2.355
registos fotográficos. Ao espólio exumado devemos
ainda juntar a recolha de 293 amostras, abrangendo
materiais como cerâmica, argamassas ou vestígios orgânicos, tendo sido analisadas 92 amostras. No total, e
com base na informação reunida, foi possível desenvolver uma contínua atividade de divulgação dos trabalhos, com 21 participações em encontros científicos
e a publicação de 42 textos versando as mais variadas
temáticas dentro do universo em estudo.
2.8.2 Escavação arqueológica: 1998-2007 – Gestão de informação
De forma a armazenar e gerir o enorme volume
de informação produzido, foi desenvolvido desde
1998 um sistema informático composto por 14 bases
de dados inter-relacionadas, aperfeiçoadas em contínuo ao longo do desenrolar do projeto. Designado
por “Arqueo”, este sistema procurou assim organizar o
trabalho segundo um método célere, prático e versátil,
tanto quanto possível independente de suportes fixos e
materiais, que ao apoio à execução juntasse mais tarde
o apoio à gestão museológica13 (Figura 13).
13 CASTRO et al., 2004b.
33
2.9 Reconstituição arquitetónica
Um dos principais objetivos da investigação histórico-arqueológica passou pela reconstituição arquitetónica do complexo monástico, incluindo as suas
diversas alterações e ampliações posteriores à construção original de século XII-XIII.
2.9.1 Reconstituição arquitetónica – Recolha de
registos fotográficos: 2001-2006
Este processo de reconstituição integrou várias
abordagens metodológicas convergentes, tendo como
principal linha condutora os vestígios estruturais exumados pelas escavações arqueológicas. A primeira
abordagem complementar passou pela identificação e
reprodução de todos os registos fotográficos do imóvel, com especial atenção aos registos atribuídos aos
primórdios da fotografia em Portugal. Contando-se
felizmente a este nível com diversos registos pela mão
de alguns dos principais fotógrafos oitocentistas da
região Norte, esta recolha estendeu-se pelos anos de
2001-2006, tendo-se revelado uma importante fonte
de informação (Figura 14).
14 - Exemplo de registo fotográfico das ruínas monásticas nos
finais do século XIX (Casa de Fotografia Kymagem, Lamego).
34
Luís Sebastian
15 - Aspeto do levantamento gráfico de pormenor da igreja realizado entre 2001 e 2003 – fachada da igreja (Hugo Pereira).
2.9.2 Reconstituição arquitetónica – Levantamento gráfico de pormenor da igreja: 2001-2003
Vital no estudo do edifício da igreja do mosteiro,
único totalmente conservado da construção original,
procedeu-se ao seu levantamento gráfico de pormenor
entre os anos de 2001 e 2003. Para o efeito desenvolveu-se um método híbrido entre o desenho técnico de
arqueologia clássico, manual, mas com recurso a medições laser de estação total, e o desenho informático
vetorial, resultando em margens de erro reduzidas e
um formato final versátil e reeditável e constantemente atualizado de acordo com o desenvolvimento dos
trabalhos. Assim, o ano de término do levantamento
corresponde apenas ao registo total do edifício à data,
não deixando nunca de ser complementado com nova
informação produzida por sondagens arqueológicas,
acompanhamento de obras ou restauros, incluindo
mesmo o registo de todas as adições e subtrações realizadas nas diversas intervenções de recuperação e conservação do edifício desde 199814 (Figura 15).
14 SEBASTIAN et al., 2010; SEBASTIAN, 2012.
2.9.3 Reconstituição arquitetónica – Estudo gliptográfico: 2004-2005
Ao levantamento de pormenor do edifício da igreja
seguiu-se entre 2004 e 2005 o estudo das suas marcas
de canteiro, em contínuo alargado a toda a área das
dependências monásticas medievais, uma vez o adiantado estado das escavações já então o permitir. Na
realização deste estudo teve-se em conta não apenas
o levantamento das diferentes marcas de canteiro visíveis, mas a sua inventariação, numeração, registo e
inscrição em base de dados informática desenvolvida
para o efeito, permitindo a organização das diferentes marcas segundo a sua morfologia, técnica de talhe,
posição no edifício, tipo de elemento arquitetónico
marcado e tipologia, como marca de identidade ou de
posição. Deste estudo resultaram dados inéditos para
o cálculo do número de canteiros envolvidos no processo construtivo, relação familiar/profissional entre
canteiros, sua mobilidade – por comparação com outros monumentos na região –, ritmo e ordem de construção. De forma mais específica, as marcas de posição
revelaram-se especialmente importantes na reconsti-
Mosteiro de S. João de Tarouca
tuição do complexo medieval, sendo por vezes apenas
percetível a presença de vãos ou das alturas originais
dos alçados através destas, quando ainda conservadas15 (Figura 16 e 17).
15 CASTRO & SEBASTIAN, 2005a; CASTRO & SEBASTIAN, 2010b.
16 - Aspeto do registo de marcas de canteiro de identidade
(Ana Castro).
35
2.9.4 Reconstituição arquitetónica – Estudo petrográfico: 2005-2007
Entre 2005 e 2007 foi realizado o estudo petrográfico do mosteiro, tendo como principal ponto de partida
a análise exaustiva do alçado sul da igreja, tido como o
mais representativo da construção medieval. Este estudo foi realizado em colaboração com o Departamento
de Ciências da Terra da Universidade de Coimbra, no
âmbito da tese de mestrado “Alçado sul da igreja do
Mosteiro Medieval de São João de Tarouca: caracterização e proveniência dos materiais pétreos”, da responsabilidade da geóloga Catarina Alexandra Marques.
Foi assim possível identificar as diversas pedreiras
que forneceram o material pétreo à construção original e posteriores ampliações no século XVII e XVIII,
bem como as diferentes técnicas de extração, transporte, talhe, elevação e assentamento, desvendando
diferentes interrupções e ritmos de construção. Este
trabalho teve ainda como objetivo a identificação de
patologias ligadas à degradação dos diferentes tipos
de pedra e, consequentemente, o melhoramento das
ações conservativas16 (Figura 18, 19 e 20).
16 MARQUES, 2007; MARQUES et al., 2010a; MARQUES et al., 2010b.
17 - Exemplo de marca de canteiro de posição (realçada a vermelho) indicando a localização e dimensão do vão de ligação da cozinha ao refeitório (Luís Sebastian).
36
Luís Sebastian
18 - Localização das pedreiras identificadas (Catarina Alexandra Marques & Luís Sebastian).
Mosteiro de S. João de Tarouca
37
19 - Aspeto de silhar inacabado e abandonado no local de extração (Luís Sebastian).
20 - Aspeto do mapeamento petrográfico realizado ao alçado Sul da igreja
(Catarina Alexandra Marques sobre Hugo Pereira).
38
Luís Sebastian
21 - Aspeto do mapeamento das várias fases construtivas da igreja (Luís Sebastian sobre Hugo Pereira).
2.9.5 Reconstituição arquitetónica – Arqueologia da Arquitetura (igreja): 2003-2007
A abordagem convencionalmente designada de
“Arqueologia da Arquitetura” foi então aplicada ao
edifício da igreja entre 2003 e 2007, atendendo aos aspetos estilísticos, materiais e técnicos, não só da pedra,
mas inclusivamente das diferentes argamassas empregues (Figura 21).
2.9.6 Reconstituição arquitetónica – Estudo aritmológico e metrológico: 2007
Sobre as três abordagens anteriores juntou-se ainda
a análise aritmológica e metrológica do traçado medieval, atendendo àquele que deveria ter sido o plano
original e intencionado de acordo com as proporções
então tidas como corretas e sagradas, contraposto ao
produto final, no qual se registam desvios por motivos
de adaptação ao terreno ou mesmo por erro.
Toda a informação assim reunida foi por sua vez
cruzada com a documentação existente e comparada
com os paralelos históricos considerados mais próximos17 (Figura 22, 23, 24, 25 e 26).
17 SEBASTIAN & CASTRO, 2007; SEBASTIAN & CASTRO, 2009.
Mosteiro de S. João de Tarouca
39
22 - Análise aritmológica da planta medieval (Luís Sebastian).
40
Luís Sebastian
Mosteiro de S. João de Tarouca
41
24 - Aspeto da reconstituição da fachada original da igreja com sobreposição da aritmologia e metrologia que lhe serviu de base
(Luís Sebastian sobre Hugo Pereira).
23 - Aspeto do registo de elementos arquitetónicos exumados na escavação arqueológica
ou reaproveitados na construção das casas do burgo de S. João (Hugo Pereira).
24 - Aspeto da reconstituição da fachada original da igreja com sobreposição da aritmologia e metrologia que lhe serviu de base
(Luís Sebastian sobre Hugo Pereira).
26 - Planta geral do complexo monástico assinalando-se as
diversas fases construtivas (Luís Sebastian).
Mosteiro de S. João de Tarouca
43
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Luís Sebastian
25 - Aspeto da reconstituição da arcada do claustro com sobreposição da metrologia que lhe serviu de base
(Luís Sebastian).
Mosteiro de S. João de Tarouca
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2.9.7 Reconstituição arquitetónica - Cerâmica de
revestimento: 2003
Já em 2003, os diferentes revestimentos cerâmicos
foram alvo de estudo preliminar, com natural destaque para o azulejo. O desenvolvimento dos trabalhos
desde então não deixará de implicar futuramente uma
revisão das conclusões então retiradas, com a adição
de pelo menos mais dois grupos tipológicos de azulejos entretanto identificados18 (Figura 27).
2.9.8 Reconstituição arquitetónica - Campanário: 2002-2008
Com reflexo ainda na reconstituição do edificado,
em 2002 foram identificados e escavados vestígios de
século XIV da fundição local de um sino. Dado a raridade da ocorrência e o excecional bom estado de conservação dos mesmos, optou-se por um estudo aprofundado do tema, levando ao seu alargamento à região
e, em consequência, à identificação, estudo e classificação da extinta fundição de sinos da Granja Nova.
Deste esforço resultou ainda em 2005 a organização
da exposição “Sinos, a partir da fundição”, em colaboração com a Faculdade de Engenharia da Universidade do Porto, em articulação com o “3º Simpósio sobre
Mineração e Metalurgia Históricas no Sudoeste Europeu”, e a publicação em 2008 da obra “Subsídios para
a História da Fundição sineira em Portugal”19 (Figura
28 e 29).
18 CASTRO & SEBASTIAN, 2003b.
19 SEBASTIAN, 2006; SEBASTIAN, 2008; SEBASTIAN et al., 2008.
28 - Aspeto geral do fosso de fundição sineira escavado e fragmento de molde de sino com pentagrama
(Sérgio Pinheiro; Luís Sebastian).
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Luís Sebastian
Mosteiro de S. João de Tarouca
29 - Fotografia da fundição de sinos da Granja Nova ainda em
laboração na primeira década de século XX e registo fotográfico do forno de fundição ainda conservado
(MOREIRA, 1924: 29; Luís Sebastian).
27 - Planta de distribuição dos diferentes grupos tipológicos de
azulejos (Luís Sebastian).
47
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Luís Sebastian
2.10 Paleobiologia: 2005
Em 2005, tendo-se considerado que a escavação
arqueológica não iria permitir melhores recolhas de
enterramentos que os até então obtidos, procedeu-se
ainda ao estudo paleobológico dos vestígios osteológicos recuperados na sala do capítulo, correspondendo
na totalidade ao enterramento de abades. Este estudo
foi feito em colaboração com o Departamento de Antropologia da Universidade de Coimbra, fornecendo
informação ao nível etário, estatura, alimentação e patologias congénitas e derivadas da vivência monástica20 (Figura 30).
2.11 Arqueologia espacial: 1998-2007
Entre 1998 e 2007, paralelamente ao estudo do edificado, desenvolveu-se em contínuo o estudo da paisagem histórica – natural e antrópica –, procurando-se
definir estratégias de implantação, apropriação e estruturação do espaço por parte do Mosteiro de S. João
de Tarouca.
2.11.1 Arqueologia espacial: 1998-2007 - Arqueobotânica
Esta abordagem, inscrita no que podemos designar por Arqueologia Espacial ou da Paisagem, passou
pela recolha de amostras pedológicas sempre que as
condições ideais para a sua recolha se verificaram em
escavação, tendo-se mesmo realizado sondagens arqueológicas estrategicamente posicionadas de modo
a procurar a ocorrência de condições propícias a essa
recolha. A análise destas amostras, com especial incidência na polinologia e antracologia, permitiu reunir importantes dados arquebotânicos para a reconstrução da paisagem natural – cobertura vegetal – no
momento do início da construção do mosteiro e sua
evolução ao longo dos diferentes séculos, determinando-se igualmente a introdução de novas espécies vegetais, com naturais consequências ao nível da alimentação, sendo que para esta se realizaram ainda análises
arqueozoológicas de modo a determinar espécies animais consumidas21 (Figura 31).
30 - Registo fotográfico de enterramento na sala do capítulo
(Ivo Rocha).
31 - Registo de recolha de amostras pedológicas e esquema
de resultados polínicos (Ana Castro; Luís Sebastian).
20 SEBASTIAN et al., 2008/2009.
21 SEBASTIAN et al., 2008; QUEIROZ, 2012.
Mosteiro de S. João de Tarouca
49
Salzedas, uma perspectiva sobre a rede viária do couto
monástico” da responsabilidade do arqueólogo António Ginja, esta abordagem começou a ser estendida ao
couto monástico do Mosteiro de Santa Maria de Salzedas, sobranceiro ao couto do Mosteiro de S. João de
Tarouca, procurando-se assim alargar o estudo à totalidade do Vale do Varosa24 (Figura 32).
31 - Registo de recolha de amostras pedológicas e esquema
de resultados polínicos (Ana Castro; Luís Sebastian).
2.11.2 Arqueologia espacial: 1998-2007 – Análise
documental
A análise documental, auxiliada por prospeção dirigida no terreno, permitiu por sua vez determinar em
pormenor os limites do couto monástico e identificar
propriedades e granjas agrícolas pertencentes ao mosteiro22.
2.11.3 Arqueologia espacial: 1998-2007 - Inventário de património associado
A prospeção intensiva de toda a área do couto monástico permitiu consequentemente a identificação de
centenas de elementos históricos, como marcos, calçadas, pontes e pontões, levadas, capelas, cercas, alminhas, entre outros. De forma a armazenar e gerir todos
os dados reunidos, foi ainda desenvolvida uma base de
dados informática apelidada de “InventaPatrimónio”,
onde toda a informação foi concentrada de forma organizada e facilmente consultável23.
Já em 2008, em colaboração com o Instituto de
Arqueologia da Universidade de Coimbra, no âmbito
da tese de licenciatura “O Mosteiro de Santa Maria de
22 CASTRO & SEBASTIAN, 2005b; CASTRO & SEBASTIAN,
2008/2009; CASTRO & SEBASTIAN, 2010a.
23 SEBASTIAN, 2007.
24 GINJA, 2008.
50
Luís Sebastian
32 - Base de dados informática “InventaPatrimónio” (Luís Sebastian).
Mosteiro de S. João de Tarouca
3. INTEGRAÇÃO NO PROJETO “VALE DO
VAROSA”
3.1 Integração no Projeto “Vale do Varosa” –
Diagnóstico e plano preliminar de ação: 2008
Com a conclusão em 2007 do projeto iniciado em
1998 pelo antigo Instituto Português do Património
Arquitetónico, a Direção Regional de Cultura do Norte propôs-se em 2008 integrar o Mosteiro de S. João
de Tarouca num projeto de abrangência regional centrado no Vale do Rio Varosa, subsidiário ao Vale do
Rio Douro, Património da Humanidade, numa rede de
monumentos abertos de forma integrada à fruição pública, tendo ainda por principais núcleos o Mosteiro de
Santa Maria de Salzedas e o Convento de Santo António
de Ferreirim.
Nesse sentido, foi realizado em 2008 um “Diagnóstico e plano preliminar de ação”, passando pelo levantamento dos imóveis classificados e elementos de
valor histórico na região, tendo em atenção questões
como proteção legal, propriedade, estado de conservação, acesso, estacionamento e condições de abertura
ao público. A estes juntou-se a definição de percursos
pedestres a potenciar, intimamente ligados à paisagem natural e histórica, identificação de estruturas de
fruição operacionais, como museus, teatros, cinemas
e auditórios, estruturas de acolhimento, como postos
de turismo, unidades hoteleiras, turismos de habitação
ou rural, e restaurantes. A pré-existência de projetos e
roteiros em alguns pontos da região não deixou, naturalmente, de ser igualmente levada em consideração
(Figura 33).
3.2 Projeto “Vale do Varosa” – Candidatura ao
ON.2, Turismo Douro-Infraestrutural: 2009
Já em 2009, e no âmbito da apresentação de candidaturas à linha de financiamento ON.2 - o Novo
Norte, Programa Operacional Regional do Norte - Turismo Douro-Infraestrutural, a Direção Regional de
Cultura do Norte apresentou a candidatura “Vale do
Varosa”, com o intuito de instalar na região, subsidiária
ao Vale do Douro, nas áreas pertencentes aos concelhos de Tarouca e Lamego, uma rede de estruturas e
soluções segundo o conceito de “Território Histórico”,
numa estratégia integrada a nível regional beneficiando de uma elevada concentração de imóveis e elementos históricos de elevado interesse turístico-cultural,
permitindo otimizar investimentos e potenciar um
51
desenvolvimento turístico de conjunto em articulação
com o Douro Património da Humanidade, tendo na
sua fase inicial como núcleo monumental de destaque
o Mosteiro de S. João de Tarouca, Mosteiro de Santa
Maria de Salzedas e Convento de Santo António de
Ferreirim, procurando desenvolver e alargar o investimento já realizado nos três imóveis desde 1996.
Este conjunto de imóveis, constituindo há muito
e de forma espontânea o que podemos designar de
rede informal de monumentos da região do Varosa, abrangendo os concelhos de Tarouca e Lamego, e
aos quais se associa diretamente em termos regionais
o conjunto monumental da cidade de Lamego e seu
Museu, constitui um dos mais recorrentes percursos
de visita da Região Duriense interior, por eleição quer
de particulares quer mesmo por operadores turísticos
em atividade na região. Ao valor patrimonial intrínseco de cada um destes imóveis soma-se ainda a sua
íntima relação histórica, coerência enquanto conjunto
de fruição patrimonial e forte proximidade geográfica.
Ao valor patrimonial de conjunto sobrepõe-se ainda
uma forte componente paisagística, que aliada à proximidade geográfica contribui para uma consistente
imagem de coesão.
Os anteriores investimentos realizados ao abrigo de
candidaturas apresentadas ao IIIQCA, numa abordagem individualizada aos imóveis Mosteiro de São João
de Tarouca (POCultura), Mosteiro de Santa Maria de
Salzedas (PONorte) e Convento de Santo António
de Ferreirim (PONorte – medida 3.9), tiveram então
como prioridade preocupações de salvaguarda e valorização como meios para o incentivo à fruição pública. Contudo, em consequência, a rede informal de
monumentos da região do Varosa veio assim ser reforçada com as notórias melhorias do estado de conservação dos imóveis intervencionados. Por outro lado, a
partilha de visitantes entre os diversos monumentos
prova a sua coerência e atrativo enquanto conjunto,
realçando-se de imediato os anomalamente elevados
números de visitas para imóveis situados na região
Norte interior, indicador do seu potencial turístico se
desenvolvido em rede, em bom estado de conservação,
com instalação das necessárias infraestruturas locais e
eficaz estratégia de divulgação.
Neste sentido, as principais linhas estratégicas da
candidatura apresentada foram a recuperação de edificado, musealização de património móvel e imóvel,
instalação de centros de acolhimento, interpretação e
postos de vendas, criação de imagem personalizada,
52
Luís Sebastian
Mosteiro de S. João de Tarouca
abertura ao público com funcionamento em rede e desenvolvimento de ações de divulgação conjunta.
Como principais linhas orientadoras temos então
que:
- Em detrimento de um número variável de sítios
de interesse histórico informal e intermitentemente
abertos ao público, dever-se-á procurar criar a imagem de um só item de elevado valor patrimonial. Ao
valor isolado e relativo, variável de cada um destes
imóveis, substitui-se a ideia de conjunto, universo inter-relacionável, aproximando-se do conceito de território histórico.
- Ao conceito de unidade deve corresponder uma
só designação, facilmente assimilável através da unidade geográfica existente, por realçar, traduzida na
uniformização gráfica da sua apresentação, com forte
relação ao imaginário duriense.
- Próximo ao conceito de imagem de marca, a esta
unidade deve corresponder uma só designação, um só
logótipo, um só grafismo, vertido em todos os suportes de apresentação, de sinalização viária, de publicação, de serviços e etiquetagem de bens, respeitando a
sua natural relação com a região duriense e o imaginário já existente.
- A constituição de uma rede de designação única
deverá ter por núcleo inicial um conjunto criteriosamente selecionado de imóveis de elevado valor patrimonial, selecionados pela sua distribuição no território e mais imediata viabilidade de abertura condigna
ao público, desejando-se que a este núcleo inicial de
imóveis-ícone sejam progressivamente acrescentados
um número crescente de imóveis de menor valor patrimonial isolado.
- A um núcleo inicial propenso a visitas organizadas mais ou menos curtas, segundo o modelo de
roteiro, pretende-se a gradual sobreposição de uma
rede alargada capaz de reter o visitante por um dia ou,
preferencialmente, por mais de um dia, beneficiando o
consumo de bens e serviços locais e regionais.
- Espera-se que à oferta de fruição de um número
crescente de imóveis de valor patrimonial se junte, por
parte da iniciativa privada, a oferta de bens e serviços
relacionados, levando a uma maior diversificação e ao
fomento da economia local e regional.
- Que a constituição de um “produto” coeso e geo-
33 - Imóveis classificados (Luís Sebastian).
53
graficamente concentrado potencie de forma facilitada
a sua exploração direta e intensiva por parte dos operadores turísticos ativos na região.
- Que a distribuição dos imóveis por uma área de
coerente valor paisagístico potencie a sua exploração
ao nível da fruição pública, livre e comercial, no âmbito das atividades Out-door, promotoras da saúde e
bem-estar assim como do desenvolvimento duma
maior consciência ecológica, com consequente preservação da fauna e flora regional.
3.3 Projeto “Vale do Varosa” – Musealização do
Mosteiro de S. João de Tarouca: 2009-2013
Em novembro de 2009 iniciou-se a primeira intervenção no Mosteiro de S. João de Tarouca no âmbito
do projeto Vale do Varosa. Esta incidiu primeiramente no edifício da igreja, passando pela substituição da
cobertura (Figura 34); instalação de novo sistema elétrico e de iluminação (Figura 35), incluindo enterra-
34 - Aspeto da instalação do novo sistema de iluminação na
igreja do Mosteiro de S. João de Tarouca
(Luís Sebastian).
54
Luís Sebastian
35 - Aspeto dos trabalhos de substituição da cobertura da igreja do Mosteiro de S. João de Tarouca (Luís Sebastian).
36 - Aspeto dos trabalhos de enterramento de cabelagens e alargamento do sistema de drenagem interior de humidades na igreja
do Mosteiro de S. João de Tarouca (Luís Sebastian).
Mosteiro de S. João de Tarouca
55
37 - Aspeto dos trabalhos de substituição da cobertura da capela de Santa Umbelina,
no interior da cerca de clausura do Mosteiro de S. João de Tarouca (Luís Sebastian).
mento de cablagens; alargamento do sistema de drenagem interior de humidades (Figura 36); instalação de
sistemas de alarme de intrusão e incêndio; revisão de
caixilharias e melhoramento do sistema de drenagem
de águas pluviais. A preocupante torção que o canto
sudoeste da fachada da igreja vinha a registar desde
a colocação da última cobertura na década de setenta do século XX foi alvo de especial atenção, levando
ao seu amarramento através da colocação interior de
cabos de aço. A isto juntou-se ainda a revisão da cobertura da torre sineira com instalação de pára-raios e
a substituição da cobertura da capela de Santa Umbelina, situada no interior da cerca de clausura, e então
em risco iminente de ruína (Figura 37). Aproveitando
esta oportunidade, não se deixou ainda de iniciar já a
recuperação do adro-miradouro desta capela.
Já em agosto de 2012, iniciou-se a segunda intervenção prevista no projeto para o Mosteiro de S. João
de Tarouca, desta feita incidindo na área escavada arqueologicamente entre 1998 e 2007, e tendo por objetivo a musealização dos vestígios dos edifícios das
dependências monásticas expostos pelas escavações
arqueológicas.
Dado o profundo desmantelamento a que estes
edifícios foram sujeitos para reaproveitamento da sua
pedra, entre 1834 e os inícios do século XX, a sua leitura para o visitante revelava-se difícil, obrigando a uma
solução que conferisse maior leitura geral. Por outro
lado, a preocupação de conservação das construções
exumadas impunha igualmente a sua urgente proteção
e consolidação. A estas duas necessidades juntou-se a
de dar destino ao colossal número de silhares utilizados originalmente na constituição das paredes dos
edifícios das dependências monásticas, e recuperados
durante as escavações arqueológicas, num total de 704.
Como outra boa parte da pedra constituinte destes
edifícios foi nos inícios do século XX lançada para a
ribeira sobranceira ao mosteiro, de forma a alargar a
área de cultivo em que todo o espaço se transformou
após o desmantelamento quase completo dos edifícios,
sabíamos que a este número inicial de 704 silhares se
juntariam muitos mais, aquando da sua desobstrução
(Figura 38).
56
Luís Sebastian
38 - Aspeto dos trabalhos de desobstrução da ribeira sobranceira ao Mosteiro de S. João de Tarouca (Sofia Catalão).
Assim, a opção seguida foi a da elevação das paredes através da recolocação dos silhares recuperados.
Estes foram simplesmente pousados sobre as paredes
existentes, sem qualquer ligação com argamassas. O
enchimento das paredes, colocado entre as duas faces
exteriores constituídas por silharia, e que nas paredes
originais foi feita com pedra miúda e argamassa, foi
feita nas fiadas agora acrescentadas apenas com pedra
miúda solta. No global, esta solução veio permitir uma
maior leitura das paredes, logo dos diversos espaços
que compunham as dependências monásticas; a proteção dos vestígios das paredes originais; uma baixa
manutenção em virtude do reduzido crescimento de
vegetação; a total reversibilidade da solução encontrada; o armazenamento inteligente e útil de milhares de
silhares (Figura 39).
Neste procedimento deu-se todavia, e de forma
assumida, destaque à leitura dos edifícios medievais
originais. As paredes acrescentadas mais tarde, nas remodelações que o mosteiro sofreu nos séculos XVII
e XVIII, sendo na maioria paredes interiores constituídas por pedra disforme e argamassa, foram apenas
Mosteiro de S. João de Tarouca
57
39 - Aspeto dos trabalhos de elevação das paredes medievais, exumadas arqueologicamente, no Mosteiro de S. João de Tarouca
(Sofia Catalão).
consolidadas, sem elevação.
As cotas de circulação dos diversos pisos foram repostas recorrendo a gravilha, separada dos vestígios
originais por manta geotêxtil. As áreas exteriores sem
piso estruturado foram simplesmente repostas com
uma cobertura vegetal de hidrosementeira.
No caso da torre sineira de século XVIII, cuja porta
de acesso situada ao nível superior tinha ficado irremediavelmente sem acesso desde o desmantelamento
da ala sul da noviciaria de século XVII, teve-se que
desenvolver uma solução assumidamente nova e contemporânea, com instalação de uma escada em aço
corten, com a função dúplice de miradouro.
Para a resolução do problema de estacionamento
automóvel e isolamento em relação a exterior da área
musealizada, foi instalada uma vedação metálica, ao
longo da qual se desenvolve um espaço de parqueamento para automóveis ligeiros e autocarros.
Paralelamente a todos os trabalhos de musealização, foi ainda necessário reconstruir parte do muro de
século XVIII, de encanamento da ribeira sobranceira
ao mosteiro, que tinha ruído no rigoroso inverno de
2001. Apesar de uma operação secundária em termos
da musealização, esta operação foi das mais complicadas tecnicamente e das mais dispendiosas, dada a escala da estrutura, com cerca de 10 metros de altura, e a
necessidade de reforçar interiormente a construção de
século XVIII com um maciço de betão ciclópico que
garantisse a máxima segurança em termos de futuras
derrocadas, ainda para mais considerando a circulação
e estacionamento automóvel, para o qual a construção
original não foi projetada (Figura 40 e 41).
Após esta intervenção, fica a faltar a instalação da
receção, bilhética, posto de vendas e centro interpretativo, a instalar no antigo celeiro de século XVIII, sendo
que neste centro interpretativo caberá a realização de
uma exposição com base no riquíssimo espólio produzido pelas escavações arqueológicas, que a par da
visualização de reconstituições dos edifícios e perceção da funcionalidade dos diversos espaços, permitirá
ao visitante um mais completo entendimento da área
agora musealizada.
58
40 - Aspeto geral dos trabalhos em curso de musealização da área arqueológica do Mosteiro de S. João de Tarouca – vista de Nordeste
para Sudoeste (Sofia Catalão).
59
41 - Aspeto geral dos trabalhos em curso de musealização da área arqueológica do Mosteiro de S. João de Tarouca
– vista de Noroeste para Sudeste (Sofia Catalão).
60
Luís Sebastian
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43-55.
63
Painel 1
História
e Património
Manuel Real
Ana Sampaio e castro
Nuno Resende
64
O Significado da
basílica do Prazo (Vila Nova de Foz Côa),
na alta Idade Média duriense
texto: Manuel Luís Real - Investigador do CITCEM
Resumo
A basílica do Prazo integra-se num lugar
arqueológico com uma continuidade de ocupação
apreciável, desde a Pré-história à Idade Média.
Sabe-se que aí houve cristãos desde a Antiguidade
Tardia, mas o templo descoberto no Prazo deve
remontar à primeira metade do século X. Pelas suas
características, pertence a um grupo arquitectónico
que se expandiu pela Beira interior e que, de diversos
modos, revela uma influência da arte asturiana da
última centúria. Isto terá ficado a dever-se a um clã
liderado por Bermudo Ordonhes, irmão do rei Afonso
Magno, contra o qual se rebelou. A sua presença no
território de Viseu-Lafões foi apoiada pelo conde
Diogo Fernandes e seus genros, netos de Vímara
Peres e Afonso Betotes. Este clã inicia um processo
de senhorialização da Beira interior, expandindo-se
até ao Alto-Douro. Provavelmente, a basílica do Prazo
deve ter sido fundada por descendentes de Diogo
Fernandes e Onega.
Palavras-Chave:
Prazo; Basílica; Pré-Românico; Senhorialização
Abstract
The basilica of Prazo is in an archaeological place
with an appreciable continuity since the Pre-history to
the Middle Age. We know that there was a Christian
occupation since the Late Antiquity, but the church
discovered in Prazo must be founded only in the
first half of the tenth century. Its characteristics show
that it belongs to an architectural group that was
spreading in the interior of Beiras and, in several ways,
discloses an influence of asturian art. It will have been
implemented by the clan led by Bermudo Ordonhes,
brother of Afonso Magno, against which he was
rebelled. Its presence in the land of Viseu-Lafões was
supported by count Diogo Fernandes and grandsons
of Vímara Peres and Afonso Betotes. This group starts
a movement of landlordship in the interior of Beiras,
spreading to the Alto-Douro. Probably, the basilica
of Prazo must be attributed to descendants of Diogo
Fernandes and Onega.
Key Words:
Prazo; Basilica; Pre-Romanesque; Landlordship
66
Manuel Luís Real
A estação arqueológica do Prazo localiza-se na
freguesia de Freixo de Numão, do concelho de Vila
Nova de Foz Côa. Fica situada no sopé do cabeço
de Santa Eufémia, junto a um cruzamento viário
designado por “Pedra Escrita”. Os vestígios de
ocupação humana distribuem-se por uma zona com
certo declive, ora entre batólitos graníticos, alguns
dos quais funcionaram de abrigo, ora numa breve
plataforma que sobressai entre o relevo circundante,
virada a norte para uma depressão que a gente da terra
denomina vale de São João25. Este lugar era também
conhecido por “Freixo Antigo”, havendo a justificação
lendária de que teria sido abandonado porque as
“formigas comiam as criancinhas”. A antiguidade do
sítio era assim sublinhada pela tradição popular, a
qual, ao que parece, também recordava a existência
de uma desaparecida capela. A arqueologia veio a
comprovar que Freixo de Numão teve ocupação
humana igualmente muito antiga, pelo que a lenda a
respeito da sua origem, no Prazo, tem de ser matizada,
podendo referir-se a um momento singular da história
de ambas as localidades e não necessariamente à
criação de qualquer dos povoados.
Em meados do século passado, durante trabalhos
agrícolas para o plantio de amendoeiras, foram
descobertos vários elementos de construção e
sepulturas em xisto. Este achado fortuito foi noticiado
em 1954 por um erudito natural de Freixo, J. A. Pinto
Ferreira, no estudo monográfico que publicou sobre
a freguesia26. Mas a verdadeira revelação da jazida
arqueológica ficou a dever-se a António Sá Coixão, ao
promover as primeiras sondagens arqueológicas em
1980-81, as quais deram a conhecer um horizonte de
ocupação romana e, ainda, estruturas relacionadas com
um templo medieval. As escavações foram retomadas
em meados dos anos 90, tendo Sá Coixão detectado,
entretanto, indícios de uma ocupação mais recuada,
datável pelo menos do período neolítico27. A presença
25 É referido como “vale de Sã Joana”, uma corruptela da expressão “vale
de São João”, a partir de um designativo medieval relativamente comum
- “Sam Oane” ou “Sam Hoane” - em documentos referentes a localidades
com idêntica invocação.
26 FERREIRA, J. A. Pinto – Freixo de Numão: Apontamentos. Porto,
1954.
27 COIXÃO, António do Nascimento Sá – Carta arqueológica do
Concelho de Vila Nova de Foz Côa. V. N. de Foz Côa: Câmara Municipal,
1996, p. 175-181; Um projecto: A investigação, a musealização e um circuito.
Freixo de Numão: ACDR, 1980-1996. p. 47-62; O circuito arqueológico
de Freixo de Numão: Guia do visitante. Freixo de Numão: ACDR, 2005,
p. 16-30. Agradecemos ao Dr. A. Sá Coixão todas as informações que
de vestígios pré-históricos no Prazo despertou a
curiosidade de Sérgio Monteiro-Rodrigues, da
Faculdade de Letras da Universidade do Porto. O
elevado rigor científico das escavações que aí veio a
realizar proporcionou importantes conclusões sobre o
processo de antropização do lugar do Prazo desde o
Paleolítico, colocando esta estação arqueológica como
um local de referência obrigatório, sobretudo para o
período de transição entre o Mesolítico e o chamado
Neolítico Antigo, no noroeste peninsular28. Embora
ainda subsistam muitas dúvidas sobre a basílica
do Prazo, somos de opinião que existem também
dados suficientes para que se possa igualmente
considerar o carácter excepcional desta estação para
o conhecimento da alta Idade Média beirã, no período
da expansão asturo-leonesa. É isso que tentaremos
demonstrar neste estudo.
1. A TEMPORALIDADE DA OCUPAÇÃO
HUMANA NO PRAZO
C
om base em dados fornecidos pelas
publicações de António Sá Coixão e na
sequência das suas próprias pesquisas, o
pré-historiador Sérgio Monteiro-Rodrigues apresenta
uma bem sistematizada síntese dos testemunhos sobre a
utilização daquele espaço pelo Homem, possivelmente
desde o Acheulense29. O Paleolítico Superior está
devidamente confirmado nas unidades estratigráficas
mais antigas que foi possível identificar, embora sem
possibilidade de recurso a datações absolutas. Estas
foram obtidas apenas a partir do Epipaleolítico e com
resultados surpreendentes, alguns deles alcançados
até recentemente30. O mais antigo registo cronológico
nos foi prestando, a respeito das suas pesquisas e das nossas reflexões
sobre a estação do Prazo. Gostaríamos de sublinhar a extrema abertura
manifestada e o propósito de, no futuro, nos acompanhar numa análise
mais detalhada sobre as descobertas e a musealização das ruínas, tendo em
conta a sua experiência pessoal e os registos de campo.
28 MONTEIRO-RODRIGUES, Sérgio – A estação neolítica do Prazo
(Freixo de Numão - Norte de Portugal) no contexto do Neolítico Antigo do
Noroeste Peninsular. Algumas considerações preliminares. In Actas do 3º
Congesso de Arqueologia Peninsular (Vila Real, 22-26 Setembro 1999), v. III.
Porto: ADECAP, 2000, p. 149-168; Estação arqueológica do Prazo-Freixo
de Numão: Estado actual dos conhecimentos. Côavisão. 4 (2002) 113-126.
29 MONTEIRO-RODRIGUES, Sérgio – Pensar o Neolítico Antigo:
Contributo para o Estudo do Norte de Portugal entre o VII e o V milénios a.
C.. Viseu: Centro de Estudos Pré-Históricos da Beira Alta, 2011, p. 81-84.
30 IDEM – Novas datações pelo Carbono 14 para as ocupações
holocénicas do Prazo (Freixo de Numão, Vila Nova de Foz Côa, Norte de
Portugal). Estudos do Quaternário, 8, APEQ, Braga (2012) 22-37.
O Significado da basílica do Prazo
67
1 - Corte transversal com a implantação da jazida arqueológica do Prazo (seg. Sérgio Monteiro-Rodrigues).
68
Manuel Luís Real
2 - Posicionamento da estação arqueológica do Prazo, face ao alto de Sª Eufémia e ao vale de S. João (seg. Sérgio Monteiro-Rodrigues).
remonta a este último período, confirmando uma
ocupação situada entre finais do X e meados do IX
milénio a. C.. Vão-se sucedendo novas ocupações, em
fases distintas do Mesolítico e do Neolítico, merecendo
particular destaque o horizonte que se convencionou
denominar por Neolítico Antigo, que no Prazo se
situará no intervalo temporal balizado entre os finais
do VI milénio a.C. e um momento algo posterior ao 3º
quartel do V milénio a. C.. Este período é caracterizado
por uma população de caçadores-recolectores, que
deixou marcas da respectiva actividade cinegética,
mas também da prática de alguma moagem, talvez
de gramíneas e frutos silvestres, concretamente o
Esta estação dispõe já de cerca de trinta datações de cronologia absoluta.
As primeiras análises foram publicadas em MONTEIRO-RODRIGUES,
Sérgio; ANGELUCCI, Diego E. – New data on the stratigraphy and
chronology of the prehistoric site of Prazo (Freixo de Numão). Revista
Portuguesa de Arqueologia. 7:1 (2004) 39-60.
medronho. Eles já fazem uso da cerâmica e de polidores
líticos, mas não apresentam quaisquer indícios sobre o
recurso à agricultura ou ao pastoreio. Esta é a grande
novidade dos estudos sobre a pré-história do Prazo,
desfazendo a ideia de uma real revolução neolítica,
desencadeada de um fôlego, a partir de migrações
vindas do oriente. Na realidade, o processo evolutivo
terá sido mais complexo e experimentalista, ficando
aqui demonstrada a necessidade de matizar a tese
tradicional sobre a denominada “neolitização” do
noroeste peninsular.
Embora o concelho de Vila Nova de Foz Côa
seja pobre em cultura dolménica, parece que os
abrigos rochosos do Prazo foram utilizados durante
o Neolítico Final e Calcolítico. É provável que tenha
havido algum distanciamento da comunidade
relativamente à apropriação do lugar, durante o
O Significado da basílica do Prazo
período subsequente, já que os habitantes da Idade do
Bronze parecem ter preferido o morro sobranceiro,
conhecido por alto de Santa Eufémia, como revelou
A. Sá Coixão. Assim também, a Idade do Ferro é
desconhecida no Prazo, sendo este talvez o hiato mais
significativo na estação arqueológica. A revitalização
do lugar dar-se-á com os romanos, no séc. I-II d. C..
Ela tem finalmente um carácter sedentário, com a
construção de uma villa na plataforma principal, que
incluiria, segundo o autor, uma presumível zona de
termas. São apontados os edifícios A e B31, mas a única
datação de cronologia absoluta que se possuí deste
período, provem da periferia, do chamado abrigo
I. É bem provável que esta nova fase corresponda à
da pesquisa e apropriação dos recursos mineiros da
região. Entre 250-275 d. C. assiste-se a um processo
de ruralização mais acentuado, com o aparecimento,
no socalco superior, de estruturas relacionadas com o
armazenamento e moagem de cereais, bem como de
uma cozinha com a lareira e o respectivo forno. É o
conjunto que Sá Coixão designa como pars fructuaria.
A partir do séc. III também poderão corresponder
o edifício G e dois fornos, um de cozedura de tégula
(forno C) e outro de fundição de metal (forno H).
Talvez nos finais do século possa ter ocorrido um
saque, seguido de incêndio, mas o lugar voltará a ser
ocupado na centúria seguinte, como o demonstram
diversos testemunhos relacionados sobretudo com
os edifícios G e E, além de um novo forno (forno L) e
duas pequenas sepulturas que continham moedas do
Imperador Constantino. Terá sido por esta altura que
ocorreu a cristianização do local.
A grande incógnita reside na identificação dos
vestígios da ocupação sueva e visigoda. Em nosso
entender, com os elementos até agora publicados sobre
a basílica, nada nos parece de segura atribuição ao
período de ocupação bárbara. No entanto, ela existiu
sem dúvida, como o comprovam as datações por C14
de materiais colhidos no sector VII (430-570 AD / 590600AD) e no sector I (604-612 AD / 616-653 AD)32.
As estruturas da basílica parecem, no seu conjunto, ter
sido erguidas já em época posterior.
O sector VII fica numa zona mais elevada, junto
ao afloramento rochoso sobranceiro à plataforma
principal e relativamente próximo da designada
31 Para a identificação alfabética dos edifícios, cfr. as publicações de
A. Sá Coixão, como por exemplo em Circuito Arqueológico de Freixo de
Numão: Guia do visitante. Freixo de Numão: ACDR, [2012], figs. 6-8.
32 MONTEIRO – ANGELUCCI (2004), p. 52.
69
pars fructaria. O sector I, por sua vez, é adjacente ao
presumível edifício termal, do lado exterior. Trata-se
esta de uma zona onde também surgiram vestígios
de ocupação neolítica. Encontra igualmente na
vizinhança do edifício G, uma das áreas que revela
ocupação tardo-imperial e que poderá ter algo a ver
com a continuidade de utilização do local durante
o domínio bárbaro da Península. Se existiu um
templo religioso atribuível a este período, é algo que
nos escapa, tendo em conta os dados disponíveis.
No entanto, foi encontrado o fundo de um vaso de
cerâmica cinzenta, com a aposição de um crismon, e
que poderá corresponder a este período33. Apareceu
também o fragmento de uma colher em bronze, cuja
cronologia ignoramos, não se sabendo também se,
porventura, terá sido usada para funções litúrgicas.
Como adiante demonstraremos, a planimetria
geral da basílica deve ser atribuída aos finais do séc.
IX-princ. X. Além disso, foram encontrados diversos
alinhamentos de buracos de poste que merecem
ser melhor analisados. Eles surgiram no interior do
edifício B, em locais onde o opus signinum parece estar
corrompido. Sá Coixão dá nota da sua existência de
forma muito esquemática, na publicação da planta
de conjunto dos edifícios da plataforma central, por
exemplo, no referido guia do visitante. No entanto,
uma fotografia apresentada pelo autor mostra que
tais alinhamentos não são paralelos entre si. Estando
tão próximos uns dos outros, eles são incompatíveis,
por manifestarem orientações divergentes (Figura
12). Consequentemente, são de atribuir a cronologias
distintas. Analisando este caso com maior detalhe34,
verifica-se que existem dois tipos principais de
alinhamentos. Um deles é, sem dúvida, paralelo ao
muro romano e Sá Coixão pensa tratar-se de um
possível alpendre exterior do edifício termal (edifício
A). É uma explicação plausível. Mas poderia ser
também uma estrutura posterior a ambos os edifícios
romanos, eventualmente quando estes já estariam
arrasados, ou seja, nunca antes do séc. V-VI35. Nesta
circunstância, tratar-se-ia de um edifício cabanal
de cronologia suevo-visigoda, o que é perfeitamente
33 COIXÃO, António do Nascimento Sá – Rituais e cultos da morte na
região de Entre Douro e Côa. Freixo de Numão: ACDR, 1999, fig. 21.
34 O autor possibilitou-nos a consulta do plano final da escavação, à
escala, amabilidade esta que gostaríamos de sublinhar e agradecer.
35 A confirmação dependerá de uma análise, mais detalhada ainda,
sobre a posição relativa dos buracos de poste face ao opus signinum
romano, podendo nesse caso ser posterior ao próprio edifício B e respectivo
pavimento.
70
Manuel Luís Real
3 - Planta da zona nuclear do Prazo, com a basílica (a norte), os edifícios de origem romana (em redor de um logradouro comum) e os
locais de ocupação pré-histórica (sectores I, VII e VIII). A meio da planta, assinala-se uma nascente de água represada
(seg. Sérgio Monteiro-Rodrigues).
O Significado da basílica do Prazo
71
72
Manuel Luís Real
possível, à luz do que se conhece sobre a construção
em materiais lenhosos que, nessa época, se tornou
relativamente vulgar. Mais interessante, ainda, nos
parece ser um outro alinhamento oblíquo ao precedente
e que, com aparente rigor, se articula com a orientação
dos muros da basílica alto medieval. A confirmar-se
esta observação, poderemos estar perante um possível
anexo habitacional, construído em madeira, tal como
o que foi identificado em Santa Marinha da Costa,
antes da edificação do palácio condal de meados do
séc. X36.
São de assinalar, ainda, dois outros elementos
relacionáveis com a época da Reconquista. A noroeste
do templo, numa plataforma superior, aparece um
sarcófago em pedra, aparentemente abandonado, e na
sua proximidade foi escavado um edifício que revelou
uma fase de ocupação associada a cerâmicas do séc.
IX-X, as primeiras a ser identificadas, enquanto tal,
por A. Sá Coixão. Por outro lado, ao questionarmos
sobre a eventual existência de uma atalaia no alto
de Santa Eufémia, este arqueólogo confirmou-nos
o aparecimento também de cerâmica medieval e de
alguns silhares, durante uma intervenção no cabeço,
para aí instalar umas antenas.
Regressando ao edifício basilical, importa salientar
que ele aparenta ter possuído algumas reformas ao
longo do tempo e que, como veremos adiante, está
também a ele associada uma necrópole da baixa Idade
Média. A quase totalidade da numária aí descoberta
não ultrapassa o reinado de D. Afonso III, se bem que
num anexo exterior tenha aparecido uma moeda do
séc. XV (ceitil de D. Afonso V). Durante a escavação
surgiu o derrube da cobertura, formado por telha
de reduzida curva. O abandono do local não está
claramente determinado, embora se invoque o século
XIII, devido à circunstância de, no interior do templo,
não terem aparecido numismas posteriores a esta data.
Após o desaparecimento do núcleo do Prazo,
enquanto habitat permanente, o lugar continuou a ser
usado para a prática agrícola, como o demonstra o
forno moderno de secar figos.
2 “IN ALIA
JOHANNE”
CARRARIA
DE
SANCTO
A
estação arqueológica encontra-se a meia
encosta, orientada para um vale cujo
nome, de acordo com a memória popular,
sobreviveu para lembrar o antigo orago da basílica
do Prazo: vale de São João. Tem sido bastante difícil
encontrar documentação escrita que auxilie as
pesquisas sobre a história deste templo. Até ao momento,
não encontramos qualquer referência explícita nos
estudos sobre o Prazo. Este topónimo – “Prazo” – tem
características que o fazem reportar a uma realidade
que apenas deverá ter ocorrido, quando muito, a
partir da baixa Idade Média. Se é certo que o termo
“plazum” ou “plazo” apareça já esporadicamente na
décima centúria37, só no séc. XIII é que ele se consolida
para designar o regime enfitêutico a que passou a
estar sujeita a propriedade imobiliária desde a Idade
Média. E para se transformar em topónimo, algum
tempo mais poderá ter sido requerido. Atendendo a
que continuam a haver enterramentos com moedas do
séc. XIII e, num caso periférico, até associado a um
ceitil de D. Afonso V – um sarcófago presumivelmente
reutilizado para outro fim – seria legítimo supor
que a comunidade eclesial ainda subsistisse na baixa
Idade Média e que, como tal, estivesse presente nos
róis de igrejas conhecidos para a época. Porém, no
que respeita às listas dos benefícios eclesiásticos
pertencentes à monarquia, não aparece qualquer
alusão ao Prazo38. Isto significa que o(s) patrono(s)
ou eram laicos, ainda, ou eram representados por
qualquer instituição religiosa superior. E tudo indica
que seria este o caso. Na realidade, em 1277, o bispo
de Lamego, D. Gonçalo, sente-se obrigado a devolver à
mesa capitular uma série de bens de que a mitra se tinha
apossado injustamente. Entre eles é incluída a ermida
de São João, sita no termo de Numão39. É provável,
por conseguinte, que na documentação do cabido
ou chantrado de Lamego existam outras referências
ao Prazo. Mas não podemos deixar de aludir a uma
outra fonte, bem mais antiga e já muito utilizada, em
37 O Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa. Lisboa: Círculo de
Leitores, 2007, t. 15, p. 6522, cita uma fonte de 938 e outra de 999.
36 REAL, Manuel Luís – Pousada de Santa Maria. Guimarães. Boletim
da Direcção Geral dos Edifícios e Monumentos Nacionais. 130. [Lisboa]:
Ministério das Obras Públicas, Transportes e Comunicações (1985) 16-17 e
figs. 3 e 9; IDEM – Materiais de construção utilizados na arquitectura cristã
de alta Idade Média em Portugal. In MELO, Arnaldo de Sousa; RIBEIRO,
Maria do Carmo (coord.) – História da construção: os materiais. Braga:
CITCEM-LEMOP, 2012, p. 104-105.
38 Cfr. BOISSELLIER, Stéphane – La construction administrative d´un
royaume: Registres de bénéfices ecclésiastiques portugais (XIII-XIV Siécles).
Lisboa: Universidade Católica, Centro de Estudos de História Religiosa,
2012.
39 COSTA, M. Gonçalves da – História do bispado de Lamego, v. 1.
Lamego: [s. n.], 1977, p. 137-138.
O Significado da basílica do Prazo
73
4 - Planta das ruínas do Prazo, após as escavações de 1996. Ainda estavam por escavar o edifício G e a maior parte do edifício E
(seg. António N. Sá Coixão)
74
Manuel Luís Real
que tem passado quase despercebida a passagem que
alude ao lugar numantino de São João. Trata-se do
foral concedido, em 1130, aos moradores da “ciuitate
Noman, cognomento Monforte”, pelo governador D.
Fernando Mendes de Bragança. Na parte em que trata
das coimas por homicídio, dentro do povoado e numa
área periférica, baliza esta última entre a “portellam de
doiro” e os “palacios antiquos”, ou seja, “usque in alia
carraria de sancto Johanne”40. Trata-se, sem dúvida,
da linha demarcada pela ancestral via que ainda hoje
liga Freixo de Numão ao Rio Douro, passando em
frente ao Prazo, pelo vale de S. João, e que se dirige a
Murça e ao entroncamento de Mós do Douro. Junto
a este fica o monte da Portela, próximo já do rio, ou
seja, precisamente a referida “portellam de doiro”,
onde a passagem era efectuada por barca. Do foral
de Numão pode-se ainda inferir que o limite sul da
linha demarcada, para aquela área de imposição fiscal,
coincidiria com a antiga villa do Prazo, identificada
como illos palacios antiquos, no século XII.
3. A BASÍLICA MEDIEVAL DO PRAZO
N
a alta Idade Média, durante o reinado de
Ordonho II – enquanto governador da
Galiza ou, mais provavelmente, já como rei
de Leon – terá sido construída esta basílica no Prazo.
A planimetria da aula principal aparenta uma lógica
unitária e possui determinadas características formais
que levam a concluir estarmos perante uma construção
de raiz. Isto independentemente da possibilidade
de ter existido um edifício anterior, de função
desconhecida, romano ou suevo-visigodo, e do qual
A. Sá Coixão encontrou indícios numa sobreposição
de muros junto ao limite ocidental da nave (Figura
4)41. Em linhas gerais, trata-se de um templo de três
naves, separadas por tríplices arcaturas longitudinais.
No extremo ocidental sobrevivem os dois muretes
constitutivos dos atlantes (salientes), em que se
apoiavam os arcos extremos. Estes muros encontramse mal travados à testeira ocidental, circunstância que
se repetiria do lado oposto, dado existe uma simetria
no espaço deixado vazio entre as últimas sapatas, onde
40 Portugaliae Monumenta Histórica: Leges et Consuetudines, vol.1 ,fasc.
3, 1863, p. 368-370.
41 O muro mais antigo figura a negro, enquanto o da basílica altomedieval aparece a tracejado. Vd. tb. COIXÃO, 1999, figs. 18 e 30.
assentavam as colunas, e o muro oriental da aula. Esta
parte foi sujeita a uma maior espoliação de pedra,
tendo desaparecido (Figura 4). Tais muros-atlante são
muito semelhantes aos de Lourosa e Balsemão, onde
há uma imposta no arraque do arco. No Prazo existem
impostas com toreados muito rudes, feitas ex-professo
(Figura 8c), mas há também outros frisos – destinados
a impostas ou a cornijas – que parecem ser fruto do
reaproveitamento de materiais de origem romana
(Figura 8b). Os elementos de suporte dos arcos,
na parte intermédia, seriam formados por simples
coluna, duas por cada eixo longitudinal e não muito
altas, se tivermos em atenção os paralelos citados42.
Apareceram deslocados vários fustes de coluna,
bases ou capitéis de estilo dórico, que podem bem ter
pertencido a esta parte do edifício. Surgiram também
as sapatas para assentamento dessas colunas, uma
ainda no sítio e as restantes tombadas na proximidade.
A sua forma tronco-piramidal, de tendência para o
paralelepípedo, faz recordar as de Santianes de Pravia,
nas Astúrias. Mas nada, até ao momento, permite
supor que no Prazo houvesse pilares em vez de colunas,
a solução mais usual da arquitectura asturiana. No
caso português, a tendência foi para privilegiar o
fuste de coluna, como o comprovam as basílicas quase
gémeas – quanto à planimetria do corpo central –
de Lourosa e Balsemão (Figura 20). Esta similitude
repete-se relativamente às arcaturas divisórias, se
bem que em S. Pedro de Balsemão estejamos perante
uma reconstrução moderna, com a utilização apenas
parcial dos elementos originais. Contudo, deve ser
particularmente sublinhada a extrema parecença que
existia entre os desaparecidos arcos formeiros do Prazo
e os que ainda hoje vemos em S. Pedro de Lourosa. As
escavações forneceram uma série de aduelas, das quais
se salientam vários saiméis de arco: uns relacionados
com as extremidades de cada fiada (Figura 7a), isto
é, por assentarem directamente sobre a imposta de
cada atlante no topo das naves; outros que se situavam
no prumo de cada coluna, donde divergiam dois
arcos (Figura 7b e c). Embora um pouco mutilados,
42 Numa primeira análise sobre os elementos de suporte dos arcos da
nave, foi referida a existência de seis sapatas: cfr., por ex., Rituais…, p. 54.
Esta interpretação é errónea. Ao centro, haveria apenas quatro sapatas. A
uma equidistância semelhante, dum e doutro lado da aula central, existiam
apenas os assentamentos das pilastras ou estruturas de remate, de cada um
dos muros-atlante em que se apoiam os arcos longitudinais das naves. Por
esta razão, entendemos incorrecta a colocação da base e fuste de coluna no
extremo dos muretes que se conservam do lado oeste da aula. Na origem,
a uma cota ligeiramente superior, haveria apenas uma imposta, a partir da
qual assentava o primeiro arco formeiro das arcaturas tríplices em que se
dividiam as naves.
O Significado da basílica do Prazo
75
5 - Vista geral do templo, realizada a partir de sudoeste.
os dois saiméis centrais aqui reproduzidos, pelo seu
aspecto esguio e pela elegante curvatura das linhas de
arco, apresentam uma notável semelhança com os de
Lourosa (Figura 14). Deve acrescentar-se que durante
as pesquisas arqueológicas apareceram mais arranques
de arco, nomeadamente do primeiro tipo, onde parece
haver vários géneros de abertura. Só um estudo
criterioso de todas as peças, com seu desenho à escala
e a reconstituição integral do respectivo arco, é que
irá permitir fazer uma ideia de que partes do edifício
elas poderão pertencer: muro divisório das naves, arco
triunfal da capela-mor ou portada.
No extremo oeste da nave central constatou-se que
houve uma destruição do primitivo acesso ao nártex,
sendo o vão posteriormente entaipado (Figura 11).
Da anterior abertura, subsistiram a pedra inferior da
ombreira do lado esquerdo (de quem, da nave central,
se dirigia ao nártex) e ainda as duas primeiras do
lado oposto. Nesta mesma zona, para além de uma
sepultura tardo medieval (sepultura 2), apareceram
dois buracos de poste abertos no próprio pavimento
da igreja – em argamassa de tipo opus signinum – e
encostados à parede oeste. Descartamos a possibilidade
de se tratar de um estrutura pertencente ao pórtico,
apesar de estarem a ladeá-lo, pois o seu avanço face à
primitiva parede não condiz com a prática da época,
que nunca prevê arcos projectados para fora do muro.
Assim sendo, e tendo em conta que se tratava de uma
estrutura presumivelmente em madeira, encostada
à parede de alvenaria e em perfeita articulação com
os restantes muros – pela equidistância que tais
colunas exentas mantinham em relação aos atlantes
longitudinais, donde arrancam as arcaturas da aula –
somos levados a pensar que se está perante vestígios
dos suportes de uma tribuna em madeira. Sabe-se
6 - Enfiamento das quatro portas do nártex,
visto de norte para sul.
como este dispositivo era muito caro à arquitectura
asturiana e conhecem-se em território português,
pelo menos, dois exemplos de tribunas em edifícios de
época pré-românica: S. Gião da Nazaré e S. Romão da
Ucha43.
Relativamente às aberturas de circulação, na aula
pricipal, A. Sá Coixão aponta quatro portas, além
do arco triunfal. Uma dá acesso ao anexo sul e três
abrem para o nartex. Ao contrário deste último, onde
as quatro passagens aparentam manter as soleiras
originais, julgamos que não foram encontradas
soleiras monolíticas na parte da aula eclesial. A
identificação das portas parece ter ficado a dever-se
à existência de pedras com encaixes desnivelados, os
43 Este último caso conhece-se através de uma epígrafe que comemora
a sua construção, por um tal “Sermundus”. A obra da tribuna, evocada
autonomamente, sem qualquer referência ao resto do templo, data do ano
920. Pode tratar-se de uma “melhoria” ligeiramente posterior à fundação
da basílica, tal como poderá ter acontecido na do Prazo, cuja tribuna seria
praticamente coeva desta. Sobre a inscrição vd. BARROCA, Mário Jorge
– Epigrafia medieval portuguesa (862-1422), Vol. 2, T. 1. Porto: FCG-FCT,
2000, p. 35-37
76
Manuel Luís Real
7 - Saiméis de arco: a) arranque lateral, do arco triunfal, arco porta ou arco formeiro das naves;
b) e c) saiméis de dupla face curvilínea, que se situavam sobre as colunas em que assentavam os arcos longitudinais da aula basilical.
quais, supostamente, serviram para ajustar os silhares
de ombreira, entretanto desaparecidos (cfr. Rituais,
foto 39, à direita)44. No entanto, não é líquido que tal
critério seja isento de dúvidas. No caso vertente, a
existência da porta naquele local parece incompatível
com a presença do sarcófago S1, que se encontra
actualmente mutilado, mas impediria a passagem
estando completo (cfr. Um projecto, foto 52). Uma
situação inversa, em que uma pedra desnivelada não
deu origem a qualquer ombreira, parece ter ocorrido
na designada passagem da nave sul para o nartex (cfr.
Rituais, foto 43, à esquerda; ou Figura 10 do presente
estudo, à direita). À primeira vista, até seria de supor
que esta passagem não correspondesse à organização
primitiva, encontrando-se o muro completamente
encerrado nesse local. E é legítimo pensar o mesmo
para o lado simétrico do templo, se bem que nesta
parte se possa admitir a existência de uma soleira (cfr.
Rituais, foto 62).
Analisando de novo a primeira foto, parece claro
que entre os dois compartimentos do anexo sul existiu
uma porta com soleira, do tipo das do nártex (cfr.
44 Esta é uma foto importante sobre o estado das estruturas, no
momento da escavação desta parte do edifício. Não confundir, como muro,
o alinhamento de pedras que se vê em último plano, as quais apareceram
originalmente dispersas e encontram-se aí meramente ordenadas, a
aguardar reposição para o momento de erguer os muros, de acordo com a
metodologia utilizada no terreno.
Rituais, foto 39, à esquerda). A soleira avulsa que se vê
na mesma fotografia, um pouco acima do sarcófago,
foi colocada na passagem situada no muro leste da
aula, na suposição de que aí se situaria a primitiva
porta do templo. Contudo, não pode deixar de ter
estado aqui o local de entrada da capela-mor. Nas
primeiras reconstituições feitas da basílica, o autor
coloca a cabeceira no lado oposto, assinalando aí três
capelas45. Ora tal suposição, além de contrariar os
cânones da época sobre a orientação do templo – e,
pela posição das sepulturas, constata-se que o respeito
canónico era escrupulosamente observado – torna-se
impossível conceber que o santuário fosse devassado
por uma sucessão de portas que transformam o
local como uma espécie de corredor (Figura 6). A
implantação do santuário exige recato. Há exemplos de
eixos de circulação em frente à capela-mor (Sª Maria
de Melque, Sª Lucía del Trampal, S. Gião da Nazaré,
etc.), mas trata-se já na área do presbitério. O tipo de
solução em causa, na zona ocidental do templo, é mais
próprio de um nártex. Na arquitectura asturiana não
existe um eixo tão pronunciado, pois até nos casos
mais desenvolvidos não há portas nos extremos norte
e sul do nártex, mesmo que apareça um anexo lateral,
como em Valdedios, o que se explica porque o pórtico
45 Cfr., por exemplo, Rituais…, p. 54 e figs. 14-17.
O Significado da basílica do Prazo
77
8 - Capitel coríntio que poderá ter sido invertido, para servir como base de coluna, na entrada da primitiva capela-mor;
b) e c) frisos de cornija e/ou de imposta, decorados com molduras simples.
de entrada se situa sistematicamente na fachada oeste.
Tal já não acontece em San Pedro de la Mata (2ª fase),
pois não existia pórtico no eixo central da igreja. Em
planta, este caso é relativamente próximo ao do Prazo
– se descontarmos a colocação da primitiva porta da
aula no centro – que, por sua vez, nos faz recordar
certos templos cronologicamente anteriores, como
Recópolis, Son Fradinet ou Portera. Aqui existe um
nártex quase independente46, que estabelece ligação
com os anexos eclesiais, destinados a funções litúrgicas
complementares ou a habitação.
Relativamente à capela-mor, ela situava-se
seguramente em zona que ainda não foi devidamente
escavada, pela simples razão de que o terreno não
estava adquirido, segundo nos confiou o responsável
pela estação arqueológica do Prazo47. A reconstituição
da actual passagem, no muro leste da aula, é moderna,
tanto no que concerne à soleira, como também
às ombreiras. Em nosso entender, na origem ela
poderia aproximar-se muito da solução existente em
S. Pedro de Balsemão (Figura 13, arco da direita) e
reconstituída em S. Pedro de Lourosa. É relativamente
frequente encontrar duas colunas de cada lado, sobre
as quais assenta o arco triunfal. Talvez nos possa dar
uma pista o capitel liso descoberto no Prazo, que
outrora devia ter estado invertido, a servir de base
(Figura 8a). De facto, ele apresenta um entalhe que
poderá ter funcionado como apoio de cancela e isso
seria admissível na entrada do santuário48. Tendo em
conta que não há vestígios de qualquer outra abertura,
no referido muro, parece que a cabeceira possuía
uma única capela, como em Balsemão, e não as três
usuais da arquitectura asturiana e que reaparecem em
Lourosa.
Numa análise genérica dos anexos mais
chegados à aula eclesial – e descontando alguma
dose de incerteza, resultante do facto de não termos
acompanhado a escavação e de hoje ser já difícil ver
como se articulavam os engates ou encostos dos muros
– parece-nos possível que tenha havido duas fases
no desenvolvimento destas estruturas periféricas, se
bem que não muito distantes no tempo49. O anexo
46 E, como dissemos, temos também algumas razões para duvidar, no
Prazo, da existência das passagens laterais entre a aula e o nártex. Mas não
estamos seguro disso, pois haveria a possibilidade de terem sido abertas
mais tarde, quando foi entaipada a porta da nave central.
48 Infelizmente, na última visita que fizemos à basílica do Prazo, na
companhia de A. Sá Coixão, demos conta que esta peça teria sido roubada
há pouco tempo, assim com a parte superior do fuste. Para uma vista
completa do elemento de suporte resultante da reconstituição efectuada,
cfr. Um projecto, foto 47.
47 A gestão da estação arqueológica é feita pela A.C.D.R. - Associação
Cultural, Desportiva e Recreativa de Freixo de Numão, que tem vindo a
adquirir os terrenos onde se implantam as ruínas do Prazo.
49 Diga-se, de passagem, que parte da construção original foi executada
com muros mal travados, sobretudo onde a fixação era menos exigente,
78
Manuel Luís Real
sul parece estar perfeitamente coordenado com o
comprimento das naves da igreja e será, em princípio,
da 1ª fase da construção. Já o nártex casa-se mal com
este anexo sul e nada tem a ver com o alinhamento do
muro meridional da aula. Em nosso entender, devem
ser coevos, este nártex e o anexo norte, que com ele
se encontra devidamente coordenado. O primeiro
espaço teve claramente a intenção de permitir, desde
cedo, enterramentos pios à sombra do templo, sem
violar a disposição canónica que impedia a sepultura
dos defuntos no interior da igreja. Quanto ao anexo
norte, que também recebeu algumas das inumações
mais antigas, parece constituir uma zona mais
recôndita, na distribuição de espaços da comunidade.
De facto, a respectiva soleira, mostra que a porta,
tal como as restantes do nártex, abria as suas folhas
de madeira para o lado setentrional, demonstrando
tratar-se de espaços sucessivamente interiores, num
movimento progressivo de sul para norte. Talvez
estejamos perante uma área de recolhimento, senão
mesmo do tesouro50. A possível afectação deste espaço
para guarda do “tesouro” – representado por objectos
de carácter litúrgico, livros, etc. – pode estar indiciada
pela descoberta in situ de uma pedra almofadada em
forma de paralelipípedo, fincada no chão, que pode ter
servido como pé de mesa, encostada à parede. Vejase, em planta, a sua localização entre as sepulturas 14
e 18 (Figura 4)51. A existência de mesas na sala do
“tesouro” faz recordar uma passagem do testamento
de Mumadona que alude a “duas stolas litoneas de
seruicio mense in thesaurum” (DC 76)52.
A
presença
destes
anexos
acontece
independentemente da possibilidade de terem existido
outros complementares, nas imediações, construídos
em estrutura de madeira, eventualmente relacionada
com alguns dos buracos de poste que apareceram
na escavação da edifício B. Como referimos mais
acima, em Sª Marinha da Costa deve igualmente
ter ocorrido uma duplicidade de estruturas, com
materiais distintos, pelo menos na fase imediatamente
como na ligação entre os muros-atlante e as testeiras da aula, ainda visível
do lado ocidental.
50 Não temos ideia formada a respeito da actual porta leste, nesse
mesmo espaço.
51 Cfr. também Rituais, fotos 69 e 74. Nesta última fotografia vê-se bem o
pilarete em granito, junto ao antropólogo que está a escavar a sepultura 18.
52 Doravante citaremos com a sigla DC, seguida do respectivo número,
os documentos publicados nos Portugaliae Monumenta Histórica:
Diplomata et Chartae. As “stolas litoneas” seriam faixas compridas, que
serviam de mantel atravessado sobre uma mesa.
anterior à construção da palácio condal, com a igreja
em alvenaria (templo II) e uns anexos em madeira, de
impressionante monumentalidade.
No Prazo, o mais provável é estarmos diante
de um antigo mosteiro, cuja família patronal pode
eventualmente ser relacionada com a ascendência
de Flâmula Rodrigues, dado que os seus pais, pelo
que se deduz do respectivo testamento, deviam terse transformado nos principais senhores da região.
Apesar de todas as dúvidas que possam pairar sobre
este complexo basilical, não é de mais sublinhar a sua
transcendência no contexto da arqueologia da alta
Idade Média, em território português.
4. AS TRANSFORMAÇÕES NA BAIXA IDADE
MÉDIA
C
omo ficou referido acima, a escavação
revelou a existência de uma série de
diacronias arquitectónicas e forneceu
dados inequívocos da utilização do templo ainda na
baixa Idade Média. Um dos casos mais evidentes foi
o entaipamento da porta sul do nártex, com fustes de
coluna e argamassa (Figura 9). Há alguma lógica em
considerar contemporâneos, tanto este bloqueamento,
como o da passagem que lhe ficava próxima, entre
o mesmo nártex e a nave central do templo (Figura
11). A desafectação desta última – ou de outra
qualquer antiga porta – está também comprovada
pela descoberta avulsa de um elemento de soleira, no
compartimento mais ocidental do anexo sul, e que
aparece sumariamente representado no meio deste
espaço, na planta das ruínas após as escavações de
1996 (Figura 4).
Mas a maior perturbação documentada na basílica
alto-medieval é a que se relaciona com a apropriação
das naves do templo, por parte da necrópole. As
inumações mais antigas parecem respeitar a proibição
canónica de enterrar os defuntos no interior da
igreja. É que não estariam vedados os enterramentos
no nártex e noutros anexos eclesiais. De facto, as
sepulturas alto-medievais parecem situar-se na
periferia. Com referência ao estudo citado de António
do N. Sá Coixão, Rituais e cultos da morte na região
de Entre Douro e Côa, seleccionámos as seguintes, a
partir das respectivas descrições e de alguma reflexão
pessoal. A sua localização pode ver-se na figura 4, do
presente estudo, que reproduz o número de código
O Significado da basílica do Prazo
dado em escavação. São elas:
- Sepultura 1: sarcófago, no anexo sul (Figura 22 e
foto 39); deve acrescentar-se o fragmento resultante da
sua mutilação, na zona dos pés e aparecido junto a um
forno vizinho; foi-lhe atribuído o código S16 (foto 67)
- Sepultura 5: aberta na rocha, ovalada, no espaço
sul do nártex, talvez reutilizada (Figura 29 e foto 47)
- Sepultura 6: aberta na rocha, ovalada, no espaço
central do nártex, talvez refeita parcialmente com
pedras (Figura 30 e foto 48)
- Sepultura 7: sarcófago, no espaço central do
nártex; apareceu completo, mas muito fragmentado;
possui típicos estrangulamentos na cabeceira e nos pés
(Figura 30 e fotos 49-50)
- Sepultura 11: aberta na rocha, antropomórfica,
no exterior, onde veio a ser construído o anexo mais
ocidental; era coberto por uma laje de xisto, grosseira
(Figura 28, est. III e fotos 56-57)
- Sepultura 17: caixa funerária com pedra miúda,
no exterior, a sudoeste do edifício; apareceu com a orla
de pedras já muito destruída (Figura 35 e foto 68)
- Sepultura 19: caixa funerária com pedra pequena,
no exterior, a noroeste do edifício (Figura 36-37 e
fotos 71-72)
- Sepultura 21: caixa funerária com pedra pequena,
em muito bom estado de conservação, no anexo norte
(Figura 38 e fotos 74-76)
- Sepultura 22: caixa funerária com pedra pequena,
no anexo norte, sob a S18, que parcialmente a destruiu
(Figura 34 e 39, fotos 69-70)
- Sepultura s/nº: caixa funerária com pedra
pequena, no espaço norte do nártex, sob a S12, que
79
parcialmente a destruiu (Figura 34 e foto 58)
- Sepultura s/nº: aberta na rocha e de criança,
parcialmente destruída pela S14 (Figura 34)
- Sepultura s/nº: sarcófago de criança, no exterior,
situado numa plataforma de terreno mais elevada;
assente junto a uns batólitos de granito, tendo levado
Sá Coixão a pensar que ficou inacabado (foto 36).
Em linhas gerais, pode concluir-se existirem três
tipos de sepultura relacionados com a fase mais antiga
da comunidade: sarcófagos monolíticos, sepulturas
abertas na rocha e caixas formadas por pedra pequena.
No edifício C, a oeste do templo, foi descoberto um
sarcófago de granito, claramente fora de contexto e
com indícios de ter sido reaproveitado para fins de
uso doméstico (sepultura 8: Figura 31 e foto 51). Na
nave sul da igreja apareceu ainda um outro sarcófago,
de planta rectangular e cantos arredondados, com
tampa monolítica (sepultura 3: Figura 25 e fotos 4344). Trata-se de uma peça antiga, sem dúvida, mas que
se apresenta igualmente deslocada. Por fotografias da
escavação, nomeadamente nas duas reproduzidas a cor,
no desdobrável Sítio arqueológico romano/medieval
do Prazo, vê-se com clareza que a arca granítica foi
aí colocada em fase posterior, destruindo parte do
pavimento de opus signinum53.
Esta situação repete-se na maioria das restantes
inumações do interior da igreja, que furam o
pavimento original. Para além desta circunstância,
apresentam características diferentes das anteriores.
São caixas rectangulares ou trapezoidais, formadas
exclusivamente por belas lâminas de xisto, as mais
perfeitas (S12, S14, S18 e, talvez, S20), enquanto as
demais são de natureza mista, conjugando o xisto e o
granito. As peças em granito, porém, diferem das que
se usaram nas sepulturas mais antigas, pois formam
grandes blocos esquadriados (S2, S4, S6, S.13 e S.15).
De algum modo, fazem lembrar uma das fases do
cemitério de São Martinho de Lagares (Penafiel), um
edifício românico que sucede a outro templo mais
antigo54. A área de Freixo de Numão é constituída por
um maciço granítico com pouco mais de uma légua de
amplitude, o qual, excepto também na zona em que se
53 A fragmentação e anarquia em que apareceram as ossadas, no seu
interior, parecem demonstrar que o sarcófago foi aí instalado para servir
de ossário. Aliás, adjacente a ele apareceu outro ossário, que, na planta
publicada, aparece designado como Oss.1.
9 - Transformação da porta sul do nártex, entaipada com fustes
de coluna e argamassa (seg. António N. Sá Coixão).
54 BARROCA, Mário Jorge; REAL, Manuel Luís – Trabalhos
arqueológicos na igreja de Lagares (Penafiel). Relatório. (submetido ao
IPPAR em 1984, policopiado).
80
Manuel Luís Real
10 - Vista da parte meridional do edifício que encosta a ocidente do nártex, notando-se, à direita, um muro bastante tardio
(seg. António N. Sá Coixão).
implanta o castelo de Numão, é rodeado por formações
geológicas com predominância do xisto. Esta dupla
oferta de matéria-prima explica, em grande medida, o
carácter misto das alvenarias da estação arqueológica
do Prazo. Por sua vez, ela está bem patente neste novo
período da vida da comunidade, em que as sepulturas
passaram a demonstrar grandes progressos no domínio
do talhe da pedra, seja para a execução das grandes
placas de granito, seja para a virtuosa preparação das
lâminas de ardósia. De acordo com A. Sá Coixão,
“pelos numismas exumados no interior da igreja” o
templo foi usado ainda durante a 1ª dinastia e forneceu
moedas cunhadas, pelo menos, até ao reinado de D.
Afonso III55. Uma prova suplementar do intensivo uso
do templo para enterramentos, na sua derradeira fase
de vida, é-nos dada pela reutilização frequente das
campas, como na sepultura 27, que foi parcialmente
refeita para albergar um novo enterramento, desta
vez de uma criança (cfr. Rituais…, Figura 27). Outra
evidência relaciona-se com os múltiplos ossários
descobertos no interior do templo. Já nos referimos
55 Rituais…, p. 55.
à função assim desempenhada pelo sarcófago da
sepultura 8 e pelo ossário que lhe ficava adjacente,
na nave sul. E aos pés das sepulturas 13 e 15, do lado
exterior, foram também descobertos ossos empilhados
e protegidos com algumas pedras (idem, fig 33).
Em nosso entender, esta nova fase, onde se adensa
a função cemiterial do templo, deve corresponder à
sua provável passagem para o desempenho de funções
paroquiais. Um possível indício desta evolução parece
verificar-se também no conjunto arquitectónico que foi
designado por edifício C. Hoje é difícil de reconstituir
alguns detalhes da escavação, mas, da planta geral
publicada por A. Sá Coixão, pode constatar-se a
construção de um novo anexo, a ocidente do nártex e
encostado a este último (Figura 4). Para além dos muros
desenhados a negro, aparecem outros dois, no sentido
ortogonal ao templo, isto é, na direcção este-oeste,
que apenas são sumariamente indicados no desenho.
Um deles, situado mais a sul, quase no enfiamento
do limite meridional do nártex, está representado
em fotografia e revela ser um muro bastante tardio,
com fraco alicerce e a uma cota superior (Figura 10,
O Significado da basílica do Prazo
81
11 - Local da presumível passagem entre a nave central e o nártex, a qual terá sido destruída e entaipada, por um grosseiro muro
(seg. António N. Sá Coixão).
à direita). O outro alinhamento, que terá aparecido
já muito arruinado, fica em frente ao sarcófago (S8),
tendo sido provavelmente destruído por alturas da
trasladação da antiga caixa funerária para este local.
Ora tal resto de muro, pela sua posição, mostra
ter pertencido à primeira fase do presente anexo,
originalmente de planta bastante regular, constituindo
uma sala em forma de rectângulo pouco alongado,
no centro da qual se situa uma estrutura sumária em
forma de quadrado. Além do citado desenho, este
quadrado central aparece reproduzido em fotografia
(cfr. Rituais…, foto 57). Colocamos a hipótese de ser o
local de assentamento da pia baptismal56. Este espaço
veio mais tarde a ser destruído e, segundo o autor
da escavação, adaptado a funções agrárias, às quais
andará associado o sarcófago monolítico que encostou
ao muro exterior do nártex, para servir de pia, pois
apresenta um orifício para escoamento de água (S8).
56 Trata-se de uma estrutura algo parecida com a que Luís Caballero
escavou em San Pedro de la Nave e para a qual coloca também a hipótese
de se tratar dos restos de um baptistério, anexado ao edifício original:
CABALLERO ZOREDA, Luís (coord.) – La Iglesia de San Pedro de la Nave.
Zamora: Instituto de Estúdios Zamoranos “Florián de Ocampo”, 2004, p.
106-110.
Esta última fase parece remontar ao século XV, pois
estará também a ela ligada a moeda de D. Afonso V
(ceitil)57.
Antes do reinado de D. Dinis “o direito de padroado
era maioritariamente, quando não de forma exclusiva,
exercido pelas próprias populações”58. Freixo de
Numão constituía inicialmente paróquia anexa à igreja
de S. Pedro de Numão, situada no castelo. E, acaso seja
verdadeira a tradição de que o Prazo era considerado
pelos naturais como o “Freixo Antigo”, podemos ver
aí um indício da evolução recente sofrida pelo lugar
e do próximo abandono das funções eclesiais. Na
realidade, a paróquia de Freixo é integrada na doação
que o concelho de Numão faz a D. Dinis, na década
oitenta do séc. XIII. Será a altura do presumível
57 Rituais…, loc. cit.. Nesta mesma zona apareceram duas fossas
quadrangulares, às quais A. Sá Coixão atribui cronologia muito antiga,
vindo depois a ser reutilizadas como locais de sepultura (S 9 e 10). Uma
delas, pelo modo como foi descoberta, parecia mais um ossário. A outra
revelou dois corpos inumados lado a lado, se bem que um deles com o
esqueleto em estado de decomposição mais avançado.
58 SOALHEIRO, João – Arcipestrado de Vila Nova de Foz Côa. In
SOAHEIRO, João (coord.) – Foz Côa: Inventário e memória. Porto: Câmara
Municipal de Vila Nova de Foz Côa, 2000, p.47.
82
Manuel Luís Real
12 - Buracos de poste descobertos no interior do Edifício B. Aparentemente, o opus signinum já estava destruído no momento da escavação, o que pode indiciar a posteridade das estruturas em madeira relativamente ao edifício romano, contribuindo para a sua danificação (seg. António N. Sá Coixão).
abandono da igreja de Prazo, no que João Soalheiro
vê possível explicação na sua transferência para
Fraxino, cuja importância começaria então a revelarse59. A integração de Freixo no padroado régio tem a
ver, antes de mais, com a reforma geral empreendida
pelo monarca, o qual, no entanto, irá abrir mão desse
direito em algumas igrejas da região, após o Tratado
de Alcanizes e a resolução dos problemas de fronteira.
Foi o caso de algumas igrejas do termo de Numão,
que cede a favor do bispo de Lamego, igrejas essas que
reaparecem depois associadas ao chantrado, como a já
referida ermida de São João que, como vimos acima,
pode ser precisamente S. João do Prazo. Assim sendo,
o abandono do Prazo pode ser ligeiramente mais
tardio.
A concluir, deve referir-se que, após a extinção
das suas funções religiosas, a igreja terá caído no
abandono e as suas ruínas ficaram seladas pela queda
do telhado, como o revelou a escavação. Tal derrube é
descrito por A. Sá Coixão, que o regista em fotografia
59 Idem, p. 46-51.
(cfr. Rituais…, foto 47). No entanto, o local continuará
a ser usado, nomeadamente para a prática agrícola e
pecuária, como parece revelar a reutilização de um dos
sarcófagos, como pia, e o aparecimento de um forno
moderno de secar figos.
5. JUSTIFICAÇÃO HISTÓRICO - CULTURAL
DA BASÍLICA DO PRAZO
D
o ponto de vista formal, a basílica do Prazo
apresenta algumas características que
sugerem a sua pertença a um grupo mais
alargado, com afinidades na planimetria da aula eclesial
(Figura 20) e nalgum apelo a memórias classicizantes,
como a reutilização de capitéis lisos e bases de perfil
dórico ou de frisos com molduras de tradição romana
(Figura 8). Reportamo-nos essencialmente a três
edifícios basilicais, que, embora tendo passado por
algumas vicissitudes, chegaram até nós com elementos
suficientes para lhes podermos atribuir um ar de
O Significado da basílica do Prazo
13 - Duas soluções para suporte das arcaturas, no interior da
igreja de S. Pedro de Balsemão.
83
família. São eles, como já atrás deixamos referido, os
templos de S. Pedro de Lourosa, S. Pedro de Balsemão
e S. João do Prazo. E o que os torna ainda mais
sugestivos é a sua integração numa corrente que atinge
toda chamada Beira Alta e que evidencia – mais do que
em qualquer outra zona do país – influências visíveis
da arquitectura e da escultura que então se praticava
no reino das Astúrias. Entre outros aspectos, sobressai
em S. Pedro de Lourosa a sua planta, que se inspira em
larga medida na basílica ovetense de San Julian de los
Prados60. E se alguma dúvida houvesse, poder-se-iam
ainda invocar os elementos de ajimez ou os modilhões
de um só rolo, estriados no topo, de claro modelo
asturiano. Mais interessante ainda, é a cruz gravada
numa das pedras de altar de Lourosa, cujo desenho se
inspira directamente na Cruz de los Angeles, oferecida
por pelo rei Afonso II à basílica de San Salvador de
Oviedo, no ano de 808 d. C.61. A referida peça de altar
encontra-se hoje desaparecida, mas aparece na obra do
Cónego Aguiar Barreiros e chegou a ser fotografada,
em excelentes condições, pelo Instituto Arqueológico
Alemão de Madrid (Figura 21)62. Tratava-se de uma
ara romana, que foi reutilizada para servir de pilar
de sustentação, presumivelmente, ao altar-mor da
basílica de Lourosa. Na sua parte frontal foi esculpido
o signum crucis, com braços de formato evasê63, onde
nem sequer falta a evocação dos cinco camafeus
existentes numa dos lados da célebre cruz do tesouro
da catedral de Oviedo.
Para além destes exemplos, podem ainda ser
referidas duas peças de escultura, de importância
excepcional. Uma delas é o capitel de acantos que
se salvou da antiga basílica de Sernancelhe, o qual
apresenta folhas bem características desta época, apenas
com um nervo central, muito desenvolvido (Figura
23). Pertence a uma tipologia relativamente rara e
quase exclusiva da escultura asturiana. Os exemplares
60 FERNANDES, Paulo Almeida – A igreja de São Pedro de Lourosa e a
sua relação com a arte asturiana. Arqueologia Medieval, 10, Mértola (2008)
21-40.
61 CASTRO VALDÉS, César Garcia de (ed. lit.) – Signum Salutis: Cruces
de orfebrería de los siglos V al XII. Oviedo: Consejería de Cultura y Turismo
del Principado de Astúrias; KRK Ediciones, 2008, p. 120-127.
62 BARREIROS, Manuel de Aguiar – A igreja de S. Pedro de Lourosa.
Porto: Marques Abreu, 1934, p. 29 e est.56; ARBEITER, Achim; NOACKHALEY, Sabine – Christliche denkmäler des frühen Mittelalters vom 8. bis
ins 11. Jahrhundert (Hispania Antiqua). Mainz: Verlag Philipp von Zabern,
1999, p. 237, abb. 164.
14 - Arcaturas das naves, no interior da basílica de S. Pedro de
Lourosa (seg. Paulo A. de Almeida Fernandes).
63 Parece-me ser a melhor forma de designar aquilo que se convencionou
chamar “cruz patada”; apesar de ser um francesismo, a palavra é adoptada
pelo dicionário Houaiss, na forma indicada.
84
Manuel Luís Real
15 - A implantação do clã senhorial de Lafões no médio vale do Vouga, que serviu de base estratégica para o movimento expansionista
protagonizado pelos descendentes de Diogo Fernandes e Onega (base cartográfica, seg. Fallingrain; composição de Paulo Cruz).
mais conhecidos relacionam-se com as igrejas de San
Miguel de Lillo e San Salvador de Priesca. A outra peça
diz respeito a um fragmento de ajimez, que se encontra
num trecho de muro da capela pré-românica de São
Martinho, junto às termas de S. Pedro do Sul (Figura
22). A respeito desta escultura e a sua estreita relação
com outra de San Salvador de Valdedios, que lhe terá
servido de modelo, explanei já o suficiente em trabalho
anterior sobre as respectivas características e as razões
dessa afinidade64. No entanto, deve adiantar-se que,
tanto quanto nos é dado apurar, serão estes casos
únicos, em que um ajimez é revestido de moldura tão
complexa. Na imagem aqui reproduzida, pondo em
confronto as duas peças, torna-se evidente que a de
Valdedios é muito mais elaborada, mostrando na zona
central da moldura uma fina decoração em espinha.
A peça da capela de São Martinho é mais grosseira,
mas mantém o mesmo tipo de ornato, com várias
caneluras paralelas. Além disso, o friso percorre o arco
que apresenta uma curvatura perfeitamente mimética
em relação ao modelo de Valdedios – detalhe que é de
sublinhar – e termina com uma inflexão na horizontal,
ao modo do ajimez asturiano65.
É altura de procurar uma explicação para esta
quase sistemática – e de algum modo inesperada –
proximidade de igrejas da Beira interior a modelos
asturianos produzidos ao longo do séc. IX. Não será a
64 REAL, Manuel Luís – O Castro de Baiões terá servido de atalaia
ou castelo, na Alta Idade Média? Sua provável relação com o refúgio de
Bermudo Ordonhes na Terra de Lafões. Revista da Faculdade de Letras:
Ciências e Técnicas do Património. 12. Porto (2013) 203-220.
65 Sobre as peças asturianas referenciadas cfr. CASTRO VALDÉS, César
Garcia – Arqueología Cristiana de la Alta Edad Media en Astúrias. Oviedo:
Real Instituto de Estúdios Asturianos, 1995, Figura 237, 263 e 285.
O Significado da basílica do Prazo
85
16 - Tenência ou comisso de Entre Côa e Távora, onde imperaram Rodrigo Tedones e Leodegúndia Dias, pais de Flâmula
(base cartográfica, seg. Fallingrain; composição de Paulo Cruz).
Reconquista cristã, só por si, a justificar tal presença,
pois nada se passa com tão acentuadas características,
tanto no Entre Douro e Minho, como na fronteira de
Coimbra.
Num estudo recente, demos algum relevo à
região de Lafões, onde se veio a instalar um grupo
dissidente, hostil a Afonso Magno66. Este grupo seria
fiel apoiante de um irmão rei, Bermudo Ordonhes,
que por duas vezes se teria já anteriormente rebelado
contra o monarca. O braço direito de Bermudo terá
sido Diogo Fernandes, um nobre galego ou castelhano
casado com Onega, que alguns pretendem ver como
uma princesa de origem navarra. A região de Viseu
pode ter constituído um foco de resistência mais
alargado, posto que há fortes suspeitas de que também
a ela estivesse ligado um outro irmão, Odoário, antigo
66 REAL, Manuel Luís – Op. cit., 2013.
conde de Castela (zona do Orense) e Viseu, cujos
bens vieram a ser confiscados por ordem do rei. Além
disso, a documentação indica-nos que a este núcleo
rebelde se associaram também alguns descendentes
dos presores de Tuy e Portucale. Pensamos que a razão
desta aliança terá sido provocada, porventura, por se
sentirem espoliados do governo de tais territórios,
em favor do mordomo-mor do reino, Hermenegildo
Guterres, guindado a esta posição após o apoio
prestado ao monarca durante uma rebelião na Galiza
liderada, entre outros, por um irmão de Vímara Peres.
Há fortes probabilidades de Bermudo Ordonhes se
ter instalado na vizinhança das caldas de Lafões, que se
mantinham activas desde a época romana, escolhendo
uma zona relativamente discreta, na actual freguesia
de Bordonhos. Ela reunia excepcionais condições, não
86
Manuel Luís Real
17 - Zona estratégica do médio vale do Mondego, onde imperou Ximeno Dias e se estabeleceram Alvito Lucides e Munia Dias
(base cartográfica, seg. Fallingrain; composição de Paulo Cruz).
apenas devido à proximidade das termas, mas também
pela fertilidade do solo e pela fácil vigilância que lhe
proporcionava uma tal posição. Na outra margem do
rio Vouga e sobranceiro às próprias termas, ficava o
castelo de Lafões (Vouzela), a fortificação militar que
se tornaria cabeça de território. A pouca distância deste
lugar, igualmente na margem sul, ficava na freguesia
de Moçâmedes o palácio de Diogo Fernandes e Onega.
Por este casal, aí terá sido criado até cerca dos doze
anos o terceiro filho do príncipe Ordonho, que foi
rei de Leon, com o título de Ramiro II. A chegada de
Bermudo Ordonhes a esta região, depois de derrotado
na batalha de Grajal, terá ocorrido por volta de 898 d.
C.. E aqui se veio a estabelecer durante quase trinta
anos, já que terá falecido no ano de 928 ou ligeiramente
antes. A sua permanência em terras de Lafões deve
ter passado por dois momentos distintos. Até 909-
910, altura em que o rei Afonso III é deposto pelos
filhos, vindo pouco depois a falecer, este grupo rebelde
deve ter-se mantido numa atitude essencialmente
defensiva. Como quase único interlocutor com o reino
do Norte poderá ter contado com o príncipe Ordonho,
governador da Galiza e que em 914 se tornará rei em
Leon, com o epíteto de Ordonho II. Posteriormente,
a sua posição – e a de Diogo Fernandes – deve ter
evoluído para uma progressivo reforço de poderes
e de expansão senhorial. A presença deste clã de
origem asturiana, com eventuais ligações à Galiza,
a Castela e, até, a Navarra, adquiriu foros de poder
fronteiriço, semi-independente. A sua situação pode
ser posta em paralelo com a de outros grupos que se
desenvolveram noutras marcas ou estremaduras do
reino asturo-leonês, como os Banu Qasi em Saragoça,
os Iñiguez em Navarra ou as cortes de Nuno Núñez
O Significado da basílica do Prazo
87
18 - Expansão senhorial do mesmo clã, junto à cidade de Lamego, onde possuíram herdades Ximeno, Múnia e Leodegúndia Dias
(base cartográfica, seg. Fallingrain; composição de Paulo Cruz).
(Munio Múniz) e de Fernan Gonzalez em Castela. O
conde lafonense Diogo Fernandes67 pode ser, em justa
medida, equiparado a estes magnates. Tal como aos
irmãos Ismail e Fortún ibn Musa fora encomendado
o príncipe Ordonho, “ad nutriendum” nos confins do
reino, também Diogo e Onega receberam deste último
– já adulto – a incumbência de criar o filho Ramiro.
E tal como o conde Nuno Nuñez, ele distancia-se da
corte do rei Magno, aí reaparecendo ambos no ano
909, quando está eminente a queda do monarca.
A presença do príncipe asturiano Bermudo
67 É de anotar que nenhum documento lhe atribui o título de “conde”,
o que, por si só, não significa que não tenha ascendido a tal dignidade.
A documentação é muito escassa e nem sempre era usado o respectivo
título (tal como os reis, muitas vezes, dispensavam a designação do cargo,
ficando-se pelo qualificativo de “princeps”). Por outro lado, a sua condição
de rebeldia não podia ser premiada pela monarquia. Dois dos seus filhos,
Ximeno Dias e Mumadona Dias, receberam expressamente a menção do
estatuto condal.
Ordoñez na zona das caldas de Lafões é-nos atestada,
no plano artístico, pela existência do já referido ajimez
da capela de São Martinho, templo que pode ter sido
uma fundação sua, tal como, em nosso entender, é
legítima a hipótese de lhe poder ser também atribuída
a responsabilidade pela primeira fase da construção de
San Salvador de Valdedios68.
Diogo Fernandes e Onega tiveram quatro filhos –
Munia, Leodegúndia, Ximeno e Mumadona – sendo
talvez esta a respectiva ordem de nascimento, dado que
é assim que os seus nomes aparecem alinhados num
documento em que todos eles figuram. A primeira
casou com Alvito Lucides, um neto de Vímara Peres.
Leodegúndia teve provavelmente como marido
Rodrigo Tedones, descendente do conde Afonso
68 REAL, Manuel Luís – Op. cit., 2013, p. 213-214.
88
Manuel Luís Real
“Betote”, o presor de Tuy. São eles os progenitores da
celebrada D. Flâmula (ou Chamoa) Rodrigues que,
por testamento, deixa os castelos do Côa ao mosteiro
de Guimarães. O filho varão de Diogo e Onega,
Ximeno Dias, casará com Ausenda Guterres, uma
neta do presor de Coimbra – presumível adversário
do clã – mas já depois da morte deste e na tentativa,
porventura, de aproximação entre ambas as linhagens,
tornando-se assim cunhado de São Rosendo, o
eminente abade de Celanova, bispo de Mondoñedo
e, depois, bispo de Iria Flavia/Santiago. A condessa
Mumadona, provavelmente a filha mais nova, casa
com Hermenegildo Gonçalves, primo de Rodrigo
Tedones e igualmente neto de Afonso Betote69. Pelo
lado de sua avó paterna é, ainda, bisneto do conde
rebelde Hermenegildo (irmão de Vímara Peres).
Jogando com esta rede familiar, o clã irá
desenvolver um sistema de defesa periférico que,
pela sua distribuição no território, poderemos
considerar perfeito. O núcleo direccional encontrase no médio vale do Vouga (Figura 15), centrado no
castelo de Lafões, com o apoio em algumas atalaias e
fortificações secundárias. Junto à villa escolhida pelo
líder do clã, que habitaria o paço de Bordonhos, havia
provavelmente dois pontos importantes de postos de
observação, no castro de Nª Sª da Guia e no castelo
de Nespereira70. Recorrendo à documentação relativa
ao património da linhagem de Diogo Fernandes e
Onega, verifica-se que à filha mais nova e seu genro,
Hermenegildo Gonçalves, estaria confiada uma
posição na zona de transição entre o médio Vouga
e a faixa costeira, donde poderia vir algum perigo.
Na realidade, de acordo com a partilha de bens após
a morte do conde Hermenegildo, em 950, na parte
que coube a um dos seus filhos, o diácono Ramiro,
contam-se quatro vilas na chamada região de Centum
Cortes (DC 61). São elas a villa Sanctus Martinus
(hoje o lugar de Ermida, junto a Sever do Vouga), a
villa de Spinitelo (ou “villa Idolo”, em Espindelo, freg.
de Ribeiradio, conc. de Oliveira de Frades), a villa
Quintanela (Quintela, na freg. de Arcozelo, em Oliveira
de Frades) e a villa de Manancos71. A localização desta
69 Hermenegildo é filho de Gonçalo Betotes, enquanto Rodrigo será
descendente de Tedon Betotes.
70 Idem, 2013, p. 220-224. Para uma informação mais completa sobre o
sistema defensivo em redor de Viseu-Lafões vd.: MARQUES, Jorge Adolfo
de Meneses – Castelos da Reconquista na região de Viseu. In Arqueologia
da Idade Média da Península Ibérica. Actas do 3º Congresso de Arqueologia
Peninsular, v. 7. Porto: ADECAP, 2000, p. 113-129.
71 Veja-se a propósito a Grande Enciclopédia Portuguesa e Brasileira
última é aparentemente mais complexa. No entanto, o
topónimo – que hoje é irreconhecível na zona – parece
relacionado com “manar ” e “manancial”, o que tem a
ver com jorrar água, fonte, nascente, etc.. Por essa razão,
estamos inclinados a situar esta herdade para os lados
da Serra do Ladário, onde nasce uma série de ribeiros
(da Gaia, de Io, do Esporão, da Alombada, de Cedrim,
da Ponte) e onde existem grandes concentrações
de água em Alagoa, na Vessada do Salgueiro e no
Lameiro Longo. Numa e noutra margem do Vouga, a
arqueologia identificou pelo menos duas fortificações
alto-medievais, respectivamente no castro da Coroa
(Arcozelo das Maias) e no Castelo da Pena, em Sever do
Vouga 72. É incerta a existência de uma atalaia no castro
da Várzea, perto de Reigoso73. Mas um pouco mais a
sul, o arqueólogo Jorge Adolfo Marques identificou o
roqueiro castêlo de Alcofra74, que, com o de Guardão,
defendia um acesso alternativo ao centro políticomilitar da Terra de Lafões, através do Caramulo e pelo
importante vale de Besteiros, onde, não talvez por
acaso, encontramos o topónimo “Muna” no concelho
de Tondela.
É de referir, de passagem, que o vale do Vouga
foi partilhado com outros familiares desta estirpe,
nomeadamente da casa de Gondesindo Eres, primo de
Mumadona, cuja descendência terá dado origem aos
senhores de Marnel. Trata-se, pois, de um território
onde os perigos, embora presentes, não incomodariam
tanto como em outras zonas mais expostas. Daí que
leve a pensar que possa ser esta a razão para que a sua
tutela tenha ficado a cargo da herdeira mais nova de
Diogo Fernandes e Onega75.
(GEPB), sv “Sever do Vouga”, v. 28, p. 607; e FERNANDES, A. de Almeida
– Adosinda e Ximeno: Problemas históricos dos séculos IX e X. Guimarães:
Sociedade Martins Sarmento, 1982, p. 11-14.
72 EON, Indústrias Criativas (coord.) – Genius Loci: o Espírito do Lugar.
Sever do Vouga: Câmara Municipal, 2013, p. 130-131.
73 Agradecemos ao Dr. Filipe Soares, do Museu das Técnicas Rurais,
todas as informações concedidas acerca do concelho de Oliveira de Frades.
74 MARQUES, Jorge Adolfo de Meneses – Carta arqueológica do
concelho de Vouzela. Vouzela: Câmara Municipal, 1999, p. 39.
75 Sobre estas várias famílias condais vejam-se, entre outros:
FERNANDES, A. de Almeida – A nobreza na época vimarano-portugalense.
Guimarães: Sociedade Martins Sarmento, 1981; MATTOSO, José – A
nobreza medieval portuguesa. Lisboa: Editorial Estampa, 1981, p. 101-157;
e MATTOSO, José; KRUS, Luís; ANDRADE, Amélia – O Castelo e a Feira.
A Terra de Santa Maria nos séculos XI a XIII. Lisboa: Editorial Estampa,
1989, p. 127-132.
O Significado da basílica do Prazo
89
19 - Vista isométrica da igreja de San Julian de los Prados, em Oviedo, que terá servido de modelo
para algumas basílicas da Beira interior (seg. Lorenzo Arias).
Chama a atenção a circunstância de, na distribuição
das áreas de influência deste grupo de “homens de
fronteira”, não existirem traços de se terem interessado
pela zona da Serra da Estrêla e do distrito de Castelo
Branco. Deve concluir-se, deste facto, que a fronteira
com o Islão não seria causa de grande preocupação
para eles. Bermudo Ordonhes tinha anteriormente
dominado Astorga, num golpe de rebelião que terá
durando uns sete anos, e fê-lo, segundo crónica de
Sampiro, tendo árabes consigo76. Como inimigo
declarado de rei de Leon, seria um aliado natural
76 QUINTANA PRIETO, Augusto – La “Tirania” de Bermudo, el Ciego,
en Astorga. Leon, 1967, p. 113 (sep. de “Archivos Leoneses”, nº 41).
de Córdova ou, pelo menos, teria o direito a não ser
hostilizado. As boas relações estabelecidas pelo clã com
o al-Andalus estão mesmo comprovadas em S. Pedro de
Lourosa, onde existem peças avulsas que demonstram
ter existido uma possível torre, cuja cornija imitava as
arcaturas usadas nos alminares cordoveses. Por fim, é
de ter em conta que um movimento de expansão para
sudoeste poderia ser encarado como um acto hostil,
pelo que poderemos encontrar alguma lógica nesta
ausência de dados relativamente às áreas em questão,
apesar da grande mobilidade que, desde cedo, este
grupo evidenciará.
O terreno mais crítico para o clã rebelde era, sem
90
Manuel Luís Real
20 - Análise comparativa das plantas das basílicas de S. Pedro de Lourosa, S. João do Prazo e S. Pedro de Balsemão
(arranjo gráfico de Cláudio Almeida).
sombra de dúvida, a zona atravessada pelas vias que
ligavam a Leon à região de Viseu, seja através de
Zamora e cuja penetração se daria – na parte hoje
portuguesa – por Escarigo e Vermiosa77, seja sobretudo
de Astorga, cujo trajecto seria eventualmente mais
traiçoeiro. É esta, a nosso ver, a explicação para a
presença de tantos castelos e penelas na posse de
Flâmula Rodrigues, quando, no ano de 960, faz deles
testamento ao mosteiro de Guimarães. A deovota
Flâmula (ou Chamoa) era neta de Diogo Fernandes e
Onega. Terá herdado esses bens de seu pai, Rodrigo
Tedones, que seria porventura o mais maduro dos
genros daquele prócere lafonense. Assim pode ser
entendida a circunstância de lhe estar atribuído todo
o sistema defensivo da região entre Côa78 e Távora
(Figura 16). O estudo da organização militar na Beira
interior, no século X, já foi efectuado por outros autores,
com destaque par Mário J. Barroca79. O castelo que
77 É de supor que Almofala, Vilar Torpim e Pinhel desempenhassem
já um papel de relevo como atalaias ao longo do trajecto em território
português. Para outros pontos de vigilância e sinalização estratégica vd.
BARROCA, Mário Jorge – De Miranda do Douro ao Sabugal: Arquitectura
militar e testemunhos arqueológicos medievais num espaço de fronteira.
Portugalia, Nova série, v. 29-30. Porto (2008) p. 228.
78 Há a possibilidade de se estender até ao rio Águeda, como veremos
adiante.
79 IDEM – Do castelo da Reconquista ao castelo românico (séc. IX-XIII).
Portugalia, Nova série, v. 11-12. Porto (1990-91) p. 94-98; Fortificações
desempenhava funções estratégicas mais relevantes era
naturalmente o de Trancoso, que servia de obstáculo
à passagem de forças inimigas que descessem de
León, por qualquer das vias. O citado autor chamou
a atenção para a grande antiguidade da torre de
menagem de Trancoso, avançando com a hipótese de
se tratar de invulgar relíquia da lista de castelos que
pertenceram a Flâmula. Escavações arqueológicas
recentes, realizadas dento da primeira cerca desta
fortificação, aconselham a uma certa prudência a
esse respeito. Elas comprovaram que, até ao séc. VIIIIX, não existira qualquer ocupação anterior naquele
lugar, o que sugere ter sido ela logo efectuada para
fins militares. Além de cerâmicas de produção local,
existem materiais do período emiral-califal, ou seja,
exactamente contemporâneos dos acontecimentos que
estamos a descrever. Todavia, apareceram estruturas
mais antigas do que a referida torre, estruturas essas
que já seguiriam um amplo traçado, bem próximo do
da cerca actual – pelo menos na parte oeste – e que
dispunha de contrafortes redondos. Foi encontrado
um deles, aliás, em posição incompatível com a porta
do recinto na baixa Idade Média80. O traçado da
e povoamento no norte de Portugal. Portugalia, Nova série, v. 25. Porto
(2004) p. 189-191.
80 Poder-se-á ver nisto um indício de construção islâmica, do período
O Significado da basílica do Prazo
primitiva muralha apareceu em vários locais, sendo de
salientar que, durante as obras da DGEMN, surgiu um
fabuloso pano desta cerca, do qual restam fotografias.
Ao que parece, o recinto sofreu grandes reparações
em época posterior, porventura durante o reinado
de D. Afonso Henriques, pois apareceu uma mealha
mandada cunhar por este monarca, no fundo de uma
torre rectangular que substituiu o citado contraforte
redondo. O conjunto do espólio ainda se encontra em
estudo, pelo que é prematuro avançar com conclusões
definitivas. À primeira vista, a construção da torre
de menagem poderá situar-se numa fase intermédia,
articulando-se com ela outras estruturas que lhe estão
adjacentes. Todavia, é ainda prematura a atribuição
de uma cronologia precisa, podendo esta ser mesmo
posterior à época de Flâmula, segundo hipótese
provisória avançada pelos arqueólogos responsáveis
pela escavação81. Não é de descartar também a
possibilidade de a primeira fase corresponder a uma
construção emiral, seguindo-se uma reforma à conta
dos repovoadores cristãos.
Outra importante fortaleza, a destacar-se no
conjunto, deverá ter sido o castelo de Numão. Na
documentação antiga aparece designado como
“Nauman” ou “Noman, cognomento Monforte”. Este
último apelativo, “Monforte”, aponta desde logo para
a singular importância estratégica da elevação onde
se implanta tal reduto. Por outro lado, o topónimo
“Nauman”, já referido em 960, deriva do antroponímico
árabe nu´mân, que significa homem de “sangue
[nobre]”82. A presença de um nome árabe dado tão
precocemente àquele castelo, não pode deixar de
sugerir a sua origem anterior à primeira Reconquista do
território. Ele derivará, quase seguramente, do próprio
nome do líder que representava o poder emiral na
região. Aliás, o mesmo deixou a sua marca na toponímia
local, em Sabadelhe, no lugar conhecido por “Terra do
emiral?
81 FERREIRA, Maria do Céu et al. – Castelo de Trancoso. Trancoso:
ARA-Associação de Desenvolvimento, Estudo e Defesa do Património
da Beira Interior, 2011; FERREIRA, Maria do Céu; LOBÃO, João Carlos;
CATARINO, Helena – Cerâmicas altomedievais do castelo de Trancoso:
uma primeira abordagem. Arqueologia Medieval, 12. Mértola (2012) 15-20;
FERREIRA, Maria do Céu; LOBÃO, João Carlos – Arqueologia no castelo
de Trancoso: novos dados para o estudo da fortificação. In Fortificações e
Território na Península Ibérica e Magreb (séculos VI a XVI). II Simpósio
Internacional sobre Castelos. Lisboa: Edições Colibri (no prelo).
Agradecemos à Drª Maria do Céu Ferreira todas as informações fornecidas
sobre esta importante descoberta.
82 ALVES, Adalberto – Dicionário de arabismos da língua portuguesa.
Lisboa: INCM, 2013, p. 608.
91
21 - Altar de S. Pedro de Lourosa, hoje desaparecido, onde estava
esculpida uma representação da imperial Cruz de los Angeles, de
Oviedo, inclusive com a precisa referência aos cinco camafeus
que lhe ornamentam os braços e a cruzeta
(seg. Instituto Arqueológico Alemão de Madrid).
Rei Nemão”, onde A. Sá Coixão encontrou vestígios de
uma “uilla” romana. A cerca do castelo primitivo, de
âmbito mais reduzido e traçado irregular, embora com
tendência para o rectângulo, pode seguir-se na parte
setentrional da fortificação, no seu interior, através de
pequenos trechos da muralha (Figura 26) e sucessivos
entalhes na rocha. O levantamento está por fazer, mas
viemos a constatar que a sua localização – aproximada,
embora não exacta – se encontra já sugerida numa das
plantas gerais que acompanham a publicação sobre os
trabalhos arqueológicos na Vila Velha de Numão83.
Na cerca actual, existe também um pano de muralha
relativamente antigo, do lado Norte, com aparelho não
isódomo, que poderá eventualmente corresponder ao
início da remodelação do castelo após a conquista das
Beiras, por Fernando Magno.
83 LOPES, Isabel Alexandra; SANTOS, Heloísa Valente dos;
ABRANCHES, Paula Barreira – Vila Velha de Numão: Registo arqueológico
de um espaço duriense. Douro. Estudos & Documentos. 12:21 (2006) 229240.
92
Manuel Luís Real
22 - Fotografia do fragmento de ajimez de S. Martinho, nas Caldas de Lafões, colocado em confronto com a peça que lhe serviu de modelo, existente na cabeceira de S. Salvador de Valdedios, nas Astúrias (arranjo gráfico de Cláudio Almeida).
As funções de Numão como cabeça de território
continuarão na fase seguinte e, mesmo, durante a
primeira dinastia84. Somos, pois, de opinião que
Rodrigo Tedones85 terá sido mandante numa espécie
de tenência defensiva entre o Douro e Trancoso, na
primeira metade do século X, a qual estaria limitada
a ocidente pelo rio Távora e a oriente pelo Côa, senão
mesmo o Águeda. Segundo João Soalheiro, com
aparente fundamento, o termo de Numão chegaria até
ao rio Águeda, nos inícios da nacionalidade86. Embora
difícil de comprovar, é aliciante o estabelecimento de
uma ligação entre o topónimo “Castelo Rodrigo” e o
nome do magnate que, por estas paragens, defendia os
84 No entanto, trata-se duma zona que na alta Idade Média vivia à
margem do poder central. Cfr. MARTIN VISO, Iñaki – En la periferia
del sistema: Riba Côa entre la antiguidad tardia e la alta edad media. In
JACINTO, R. ; BENTO, V., (coord.s) – I Conferência, Territórios e Culturas
Ibéricas. Porto: Campo das Letras - Guarda: Centro de Estudos Ibéricos,
2004, p. 168-208; IDEM – Espacios sin Estado: Los territórios occidentales
entre el Duero y el Sistema Central (siglos VIII-IX). In MARTIN VISO,
Iñaki (ed. lit.) – Tiempos oscuros?. Territórios y sociedade n el centro de la
Península Ibérica (siglos – VII-X). Madrid: Sílex Ediciones, 2009, p. 107135.
85 É curioso registar, junto à ribeira de Teja e a par de Numão, a
existência do topónimo “Conde”, onde apareceram duas inscrições
rupestres, condenadas a ficarem submersas pela barragem do Catapareiro.
86 Sobre as fronteiras do termo de Numão, vd: COIXÃO, António do
Nascimento Sá; TRABULO, António Adalberto Rodrigues – Evolução
político-administrativa na área do actual concelho de Vila Nova de Foz
Côa: séculos XII a XX. Vila Nova de Foz Côa: Câmara Municipal, 1995;
MARQUES, Maria Alegria Fernandes – As terras de Vila Nova de Foz Côa
na Idade Média. In SOALHEIRO, João (coord.) – Foz Côa: Inventário e
memória. Porto: Câmara Municipal de Vila Nova de Foz Côa, 2000, p. 19
; e SOALHEIRO, João – Arcipestrado de Vila Nova de Foz Côa. In Idem,
p.32-36. Segundo este último autor, incluiriam mesmo terras na margem
direita do rio Côa.
acessos a Viseu e Lafões87. A este propósito, não deixa
de ser também significativa a existência, a sudeste
de Barca d´Alva, dos restos de uma presumível villa
romana no chamado “Vale Tedão”, onde Manuel Maia
encontrou muita tégula, uma tampa de sepultura e
mós manuais88. A verdade é que este território ficou
marcado por uma certa desconfiança relativamente
às respectivas aspirações autonómicas. Não deve ter
sido por acaso que, após a Reconquista definitiva
no tempo de Fernando Magno, a “região a sul do
Douro, compreendida entre os rios Távora e Águeda,
não integrou o território portucalense, pelo que
todo o repovoamento dessa área deverá ter sido da
responsabilidade de um presor leonês, existindo bons
argumentos que levam a admitir que os Bragançãos
tenham recebido o governo de todo o imenso
território que “extremava” o lado oriental do Condado
Portucalense, desde Chaves até Bragança, e daí para
sul, ultrapassando o Douro entre aqueles dois rios, até
ao Sabugal”89. É na qualidade de governador regional
que Fernão Mendes de Bragança concederá foral a
Numão, em 1130, numa altura em que enceta diálogo
87 Sobre as dúvidas que pairam acerca da origem deste topónimo
vd: BORGES, Júlio António – Concelho de Figueira de Castelo Rodrigo:
Subsídios para a sua História. Figueira de Castelo Rodrigues: Câmara
Municipal, 2007, p. 83.
88 BORGES, Op. cit., 2007, p. 49; COSME, Susana Maria Rodrigues Entre o Côa e o Águeda: Povoamento nas épocas romana e alto-medieval.
Dissertação de Mestrado em Arqueologia apresentada à faculdade de
Letras da Universidade do Porto, 2002. (Texto Policopiado), p.54-55, 91,
109.
89 PIZARRO, José Augusto de Sotto Mayor – O regime senhorial na
fronteira do nordeste português. Alto Douro e Riba Côa (séculos XI-XIII).
Hispânia, 67:227 (sept.-dic. 2007) p. 867.
O Significado da basílica do Prazo
com D. Afonso Henriques, cuja irmã se consorciará
precisamente com este magnata.
O castelo de Numão, com auxílio de algumas esculcas
ribeirinhas – Nossa Senhora do Viso (Custóias), Alto
da Atalaia (Algodres), Atalaia (Almendra), etc. – teria
a função de controlar as passagens do Douro que
pudessem ser utilizadas por qualquer hoste inimiga
que, vinda do Norte, se dirigisse a Viseu. O testamento
de Flâmula deixa perceber que outras fortificações
haveriam, para além das citadas. E nem todos os
castelos e penelas referidos no testamento (960) e
no inventário dos bens do mosteiro de Guimarães
(1059) se encontram devidamente identificados.
Apresentamos a localização mais consensual90, sendo
de notar que existia um eixo principal de segurança,
que controlava a via que desde o Vale da Vilariça e da
barca do Pocinho, seguia para Muxagata e Trancoso.
Um outro eixo permitiria também fácil penetração,
a partir do planalto de Carrazeda e da travessia do
Douro junto à quinta do Vesúvio, para depois passar
no lugar da Torre (no cruzamento de Rumansil) e
não muito longe do castelo de Numão, seguindo para
Penedono, Sernancelhe e Aguiar da Beira. Esta linha
de fortificações, ao longo do seu trajecto, apresenta
praticamente igual poder defensivo à da que bordejava
a estrada anterior. Mas não foram descuidadas certas
ligações secundárias, como o ramal que unia Penedono
a Trancoso, defendido pelo castelo de Terrenho, ou a
estrada que vinha de Lamego, por Moimenta da Beira,
a qual era vigiada pelo castelo de Caria. A apertada
malha de fortificações entre o Côa e Távora deve talvez
explicar as dificuldades sentidas posteriormente por
Fernando Magno quando preparava a reconquista de
Viseu, pois viu-se forçado a mais do que uma tentativa,
contornando o trajecto do Côa, sem dúvida o mais
directo.
Uma outra zona sensível, do ponto de vista da
segurança de Viseu, no trânsito do séc. IX para o
séc. X, seria a fronteira com Coimbra. A cidade
era dominada por uma estirpe rival, através da
descendência de Hermenegildo Guterres, o presor
da cidade e um dos homens em que Afonso Magno
mais confiava, a ponto de o nomear seu mordomo.
Ora, a melhor ligação entre Viseu-Lafões e Coimbra
era feita através dos vales do Dão e do Mondego.
90 Acrescentamos o castelo de Sª Justa, em Marialva, na convicção de que
a sua posição estratégica e a antiguidade do lugar convidam a considerá-lo
do mesmo período. Os casos de localização mais duvidosa são Vacinata
(Muxagata), Amindula (Meda) e Alcobria (Alcarva).
93
23 - Capitel proveniente de uma desaparecida igreja, construída
no sopé do castelo de Sernancelhe, do mesmo clã senhorial, e
que se inspira em esculturas de S. Miguel de Lillo ou S. Salvador
de Priesca, nos arredores de Oviedo
(seg. Exposição de Arte Sacra, Sernancelhe, 1964).
No entanto, por alturas de Penacova existe uma
portentosa barreira natural, em Livraria do Mondego,
resultante da cadeia montanhosa formada pelas serras
do Buçaco e da Atalhada, entre as quais o rio atravessa
num passo estreito, fácil de controlar. O mosteiro de
Lorvão, apesar de se encontrar a jusante de Penacova,
encontra-se protegido pelo mesmo sistema orográfico,
encaixado entre o Buçaco e a serra da Aveleira. E não
obstante estar-se já a poucos quilómetros de Coimbra,
parece que esta zona, na primeira metade do séc. X,
concretamente antes de 928 d. C., se encontraria
dominada pela estirpe lafonense, mais do que a
coimbrã. Na verdade, as relações do clã – outrora
rebelde, mas nesta altura já perfeitamente integrado,
graças à acção de Ordonho II e do príncipe Ramiro
– com o mosteiro de Lorvão parecem ser anteriores
às da casa de Coimbra. Estando essa dependência
relacionada com alguém que se tornou malquisto de
um sector da sociedade, avançamos com a hipótese
de tal circunstância poder ter sido responsável pela
possível damnatio memoriae que Maria João Branco
julga entrever, relativamente aos fundadores do
94
Manuel Luís Real
24 - A igreja-anta da Senhora do Monte, em Penela da Beira, construída provavelmente pelos mesmos patronos e que preserva algumas
características de matriz asturiana.
mosteiro91. Ora, na data referida de 928, a condessa
Onega (já viúva) e seus quatro filhos fazem doação
ao mosteiro de Lorvão da parte que lhes pertencia
em Vila Cova. E fazem-no pro anima dominissimi
nostri domini Ueremudi (Bermudo Ordonhes) e para
cumprir uma sua última vontade (LT 33)92. O vizinho
castelo de Penacova, que no séc. X se designaria “torre
de Miranda” (LT 37), devia nesta altura estar sob a
alçada do filho varão, o conde Ximeno Dias. Só assim
se compreende que, em 936, seja ele o juiz de uma
disputa sobre os limites entre Vila Cova e a villa de
Alcainça (LT 36), villa esta que ficava à sombra do
castelo e que um documento de 980 situa “in territorio
91 BRANCO, Maria João – Reis, condes, mosteiros e poderes: O
mosteiro de Lorvão no contexto político do reino de Leão (secs. IX-XI).
In Liber Testamentorum Coenobii Laurbanensis (Estúdios). Leon: Centro
de Estúdios e Investigación “San Isidoro”, 2008, p. 32-39. Doravante,
referiremos os documentos do Liber Testamentarum, pela sigla LT, seguida
do número respectivo.
92 É esta a passagem em que referem estar a cumprir a vontade de
Bermudo Ordonhes: “Nos uero agnoscentes quod noster domno iam ea
dederat ad ipso monasterio in uita sua et non potuit istum testamentum
complere, post hec adinplebimus nos quod ille inquoabit et nos et nos (sic)
adfirmabimus”.
de Miranda” (LT 43). A defesa desta barreira e o
controlo das duas vias de penetração, a norte e sul de
Penacova, seriam assegurados por atalaias no alto Viso
e na serra da Atalhada. A primeira, vigiava também a
estrada secundária que, a norte do Buçaco, se dirigia
em direcção a Mortágua e Santa Comba Dão, mas
tinha como papel principal defender o caminho que,
junto à portela da Oliveira, atravessava a própria serra.
À margem desta via, já em zona de protegida, situavase a villa de Gondelim (“Gundelini uel Palacio” – LT
50), onde ficaria um paço que, pelos anos de 984-985,
estava na posse de uns netos de Munia Dias e Alvito
Lucides (LT 48-50). A própria filha e genro de Diogo
Fernandes, os citados Munia e Alvito, entre 951-955
irão doar ao mosteiro de Lorvão outras vilas localizadas
um pouco mais a montante, em Midões (“cum suos
monasterios”…) e em Touriz (DC 100). Ficavam
ambas nas imediações de Bobadela, a splendidissima
civitas romana, cuja vida não sofreu interrupção
e que, na alta Idade Média, serviu de espólio para o
aproveitamento de elementos arquitectónicos em
construções coevas – com destaque para S. Pedro de
O Significado da basílica do Prazo
95
25 - O mesmo templo, cuja capela-mor aproveita a câmara do dólmen, possuía sobre o chapéu desta última,
uma câmara superior de tipo asturiano.
Lourosa, quase seguramente ligada à mesma família
patronal93 – e que pode também ter servido de assento
a membros do clã94. No mesmo documento é referida
uma outra herdade, a villa que vocitant Flamianes,
com o seu mosteiro, ornamento e biblioteca. Ficava
junto ao rio Alva, tendo-a Rui de Azevedo identificado
com Friúmes. Embora tivéssemos, no início, alguma
dificuldade em aceitar esta hipótese, achamo-la
possível depois de descartar outras alternativas e por
verificar que se situa na proximidade do actual “Vale
do Conde”, justamente sobranceiro ao citado afluente
do Mondego. A villa de Friúmes fica numa zona
acidentada, na outra margem do rio e quase simétrica
a Gondelim, bem perto da já secular via colimbriana,
à qual ela serviria de sentinela no limiar do território
controlado pelo clã lafonense. Esta antiga estrada era
93 REAL, Manuel Luís – Op. cit, 2012, p. 108 e114-117.
94 ALARCÃO, Jorge – A splendidissima civitas de Bobadela (Lusitânia).
Sep. de Anas, 15-16. Mérida (2002-2003), 155-180; GOMES, Mário Varela
e DIAS, Maria Manuela Alves – Jarro litúrgico, visigótico, de Bobadela
(Coimbra). In IV Reunió d´Arqueologia Cristiana Hispânica. Barcelona:
Institut d´Estudis Catalans; Universitat de Barcelona; Universidade Nova
de Lisboa, 1995, p. 91-98.
a principal de ligação à “via da Prata”, já em território
leonês, mas, na zona, partia dela um ramal para Viseu.
Vindo de Coimbra, este eixo viário atravessava o festo
da serra da Atalhada e, pela ponte da Mucela (de
musalla, “lugar de oração”) dirigia-se a S. Martinho da
Cortiça, Lourosa e Bobadela. Aqui divergia o referido
ramal, inflectindo para norte e passando pelo “porto
cum suo barco” de Midões (DC 100) e por Oliveira do
Conde, a caminho de Viseu. A penúltima localidade,
de acordo com um documento do Livro Preto da Sé
de Coimbra chamava-se “villa de comite” já em 1105
(LP 301). Na impossibilidade de sabermos a que conde
se referia o topónimo, deixamos a hipótese de aludir
a um membro da estirpe de Munia ou, mesmo, da
do seu cônjuge Alvito. Isto porque a villa Teodorici
(Touriz), referida no DC 100, terá recebido o seu
nome do conde Teodorico Lucides95, que devia deter aí
também uma parcela, juntamente com seu irmão, pois
são ambos filhos do conde Lucídio Vimaranes, aquele
95 Este conde reaparece no Livro Preto, como testemunha de um
documento sobre uma villa da zona de Cantanhede, e é referido juntamente
com seus irmãos em documentos do mosteiro de Celanova.
96
Manuel Luís Real
a quem provavelmente foram retirados os direitos de
sucessão no condado de Portucale.
A emergência desta elite beirã, no séc. IX-X, vai
conduzir à ocupação de um espaço que, em grande
medida, se desarticulara após a crise do Império
e a instalação dos reinos bárbaros, mas sobretudo
na sequência das perturbações causadas pela
invasão árabe da Península. O seu poder estruturase a partir de Lafões e vai irradiar de acordo com
objectivos estratégicos precisos, primeiro defensivos
e, posteriormente, decerto já com um plano de
senhorialização do território. O ponto de viragem
parece localizar-se imediatamente após 910, ano da
morte do rei Afonso Magno. Em estudo anterior,
adiantamos a hipótese de a árida inscrição de 912,
da igreja de S. Pedro de Lourosa, poder corresponder
ao momento da fundação solene da basílica – e não
à sagração – presumivelmente com a passagem do
futuro rei Ordonho II, em cuja corte e no referido
ano já aparece o príncipe Ramiro, até então criado no
seio da família de Diogo Fernandes e Onega. Também
em Trancoso existira outra basílica que forneceu uma
inscrição fundacional, hoje desaparecida, mas que
ficou transcrita com algumas imprecisões e se presume
igualmente reportar ao ano de 91296. A ser verdadeira
a data crítica da epígrafe de Trancoso, teremos a
confirmação do que, com alguma lógica, se adiantou
a respeito de Lourosa. O fim do reinado de Afonso III,
o Magno, pode ter representado o reforço do poder
desta família e os três lustros que se seguem devem
coincidir com a afirmação do seu território “in finibus
Gallaeciae”, decerto com o beneplácito e proveito
do próprio Ordonho II. No fim do reinado deste
monarca a região encontrar-se-ia já suficientemente
amadurecida para a experiência autonomista do rei
Ramiro, em Viseu, antes de ascender ao trono de Leon.
Este curto período, entre 926-930, terá sido igualmente
responsável para o relançamento da descendência de
Diogo Fernandes e Onega no Entre-Douro-e-Minho,
a ponto de poder tomar as rédeas do condado de
Portucale.
Algumas passagens da documentação relativa aos
herdeiros deixam entrever a existência de propriedades
de Diogo Fernandes e Onega bem para lá da Beira
interior97. No entanto, subsiste a dúvida se esses bens
96 BARROCA, Mário Jorge Barroca – Op. cit., , v. 2, t. 1, 2000, p. 34.
97 Por exemplo: “Tertia parte in villas de subpratello quomodo incartarunt
ad parentes nostros”…”In prato antile…et alia que comparauimos de
segiones etiam et ecclesia que fuit de parentes nostros”…”In ripa sause uilla
são de apropriação muito precoce ou derivam de uma
aquisição posterior à deposição de Afonso Magno.
Um pouco mais tarde, os domínios de família irão
conhecer uma evolução, começando a dispersar-se,
não apenas entre os herdeiros, mas também através de
alienações. O exemplo mais expressivo encontra-se nas
disposições de Flâmula Rodrigues, que no testamento
mostra vontade de que parte desse património
fosse usado para obras de caridade. Tratava-se,
precisamente, dos castelos “in ipsa extremadura”
e algumas “populaturas” a eles submetidas, que,
segundo a doadora, se deviam “omnia uindere et
pro remedio anime nostre captiuos et peregrinos et
monasteria distribuere in ipsa terre” (DC 81). Em 960,
aparentemente, se já não era considerado obsoleto o
sistema defensivo de entre Côa e Távora, havia pelo
menos o sentimento de que já não serviria para o fim
para o qual foi criado98. A expectativa de Flâmula de
que o mosteiro de Guimarães alcançaria a venda desses
bens, fundamentar-se-ia na consciência de que a
sociedade senhorial estava a evoluir, com a emergência
de pequenos poderes regionais, susceptíveis de estarem
interessados em adquirir os instrumentos necessários
ao exercício de tais poderes. Mas o certo é que os
castelos voltam a aparecer na posse do mosteiro, em
1059, ficando nós a conhecer o nome de mais um, que
não chegou a ser citado no testamento de Flâmula:
Terrenho. Daí poder-se concluir que nunca terão sido
vendidos apesar das disposições nesse sentido, ou que,
talvez melhor, foram ocupados pelas forças cristãs
após a reconquista das Beiras por Fernando Magno e
entregues ao mosteiro, ao abrigo do direito de presúria
e com o argumento de outrora terem estado na posse
do cenóbio vimaranense.
santom quantum ibidem obtinuit Mito et Adosinda de dato de nostros
parentes” (DC 71);“In prato antile… ecclesia que fuit de parentes nostros
uocabulo sancti iohannis” (DC 76); “villa de lalin sit in arbitrio de ipsa
tia domna Mummadomna cum as villas que ibidem sunt testatas retorta
castro nugaria portella teobolosa… sicut illas ganauit auios nostros didaco
fredenandiz et coniuge onnice, ad salizeta barrantes mastudo, ad pessegario
moledo, ad azer bretenandus, ad orreo villa mediana, ad palatiolo padule
et palatio…” (DC 81).
98 O destino histórico da região, com a reconquista das Beiras por
Almançor, fez com que estes castelos regressassem à função para que foram
criados, de novo como sistema defensivo face ao reino de León.
O Significado da basílica do Prazo
97
26
6. AS PROPRIEDADES DO CLÃ NO ALTO
DOURO
F
lâmula Rodrigues incumbe suas tias
Mumadona Dias e Godo Eriz, na qualidade
de testamentárias e em nome do mosteiro de
Guimarães, de providenciar a venda de um número
não quantificado de castelos, penelas e povoas “in
ipsa stremadura”, para que os benefícios colhidos da
respectiva transacção servissem para remédio de sua
alma e, como já dissemos, fossem distribuídos pelos
cativos, peregrinos e mosteiros. O Prazo terá sido um
desses monasteria , “in ipsa terra”, a que se refere a
filha de Leodegúndia e Rodrigo Tedonis. No entanto,
a sua menção não aparece explícita no testamento
ou se lá está, pelo menos, apresenta-se com alguma
dificuldade de interpretação. São deixadas ao cenóbio
vimaranense, no território “inter ambos riuulos” – isto
é, entre o Côa e o Távora – os lugares de “sabadelli,
vilar sico, ueiga, anta et eclesiola” (DC 81). Os três
primeiros não parecem causar grande dúvida. São as
povoações de Sabadelhe, Sequeira e Veiga, no concelho
de Vila Nova de Foz Côa (Figura 16).
Quanto a Sequeira, uma evolução de “Vilar Sico”,
situa-se num importante cruzamento de vias, tendo
aparecido nas proximidades uma sepultura aberta na
rocha, nas Ladeiras99.
A respeito de “Eclesiola” não nos foi possível
encontrar hoje o topónimo “Grijó”, tanto em Vila Nova
de Foz Côa, como nos concelhos vizinhos. Colocamos
a hipótese de se tratar precisamente do Prazo, não
apenas por até agora – se excluirmos a Ervamoira –
constituir um raro exemplo de igreja alto-medieval
na região, mas também por existirem antecedentes
paleocristãos (em sentido lato) que poderiam justificar
a consolidação do topónimo “eclesiola”, já em meados
do séc. X. Além disso, há que recordar que o bispo
de Lamego se refere provavelmente a este templo,
no séc. XIII, como uma “ermida”, o que faz supor
99 Na fronteira com o concelho de Meda existe o lugar de Sequeiros
e, um pouco adiante, na Fontelonga, foi descoberta uma necrópole em
Muimentos, com uma vintena de sepulturas. Estamos mais inclinado,
contudo, para considerar “Sequeira”, devido à sua estratégica face à rede
viária. A propósito do terceiro topónimo, há também a possibilidade de
encontrar uma alternativa em “Cortes de Veiga”, no Pocinho. Contudo,
afasta-se um pouco da área em estudo.
98
Manuel Luís Real
a continuidade da respectiva imagem como uma
“igrejinha”. Damos a identificação como provável, mas
não absolutamente segura.
Outro problema reside na identificação do
lugar “Anta”. O concelho de Vila Nova de Foz Côa
caracteriza-se pela total, ou quase total ausência, de
monumentos dolménicos. O casal Leisner indica
uma anta em Santa Comba, no entanto de localização
desconhecida100. Existem alguns topónimos, todos
eles no estreito planalto das Chãs, que indiciam a
possibilidade de ter havido uma ou outra sepultura
dolménica, mas a base é muito pouco segura. Parecenos também de descartar a hipótese de se tratar da
freguesia de “Antas”, no concelho de Penedono, não
apenas por se tratar do corónimo no plural, mas
sobretudo por esta localidade ficar já muito longe,
bastante a sul da sede do concelho101. A invocação
de um monumento dolménico para nome de lugar,
só pode ter duas explicações: ou era muito raro na
zona, para poder servir de referência, ou então seria
algo a que, por alguma razão especial, se atribuía uma
importância extraordinária. Estamos mais inclinado
para esta última possibilidade. E, procurando qualquer
situação do género, fomos dar com um exemplar de
importância excepcional no planalto da Senhora do
Monte, em Penela da Beira. Muito próximo, existia aí
uma “populatura” – Penela Vedra – que se implantou
ao abrigo de um castelo roqueiro ainda hoje com
grande notoriedade. Aí haveria um templo dedicado
a Santo Tirso. E em redor, existiriam inúmeros casais,
como o provam a presença de uma série de sepulturas
escavadas na rocha em Fonte Fria, Cômbaros, Cadestal,
Tapada do Vento, Senhor da Agrela e Vale de Pardieiros.
Algumas unidades de povoamento deveriam ter
uma certa expressão, como o indicará este último
topónimo. E precisamente junto a este fértil vale, já em
zona plana e pouco acima do “paúlo”, iria nascer um
outro templo em honra da Senhora do Monte. Tratase de um lugar onde existia uma necrópole do período
megalítico102, que a devoção popular transformou em
santuário. Assim, a anta maior foi adaptada a templo
cristão, aproveitando a câmara dolménica para capelamor. Porém, como o corredor de acesso estava virado a
oriente, ficou no exterior, desenvolvendo-se a nave da
igreja para o lado contrário (Figura 24). Trata-se de um
templo de dimensão apreciável e que apresenta uma
série de características que apontam, precisamente,
para uma construção alto-medieval. O aparelho é bem
característico, sendo muito semelhante ao que então
se praticava na arquitectura asturiana, com os cantos
reforçados por boa silharia – por vezes, alargada à
fachada principal, como em Valdedios – e com os
muros construídos por alvenaria de pedra miúda. Além
do mais, o aparelho da Senhora do Monte mantém
grandes afinidades com o pano da primeira muralha
de Trancoso, descoberto durante as obras de restauro
da DGEMN e cuja fotografia nos é revelada pelos
arqueólogos que recentemente escavaram no castelo103.
Mais interessante, ainda, é o facto deste templo ter
possuído uma câmara alta, sobre a capela-mor, da qual
ainda se preservam evidências sobre a laje de cobertura
do dólmen (Figura 25). Estas enigmáticas câmaras
constituem uma das marcas estilísticas identitárias da
arquitectura asturiana. Encontram-se em igrejas como
Santullano, Nora, Valdedios, Tuñon ou Priesca104.
Tomando como referência estas últimas, é provável
que a abertura de acesso fosse uma fenestração virada
a leste, mas já nada resta na Senhora do Monte, dado
que este compartimento superior se encontra muito
destruído. Mas a base do muro está intacta, assim como
nos restantes lanços, excepto parte do muro norte, que
tinha entrado em ruína e foi restaurado há poucos
anos105. No templo não existe qualquer arco peraltado
ou em ferradura, vulgares nesta época. A razão está
na circunstância de não existir arco triunfal na capelamor, devido ao aproveitamento da laje de cobertura da
anta, e ainda do facto de as portas serem rematadas
por poderosos lintéis. Mas este tipo de solução
também era utilizado na época, como pode ver-se na
ermida de San Xoán do Cachón (Orense), em que o
100 Agradecemos ao arqueólogo António Faustino Carvalho esta e
outras informações sobre a cultura dolménica na região.
1910, perdendo o telhado cinco anos mais tarde. No museu concelhio, em
Penedono, é relatado que no dia da Senhora do Monte se reuniam nesta
capela sete cruzes, que vinham em procissão das sete freguesias vizinhas.
101 Não podemos deixar de referir que nesta freguesia existem
sepulturas antropomórficas cavadas na rocha, o que aponta também para
uma ocupação alto-medieval.
102 CARVALHO, Pedro Manuel Sobral de – A necrópole megalítica da
Senhora do Monte (Penedono-Viseu).: Um espaço sagrado pré-histórico na
Beira Alta. Viseu: Centro de Estudos Pré-Históricos da Beira Alta, 1994.
Este arqueólogo efectuou escavações na área da igreja, tendo aparecido
moedas desde D. Sancho II a D. Sebastião. A intervenção forneceu também
espólio de época moderna, já que a igreja só foi abandonada entre 1900-
103 Cfr. FERREIRA & LOBÃO – Op. cit., 2013, Figura 10b.
104 A título de exemplo, cfr: ARIAS, Lorenzo – Prerrománico asturiano:
El arte de la Monarquia Asturiana. Gijón: Ediciones Trea, 1993.
105 Deste restauro, que não era fácil, devido à confusão gerada pela
ruína junto à base da câmara dolménica, resultou uma reconstituição que
julgamos defeituosa, pois não nos parece que o muro fosse aí arredondado,
tão diferente da solução preservada no lado sul da capela-mor.
O Significado da basílica do Prazo
lintel foi legendado para comemorar a sua construção
no ano 918, pelo abade Frankila106. Existe ainda outro
dado, da maior importância, para considerar neste
período a adaptação da Anta a templo religioso. É que,
relativamente próximo, existe a topónimo “Caniça”,
o qual não deixa margem de dúvida sobre o seu
significado, que é “Igreja” em linguagem moçárabe.
Não é pensável que tal designação tenha tido origem
noutra época senão entre os séculos VIII e XI. A sua
provável utilização posterior, como igreja paroquial,
pode estar indiciada na sobrevivência do muro que
delimitava o passal107. Tudo leva a crer, por conseguinte,
que o topónimo “Anta” usado no testamento de
Flâmula se possa reportar a este monumento. A
proximidade de uma Penela108 leva a pensar, também,
que esta seria uma daquelas que apenas aparecem
genericamente designadas na doação de Flâmula, sem
precisar o nome. Finalmente, a Senhora do Monte fica
a uma quase equidistância de Veiga ou Vilar Seco e de
Trevões, todas elas propriedades de Flâmula109.
Por documentação posterior a meados do século
X – e também da centúria seguinte – sabe-se que os
descendentes de Diogo Fernandes e Onega eram
possuidores de numerosas propriedades ao longo
do vale do Douro. Não iremos detalhar este aspecto,
porque parte delas ficam fora da área em análise, e
fica por saber em que momento começaram a ser
adquiridas. Mas importa regressar ao testamento de
Flâmula, para ver o que se passava na região de Lamego.
Segundo a referida versão, copiada para o Livro de
Mumadona, a sobrinha desta veio a legar ao mosteiro
de Guimarães “in illa extrema” as seguintes herdades:
“villa cersaria, treuules, baldoigii medium” (DC 81).
A última propriedade refere-se à actual Valdigem
e, como já vimos acima, a precedente diz respeito a
Trevões. Esta herdade pertencia ao actual concelho
de S. João da Pesqueira e a outra ficava às portas de
106 FREIRE CAMANIEL, José – El monacato gallego en la alta Edad
Media. A Coruña: Fundación Pedro Barrié de la Maza, 1998, tomo 1, p.
227-236.
107 Chamou-nos a atenção para este dado o amigo António Lima, numa
visita conjunta que fizemos ao local, tendo-se verificado que o templo se
situa no meio de um círculo murado, precisamente a doze passos da igreja.
108 No reduzido espaço que medeia entre este castelo roqueiro e
a Senhora do Monte, está um outro morro que o povo designa como
“Pendão”, eventualmente a recordar que tenha servido outrora para
sinalização à distância, dirigida a outras posições estratégicas.
109 No inventário dos bens do mosteiro de Guimarães (DC 420), de 1059,
aparecem na mesma zona outras duas herdades – Spinosa (Espinhosa, em
São João da Pesqueira) e Nace (que não logramos localizar). Elas podem
ter sido doadas por outros familiares, como está provado para mais alguns
bens no vale do Douro, mas cujo testamento não chegou até nós.
99
Lamego, a menos de uma légua da igreja pré-românica
de S. Pedro de Balsemão. Quanto à “villa cersaria”,
o seu nome indica que era um local produtor de
cerejas. Esta característica era, na toponímia medieval,
designada não apenas por “Cersaria”, mas ainda como
“Cerdeira” “Cerzeira” ou “Zerzeira”. De acordo com
A. de Almeida Fernandes havia precisamente o lugar
de Zerzeira junto a Lamego, no limite das freguesias
de Cambres e de Sande, e que veio a pertencer ao
mosteiro de Tarouca110. Atendendo à sua implantação,
na margem esquerda do rio Balsemão e próximo às
restantes vilas, deve ser neste local que se situava a
herdade de Flâmula. É possível que tais propriedades
as tenham recebido por herança de seus pais ou avós,
já que apenas possuía metade de Valdigem, podendo
estar a partilhá-la com algum parente, pois há outros
familiares com bens na proximidade. Era o caso
da “villa samota juxta flumen Durio” (Samodães)
que deve ter pertencido a seu primo Ximeno e foi
permutada com o rei Ramiro (DC 81)111. E era o caso
do mosteiro de Bagaúste, doado por sua tia Munia ao
mosteiro de Lorvão (LT 57)112. Nesta doação, Munia
inclui outros bens vinculados ao cenóbio de Bagaúste,
mas na margem oposta e um pouco a jusante: “mea
ecclesia, uocabulo Sancta Eolalia…et terras qui iacent
usque in muro qui divident cum uilla de Ciuitadelia et
de Porta de Sancto Uincenti”. Esta villa de Cidadelhe
corresponde ao lugar onde se implantava o castelo de
Aliobrio, na margem direita do Douro. Foi aqui que
Ordonho II – logo após a morte de seu pai, Afonso
Magno, e como monarca independente na Galiza –
reuniu uma cúria régia, no ano de 911, com “omnes
110 FERNANDES, A. de Almeida – Taraucae Monumenta Histórica.
Braga: Câmara Municipal de Tarouca, 1991-93, v. I/1, p.84 e v. I/3, p. 134137.
111 Ximeno Dias tinha-a oferecido à sobrinha Onega, que ingressara no
mosteiro de Guimarães. Posteriormente, a villa serviu para que Onega e
sua mãe, Mumadona, permutassem com o rei Ramiro a villa de Creixomil.
Esta “villa Samota” tem sido identificada com “Samoça”, no lugar da freg.
de Ariz, conc. do Marco de Canaveses. Em nenhuma parte do documento
é citada juntamente com outros bens situados “in ripa tameca”, local onde
se situa Samoça (apesar de também relativamente próxima do Douro). Por
outro lado, Samodães fica expressamente na margem do rio Douro (ao
abrigo do castelo de Penajóia) e, do ponto de vista linguístico, parece-nos
muito mais pertinente a evolução de uma consoante dental para outra do
mesmo tipo. Quanto à terminação -ães é algo semelhante, por exemplo,
àquela que, de “Baloca”, terá dado “Balugães”.
112 O resumo deste documento, na recente publicação do Liber
Testamentorum (Op. cit,, p. 677-680), contem uma imprecisão. Considera
Munia casada com um tal Bermudo. Ora Munia estava casada com Alvito
Lucides, que até subscreve o documento. A confusão surge da respeitosa
referência à memória de Bermudo Ordonhes: “pro remedio defunctorum
meorum… et pro memoria dominissimi mei domini Ueremudi, diue
memorie”. O príncipe Bermudo, que se havia rebelado contra o rei seu
irmão, já havia falecido há mais de trinta anos.
100
Manuel Luís Real
episcopi, comites, et capitanei territorio Galeciense”
(DC 17). Todos estes dados comprovam tratar-se
de uma zona altamente estratégica, numa época de
transição na vida do reino asturo-leonês (Figura 18).
O historiador Almeida Fernandes chega a colocar a
hipótese de nesta altura, ou seja, na primeira metade
do séc. X, a tenência de Lamego ter estado cometida
ao conde Rodrigo113. Parece-nos uma hipótese
plausível, como extensão da mandatione de entre Côa
e Távora114, porventura na época em que Ramiro se
torna rei, com capital em Viseu. Nesta ocasião tem
todo o sentido o reforço do papel de liderança de Viseu
sobre a região Douro, como mais a norte, no coração
do território portucalense, o que sucederá em 926 com
os condes Hermenegildo Gonçalves e Mumadona, a
quem, por iniciativa de Ramiro, é entregue a terra de
Guimarães115. Aí irá nascer – após Lorvão – o segundo
grande cenóbio da região a sul do rio Minho, o qual
sustentará o reforço do poder desta família, cujo
destino acompanha o evoluir do próprio senhorio do
condado de Portucale.
CONCLUSÃO
A
expansão do poder fundiário da família
estabelecida nos finais do séc. IX na terra
de Lafões, numa situação de rebeldia
contra o rei Afonso Magno, mostra que existiram
concentrações de propriedade sua em zonas onde se
vieram a implantar as três basílicas aqui analisadas
e que parecem pertencer a uma mesma linha
programática: Lourosa, Balsemão e Prazo. Por outro
lado, em todos os lugares onde foi possível localizar
vestígios materiais de construções patrocinadas por
membros do clã – arquitectónicos e ornamentais –
são visíveis influências quase directas de modelos
113 Veja-se, por exemplo, GEPB sv “Parada do Bispo”.
114 Independentemente da identificação do verdadeiro protagonista, a
famosa lenda de D. Tedo, referente ao concelho de Tabuaço, pode muito
bem estar relacionada com o domínio da descendência de Rodrigo Tedonis
na região entre o Távora e Lamego, pela extensão natural do seu senhorio
desde terras do Côa.
115 Foi do curso médio do Vouga que partiram Mumadona Dias e
Hermenegildo Gonçalves, para ocupar funções condais a norte do Douro
e com sede em Guimarães. Deixados, quando ainda eram novos, numa
posição relativamente secundária face às responsabilidades cometidas
aos restantes filhos e genros de Diogo Fernandes e Onega, eles serão
considerados por Ramiro, em 926, como os adequados representantes da
corte de Viseu no coração do condado de Portucale.
asturianos. Isto dever-se-á, antes de mais, à figura
tutelar do príncipe Bermudo Ordonhes, que vai
permanecer na estremadura beirã cerca de uns
trinta anos. Pensamos, também, que possa ter sido
o fundador de San Salvador de Valdedios (Astúrias),
templo posteriormente confiscado e que apresenta
claros indícios de uma “damnatio memoriae” sobre
mensagens epigráficas da primeira fase da construção.
É possível que a sua primeira fundação, em território
hoje português, tenha sido logo a igreja de S. Martinho
das caldas de Lafões, cuja fraca qualidade construtiva
revela bem as dificuldades em que se poderá ter
deparado com a mão de obra local, numa altura em
que ainda seria um refugiado com cabeça a prémio,
por parte do seu irmão, Afonso Ordonhes, o rei
Magno. Com a morte deste, é de presumir que se tenha
iniciado um processo de afirmação regional de todo o
clã, o qual pode estar relacionado com um impulso no
movimento construtivo, em diversos locais da Beira
interior. Encontrar-se-á nesta situação a basílica do
Prazo, eventualmente à semelhança das de Lourosa,
Trancoso, Sernancelhe, etc.
Os elementos revelados pela escavação no Prazo não
permitiriam, só por si, adiantar muito mais do que até
ao momento havia sido revelado. Todavia, a reanálise
dos dados existentes, à luz de um contexto mais
amplo – histórico, arqueológico e artístico – levou a
conclusões até há pouco insuspeitadas, inclusivamente
para o autor deste estudo. E estamos convicto de que,
com o imprescindível apoio do arqueólogo responsável
pela estação arqueológica, ainda se poderá chegar
mais longe, reconstituindo alguns passos do processo
da escavação, interpretando-os, e publicando outros
registos de pormenor efectuados durante os trabalhos
de campo. Mas, desde já, uma coisa é certa: a estação
arqueológica do Prazo, tal como ficou revelado para
horizontes da Pré-história, impõe-se também como
um local cimeiro no âmbito da arqueologia AltoMedieval, em território português.
O Significado da basílica do Prazo
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104
Vias medievais
nos coutos monásticos de
S. João de Tarouca e Sta Maria de Salzedas
texto: Ana Sampaio e Castro
Doutoranda em Arqueologia Histórica na F.L.U.P.
([email protected])
Resumo
Apresenta-se os resultados de um primeiro estudo
acerca da rede viária medieval nos coutos dos mosteiros cistercienses masculinos de S. João de Tarouca e
Sta Maria de Salzedas (Tarouca, Viseu).
Abstract
This paper presents the results of a first study of the
medieval road network in the “coutos” of the Cistercian monasteries of S. João de Tarouca and Sta Maria
de Salzedas (Tarouca, Viseu).
Palavras-chave
Mosteiro; S. João de Tarouca; Sta Maria de Salzedas; Couto; Medieval; Vias
Key words
Monastery; S. João de Tarouca; Sta Maria de Salzedas; “Couto”; Medieval; Roads.
106
Ana Sampaio e Castro
1. INTRODUÇÃO
O
s mosteiros cistercienses masculinos
de S. João de Tarouca e Sta Maria de
Salzedas localizam-se nas freguesas
homónimas, concelho de Tarouca, distrito de Viseu.
A primeira notícia de que dispomos relativamente ao
primeiro data de 1140, quando D. Afonso Henriques
outorgou a carta de couto, dando-se o início da sua
construção em 1154. No século XIII o couto inicial,
de tamanho reduzido, foi ampliado (CASTRO, 2009:
19-23), passando de uma área de cerca de 11 km2 para
53 Km2.
O mosteiro de Sta Maria de Salzedas recebe de
D. Teresa Afonso a carta de couto em 1156116, sendo
transferido de sítio da Abadia Velha para o local atual
alguns anos mais tarde, iniciando-se a construção em
1168. O seu couto abrangia uma área correspondente
a 34 Km2, sendo o limite Sul correspondente à linha
Norte do couto ampliado de S. João de Tarouca
(Figura 1).
Desde a fundação até à extinção, ocorrida em
1834, toda a área dentro dos dois coutos foi sujeita a
grandes transformações que levaram ao surgimento,
desenvolvimento ou desaparecimento de alguns
núcleos urbanos até à própria transformação da
paisagem envolvente dando origem à construção
de vias de comunicação ou aproveitamento das préexistentes, tendo por vezes como centro nevrálgico
os cenóbios ou as grandes explorações agrícolas
patrocinadas pela comunidade monástica.
Neste contexto elaboramos um primeiro estudo117
relativo às vias medievais que ainda são possíveis de
observar e seu hipotético traçado, tentando entrever
as ligações terrestres que se tornaram tão importantes
116 Nesta data o mosteiro ainda se encontra localizado no sítio da
Abadia Velha. De datas anteriores, nomeadamente 1152, 1153 e 1155 foi
organizado o couto por parte de D. Teresa Afonso. Relativamente a estas
questões consultar CASTRO, 2011, no prelo.
117 Foi já alvo de publicação uma primeira abordagem em
relação ao mosteiro de S. João de Tarouca. Ver CASTRO & SEBASTIAN,
2008/2009.
para o desenvolvimento destes mosteiros. Tendo
também alterado as relações Homem/Natureza,
partindo assim do pressuposto lógico de que os grupos
humanos são organismos vivos capazes de modelar o
seu habitat ou, mutuamente, a influência que o meio
ambiente desenvolve nas próprias atividades humanas,
sejam elas de subsistência ou de construção.
2. METODOLOGIA
A
metodologia seguida para o estudo da rede
viária medieval nos coutos monásticos
de Salzedas e S. João de Tarouca abarcou
as seguintes fases de pesquisa: recolha bibliográfica e
documental; topografia, foto-interpretação e análise
da paisagem; toponímia e hagiotoponímia e prospeção
arqueológica.
Relativamente à recolha documental esta centrouse nas já referidas cartas de couto, presentes nos
Documentos Medievais Portugueses de Rui Pinto
de Azevedo (1958); no cartulário medieval do
mosteiro de S. João de Tarouca, publicado por A. de
Almeida Fernandes em 1991 com o título «Taroucae
Monumenta Historica»; nos dois manuscritos de Fr.
Baltazar dos Reis118 «Livro da fundação do Mosteiro de
Salzedas» e «Breve relação da fundação e antiguidade
do Mosteiro de Santa Maria de Salzeda», ambas
em fac-simile de 2002; e na informação contida no
«Portugaliae Monumenta Historica. Inquisitiones».
Infelizmente a mais preciosa fonte escrita – os arquivos
monásticos – desapareceram num incêndio ocorrido
em 1841 no edifício do seminário de Viseu, onde
estavam depositados, dificultando-nos assim uma
aproximação mais clara ao tema. O estudo de toda esta
documentação revelou interessantes pistas relativas à
rede viária, nomeadamente as designações pelos quais
os caminhos aparecem referenciados, como «strada
mourisca» ou «viam antiquam», refletindo a sua
antiguidade (ALMEIDA, 1968: 48).
118 Fr. Baltazar dos Reis foi monge do Mosteiro de St.ª Maria de
Salzedas e contemporâneo do abade Fr. Bartolomeu de Santarém, eleito em
1564 (VASCONCELLOS, 1934: XIII).
Vias medievais nos coutos monásticos
107
1 - Coutos monásticos de S. João de Tarouca e Sta Maria de Salzedas
108
Ana Sampaio e Castro
Considera-se como parte da segunda fase de
investigação a análise topográfica e da paisagem e a
foto-interpretação com recurso às Cartas Militares de
Portugal à escala 1/25000, em edições mais antigas,
onde encontramos os caminhos de maior interesse
e às cartas geológicas à escala 1/50000. De forma a
verificar algumas informações retiradas das cartas
anteriormente descritas foram utilizadas as fotografias
de voo da USAF de 1958 à escala 1/25000 e as imagens
atualmente disponibilizadas pelo Google Earth. A
análise desta documentação fotográfica permitiu
reconhecer alguns pontos de interesse, sendo possível
2 - «strada mourisca» referida na carta de couto concedida a D. Teresa Afonso em 1152
Vias medievais nos coutos monásticos
traçar um percurso entre dois pontos através do
estudo das linhas de passagem natural, obstáculos,
geologia, natureza dos solos, capelas, encruzilhadas
e mesmo localização de sítios de cronologia anterior
(MANTAS, 1996: 167-168).
Na terceira etapa selecionamos os topónimos de
maior interesse para o tema em estudo, bem como a
hagiotoponímia, recolhidos essencialmente nas Cartas
Militares, nas Cartas Geológicas mais antigas e nos
inquéritos que efetuamos aquando das saídas para o
terreno.
A última fase corresponde ao trabalho de
prospeção arqueológica, elaborada a partir da seleção
efetuada anteriormente que nos permitiu direcionar
as nossas pesquisas para os pontos de maior interesse,
abrangendo também os sítios de interesse arqueológico,
como o caso de povoados, habitats, necrópoles …,
uma vez que as vias tornam-se um pólo dinamizador
do povoamento (MANTAS, 1996: 163), implantandose em zonas de anterior assentamento humano ou
promovendo a sua fixação.
3. AS VIAS MEDIEVAIS
3.1. Couto do mosteiro de Sta Maria de Salzedas
a) «strada mourisca» na carta de couto concedida
em 1152 a Teresa Afonso por D. Afonso Henriques
(AZEVEDO, 1958: 291); «viam covam» na carta
de confirmação do couto a Teresa Afonso em 1155
(AZEVEDO, 1958: 315); «viam antiquam» na carta de
firmidão ao mosteiro outorgada em 1161 (AZEVEDO,
1958: 354-355);
b) «portum de Alvares» na carta de couto concedida
em 1152 a Teresa Afonso por D. Afonso Henriques
(AZEVEDO, 1958: 291); «portam de Alvares» na
carta de firmidão ao mosteiro outorgada em 1161
(AZEVEDO, 1958: 354-355);
c) «arcam de Mendo Hermezendiz» e «arcam de
Pelagio Randis» na carta de confirmação do couto a
Teresa Afonso em 1155 (AZEVEDO, 1958: 315);
Relativamente à primeira referência conseguimos
109
detetar esta via, através dos limites anteriores e
posteriores da carta de couto, como sendo aquela que
atravessa o sopé do Monte Raso, no sentido este-oeste,
apresentando atualmente pouquíssimos vestígios de
calçada. Pela análise da sua implantação topográfica
verificamos que se encontra numa zona de planalto,
evitando os abruptos declives que se encontram a
oeste e sudoeste em direção ao rio Varosa (Figura 2).
Nesta localização os solos são bastante permeáveis,
sendo essencialmente constituídos por rochas
calcossilicatadas e escarnitos, devido à presença de
matriz carbonatada (FERREIRA & SOUSA, 1994: 15).
Colocamos a hipótese desta via provir de Queimadela119
(e daí para Figueira em direção ao Douro) até Meixedo
e Salzedas. De facto o sítio de Queimadela é já referido
em 1153 numa venda de uma «hereditate» de D.
Afonso Henriques a Pedro Viegas e Ouroana Daez,
sua esposa, onde se lê: «omni illa que primitus fuerant
tua et que domnus Mozo ceperat tibi», entrevendo-se
uma cronologia ainda mais recuada. Também através
das Inquirições de 1258 (PMH – IS, 1067) sabemos
que Queimadela era já denominada de «villa», tendo
aí propriedades o mosteiro de Salzedas, o mosteiro de
Cárquere e a Sé de Lamego. Só encontramos o sítio
de Meixedo num documento de 1209, onde consta a
«villa Amexenedo» (FERNANDES, 1995: 211).
«Portum de Alvares» ou «portam» remete-nos para
a passagem do rio Varosa neste ponto que em 1364
teria poldras para facilitar a transposição do rio, como
é referido numa carta de D. Pedro I120.
A «arcam de Mendo Hermezendiz» e «arcam de
Pelagio Randis», situados junto à via referida no ponto
a), relaciona-se com túmulos de senhores colocados
junto a caminhos, garantindo orações de devotos e
viajantes (FERNANDES, 1985: 59). O nome de «Pelagio
Randiz» surge-nos ainda recordado nas Inquirições de
1258 em Figueira (concelho de Armamar): «casale de
veteri, dixit quod vocatur casale de Pelagio Randiz»
(PMH – IS, 1068).
119 Freguesia homónima, concelho de Armamar.
120 «couto-lhe o dicto rio Barrosa des o direito do padrom que esta
acima das poldras» (FERNANDES, 1995: 32).
110
Ana Sampaio e Castro
3 - Ponte de Ucanha. Fotografia de P. Martins. ©DRCN
Uma das conhecidas passagens do rio Varosa é a
ponte de Ucanha (Figura 3) que apresenta quatro
arcos quebrados, tabuleiro com parapeito e dois
talhamares a montante. A torre que lhe está adossada
foi construída já na segunda metade de século XV
por iniciativa do abade de Salzedas D. Fernando,
marcando a entrada no couto monástico e servindo
como depósito do pagamento da portagem que os
viandantes aqui entregavam para a transporem. É
também este abade que aqui edifica um hospital,
próximo da igreja, possivelmente no local onde ainda
hoje se pode observar uma porta de cariz medieval
(Figura 4) e que inicialmente se situava em frente
ao mosteiro de Salzedas (REIS, 2002b: 84). A via que
faria ligação a esta ponte continuava, para noroeste,
em direção a Lamego, sendo ainda possível observar
pequenos troços de calçada (Figura 5). Colocamos
a hipótese de, para sudeste, o seu traçado continuar
para a zona de Vila Nova de Paiva e a norte para
Sanfins121, fazendo também a união à estrada que
provinda de Lamego iria para Moimenta da Beira. É
provável que esta estrada seja de filiação romana, pois
segundo Jorge Alarcão (2004: 333) a via que vinha de
Marialva, passando na Quinta da Lagoa, Rua, Aldeia
de Nacomba e Beira Valente, bifurcava-se neste ponto
para Lamego, validando a hipótese da existência de
121 Hagiotopónimo antigo «Sancto Fiiz».
uma ponte de cronologia romana. A topografia do
terreno indica-nos, pelo menos na área onde ainda se
preservam alguns vestígios de calçada, uma localização
4 - Porta medieval junto à torre de Ucanha, onde provavelmente
funcionaria um Hospital. Fotografia de P. Martins. ©DRCN
Vias medievais nos coutos monásticos
com suaves declives a partir do rio Varosa, sendo o
granito grosseiro e porfiróide (FERREIRA & SOUSA,
1994: 30), semelhante àquele utilizado na construção
da ponte e da torre de Ucanha.
Ainda deste caminho sairia uma via para Salzedas
(Figura 6), no sentido nordeste122, passando pela
Portela, topónimo que sugere passagem. Exatamente
neste local existe uma sepultura medieval escavada na
rocha e vestígios à superfície de cerâmica comum e de
construção. Este seguia o seu percurso até à atual capela
de Nossa Senhora da Piedade de traça setecentista e
111
5 - Calçada que seguia da ponte de Ucanha para Noroeste
em direção a Lamego
122 Tanto esta via como a seguinte tinham sido já identificadas por
António Ginja (2008).
6 - Via que da ponte de Ucanha segue o sentido Nordeste em direção a Salzedas
112
Ana Sampaio e Castro
que terá substituído a igreja de S. Salvador de Argeriz,
cabeça do território com a mesma designação já
mencionado em 1135123, sendo mesmo referido em
1144 como «Villa Plana de Argeriz» (FERNANDES,
1995: 204). Baltazar dos Reis (2002b: 23-24) indica a
existência junto da igreja de S. Salvador de Argeriz de
«alicesses e vestigios de edificios antigos, aonde parece
que estava o dito lugar de Argeriz». Esta estrada,
conservando pouquíssimos troços em calçada, segue
através de uma topografia suave, evitando sempre as
cotas mais elevadas, apresentando o mesmo tipo de
granito encontrado nas imediações da ponte de Ucanha.
Outra das vias ainda bem preservadas é aquela
que se situa a norte da povoação da Murganheira
(Figura 7). Embora possamos admitir a existência
deste aglomerado durante o período medieval, o
primeiro documento que o referencia é o foral de D.
Manuel I. Iniciando-se a cerca de 100 m para oeste
da Murganheira, junto à estrada municipal 1171, o
caminho em calçada segue para norte, evitando uma
pequena linha de água à sua esquerda, subindo desde
a cota de 520 m até aos 540 m, sendo a partir deste
ponto em terra batida e perdendo-se o seu traçado
mais à frente. Nesta zona o granito é de grão fino
de duas micas (FERREIRA & SOUSA, 1994: 26) e o
solo apresenta bastante permeabilidade. Analisando
a cartografia podemos colocar a hipótese desta via
continuar o seu percurso para norte, sempre junto da
linha de água que nasce nas proximidades da serra de
S. Lourenço, indo juntar-se ao caminho já descrito que
de Queimadela vinha até Meixedo/Salzedas (Figura 8).
Ainda dentro do couto monástico de Salzedas
encontramos a ponte de Vila Pouca (Figura 9),
localizada a cerca de 200 m a sudoeste da povoação
homónima. Atravessa o Varosa numa zona com
bastantes afloramentos graníticos e onde o rio adquire,
naturalmente, um percurso menos robusto. Tal como
a de Ucanha é em cavalete e apresenta arco único de
volta perfeita, encontrando-se assente diretamente no
afloramento. Os silhares e aduelas que compõem o arco
123 «in termino de Argeriz subtus Ledanarium discurrentibus rivulis
Torno et Barosa» (FERNANDES, 1995: 204).
7 - Calçada situada a Norte da povoação da Murganheira
não apresentam vestígios de marcas de canteiro que
nos poderá indicar uma filiação mais recente, talvez
de inícios da época moderna124. Contudo optamos por
incluí-la no nosso estudo, tendo presente a dúvida
quanto à cronologia da mesma.
Relativamente à povoação de Vila Pouca a
indicação mais antiga refere-se a uma doação efetuada
em 1288, onde se lê «Villa Arteira (…) alem do lugar de
Villa Pouca a par de Val Verde» (REIS, 2002a: 74). Do
primeiro topónimo – Vila Arteira – não há atualmente
memória, podendo talvez equivaler ao sítio da Quinta
dos Castros, situado na encosta Norte de Vila Pouca,
pois neste mesmo local foram encontrados diversos
materiais cronologicamente enquadráveis no século
IV, presenciando-se assim uma continuidade em
124 Não encontramos qualquer notícia referente a esta construção,
mesmo a consulta das Memórias Paroquiais de 1758 (CAPELA & MATOS,
2010) revelou-se infrutífera.
Vias medievais nos coutos monásticos
113
8 - Via que da Murganheira segue para Norte
114
Ana Sampaio e Castro
9 - Ponte de Vila Pouca no rio Varosa
10 - Troço de calçada, recentemente destruído, na margem direita do Varosa partindo da ponte de Vila Pouca
12 - Calçada na margem esquerda do Varosa a partir da ponte de
Vila Pouca
Vias medievais nos coutos monásticos
115
11 - Via que parte de Vila Pouca para Norte
termos de povoamento desta área.
Da margem direita do rio Varosa até à ponte
existia um grande troço de calçada (Figura 10) que
recentemente foi destruída e substituída por paralelos.
Esta iniciava-se mesmo junto à povoação de Vila
Pouca, à cota de 430 m, continuando para sudoeste em
direção à ponte, situada à cota de 330 m. Como vemos
a inclinação é acentuada desde o primeiro ponto ao
segundo, não invalidando a utilização deste caminho
para transporte de cargas, pois como testemunhamos
a calçada apresentava marcas de rodado. Também
a partir de Vila Pouca encontramos a continuação
deste percurso para norte, ora pontuado por calçada,
ora por terra batida, dirigindo-se para Queimadela
(Figura 11) e passando nas proximidades da referida
Quinta dos Castros. Fora do couto e no seguimento da
ponte de Vila Pouca, na margem esquerda do Varosa125,
ainda se conserva bastantes metros de calçada (Figura
12). Esta segue para oeste no sentido de Britiande e
Ferreirim, sendo possível, aquando da sua construção
a continuação para Lamego. Nesta área, até ao ponto
onde termina, sobe suavemente de 330 m para 360
m, mantendo sempre esta última cota, podendose observar granitos porfiróides de grão médio
(TEIXEIRA et al., 1969: 24-26) na zona envolvente e
nas pedras que compõem a calçada em contraposição
ao granito de grão fino localizado na margem direita
do Varosa, na encosta de Vila Pouca.
125 Concelho de Lamego.
116
Ana Sampaio e Castro
3.2. Couto do mosteiro de S. João de Tarouca
Na carta de couto do mosteiro aparece-nos a
«estradam de Paredes siccas» (MARQUES, 1998: 68)
que localizamos no terreno como sendo a via que
de Sanfins126 segue para Sever127 e Alvite128 (Figura
13). Preserva ainda bastantes metros de calçada
bem conservada, nomeadamente desde a capela
de S. José para sudeste (Figura 14). Segundo A. de
Almeida Fernandes (1976: 337-338) o topónimo de
Paredes Secas, hoje desaparecido, pode ser situado
entre Sanfins e Pinheiro, colocando a hipótese deste
se referir aos «muros do castro»129 que faz fronteira
entre a freguesia de Mondim da Beira e Sanfins. A
reforçar esta hipótese está o documento de escambo
do ano de 1287 onde aparece «dous casaes junto do
lugar de Samfins em Paredes Sequa» (REISa, 2002:
179). O mosteiro de S. João de Tarouca possuía aqui
uma granja que foi transferida nos finais de século XII,
inícios de XIII (FERNANDES, 1976: 107), estando
assim bem implantada junto a uma estrada de acesso a
localidades importantes. Após a passagem por Sanfins
é provável que se juntasse à estrada proveniente
da ponte de Ucanha que se dirigia para a zona de
Moimenta da Beira.
Percorrendo um sentido norte-sudeste esta via
segue a partir de Sanfins, à cota de 790 m, para as
proximidades do castro de Mondim, atingindo aqui a
cota máxima de 830 m, descendo para os 780 m e daí
até a uma estrada atualmente asfaltada, podendo-se
novamente observar depois da capela de S. José (Figura
13), entre as cotas de 790 m a 860 m, encontrandose numa zona de granito de grão médio a grosseiro
(FERREIRA & SOUSA, 1994: 25).
Junto ao mosteiro, a cerca de 200 m para Noroeste,
situa-se a ponte de S. João de Tarouca sobre o rio Varosa.
Apresenta tabuleiro em cavalete e arco único em volta
126 Freguesia de Passô, concelho de Moimenta da Beira.
127 Freguesia homónima, concelho de Moimenta da Beira.
128 Freguesia homónima, concelho de Moimenta da Beira.
129 Refere-se ao Castro de Sanfins ou de Mondim, situado numa
elevação sobranceira a Mondim da Beira, concelho de Tarouca.
14 - Calçada desde a capela de S. José para Sudeste
perfeita, denotando-se várias fases de remodelação.
De realçar a presença, no talhamar situado na margem
direita, de uma marca de canteiro. A sua cronologia
não é precisa, pois como referimos apresenta várias
remodelações, podendo contudo ter aqui existido
uma passagem já desde a época medieval. Atualmente
não restam quaisquer vestígios de calçada na margem
esquerda, apenas dois caminhos em terra batida, um
deles seguindo o sentido de Mondim, acompanhando
o curso do rio sempre à mesma cota para a ponte
aí existente, e passando na zona baixa da Quinta
do Granjão130. O segundo caminho toma a direção
noroeste, passando pela capela de S. João da Boa Vista,
de traça setecentista, pelo topo da Quinta do Granjão
e continuando para o Monte Ladário, sendo, poucos
metros à frente, substituído por estrada asfaltada
130 A Quinta do Granjão foi uma das primeiras granjas pertencentes ao
mosteiro de S. João de Tarouca.
Vias medievais nos coutos monásticos
117
13 - «estradam de Paredes siccas» de Sanfins para Sever
118
Ana Sampaio e Castro
15 - Vias desde a ponte de S. João de Tarouca até à ponte de Mondim e Tarouca
(Figura 15). Este percurso, iniciado a uma cota de 550
m, atinge os 600 m na capela de S. João da Boa Vista
seguindo por esta altitude até ao pequeno planalto do
Monte Ladário, evitando assim a topografia abrupta do
topo desta elevação, na zona onde se entreve granitos
de grão fino (TEIXEIRA et al., 1969: 48). Apesar deste
caminho não apresentar qualquer vestígio de calçada
e transformando-se mesmo em estrada asfaltada junto
ao Monte Ladário, colocamos a hipótese de ter uma
filiação medieval, pois como já foi demonstrado em
publicação (CASTRO & SEBASTIAN, 2008-2009)
existiria um pequeno aglomerado urbano na margem
esquerda do Varosa antes da fundação do mosteiro
de S. João de Tarouca, tendo sido aproveitado pela
comunidade monástica e desenvolvido com a
construção da referida ponte.
Seguindo ainda este percurso encontramos a ponte
de Mondim da Beira, situada junto a esta povoação
e ligando as duas margens do Varosa. Apresenta
tabuleiro em cavalete e um único arco em volta
perfeita, tendo contrafortes apoiados no afloramento
do curso de água. Tal como a ponte de S. João de
Tarouca denota-se a presença de várias reparações,
existindo mesmo a notícia da sua reconstrução em
1638 (TEIXEIRA, 1993: 45). O mosteiro sempre
deteve propriedades agrícolas em Mondim, embora
o território a norte e este só fosse incluído no couto
na ampliação ocorrida no século XIII, ficando assim
patente a importância de uma ligação ao cenóbio e a
outras localidades importantes como Tarouca ou a já
descrita via que passava na ponte de Ucanha. Embora
não existam vestígios de caminhos antigos podemos
traçar hipoteticamente dois percursos que sairiam
da ponte, um deles já referido até ao mosteiro e
Vias medievais nos coutos monásticos
119
continuando pela margem do rio Varosa até Tarouca e
outro, para nordeste, até à via de Ucanha (Figura 15).
A última via identificada localiza-se em
Almofala131, povoação situada no extremo sudoeste
do couto e nele incluída só no século XIII, embora
existindo aqui uma granja monástica132 ainda no século
XII, comprovada por confirmação papal em 1163
(FERNANDES, 1976: 105). A cerca de 250 m para sul
do aglomerado urbano testemunhamos a presença de
uma calçada bastante bem conservada (Figura 16),
seguindo o sentido sul à cota de 810 m e subindo até
aos 850 m na encosta do Corgo do Altar, evitando o
declive da Serra da Cascalheira (Figura 17), indo
de encontro a uma estrada secundária, subsidiária
da municipal n.º 1169. Toda esta área é pontuada
por grandes afloramentos graníticos de grão médio
(TEIXEIRA et al., 1969) e solos bastante impermeáveis.
É também de realçar os topónimos bastante sugestivos
aqui existentes com particular destaque para o Corgo
o Altar, Mourisca, Laje ou Castelejo.
Do lado este da elevação do Corgo do Altar
encontramos mais uma via, também ela bastante
bem preservada (Figura 18), partindo da ponte do
Touro (Figura 17) que está situada sobre o Varosa.
A reconstrução desta ponte data de 1839, não se
observando qualquer elemento mais antigo. A calçada
segue por um declive suave, desde o rio, para sul,
acompanhando uma pequena linha de água até à
já referida estrada secundária, tal como o caminho
descrito anteriormente. É possível que esta e a anterior
se juntassem em direção a Viseu e para norte, após
a ponte do Touro, para Tarouca, passando Bustelo,
Teixelo e Valverde. A reforçar encontramos em Teixelo
alguns troços de calçada, nomeadamente à saída da
povoação, próximo da capela da Senhora da Ajuda e
mais a norte na zona da capela da Senhora dos Aflitos.
131 16 - Calçada de Almofala até ao Corgo do Altar
Freguesia homónima, concelho de Castro Daire.
132 A Noroeste da atual povoação existe o topónimo granja, indicador
da presença monástica.
120
Ana Sampaio e Castro
17 - Vias junto a Almofala seguindo, possivelmente a direção Tarouca e Viseu
Vias medievais nos coutos monásticos
121
18 - Calçada que parte junto à ponte do Touro
4. CONCLUSÃO
C
onscientes da dificuldade em muitos dos
casos de atribuir uma cronologia precisa
aos caminhos descritos, pensamos ter
traçado um quadro aproximado da paisagem viária na
área dos coutos monásticos de Sta. Maria de Salzedas
e S. João de Tarouca. Observando a distribuição geral
e a sua atribuição cronológica é clara a existência de
certos percursos antes da implantação dos mosteiros
que os aproveitaram como a forma mais segura para
a circulação de pessoas e mercadorias. Embora não
tenhamos aflorado os caminhos mais secundários
é certo que deveriam existir, ligando pequenos
núcleos humanos ou explorações agrícolas às rotas
mais utilizadas. Estes deveriam ser bastante simples,
provavelmente em terra batida, correndo o risco de
durante as épocas de maior pluviosidade ficarem
inundados e intransitáveis. Em outros casos podiam
agregar alguns troços de calçada, tal como as vias
principais, em zonas de maior risco, como junto a
linhas de água ou em cotas mais baixas.
Apesar destes mosteiros se terem implantado numa
área onde já existiam alguns caminhos, é certo que
contribuíram para a abertura de novos e de travessias
fluviais. Pensamos que serão responsáveis pelo
traçado de pequenas vias que nos séculos posteriores,
nomeadamente durante a centúria seiscentista e
setecentista, foram profusamente utilizadas, ligando
os núcleos urbanos que se desenvolveram devido à
presença monástica, como aquela que de S. João de
Tarouca segue para a povoação do Couto, formada
após a fundação do cenóbio.
122
Ana Sampaio e Castro
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124
«É esta Cidade situada a forma
de uma lua crescente»:
a implantação dos edifícios religiosos e a expansão
urbana de Lamego entre os séculos XVI e XVIII.
texto: Nuno Resende - DCTP- UP/Citcem
([email protected])
RESUMO
Estudo-síntese que pretende compreender a evolução do urbanismo e do ordenamento periférico na cidade de Lamego durante o período moderno (séculos
XVI-XVIII). Esta abordagem centra-se no estudo da
evolução da malha e da morfologia urbanas a partir
dos edifícios religiosos (igrejas, capelas e ermidas) pretendendo chamar a atenção para a importância destes edifícios como estruturantes de eixos ordenadores
e catalisadores das relações sociais. Como assento de
cátedra, Lamego foi, ao longo da modernidade, objecto de intervenções centralizadas na figura do bispo e
das instituições religiosas que, quer no couto, quer no
burgo, contribuíram para a expansão urbana e monumentalização da cidade.
Palavras-chave:
Urbanismo, hagiotopografia, hierotopografia, Idade Média, Renascimento, Barroco, ermida, capela,
igreja, convento.
ABSTRACT
This is a synthesis study that aims to understand
the evolution of urban and peripherical planning in
the city of Lamego during the modern period (XVI-XVIII centuries). This approach focuses on the study
of the evolution of urban morphology centered in the
construction of religious buildings (churches, chapels,
convents) drawing attention to the importance of these buildings as structural axis in the urban space and
as catalysts of social relations. As episcopal see, Lamego was throughout modernity subject of interventions
centered on the figure of the bishop and other religious
institutions, either in Couto (under the jurisdicton
of the bishops) either in the borough. As we pretend
to show, somes episcopates contributed to the urban
sprawl of Lamego and its monumentalization.
Keywords
Urbanism, hagiotopography, hierotopography,
Middle Ages, Renaissance, Baroque, chapel, church,
convent.
126
Nuno Resende
O TEMPO DOS HOMENS
D
ividido entre as perspectivas dos geógrafos, dos antropólogos, dos sociólogos e
dos historiadores, o urbanismo, tomado
como o conjunto de questões e problemáticas associadas ao estudo das cidades, tem permitido aprofundar
aspectos globais ou específicos das relações humanas,
da evolução da paisagem e da própria percepção e valorização do espaço e do território. Frequentemente
os geógrafos quando se referem às cidades falam em
eixos ordenadores encontrando-se dentro desta categoria as vias e ruas principais e os largos, praças ou
terreiros. Associados a cada um destes espaços estão
as igrejas, as capelas ou as ermidas que se inscrevem,
ora como resultado de pré-existências, ora como novos elementos axiais do urbanismo e das relações sociais. Mas sobre o impacto destas estruturas a nível de
ordenamento territorial, são escassos os trabalhos de
investigação.
A própria ideia de hierotopografia ou de hagiotopografia, que qualifica o estudo da implantação de
templos no território e a relação dos seus cultos com
o local e as comunidades, praticamente não tem sido
aplicada pelos geógrafos e pelos historiadores em Portugal133.
Neste estudo-síntese, essencialmente gizado pela
leitura e revisão de bibliografia local e cartografia disponível, pretendemos compreender a evolução do urbanismo lamecense ao longo da época moderna, num
período marcado pela reintrodução do ideal clássico
seguido da reação ao mesmo de que resultou a disseminação do gosto e do espírito barrocos.
A cidade de Lamego, assento de cátedra medieval,
não deixou de impregnar-se deste espírito. Em nenhuma época o poder se expôs de forma tão evidente
utilizando para tal a Arte e a Arquitectura como durante o barroco: abundantemente a ostensão deixou a
privacidade das câmaras dos paços e das capelas das
igrejas para tornar-se acessível a quase todos. No século XVIII qualquer ermida possuía um vistoso altar de
talha, dourada ou policromada e pintura, esculturas,
os tecidos e paramentos convergiam os sentidos para a
harmonia e a totalidade que envolvia sacerdotes e fiéis
na liturgia.
133 Sobre a terminologia o seu significado e a sua aplicação no estudo
devocional de um território (Montemuro) veja-se o nosso trabalho: RESENDE, Nuno (2012), cap. III, PARTE 1.
Ainda que este universo fosse essencialmente religioso e, portanto, muitas vezes limitado aos lugares
de culto, os leigos mais poderosos não deixaram de
participar nesta dramaturgia do poder134. Casas nobres de fachadas antes sécias e fechadas, abriram-se e
definiram os novos espaços das elites urbanas e rurais;
construíram-se capelas que rivalizavam em ornamentação com igrejas; e, mesmo antes do Romantismo se
assumir como período de culto do Passado, os fautores
do Barroco português reconverteram a medievalidade
materializada nas torres e merlões ou as virtudes cavaleirescas em artifícios de glória que serviam a cenografização dos novos palácios da nobreza local.
Estas idiossincrasias que, da talha aos elementos arquitectónicos, compõem o estilo barroco aportuguesado incorporam não apenas uma tradição cultural bem
firmada no devir histórico, mas reflectem, também, o
desenho do lugar. Nos séculos XVII e XVIII um edifício não podia escapar à sua envolvência. Sobretudo
se nos ativermos às características de um edifício destinado ao culto, naturalmente sujeito a obrigações de
teor canónico e a formulações de ordem simbólica.
Por outro lado, como importantes espaços catalisadores, para onde afluíam grandes conjuntos de fiéis,
quer pela sua dimensão, quer ainda pela posição no
território os templos modernos obrigaram a alterações
significativas do espaço urbano. Os burgos medievais,
estruturados em modelos de plantas nucleares ou radioconcêntricas de ruas estreitas e irregulares dificilmente admitiam novas construções de raiz. Frequentemente prevaleciam as soluções de reedificação e o
aproveitamento de edifícios e materiais.
Foi o ideal renascentista, com a sua tentativa de
geometrização do território, que lançou as bases para
a anulação dos volumes e da anamorfose do corpo
urbano medieval. Mas, como sabemos para o caso
português, restam desse período intervenções pouco
expressivas.
Lamego é um caso particularmente interessante
para aquilatarmos de mudanças urbanísticas que romperam ou serviram de alternativa à planimetria medieval em torno da qual a urbe acastelada se estruturara ao longo da Idade Média.
Por volta do século XII a cidade cindiu-se num tecido binuclear, ou seja, a vida social e política e, naturalmente, o urbanismo passaram a estruturar-se em
redor de dois pólos urbanos: o do castelo numa cota
134 Cf, a este propósito, o nosso trabalho RESENDE, N. (2007).
«É esta Cidade situada a forma de uma lua crescente»
mais elevada e o da catedral, a uma cota inferior, junto
ao rio Coura. Esta disposição de dois centros – o primeiro associado à jurisdição municipal e o segundo ao
couto episcopal – definiu precocemente a morfologia
urbana, pelo menos quando em volta da ermida de São
Sebastião se organizou comunidade canónica e o edifício se transmutou em catedral – templo que, outrora,
podia ter tido o seu assento na acrópole135.
Tendo em conta, pois, a natureza topográfica do
território, a bipolarização do poder (civil e eclesiástico), os agentes e as instituições da cidade, de que forma foi a evolução urbana desta cidade condicionada
ou estimulada pela edificação dos edifícios religiosos
ao longo da época moderna?
A CIDADE BINUCLEAR
P
ara compreendermos a ocupação humana
neste território, grosso modo articulado entre um esporão rochoso que quase no sentido norte-sul irrompe entre dois pequenos cursos de
água, necessitaríamos recuar à Pré e Proto-História.
Na falta de elementos arqueológicos, nada nos impede de conjecturar sobre a apetência do lugar para
remota ocupação humana. Lugar abrigado, entre os
550 metros de altitude registados no cume do esporão, e os 500 metros junto às margens do rio Coura,
seria o ponto ideal para a sobrevivência do Homem,
quer como recolector ou assumindo já a uma condição agro-pastoril. As condições geomorfológicas descritas são, aliás, comuns à instalação das comunidades
castrejas que procuravam outeiros semelhantes para a
construção das suas povoações amuralhadas.
É, porém, o período da Romanização que pode
ter definido os alicerces urbanos da cidade medieval.
Embora existam algumas perspectivas sobre o peso da
romanidade em Lamego, e a importância de Lamecum
em contexto imperial, a arqueologia não permitiu ainda avaliar verdadeiramente o peso do desenho clássico
(a existir) sob o traçado medieval136.
E é este traçado que importa compreender, pois ele
marcará até bastante tarde a mancha urbana e a arti135 O autor do artigo Lamego na GEPB refere, citando Viterbo, a existência deste templo desde a subjugação da cidade por Afonso III (877),
cf. [S.a] (1963), p. 611.
136 Embora não se tenha em conta a mobilidade e o aproveitamento de
elementos pétreos de estruturas anteriores, o facto de terem aparecido ao
longo dos últimos séculos peças integrais ou fragmentos de aras e outros
monumentos epigráficos do período romano, é um valioso indicador da
presença de estruturas da Antiguidade Clássica no território. Cf., entre outros VAZ, J. I. (1982).
127
culação da cidade com os seus arredores, pelo menos
até à primeira década do século XX137 (ver cartografia,
mapas 1 e 2)138.
Foram já três os autores que procuraram compreender e explicar a evolução morfológica da cidade ao longo
da Idade Média, relacionando-a com os seus poderes e
instituições: Maria João Queiroz Roseira (1981)139, Rita
Costa Gomes (1988)140 e Anísio Saraiva (2002)141.
Do ponto de vista da geografia, Maria Roseira, salientou a colina genética da cidade (um possível castro)
e a sua evolução até à dominação romana e a passagem
à cidade medieval. Sem conseguir um fio condutor,
a autora aplicou o modelo disseminado por Alberto
Sampaio e seguidores sobre a estruturação da paisagem agrária e os movimentos verticais das populações
castrejas, entretanto romanizadas. O período suévico
parece escoar-se em bruma até à intervenção muçulmana, marcada pelas conquistas e reconquistas e pela inexpugnabilidade da cidade que lhe permitiu resistir nas mãos
ora de cristãos (877, 1057) ora de muçulmanos (987).
Rita Costa Gomes incluiu Lamego numa análise
comparativa com outras duas cidades do interior: Viseu e Guarda. Destacou o papel dos patriciados urbanos e das forças políticas internas e externas (facções
oligárquicas, os Coutinhos, os bispos, etc.) e questionou (sem, contudo, responder) as marcas que as elites
possam ter deixado no espaço urbano.
Anísio Saraiva, desconhecendo que a supracitada autora havia já chamado a atenção para o carácter
binuclear de Lamego, apresenta-nos com novidade o
espaço urbano cindido, observado do ponto de vista
da documentação eclesiástica dos séculos XIV-XV. O
autor salienta a formação do couto (instituído por D.
Sancho em 1191) e a dispersão da propriedade (maioritariamente eclesiástica) no seu território.
Embora quer M. Roseira, quer A. Saraiva salientem
a importância do eixo de circulação que atravessa o
couto e o castelo no sentido norte-sul como ordenador do urbanismo, não assinalam, nem a interseção
daquele com outras vias importantes, nem o posicio137 Com o liberalismo e as nacionalizações da República, alguns dos
edifícios da cidade sofreram alterações profundas na sua estrutura, ou foram mesmo destruídos para dar lugar a novos projectos construtivos ou
urbanísticos.
138 Mapa 1: [S.a.] (17--). Planta da cidade de Lamego e seus arredores,
pub. em RESENDE, N. (2006), p. 48-65.; Mapa 2: [S.a.] (1981). Planta de
Lamego, pub. em ROSEIRA, M. J. Q. (1981).
139 ROSEIRA, M. J. Q. (1981).
140 GOMES, R. C. (1988).
141 SARAIVA, A. M. d. S. (2002/2003).
128
Nuno Resende
namento dos edifícios em relação às mesmas.
De resto fica de fora da análise dos autores a posição e a importância da igreja de Almacave em relação
à cidade amuralhada. Mesmo que dificilmente logremos aclarar porque é que a ermida de São Sebastião foi
favorecida em detrimento do templo de Almacave, o
facto é que junto a esta igreja terminava um dos principais caminhos de acesso à urbe142. Esta estrada que
sulcava os campos de Fafel seguia a Medelo e Penude, providenciava a circulação do trânsito serra acima
até à vila actual de Castro Daire e cruzava-se na Praça
(principal centro de negócios do burgo) com o referido eixo norte-sul.
Embora a questão da implantação estratégica da
cidade tenha suscitado o interesse da maioria dos monógrafos lamecenses o assunto nunca foi analisado do
ponto de vista territorial. Sim, o rochedo onde ainda
assenta a muralha é efectivamente inexpugnável, nomeadamente a partir da encosta nascente, mas um
ponto que interessa observar é a posição do lugar em
contexto regional ou suprarregional.
A cidade encontra-se na margem do sul do Douro,
de onde dista cerca de 12 quilómetros e a sua posição assenta na intersecção de dois corredores naturais
de passagem: o vale do Balsemão e o vale do Coura.
Ambos permitem a ligação entre o vale do Douro e os
planaltos de Montemuro e da Nave, unindo, portanto,
a costa atlântica ao hinterland ibérico. Esta localização
foi sempre favorável aos habitantes de Lamego, quer
do ponto de vista defensivo, quer do ponto de vista económico. Efectivamente os primeiros caminhos
aproveitavam a geomorfologia para ligarem mais rapidamente o ponto A ao ponto B, sem preocupações de
pendor técnico que a engenharia romana introduzirá.
Ao longo destes primeiros trilhos fundaram-se várias
comunidades que na sua implantação aliavam protecção ao acesso célere a recursos naturais.
É pois neste contexto supra-urbano que a cidade se
constrói e expande, sobretudo depois do século XVI
quando, quer o burgo amuralhado, quer o couto já não
podiam conter os desígnios meramente comerciais de
uma cidade-entreposto - pretensamente enfraquecida
pelo desvio dos principais eixos de importação-exportação – que nunca deixou de ser importante centro burocrático religioso.
142 É provável que o templo dedicado a Santa Maria e São Sebastião
seja anterior à fundação eclesial em Almacave, não obstante este lugar estar
mais próximo do castelo – centro político e social da cidade em tempo de
guerra. Recordemos que até o século XIX nunca a catedral, através do seu
deão, deixou de superintender na igreja de Almacave.
APOGEU E DECLÍNIO?
A
maior parte dos autores tende a associar a
Idade Média, em Lamego, a um período
de apogeu económico ao qual se seguiu
uma longa noite de declínio agravada com a expansão
ultramarina e a com a dominação filipa. Estas razões
fundamentam-se no facto de a cidade ter definhado na
passagem de plataforma giratória comercial (de que as
importante feiras seriam o motor)143 a centro da região
produtora vinícola. Este assunto, o da bipolaridade
económica e cultural de Lamego foi já apresentado por
alguns autores, nomeadamente pela citada geógrafa
Maria João Roseira, pelo autor do verbete Lamego na
GEPB144 e por Joaquim Veríssimo Serrão que, durante
a Comemoração dos centenários diocesanos, em 1977,
aludiu à Projecção cultural do Bispado145.
Ora a questão não é tão simples. Em primeiro lugar, porque a cidade não é una. O burgo segue um caminho diverso do couto episcopal, nomeadamente pelas distintas prerrogativas de cada um dos territórios.
Compreendemos esta diferença pelas queixas de Rui
Fernandes no início do século XVI: ao empreendedorismo episcopal no couto, opunha-se a má governança
dos mesteres no burgo e até as desavenças entre o alcaide-mor e o prelado – Lamego evoluía a duas velocidades146.
Por outro lado, o crescimento económico e provavelmente demográfico de Lamego na Idade Média não
ocorreu nem de forma tão expressiva nem tão marcante que lhe possamos chamar época de ouro. Como
esclarece Rui Fernandes, por volta da década de trinta
do século XVI a cidade sentia dificuldades para escoar
matéria-prima e produtos. A extinção da feira de Santa Marinha, o excesso de impostos (nomeadamente a
sisa e os direitos de alcaidaria) e a falta de investimento
grossista caracterizava os homens da terra como não
sobejamente ricos. Mas estes pequenos mercadores,
muitos deles mesteirais de vários ofícios, comercializavam o que a terra dava e, neste aspecto, o compasso
era fértil e rico, embora no início do século XVI La143 Realizaram-se várias feiras em Lamego, ao longo da Idade Média e
Moderna, em espaços cuja centralidade estava associada a edifícios religiosos: no campo do Tabolado, no castelo, no Rossio e no terreiro do convento
de Santa Cruz, cf. SARAIVA, (2002/2003), p. 259.
144 [S.a] (1963).
145 SERRÃO, J. V. (1976).
146 FERNANDES, R. e BARROS A. J. M. (2012)..
«É esta Cidade situada a forma de uma lua crescente»
mego não fosse ainda uma cidade voltada às culturas
do Douro, nem ao negócio do vinho, mas à exploração
das serras que a contornavam.
É por isso que Rui Fernandes dedica especial atenção a Montemuro, às usanças dos seus habitantes e
sobretudo à importante fonte de alimento derivados
da criação de gado bovino. Da serra provinha ainda
a caça, o linho e a lã, as madeiras, o carvão, entre outras matérias que abasteciam a cidade ou aqui se armazenavam para distribuição e venda147. O notável
número de almocreves confirma a vitalidade económica de Lamego que, não temos razão para pensar o
contrário, prosseguiu ao longo do século XVII. Aliás,
embora rareiem estudos económicos sobre esta centúria148, Lamego poderia encaixar-se no modelo da Corte de Aldeia, que Francisco Rodrigues Lobo glosou na
sua obra de 1619. A centralização em Valhadolid e em
Madrid dos poderes da monarquia dual pode ter revitalizado as antigas rotas ibéricas que durante a Idade
Média aproximaram Lamego da meseta castelhana ou
do sul andaluz. E o couto da Sé, não obstante as vacâncias ou as longas ausências de certos bispos, nunca
deixou de fervilhar com uma população afecta à organização eclesiástica exigida para governar no temporal
e no espiritual uma diocese com cerca de 23 mil fogos
e 79 mil almas149.
OS TRÊS PERÍODOS
O
nosso olhar sobre o urbanismo lamecense
começa no século XVI e, embora se centre
nos dois núcleos da cidade (burgo e couto)
não pode dissociar-se da figura do bispo. Aliás, acrescentaríamos, nenhum estudo sobre economia, sociedade ou urbanismo pode eximir-se do papel das altas
figuras eclesiásticas que, ou residiam ou estavam ligadas a Lamego por vínculos familiares.
Embora, voltamos a frisar, não existam trabalhos
sobre a acção do patriciado urbano no desenvolvimento urbano de Lamego, as grandes criações, encomendas e planos para a cidade estavam, sobretudo, nas
mãos dos Homens da Igreja. Testemunho essencial
deste aspecto é a dedicação da obra cronística que Rui
Fernandes faz ao bispo D. Fernando Meneses Couti-
129
nho, em 1532. O antístite, mentor do formoso jardim,
terreiro e cerco de muro, poço e carreira e outras mui
formosas benfeitorias que Vossa Senhoria tem feitas é o
modelo do governante empreendedor150. A avaliar pelas palavras do cronista, que define as intervenções do
prelado no couto da Sé como a melhor coisa desta cidade, dever-se-ia a D. Fernando a tentativa de criação
de um plano urbanístico clássico em redor da catedral
e do paço episcopal. A atenção dirigida ao Rossio –
primitivo terreiro sulcado pelo rio Coura e paulatinamente fechado por edifícios de uso religioso – define a
introdução de noções de centralidade e de espaço que
a tratadística renascentista apresenta como fórmulas
para a cidade ideal151.
Mas se são apenas ecos as notícias que nos chegam
sobre os planos de criação de espaços ou estruturas
públicas destinados ao embelezamento ou enriquecimento da cidade pelos prelados - como o poço e
carreira referidos em 1532 – possuímos registos mais
concretos e mais completos sobre a directa intervenção episcopal na malha urbanística. Referimo-nos à
construção ou reconstrução de edifícios religiosos.
Nesse sentido é particularmente activo o episcopado
de D. Manuel de Noronha (22-4-1551 a 23-9-1569)152
(ver cronologia).
D. Manuel provinha das famílias proeminentes que
integravam o movimento expansionista português:
pelo lado do pai era bisneto de João Gonçalves Zarco,
descobridor da Madeira e donatário do Funchal e pela
mãe descendia de altos funcionários régios, como o
vedor da fazenda Gonçalo Vaz Castelo Branco, senhor
de Vila Nova de Portimão, seu avô materno. Esta proximidade aos círculos de poder conduziu-o à importante cátedra de Lamego e a Roma, onde alcançou o
lugar de camarista pontifício. Naturalmente o seu percurso biográfico esclarece-nos sobre o poder e o gosto
do ilustre prelado.
Durante o seu episcopado não só prosseguiu os
melhoramentos e ampliações em decurso na catedral
– nomeadamente na crasta onde mandou instituir
três capelas – e no Rossio, mas reformou e ordenou
a também construção ou reconstrução de novos tem150 FERNANDES, R. e BARROS, A. J. M. (2012).
148 Para o século seguinte existem alguns estudos de fundo sobre a economia local e regional, cf. OLIVEIRA, J. N. d. (2006), p. 94-103.
151 O próprio leito do rio Coura foi intervencionado a mando do
bispo D. Fernando, para permitir o aproveitamento de uma maior porção
do espaço - e, naturalmente facilitar a ampliação da castra que o mesmo
prelado ordenou reconstruir no princípio do segundo quartel do século
XVI, cf. COSTA, M. G. (1982), p. 18
149 Mais concretamente 23765 fogos e 79265 almas. Os dados estatísticos são de 1739, cf. FREIRE, A. d. O. (1739).
152 As datas extremas dos episcopados seguem a proposta de PAIVA, J.
P. (2006), p. 581.
147 Sobre este aspecto ver o nosso trabalho RESENDE, N. (2012).
130
Nuno Resende
plos dentro e fora do couto, nomeadamente a ermida
de Santo Estevão (?-1568), cuja invocação medieval foi
substituída por culto mariano. Atribuem-se-lhe ainda
as fundações das capelas da Senhora dos Meninos
(1555?), nas margens do Balsemão e do Divino Espírito Santo, junto ao Coura, onde o seu brasão, na falta
de outros documentos, atesta a directa intervenção.
Ambas as edificações, situadas nos limites do couto,
pretendem claramente assumir-se quer como novos
espaços de culto numa cidade em crescimento, quer
como novos eixos que influenciaram a morfologia urbana de Lamego nos séculos seguintes.
Porém, o caso mais paradigmático da intervenção de D. Manuel de Noronha no reordenamento e
expansão urbana da cidade episcopal foi a criação do
santuário mariano dedicado à Virgem. Aproveitando
as ruínas de uma ermida mandada levantar em meados do século XIV pelo seu antecessor na cátedra D.
Durão (1350-1362), o camarista de Leão X lançou as
bases para um novo eixo - primeiro visual, depois urbanístico – da cidade, ao mesmo tempo alargando a
influência directa dos prelados lamecenses para lá dos
limites do couto e criando, numa cidade pouco dotada
de matéria sacra, um foco de romagem. A construção
da ermida dedicada à Virgem dos Remédios parece
ter sido, aliás, mais do que uma simples obra votiva,
já que a mudança do sítio original do templo titulado a Santo Estevão implicou alterações significativas
na paisagem e o aproveitamento dos recursos naturais
locais, nomeadamente certas águas mais tarde disputadas entre Mitra e o convento de Santa Cruz – caudal
aquífero que devia abastecer a magnífica fonte à romana mandada construir por D. Manuel de Noronha no
seu Rossio153.
Aceitamos a divisão definida por M. Gonçalves da
Costa para os períodos de bispos à frente da diocese
e, naturalmente na gestão do património da Mitra,
no período em análise: bispos pré-tridentinos (de D.
João de Madureira a D. Simão de Sá Pereira); Bispos
da época filipina (de D. António Teles de Meneses a
D. Miguel de Portugal), bispos do pré-Barroco (de D.
Luís de Sousa a D. José de Meneses) e bispos do Barroco (de António de Vasconcelos e Sousa a D. Manuel de
Vasconcelos Pereira)154.
153 Cf. AZEVEDO, J. d. (1877), p. 13 Ainda no século XVIII estas águas
provocavam a discórdia, de tal forma que a memória cumulou de milagrosa a resolução do conflito a favor dos eclesiásticos seculares, cf. MARRANA, J. A. (1957), p. 41-42.
154 COSTA, M. G. (1982) e COSTA, M. G. (1986).
Mas do ponto de vista do estudo da arquitectura
e do urbanismo limitamo-nos a gizar três grandes
períodos associados aos episcopados referidos: um
tempo do classicismo que tenta a introdução dos modelos renascentistas e maneiristas, balizado entre D.
João Madureira e D. Miguel de Portugal (1502-1644),
um período intermédio a que poderíamos chamar de
transitório, condicionado pelo afastamento pós-restauracionista a Castela e pela lenta introdução de elementos protobarrocos e, finalmente, o tempo do barroco pleno, materializado num conjunto expressivo de
intervenções construtivas e decorativas que terminará
com o episcopado de D. Manuel de Vasconcelos Pereira (1670-1786).
Naturalmente a passagem de certos prelados em
tão dilatado período (1502-1786) fosse pela brevidade
do seu episcopado ou ainda pela distância geográfica que mantiveram com a cátedra praticamente não
deixou marcas no urbanismo lamecense. Outrossim
foram fecundos em obra e encomendas algumas vacâncias da cátedra, nomeadamente no que respeita a
intervenções na sé, como a que trouxe a Lamego António Pereira e Nicolau Nasoni (1734-1739).
Destacam-se, contudo, nesta longa duração alguns
episcopados mais activos, cujo tempo foi fundamental
para determinar alterações na malha urbana – ou através da construção de novos eixos ordenadores ou através da revitalização de espaços de cultos obscurecidos.
OS EDIFÍCIOS E O TERRITÓRIO
N
o século XVI Rui Fernandes não assinalou na paisagem urbana de Lamego os
edifícios religiosos. O cronista destacou
os aspectos mundanos do governo da urbe, aludindo
apenas às casas da audiência, às da Relação, junto à
Praça; ao bairro do castelo com a fortaleza, a cisterna
e os paços dos Coutinhos; e, no couto da sé, às casas
dos cónegos, beneficiados e nobres e ainda às benfeitorias públicas de D. Fernando de Meneses. Estranhamente, ou não, a arquitectura religiosa foi eliminada
da memória pelo tratador de lonas e bordates. Mas em
1532 um pequeno conjunto de templos destacava-se
no horizonte da cidade: a igreja de Almacave, a igreja
ou capela do Salvador, no castelo, junto aos paços arruinados dos alcaides da cidade e a catedral - conjunto que era, nesse princípio do século XVI, claramente
insuficiente para servir uma cidade repartida por duas
paróquias e uma população com cerca 2250 habitan-
«É esta Cidade situada a forma de uma lua crescente»
tes155. Nos arredores, a ermida de São Sebastião, junto
ao campo do Tablado e a nascente, a gafaria de São
Lázaro com o seu pequeno templo, compunham a topografia religiosa da paisagem de Lamego.
D. João de Madureira que parece ter falecido numas casas junto à capela do Salvador (sinal da permanência do lugar como espaço importante na malha do
castelo) iniciou um projecto de ampliação e nobilitação do espaço da catedral que prosseguiu pelos séculos
e episcopados seguintes156. De resto a sé foi sempre o
principal alvo das atenções dos prelados.
Apenas com os episcopados de D. Manuel de Noronha e D. António Teles de Meneses é que se iniciará
uma multiplicação do número de templos ao serviço
de uma população em crescimento, receosa das constantes vagas epidémicas que obrigavam à encomenda
dos corpos e das almas a um rol de hagioterapeutas.
A igreja da Misericórdia edificada em 1519 fora de
muros e cuja fachada abria para uma nova via que circuitava o burgo amuralhado do lado oeste inaugurou a
edificação moderna na morfologia medieval do burgo
lamecense, fora do couto episcopal157. A nova rua, paralela ao pano ocidental da muralha, facilitará a ligação entre as zonas baixa e alta da cidade e conhecerá
uma rápida transformação como espaço privilegiado
no urbanismo lamecense (Figura 1).
Só cerca de meio século mais tarde se edificaram
ou reedificaram as ermidas do Espírito Santo, da Virgem dos Meninos e da Virgem dos Remédios, já fora
do burgo e todas junto a vias ou a lugares de demarcação quer do couto quer da paróquia da Sé. O leitmotiv
de tais construções ou reconstruções158 parece explicar-se não apenas pelo reforço ou afirmação do poder
episcopal (patente na exibição das armas do prelado),
mas também na disseminação de novos cultos, em sítio isolado ou junto a pequenos núcleos populacionais.
De facto a cidade muniu-se de uma autêntico cordão
profiláctico, formado por um expressivo conjunto de
ermidas situadas junto às principais entradas da cidade, todas de fundação particular.
D. António Teles de Meneses continuou a autorizar
155 Para a contabilização utilizamos o numeramento, fonte estatística
que, cerca de 1527, aponta para a cidade de Lamego (freguesias de Almacave e Sé) uma população distribuída por 563 moradores ou fogos. João José
Alves Dias indica o coeficiente 4 para desdobramento dos indivíduos por
casa, o que resulta no número apresentado, cf. DIAS, 1966.
156 Cf., a respeito das suas casas no castelo, COSTA, M. G. (1982), p. 15.
157 Referências a este caminho em ibid. p. 460
158 M. Gonçalves da Costa assinala, no caso da Virgem dos Meninos, a
reconstrução de uma ermida anterior, cf. Ibid., p. 470.
131
1 - Excerto da Planta da cidade de Lamego e seus arredores
(17--): Área do Castelo
e a estimular talvez a edificação de templos nos limites
da urbe, virando a sua atenção para o burgo, nomeadamente para o Campo do Tablado (um terreiro em
forma de quadrilátero onde existia já uma capela de
São Sebastião) e para o Cerdeiral e a Seara locais afectos ao património da Mitra e onde, em 1587, se sagrou
a ermida da Virgem da Esperança (Figura 2)159. Outrossim, no ano anterior se fez procissão inaugural de
Almacave até à ermida da Virgem da Saúde, também
nos limites do burgo, junto à estrada para o Douro,
edificada às custas de um certo António Soares.
Embora se atribua a fundação quinhentista à ermida do Desterro (Figura 3), erguida num espaço sensível do ponto de vista do trânsito, a fábrica que ainda
persiste é de 1640. Edificada no limite meridional do
couto episcopal, com a fachada virada à principal via
de acesso da cidade, havia de tornar-se um dos templos mais importantes de Lamego, não apenas pelas
dotações que lhe faziam irmãos e confrades das agremiações ali sedeadas, mas por tornar-se ponto de partida para as solenes entradas barrocas dos bispos que
vinham ocupar a sua cátedra.
A implantação destas ermidas ou capelas, paralelas
ou perpendiculares às vias, sem respeito pela orientação canónica (cabeceira voltada a nascente) traduz-se
numa forma de articulação dos edifícios com a malha
pré-existente ou, perifericamente (no caso dos Remédios) de traçar novos caminhos e permitindo um acesso visual directo ao templo pelos fregueses da cidade.
Tais características sublinham a estratégia subjacente
às construções: intervir no espaço urbano e periférico
alargando a zona de influência dos poderes episcopais
159 O bispo possuía umas hortas no lugar da Seara. Aqui se instalará
uma comunidade popular composta por mercadores e cristãos-novos que
tinha na ermida da Esperança o seu templo comunitário, Cf. Ibid., p. 472 e
RESENDE, N. (2012), p. 485.
132
Nuno Resende
e o fomento ou criação de lugares catalisadores de devoção e, naturalmente, eixos ordenadores do urbanismo – onde a visão desempenha um papel importante.
De facto a orografia da cidade proporcionava um jogo
visual que aliava a distribuição e implantação concêntrica dos edifícios à sua contemplação pelos fiéis, como
forma de reforçar a protecção comunitária.
Mas não foram apenas as ermidas que a partir do
século XVI marcaram o território urbano e periférico
de Lamego. Também as casas conventuais redefiniram
a morfologia do burgo ao longo da época moderna.
De facto não foi sem consentimento dos prelados
que as ordens religiosas paulatinamente invadiram o
espaço urbano de Lamego, sobretudo na área sob a jurisdição municipal – já que o couto se isentou de receber qualquer instituição monástica160.
Os franciscanos, como ordem de cariz urbano foram os primeiros a estabelecer-se em Lamego, mas o
seu percurso determinou o abandono da ordem feminina (no século XIII), a mudança dos religiosos claustrais para capuchinhos e uma refundação masculina
no século XVII161. D. Manuel de Noronha ainda terá
tentado a reforma, mudando a observância masculina
para feminina, procurando assim proteger as donzelas da cidade que não tinham onde se recolher, mas o
projecto ficou por realizar162. Seria D. António Teles de
Meneses o mentor da primeira casa feminina de clarissas edificada em Lamego a partir de 1588.
O século XVII foi, em Lamego, profícuo na edificação de casas religiosas. Embora praticamente todas
tenham sido fundadas com o beneplácito episcopal, as
dos religiosos de Santo Agostinho junto à Praça, e a
casa dos Lóios, a sul do Couto, foram instituídas ou
patrocinadas leigos.
O convento da Piedade, dos Eremitas de Santo
Agostinho, planeado e construído entre 1630 e 1649
surgiu da intervenção piedosa do desembargador do
paço Francisco de Almeida Cabral que para o efeito
cedeu as casas onde habitava163. A construção da igreja, do dormitório e da cerca ajudou a delimitar a norte
o Campo do Tablado confinando com os quintais das
casas do Cerdeiral e da rua da Seara – uma área do
burgo particularmente urbanizada (Figura 2).
Não seria, porém, sem alguma apreensão por parte
160 Ver delimitação do couto em SARAIVA, A. (2002/2003), p. 252.
162 COSTA, M. G. (1984), p. 565.
161 COSTA, M. G. (1979), p. 566 ss.
163 Cf. AZEVEDO, C. A. M. (2011), p. 211-212.
2 - Excerto da Planta da cidade de Lamego e seus arredores (17--):
Praça, Bairro da Seara e conventos de Santa Clara e de Santo Agostinho (da Piedade)
«É esta Cidade situada a forma de uma lua crescente»
133
164 COSTA, M. G. (1982), p. 64. Para a ampliação da igreja de São Francisco, foi também difícil obter esmolas dos moradores da cidade, valendo
aos frades apenas as intervenções dos capitulares e do prelado, cf. COSTA,
M. G. (1984), p. 567 ss.
ainda durante o episcopado de D. António Teles de
Meneses, prolongou-se pela centúria seguinte e afirmou-se como uma das maiores construções religiosas
de Lamego (Figura 3).
O século XVII foi marcado pelo prosseguimento
da actividade construtiva iniciada na centúria anterior e, sobretudo, pela introdução dos novos gostos
que a Lamego chegavam por via dos artistas ao serviço
dos bispos e dos próprios religiosos. É possível que a
impermanência dos prelados na cidade ou as longas
vacâncias na cátedra que se prolongaram até 1677 tenham influído na diminuição de encomendas ou na
autorização de grandes obras construtivas. Mas, apenas a título de nota, embora a centúria de seiscentos
seja um período de estagnação construtiva, o barroco
invadiu paulatinamente os espaços interiores das capelas, ermidas e igrejas de Lamego, como evidenciam
as múltiplas referências a artistas e encomendas neste
período166.
Os anos de setecentos fecharam o ciclo empreendedor começado pelos prelados D. Fernando Meneses,
D. Manuel de Noronha e D. António Teles de Meneses.
As atenções dos antístites dirigiram-se para as novéis
ou renovadas igrejas de São Francisco (Figura 6) e de
Santa Teresa, para a ermida do Desterro e, claro, as-
165 A este propósito leia-se o que escreve Orlando Ribeiro, RIBEIRO,
O. (1994)..
166 do povo que as ordens se instalavam na cidade. Efectivamente quando o bispo D. Martim Afonso de Mexia
tentou obter a autorização para a instalação na cidade
de um convento de frades Carmelitas o projecto foi
aceite pela câmara mas Filipe III negou o intento justificando a sua decisão com o fundamento de o povo
já se encontrar já demasiado agravado com tantas fundações164. De facto estas fundações retiravam espaço
urbanizável à cidade, admitindo isenções e excepções
que feriam ou prejudicavam as prerrogativas das outras classes165.
O convento de Santa Cruz destaca-se na morfologia urbana como a maior construção do género em
Lamego. Edificado fora dos limites do couto da sé a
sua cerca ocupava uma vasta área entre o rio Balsemão
e a estrada para Arneirós, paróquia moderna criada
nos arrabaldes da cidade. Também esta casa, entregue
ao cuidado dos Cónegos Seculares de São João Evangelista ou dos Lóios, se concretizou graças à doação
da quinta de Vila de Rei por um nobre leigo chamado Lourenço Mourão Homem. Projecto iniciado em
1596, na sequência da reforma do mosteiro de Recião,
Cf. entre outras obras, ALVES, A. (2001)..
3 Excerto da Planta da cidade de Lamego e seus arredores (17--): Área do Couto
134
4 - Excerto da Planta da cidade de Lamego e seus arredores (17--):
periferia de Lamego e a construção do escadório dos Remédios
135
5 - Cronologia da actividade construtiva e episcopados de lamego (1500-1799)
6 - Excerto de bilhete postal ilustrado, não datado. Em segundo plano, central, o convento de São Francisco
sim o pedia a espiritualidade barroca, para o santuário
da Virgem dos Remédios, cujo escadório, iniciado em
1777, constituiu um dos elementos mais marcantes na
monumentalização urbana (Figura 4).
A instalação de um novo convento na cidade, o
recolhimento de Santa Teresa (Figura 7), também
marcou a paisagem ficando, a partir de 1702, o couto
episcopal delimitado por dois grandes edifícios religiosos: este recolhimento e o convento de Santa Cruz
(Figura 3).
Uma das obras que, não constituindo empreitada
saliente, interveio na morfologia urbana – através da
definição de um percurso processional –, foi a construção da via-sacra que, em 1734, sublinhou dentro da
planta de Lamego o eixo principal de circulação que
desde a Idade Média ligava a parte baixa à parte alta da
cidade. Aproveitando o declive, usou-se a orografia da
cidade para reproduzir o percurso sacrificial de Cristo
até ao monte Gólgota. Ainda persistem algumas edículas com os passos da paixão do Salvador que traçam
desde a ermida do Desterro à igreja das Chagas o trajecto processional, passando pela catedral, pela rua da
Misericórdia e pela ermida da Virgem da Esperança.
136
Nuno Resende
7 - Excerto de bilhete postal ilustrado, não datado. Em segundo plano, central, o recolhimento de Santa Teresa
CONCLUSÃO
C
onfinada à colina genética, a comunidade
de Lamego resistiu aos avanços e recuos
dos seus conquistadores até ao século XI. A
expansão da sua urbanização estruturou-se já em tempo de paz ao redor de dois templos: o de São Sebastião,
a uma cota inferior à da acrópole, e o de Santa Maria
de Almacave, quase às portas do burgo amuralhado.
Com a definição paroquial em torno dos principais
templos urbanos e a criação régia do couto episcopal a
cidade cindiu-se em dois territórios: o primeiro entregue ao governo municipalista e o segundo sujeito ao
poder episcopal, onde os prelados nunca deixaram de
centrar no Rossio e na catedral a sua atenção.
Mas o domínio temporal dos antístites, bem presente nas intervenções renascentistas de D. Fernando
Meneses Coutinho a D. António Teles de Meneses
- que claramente delinearam projectos públicos de
embelezamento do seu couto-, alargou-se ao burgo e
aos seus arredores, impondo na morfologia urbana e
na paisagem envolvente, um domínio indirecto, fosse
pelo apadrinhamento de certas obras (inclusive a instalação de casas monásticas), fosse pela reabilitação de
lugares de cultos obscurecidos.
Estes edifícios ocuparam sítios chave da cidade e
criaram elementos e pontos estruturantes, tais como
novas vias ou espaços alargados (praças ou adros) que
determinaram novos trajectos na morfologia urbana
e/ou periférica – por motivos religiosos ou económicos (ex. romagens e feiras). A sua construção pode
ser vista do ponto de vista estratégico: instituição de
novos lugares de atracção cultual, extensão do poder
eclesiástico (nomeadamente episcopal) e até a monumentalização do urbanismo – dentro de um espírito
ou mesmo consciência da importância da intervenção
mecenática (dos pontos de vista educativo e mesmo
político) no espaço público.
Este aspecto reflecte-se não apenas no couto com
as benfeitorias de certos prelados, mas nas obras executadas ao longo dos primeiros episcopados do século XVI e nos do século XVIII, em áreas periféricas,
até onde era possível aumentar os limites urbanos ou
o domínio (ainda que informal) da Mitra. São disto
exemplos a construção do mosteiro das Chagas que
aproveitou um dos lados do terreiro do Tabolado (associado desde a Idade Média à vida comercial de Lamego) e o convento de Santa Cruz implantado num
pequeno plano sobre o couto (que se tornará lugar de
mercado e negócio – ambos os projectos acalentados
por prelados lamecenses.
Actualmente é impossível dissociar as principais
obras quinhentistas ou setecentistas, como as ermidas
do Espírito Santo ou da Virgem do Remédios, da morfologia urbana contemporânea. Ainda que, em alguns
casos, não tenha sido respeitada a importância visual
e a percepção do espaço, que os homens dos séculos
XVI e XVIII reconheceram ou atribuíram àqueles edifícios e à sua envolvência – eles constituem um dos
principais motivos de engrandecimento e expansão
que a cidade de Lamego conheceu ao longo da época
moderna, em parte graças à ação dos seus prelados.
«É esta Cidade situada a forma de uma lua crescente»
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138
139
Painel 2
ARQUEOLOGIA
NO/DO DOURO
Susana Cosme
Paulo Dórdio
Pedro Pereira
António Sá Coixão
140
O contributo das pequenas
‘villae’ rústicas
na economia e povoamento
dos séculos IV-VII no Douro.
texto: Susana Rodrigues Cosme, Archeo’Estudos, Ltd, CITCEM,
([email protected])
Resumo:
A importância das pars rustica e pars fructuária das
villae romanas como base da actividade económica e
sua relação com o povoamento na região do Douro
durante a transição da época romana para a alta idade
média (séculos IV/VII). Estado da investigação sobre
as estruturas destas dependências, suas características
e funcionalidades, que ruturas e continuidades se encontram nesta transição de períodos.
Palavras Chave:
villae rusticas, villae fructuarias, economia, povoamento, Douro.
Abstract:
The importance of pars rustica and pars fructuária of villae Romans as base of the economic activity
and its relation with the populating in the region of
the Douro during the transition of the time Roman for
the high average age (centuries IV/VII). State of the
inquiry on the structures of these dependences, its
characteristics and functionalities, that ruptures and
continuities if find in this transition of periods.
142
Susana Rodrigues Cosme
Q
1 - NOTAS INTRODUTÓRIAS
uando me solicitaram que escrevesse sobre Arqueologia no Douro em época romana, fiquei algo apreensiva sobre o que
escrever, não que o assunto não seja vasto e não haja
muitos motivos de interesse sobre o que falar, mas porque, se bem que tenha iniciado os meus trabalhos de
investigação167 nesta área geográfica, há muito que não
me debruçava sobre a ocupação humana destes montes e vales da bacia hidrográfica do Douro.
Embora o meu percurso profissional me tenha
afastado geograficamente do Douro, não me afastou
da investigação arqueológica, nem do meu interesse
pelo período romano e principalmente, na transição
deste para o período alto-medieval.
Também o facto de em 2012, ao fim de 10 anos
portanto, ter voltado a trabalhar na região, desta vez
no vale do rio Sabor168, levou-me a aceitar escrever algumas considerações/inquietações com que me tenho
debatido nos últimos tempos.
Ao resolver escrever sobre as villae rústicas no Douro começam as problemáticas, a começar pelo próprio
conceito de villae, suas características e funcionalidades. Sobre as villae no Douro, esbarramos com os muitos sítios referenciados como villae, mas muito poucas
dessas referências foram objecto de intervenções arqueológicas ou de qualquer outro tipo de análise. Tentar incidir este trabalho na pars rústica e pars frutuária
das villae, ainda pior, pois a monumentalidade da pars
urbana das villae continua, ainda, a cativar mais, quer
os promotores de trabalhos, quer o público em geral,
mas principalmente, os investigadores.
Este trabalho tem como objectivo caracterizar as
estruturas existentes numa pars frutuária de uma villa,
apontar sugestões para uma melhor compreensão das
mesmas, relembrar os casos conhecidos através da bibliografia no Alto Douro e chamar a atenção aos investigadores da importância de dar conhecer e de estudar
este tipo de estruturas para uma melhor compreensão
da economia romana, não esquecendo de alertar para
a dificuldade que é reconhecer algumas dessas estru-
turas através do registo arqueológico. Por fim, tentar
perceber se este modelo de povoamento, vingou nos
séculos seguintes e/ou que alterações sofreu, será sempre um objectivo presente.
2 - O CONCEITO DE VILLAE
A
167 “Projecto de Investigação do Monte do Castelo/Calábria” em 1995
com o apoio do GEHVID e com PNTA entre 1998-2002 do qual resultaram
diversas publicações e uma tese de Mestrado apresentada à Faculdade de
Letras da Universidade do Porto sob o título “Entre o Côa e o Águeda –
Povoamento nas épocas romana e alto-medieval”, em 2002.
o estudar-se o povoamento romano, os
núcleos habitacionais são classificados
consoante a sua importância dentro do
aparelho político de Roma e consoante a sua funcionalidade: civitas, vicus, villa, casais, povoados mineiros,
mutacios, etc, não nos podemos esquecer que todos
se encontram dependentes de uma civitas capital de
província e em última instância de Roma.
Normalmente, os estudos de povoamento baseiam-se em prospecções de superfície que depois resultam
em cartas arqueológicas169 com mapas cheios de pontinhos maiores ou menores consoante os resultados
dessa mesma prospecção. Apesar de se reconhecer a
importância destes trabalhos como base para estudos
futuros, não podemos deixar de chamar a atenção para
que a leitura que se faz dos mesmos seja cuidadosa e
sempre critica, pois como veremos, para o caso das
villae, elas não são iguais entre elas e o mesmo acontece para os outros tipos de habitat.
Genericamente compreende-se o termo villae
como um tipo de propriedade que engloba uma casa
principal do proprietário, a chamada pars urbana, as
casas dos trabalhadores, a pars rústica e os anexos relacionados com as actividades de exploração económica,
pars fructuaria a que a villa estava vocacionada com
lagares, celeiros, fornos, forjas, estábulos. Fazia ainda
parte deste modelo o fundus com os campos cultivados (agri), as pastagens (saltus) e os bosques (silva).
O modelo romano para as villae não é estanque, e
como refere André Carneiro é “um conceito que hoje
sabemos polissémico, com muitos significados e materializações vivenciais” (CARNEIRO: 2010, 228).
Seria bem mais fácil, mas não mais interessante, se
a conceito de villa fosse mais estanque e homogéneo,
mas não é, ele varia ao longo do período cronológico,
varia consoante a área geográfica em que se insere, varia consoante o poder económico ou importância politica ou até mesmo do gosto pessoal do seu proprie-
168 Dirigindo em colaboração com João Niza a intervenção arqueológica no EP189 (Quinta de Crestelos, Meirinhos, Mogadouro), sob a coordenação de Sérgio Pereira para o ACE/AHBS, pela empresa de arqueologia
Archeo’Estudos, Lda. desde Fevereiro de 2012 até Novembro de 2013.
169 Algumas teses que apresentam listagem de sítios romanos para o
período aqui abordado: AMARAL: LEMOS: 1993; Coixão: 2000; Cosme:
2002.
O contributo das pequenas ‘villae’ rústicas
tário, varia consoante a actividade económica a que se
dedica, enfim as variáveis são muitas para podermos
estabelecer um conceito de villae perfeita e temos de
estar atentos à sua constante mutação não só conceptual mas também física.
Sobre a evolução da villae em período alto-medieval, não existe um critério fixo. Algumas villae são
completamente abandonadas, outras são continuamente ocupadas, sofrendo algumas alterações urbanísticas, mas mantendo a mesma funcionalidade económica, deixando de estar sob a alçada de uma civitas
para passar a responder a uma vila cabeça de terra,
outras, por sua vez, são abandonadas e criam-se estruturas novas em zonas contíguas que respondam às
necessidades de uma nova forma de política (junto a
castelos), de religião (em torno de uma capela) ou até
de actividades económicas diferentes como serão os
casos de povoados mineiros que foram abandonados
e as suas gentes vêem-se obrigadas a canalizar a sua
força produtiva para outras áreas económicas.
Uma proposta dessa evolução até um período mais
recente foi a apresentada em 1998 por Ricardo Teixeira ao fazer uma aproximação das villae romanas
às quintas do Douro. É um estudo comparado muito
interessante, principalmente, se o fizermos em termos
urbanísticos e funcionais, tal como as antigas villae, as
quintas têm também elas no ver do autor “um modelo
de propriedade, uma forma de gerir e explorar os recursos agro-pecuários, de organizar o parcelário rural, de
dispor as construções e os edifícios” (TEIXEIRA: 1998,
86), muito própria. Estas quintas ou evoluíram para aldeias ou quando isoladas mantêm a casa de habitação,
o lagar, o forno, os currais, a eira e em certas zonas a
destilaria, são normalmente construções pobres em alvenaria seca (com pedras de xisto ou granito consoante a zona), com coberturas em telha vã sobre traves de
madeira ou em colmo.
No entanto, e como mais uma vez André Carneiro
nos chama a tenção e muito bem, “ver a villa unicamente como uma unidade de produção agro-pecuária”
(CARNEIRO: 2010, 230) também não deixa de ser redutor. Embora a economia se mantenha fiel ao cereal,
olival e vinha e a maioria das vilas fosse auto-suficiente, algumas delas especializaram-se em certos produtos específicos e de qualidade que serviam não só de
moeda de troca mas que entravam nas grandes rotas
de comerciais ou então dedicavam-se a produtos de
difícil percepção aos olhos do arqueólogo, como tecidos, couros, ou produtos alimentares.
143
3 – ESTRUTURAS DA PARS RUSTICA
A
s estruturas da pars rustica são essencialmente as casas de habitação dos trabalhadores da villa, seja qual for a sua condição:
de escravo ou de liberto.
Estas construções também podem ser maiores ou
menores, mais ricas ou mais pobres consoante o poder
económico do próprio dono da villa. São estruturas
que apresentam paredes com muros em xisto ou granito, consoante a área geográfica, usando argamassa
como ligante. As paredes podem ser rebocadas e alguns desses rebocos podem ter pinturas. Normalmente os pavimentos são em terra batida e apenas algumas
divisões apresentam pisos em opus signinum. Os telhados são em tegula e/ou imbrex sobre ripas de madeira.
As cozinhas apresentam lareiras nos centros das divisões ou num dos cantos e são normalmente feitas em
pedra, tijolo ou tegulae invertidas.
Podemos encontrar divisões de habitação, cozinha,
latrinas, armazéns e muitas das vezes nas villae do
Douro a pars rústica e pars frutuária não são zonas separadas mas sim fundem-se num único edifício. Mas
a villa urbana também tem divisões para os criados,
com cozinhas e salas para trabalhos mais delicados e
em certos casos temos algumas estruturas da pars frutuária como lagares na pars urbana, por isso mais uma
vez a divisão tripartida da villa tem de ser tida como
um ponto de partida mas não seguida à letra.
4 – ESTRUTURAS DA PARS FRUTUÁRIA
E
stas estruturas como vimos estão intimamente ligadas com a actividade económica
praticada na villa e essa depende da sua localização geográfica das condições dos solos, da proximidade ou não de linhas de água, da proximidade de
matérias primas como minerais, madeiras (bosques),
das condições climatéricas, enfim de uma infinidade
de factores.
4.1 – Lagares (torcularium) e adegas (cella vinária ou cella olearia)
As estruturas mais comuns presentes nas villas do
Douro são os lagares e as adegas, o maior problema é
relacioná-los com a produção vinícola ou com o azei-
144
Susana Rodrigues Cosme
te. Para chegar a essa distinção ou se fazem recolhas
de sedimentos para análises ou são detectados caroços de azeitonas ou grainhas de uva ou ainda se tem
a sorte de encontrar mós olearias tronco cónicas. Ter
em atenção para a presença de pesos de lagar, de mós,
de restos de madeiras ou tecidos. Não esquecer também que para a obtenção do azeite é sempre necessário
mais água que para o vinho e como tal os lagares de
azeite devem ficar junto a linhas de água ou ter forma
de a fazer chegar até junto do lagar. Segundo Vitruvio,
o torcularium devia permanecer junto da cozinha ou
em íntima relação com a adega, o lagar devia estar um
pouco mais elevado na sua implantação e a ligação entre os espaços fazer-se por uma porta. A cella vinária
devia estar orientada a Norte, o que a tornaria fria e
quase obscura, devia estar longe de sítios com maus
odores, como termas, fornos, latrinas ou instalações de
animais, já para cella olearia recomenda-se um espaço
ameno para o azeite não coalhar. Para complementar
o estudo destas estruturas deve-se estar atento ao tipo
de alfaias agrícolas encontradas que são distintas na
viticultura e na olivicultura. Outro aspecto que devemos ter em conta é a presença de gado bovino na ajuda
1 - Lagar do Olival dos Telhões (Almendra. Vila Nova de Foz Côa)
ao trabalho do lagar. Em dois casos por nós escavado
o do Olival dos Telhões (Almendra, Vila Nova de Foz
Côa) e o da Insuínha, (Pedrógão, Vidigueira) surgiram
associados aos lagares badalos ou guizos de bovinos.
Não nos podemos esquecer da imensa quantidade de lagares rupestres, existentes na região duriense,
principalmente nos planaltos graníticos que embora
não estejam integrados nas villae muitos estão dentro
dos seus respectivos fundi e foram utilizados em época
romana.
Os exemplos dos lagares da Fonte do Milho, Olival dos Telhões (Fig. 1) (Almendra, Vila Nova de Foz
Côa), Rumansil, Prazo, Zimbro (Freixo de Numão,
Vila Nova de Foz Côa), Vale de Mouro (Coriscada,
Meda).
4.2 – Armazéns (granaria) e celeiros (horrea) e
moinhos (molinum).
Outra das grandes actividades económicas era a
produção cerealífera e como tal devíamos encontrar
no registo arqueológico as estruturas de armazena-
145
2 - Celeiro da Quinta de Crestelos (Meirinhos, Mogadouro)
mento: silos, dolia ou sacos de tecido (estes mais difíceis de detectar) e os próprios armazéns, horrea,
onde estes recipientes seriam guardados e protegidos
das intempéries e dos animais predadores. Estes armazéns deviam fazer parte integrante dos anexos da
pars rústica e por isso nem sempre são caracterizados
isoladamente. Dentro desta actividade são referidos os
granaria para os grãos de cereal, os fenile para os depósitos de feno e os farrariia para os silos de trigo, todos
eles deveriam ser construídos em local alto e ventilado, afastados de fontes de calor ou fogo. Os granaria
ou celeiros, são os mais facilmente detectados no registo arqueológico, predominam na zona duriense os
de pavimento sobre-elevado, apresentando uma série
de muros construídos sob a tabulata, que deveria ser
em madeira, mas que também nos surge em lajeado de
pedras de xisto. Outro tipo de celeiros são os construídos sobre pilares tipo palheiros ou espigueiros, neste
caso o registo é de mais difícil percepção. Ainda ligado
ao cereal não podemos esquecer os fornos de pão, os
moinhos de cereal, quer de mós manuais, moinhos de
água ou de vento. Associado a tudo isto, temos de estar atentos à presença dos pesos de tear, dos cossoiros,
das placas de tear, das mós e mais importante, recolher
sempre amostras de sedimento para realização de flutuações e análises de macro-restos.
Os exemplos dos celeiros de Vale dos Mouros (Coriscada, Meda) (Figura 2) e da Quinta de Crestelos
(Figura 3) (Meirinhos, Mogadouro).
4.3 – Pecuária e criação de gado
As estruturas ligadas à pecuária e criação de gado
que deviam aparecer são as que ainda hoje se usam
numa quinta, currais, vacarias, galinheiros. Estas estruturas são mais difíceis de detectar, embora algumas
construções existentes nas villas aqui estudadas, sejam
146
Susana Rodrigues Cosme
3 - Celeiro de Vale dos Mouros (Coriscada, Meda)
apontadas como cavalariças, por serem espaços muito
compartimentados e estreitos no Vale de Mouro em
mais nenhum dos casos aqui apresentados nos mostram estruturas desta tipologia que tivessem como
funcionalidade a proteção dos animais. No entanto
têm surgido algumas estruturas de forma oval ou elipsoidal que têm vindo a ser apontadas como currais de
bovídeos noutras zonas do país ou para outros períodos. O exemplo da Casa dos Mouros 241 (São Marcos
da Serra, Silves) de época romana e os da Quinta de
Crestelos (Meirinhos, Mogadouro) de época alto-medieval. Chama-se a atenção para as estruturas de buracos de poste ou paliçadas muito utilizadas neste tipo
de estruturas, bem como uma recolha cuidadosa da
fauna mamalógica exumada em cada sítio arqueológico e perceber se os veados se encontram mais numa
zona que outra, ou as cabras, ovelhas, vaca/boi, galinhas, coelhos, patos, enfim, percebendo não só o tipo
de alimentação que faziam à época mas também que
animal prevalecia e para que servia se só alimentação
ou se eram animais de trabalho (de tração).
4.4 - Fornos
Numa villa rústica ou villa frutuária podemos encontrar fornos de pão, fornos de cerâmica, de vidro, de
fundição de metal, de cal.
Os fornos apresentam normalmente uma câmara de combustão, sobre a qual é colocada uma grelha
que depois seria coberta com uma abóbada. A tipologia de fornos também varia ao longo dos anos e dos
materiais que iriam a cozer, tornando-se ao longo da
ocupação romana cada vez mais elaborados e a atingir
temperaturas mais elevadas: podemos encontrar simples covachos abertos no solo de base e que serviram
como câmara de combustão ao mesmo tempo que se
colocavam as peças no meio, junto com a madeira e
se chegava o fogo, tapando com terra e deixando cozer em soenga; a fornos de pão também escavados no
substrato rochoso e apresentando paredes e chão do
forno muito rubfatada, fornos para redução de ferro
como é o exemplo do encontrado no Olival dos Telhões (Almendra, Vila Nova de Foz Côa). Estrutura semi-circular constituída por lajes de xisto, com um leito
O contributo das pequenas ‘villae’ rústicas
147
4 - Estrutura de curral em elipse da Casa dos Mouros 241 (São Marcos da Serra, Silves)
de placas de xisto, revestida a argila e grandes blocos
de argamassa. Associada a esta estrutura detectou-se
uma grande quantidade de cinzas e uma sua observação macroscópica revela que a argila foi sujeita a elevadas temperaturas. Descrições semelhantes, nomeadamente numa propriedade do Carvalhal, Moncorvo170,
são comuns, retratando um determinado tipo de fornos romanos para uma pequena oficina metalúrgica
de ferro, de carácter artesanal e local.
170 CUSTÓDIO, 1984, p.30.
Os fornos mais conhecidos e cuja tipologia se manteve até à actualidade são os fornos de cerâmica, tratam-se de fornos grandes ovalados ou rectangulares,
com uma câmara de combustão em arcos de tijolo ou
pedras, com um pilar central ou com vários pilares que
sustentem os arcos. Grelhas robustas em tijolos e argila
e abóbadas em tijolo ou em argila e xisto partido. Estes
fornos também podem surgir em pedra como são os
casos dos fornos do Rumansil. (Figura 5).
148
Susana Rodrigues Cosme
5 - Estrutura de curral em elipse da Quinta de Crestelos
(Meirinhos, Mogadouro)
6 - Forno do Rumansil (Freixo de Numão, Vila Nova de Foz Côa)
5 - NOTAS FINAIS
A
s actividades económicas realizadas nas
villas eram a base e o motor da economia
em época romana, quase todas eram auto
suficientes e muitas delas produziam em excesso o que
lhes permitia por esses produtos nas rotas comerciais.
A ocupação do território com as características
sócio-políticas romanas, mantiveram-se até inícios/
meados do século VI, altura em que o território sofreu
a ocupação sueva e visigoda durante o final do século
VI inícios do século VIII. As alterações sentidas em
termos de povoamento não foram muito significativas,
as alterações fizeram-se sentir mais no aspecto inova-
dor da religião. Passou a existir a divisão do território em bispados e estes por sua vez em paróquias. Se
a estes bispados correspondiam as áreas de influência
das antigas capitais de civitas ou se às paróquias correspondiam a área dos vicus, isto é, se se mantiveram
as fronteiras físicas das antigas divisões administrativas, para as divisões religiosas da Idade Média é um
aspecto ainda por esclarecer.
O contributo das pequenas ‘villae’ rústicas
149
6 – BIBLIOGRAFIA
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da Malcata ao Reboredo, os valores do Côa. Guarda:
Estrela-Côa – Agência de desenvolvimento territorial
da Guarda. p. 209-213.
150
Investigação e Desenvolvimento
no Plano de Salvaguarda do Património do Aproveitamento Hidroeléctrico do Baixo Sabor
texto: Paulo Dordio
Investigador do CITCEM/FLUP
Coordenador Geral do PSP do AHBS
Resumo
Abstract:
A construção de uma nova barragem hidroeléctrica
na região de Trás-os-Montes - Aproveitamento
Hidroeléctrico do Baixo Sabor (AHBS) - promoveu
o desenvolvimento de um ambicioso plano de
minimização dos impactes da empreitada de obra
sobre um conjunto muito alargado de elementos
patrimoniais, entre os quais grande número de sítios
arqueológicos. Orientado por um documento próprio
elaborado para o efeito - Plano de Salvaguarda do
Património (PSP) – centra-se sobre um território, o
Baixo Sabor, e desenvolve uma aproximação integrada
que visa a investigação das dinâmicas de transformação
desse território na longa duração, da Pré-história aos
nossos dias.
The construction of a new hydroelectric dam in the
Trás-os-Montes region – Baixo Sabor Hydroelectric
Plant (AHBS) – was behind an ambitious plan to
minimise the impact of the construction works on a
very extensive set of heritage assets that include a large
number of archaeological sites. Under the guidance
of a special document drafted for the purpose, the
Heritage Protection Plan (Plano de Salvaguarda do
Património) (PSP), we look at the Baixo Sabor area and
develop an integrated approach designed to examine
the transformation dynamics of this territory in the
long term, from prehistory to the present day.
152
Paulo Dordio
1 - O Plano de Salvaguarda do Património do Aproveitamento Hidroelétrico do Baixo Sabor é um plano de execução das Medidas de
Minimização do Impacto de uma Grande Obra de Construção Civil, duas barragens e respetivas albufeiras afetando 23 freguesias distribuídas por 4 concelhos ao longo de 60 km do curso final do rio Sabor.
1. INTRODUÇÃO
O
Plano de Salvaguarda do Património do
Aproveitamento Hidroeléctrico do Baixo
Sabor171 encontra-se em execução plena
desde 2010 e, praticamente encerrados todos os
trabalhos de campo (incluindo as tarefas de selagem
de sítios arqueológicos e preservações in situ) até final
do passado ano de 2013, estão em fase de conclusão
171 O Plano de Salvaguarda do Património (PSP) faz parte da Empreitada
Geral do Aproveitamento Hidroeléctrico do Baixo Sabor promovida pela
EDP, Produção, e cuja execução é da responsabilidade do Baixo Sabor, ACE,
constituído pelo consórcio ODEBRECHT/Bento Pedroso Construções
S.A. e LENA, Construções. O Plano de Salvaguarda do Património tem
a seguinte estrutura de coordenação: Coordenação Geral: Paulo Dordio;
Coordenação de Equipas e de Estudos: Filipe Santos (Cilhades), José Sastre
(Proto-história), Luís Fontes (Idade Média), Paulo Dordio (Edificado),
Rita Gaspar (Pré-história), Sérgio Antunes (Acompanhamento) Sérgio
Pereira (Romanização), Sofia Figueiredo (Arte Rupestre), Susana Lainho
(Conservação). O Plano de Salvaguarda do Património (PSP) integra
a Área do Ambiente, Qualidade e Segurança da Empreitada Geral, área
coordenada por Augusta Fernandes.
neste momento, no 1º semestre do corrente ano de
2014, o conjunto dos relatórios finais de cada um dos
sítios e elementos patrimoniais intervencionados e já
a iniciar-se a elaboração das Monografias que, uma
vez editadas, concluirão os estudos desenvolvidos
no âmbito do PSP do AHBS. O Plano, que integra
um núcleo de Estudos Específicos (A Pré-história
do Baixo Sabor, A Arte Rupestre, A Proto-história,
A Romanização, A Idade Média ou a Paisagem
Tradicional) bem como Programas Especializados
(Protecção e Monitorização de Valores Patrimoniais,
Acompanhamento de Obra, Preservação in Situ,
Trasladação de Elementos Patrimoniais,…), implicou
uma inusitada concentração de recursos humanos e
materiais com o objetivo da implementação de um
projeto de investigação patrimonial numa delimitada
região deprimida do interior transmontano e duriense.
Investigação e Desenvolvimento
153
O processo está a potenciar muitas e diversificadas
iniciativas paralelas que, privilegiando uma constante
e intensa interação com a comunidade local,
perspetivam a futura continuação da investigação e do
desenvolvimento a partir dos valores do património
cultural, histórico e natural.
2. BREVE CRONOLOGIA DO PLANO DE
SALVAGUARDA DO PATRIMÓNIO
1992 Estudos Prévios
2004 Declaração de Impacto Ambiental (DIA)
2008 Início da obra e da execução das primeiras
medidas de minimização
2009, Maio/agosto - Definição final do Plano de
Salvaguarda do Património (PSP) do AHBS
2009, Dezembro/2010, Fevereiro - Entrada ao
serviço da atual estrutura e equipa de execução do PSP
2010, Agosto /setembro - Conclusão da execução
das medidas de minimização prioritárias para
desbloqueamento das frentes de obra
2011, Março - Início das escavações arqueológicas
na área das albufeiras
2011, Abril - Início da prospeção arqueológica
intensiva e sistemática na área das albufeiras
2011, Dezembro- Conclusão da prospeção
arqueológica intensiva e sistemática na área das
albufeiras
2013, Dezembro - Conclusão dos trabalhos de
campo
2014 Conclusão dos trabalhos de gabinete e redação
dos relatórios finais ou Monografias dos Estudos
2 a 5 - Baixo Sabor.
3. PAISAGENS E TERRITÓRIOS NO BAIXO
SABOR
O
Vale do Baixo Sabor impõe-se a quem o
observa cavando o curso vigoroso através
de uma paisagem de planaltos a perder de
vista. As formas são robustas e esmagadoras. Na maior
parte do curso, as encostas são abruptas configurando
154
Paulo Dordio
um vale muito encaixado entre arribas. Mas, por
vezes, o vale abre, multiplicando-se os subsidiários
que rasgam os planaltos de ambos os lados do
rio, aplanando as encostas das margens onde se
identificam antigos terraços fluviais. São esses nichos
alveolares que as populações mais antigas, desde que
se começaram a sedentarizar e a criar aldeamentos
permanentes, escolheram para centro dos seus
territórios. Atualmente, porém, nessas mesmas zonas,
não se implanta uma única aldeia. Todas se situam
nos planaltos adjacentes. A ruptura e mudança de
paradigma parecem ter ocorrido no último milénio,
da Baixa Idade Média ao Presente.
6 - As zonas de concentração da antiga ocupação humana (até c. de 1000 dC.): Escavações Arqueológicas no âmbito do PSP do AHBS.
Áreas de Escavação: situação em agosto de 2013, prévia ao Plano Final de Crestelos.
Investigação e Desenvolvimento
155
4. EXECUÇÃO DO PLANO DE SALVAGUARDA
DO PATRIMÓNIO EM NÚMEROS
Parâmetro
Quantidades
Comentário
Prazo de Execução
5 anos
2010 - 2014
Área de Afetação
c. 3 093 hectares
2 albufeiras e estaleiros
243
À data de 2008
2411
À data de 30/10/2013
115
À data de 30/10/2013
c. 24 000 m2
À data de 30/10/2013
c. 200 a 250 técnicos
Variável/máximos atingidos
(não inclui laboratórios, unidades de
investigação e colaboradores externos)
Sítios/Elementos Patrimoniais
individualizados (RECAPE)
Sítios/Elementos Patrimoniais
individualizados (PSP)
Sítios/Elementos Patrimoniais objeto de
Intervenção Arqueológica
Área total de Escavação Arqueológica
Dimensão total equipas internas
5. DESENHO DO PROJETO. DESENHO DO
PLANO DE SALVAGUARDA DO PATRIMÓNIO
(PSP)
I
nformada pelos Estudos Prévios realizados a
partir de 1992, que visaram a identificação e
avaliação dos valores e elementos patrimoniais
arqueológicos, arquitetónicos, históricos e etnográficos
existentes na área a inundar e a afetar como resultado
do Aproveitamento Hidroeléctrico do Baixo Sabor
(AHBS), a Declaração de Impacto Ambiental
(DIA)172 de 2004 definiu e estabeleceu um conjunto
de condições a que o Projecto de Execução do AHBS
deveria obedecer. Posteriormente, o Relatório de
Conformidade Ambiental do Projecto de Execução
(RECAPE) desenvolveu e especificou de forma mais
completa essas condições, identificando entre as 17
Medidas de Minimização elencadas, a obrigação de
ser elaborado um Plano de Salvaguarda do Património
(PSP).
Encetada a Fase de Obra em 2008, foi, em
paralelo, iniciada a execução de diversas tarefas de
minimização e de monitorização de impactos na área
172 A Declaração de Impacto Ambiental (DIA) do AHBS foi publicada
no «DIÁRIO DA REPÚBLICA — II SÉRIE», N.o 233 — 2 de Outubro de
2004, p. 14719 - 14726. Disponível em <http://www.ambs.pt/index.php/
documentos/category/5-decaracao-de-impacto-ambiental>.
[Consulta
realizada em 3/02/ 2014]
do património arqueológico e arquitetónico. Mas
é já num momento avançado do ano de 2009 que
surge o Plano de Salvaguarda do Património (PSP),
estabelecendo, num único documento coordenador
e globalizante, os objectivos e as especificações
concretas e pormenorizadas do projeto de salvaguarda
do património do Baixo Sabor, assinalando os recursos
humanos e materiais mínimos adequados à dimensão
das tarefas em vista e definindo metodologias. Aquele
documento faz a afirmação de três principais vetores
de atuação, com plena consciência da novidade
introduzida na prática corrente deste tipo de aplicação de
medidas minimizadoras de impacto e afetação de obra:
1. Ao estabelecer que a salvaguarda do
património não se realiza apenas através do
Registo, Monitorizações ou Preservações in situ
mas, em primeiro lugar, através da Produção de
Conhecimento, concebe o Plano como um plano
de estudo de um território e de uma paisagem
estruturando-o através de um núcleo de estudos
ou investigações específicas de âmbito cronológico
(Estudo da Pré-história do Baixo Sabor, da ProtoHistória, da Romanização, da Idade Média e o
Estudo das Idades Moderna e Contemporânea),
156
Paulo Dordio
geográfico (Estudo da Área de Cilhades) ou
temático (Estudo da Arte Rupestre).
2. Ao recusar uma visão atomística do
património, propõe para o estudo dos elementos
patrimoniais - sítios arqueológicos, edificado ou
modos de vida e memórias das populações atuais
- uma investigação integrada, perspetivando-os na
sua inter-relação e na relação significativa com o
território e a paisagem em diacronia.
3. Ao valorizar patrimonialmente e fazer incluir
na Salvaguarda o Momento Atual da Paisagem,
aproximando-se dele não só como o momento de
chegada de uma longa diacronia mas também como
um continuum multidimensional (macro e micro
edificado, coberturas vegetais, gestos, memórias e
representações dos seus habitantes).
Foi, deste modo, no entendimento daquele
documento que o âmbito do «património cultural
integra não somente o conjun­to de bens materiais
e imateriais de interesse cultural pertinente, como
também os respetivos contextos que, pelo seu valor
testemunhal, possuam com aqueles uma relação
interpretativa e informativa»173. Assim, determina o
referido documento que
«os estudos a realizar, articulando as variadas fontes
existentes, deverão espelhar uma análise diacrónica e sincrónica
das realidades crono­culturais identificadas, permitindo avaliar a
persistência do modelo de organização do espaço (...) abordando
a estru­tura do povoamento como fenómeno de longa duração. (...)
A realização de diversos estudos especializados sobre o património
do Vale do Sabor deverá procurar garantir as condições para a
reconstituição narrativa e gráfica desta realidade territorial na
sua vertente histórico-patrimonial. Por isso far­-se-á um registo
integrado (relacionado) quer do ponto de vista espacial, quer
tem­
poral de todos os elementos patrimoniais (...) evitando
uma abordagem atomizada, casuística e descontextualizada dos
elementos patrimoniais existentes»174.
A preocupação de se passar para um nível
de interpretação global fica claramente expressa
neste documento orientador e traduz a procura da
transposição para a prática do enquadramento teórico
da mais atualizada problematização sobre a salvaguarda
do património cultural que as convenções internacionais
ratificadas pelo Estado português vêm consignando175.
Estamos perante o esforço de interpretar a evolução da
ocupação humana do território, desde a pré-História
173 Plano de Salvaguarda do Património, Aproveitamento Hidroeléctrico
do Baixo Sabor, Empreitada Geral de Construção, EDP, 2009, 86 p.
174 idem
175 FERREIRA, David; DORDIO, Paulo; LIMA, Alexandra Cerveira
(2013) – Paisagem Como Fonte Histórica. In Actas Congresso Internacional
Arqueologia Moderna. Lisboa. 2011. CHAM
à época contemporânea, percebendo a forma como
se constituiu a paisagem atual. Poderemos dizer que
as principais novidades passam pelo objeto de estudo
assumir toda a diacronia e por se exigir um registo
não descritivo, mas interpretado. Fica postulada
uma aproximação multidisciplinar à ocupação mais
recente, numa abordagem da mesma natureza da que
é feita à ocupação humana datável das cronologias
mais antigas. Desaparece a consideração de elementos
arqueológicos, arquitetónicos ou etnográficos
individualmente considerados, e encaram-se todos
estes elementos como partes de um todo históricoarqueológico que importa interpretar176.
6. OPERACIONALIZAÇÃO DA EXECUÇÃO
DO
PLANO
DE
SALVAGUARDA
DO
PATRIMÓNIO (PSP)
I
niciada a execução em “obra” do PSP, foi
desde logo evidente a necessidade de criar um
Sistema de Informação Geográfica (SIG/GIS),
único instrumento capaz de apoiar a eficaz gestão e
controlo do volume de informação georreferenciada
expectado. Na verdade, não é apenas o volume de
produção da informação georreferenciada que adquire
rapidamente proporções gigantescas. É o volume
de produção de informação procedente das mais
diversas fontes de informação (registos arqueológicos,
inquéritos antropológicos, levantamentos gráficos e
arquitetónicos, registos de fontes arquivísticas, …)
e suportes (texto, imagem, vídeo, áudio) que atinge
uma dimensão difícil de gerir e controlar, bem como
de articular entre si, de modo a alcançar os objetivos
propostos. Paralelamente, houve que equacionar
o modo como toda a informação e conhecimento
produzidos deveriam ser devidamente organizados
e preservados para futuro num Sistema de Base de
Dados devidamente integrado com o Sistema de
Informação Geográfica (SIG/GIS), capaz de gerir,
controlar e preservar a informação e conhecimento
produzidos.
Do mesmo modo, e uma vez que, quer em fase de
Estudos Prévios, quer já em fase de RECAPE (Relatório
de Conformidade Ambiental do Projecto de Execução),
todos os trabalhos de prospeção, identificação e
inventariação dos elementos patrimoniais existentes
176 idem
Investigação e Desenvolvimento
na área a afetar haviam sido realizados com critérios
e metodologias de malha excessivamente larga, surgia
agora como prioritária a execução de uma Prospeção
Sistemática e Intensiva em Fase de Obra. Desde logo
porque a execução da “prospecção Intensiva, durante
a fase de construção, da totalidade da área afectada”
constituía uma das Medida de Minimização dos
Anexos da Declaração de Impacte Ambiental (DIA)
do Aproveitamento Hidroeléctrico do Baixo Sabor de
2004. Mas ainda, porque, apenas com a realização dos
primeiros trabalhos não sistemáticos de prospecção
pelas equipas do PSP em 2010, os 253 Elementos
Patrimoniais identificados em RECAPE (2008)
haviam rapidamente sido incrementados para cerca
de 900 sítios, o que demonstrava sobejamente quanto
o património do vale do Baixo Sabor se encontrava
subavaliado. Foi assim concebido e implementado um
plano de ação com a dimensão e os recursos necessários
a que, num prazo de tempo que se apresentava
manifestamente escasso, fosse possível realizar uma
157
prospeção de malha apertada em cerca de 2500 ha de
terreno acidentado, com difíceis acessibilidades e, na
maior parte da área, coberto com densa vegetação177.
O resultado obtido pelas equipas de prospeção alterou
profundamente o conhecimento do património
arqueológico, arquitetónico e etnográfico do vale,
tendo multiplicado por 10 o número de Elementos
Patrimoniais
inventariados
(2411
Elementos
Patrimoniais à data de 30/10/2013).
177 Memória Descritiva. Prospecção Intensiva de Toda a Área de
Afectação Durante a Fase de Construção do Aproveitamento Hidroeléctrico
do Baixo Sabor. 04.03.2011. AHBS/NTPSP.08.00, 25 p. + 4 ANEXOS.
7 - Situação em março de 2011: prévia ao Plano de Prospecção Sistemática e Intensiva
158
Paulo Dordio
8 - Situação em fevereiro de 2012: posterior à execução do Plano de Prospeção Sistemática e Intensiva
Outro importante desenvolvimento em fase de
execução do Plano de Salvaguarda do Património
(PSP) foi o da estruturação e organização autónoma
de uma Área de Conservação, Laboratório e Arquivo
de Espólio e Materiais, não prevista como tal na
formulação original do Plano mas que, fruto das
necessidades identificadas no decurso da experiência
da sua operacionalização, viria a ser objecto de
formalização em Adenda ao documento original do
PSP178.
Deverá ser do mesmo modo realçada a importância
que a componente de reconstituição Paleo-ambiental
tem vindo a assumir ao longo da execução do Plano de
Salvaguarda do Património (PSP). Esta parece ser aliás
a consequência lógica de um Estudo centrado num
território e na sua longa diacronia. O Plano especificava
já o objetivo de um estudo especializado sobre os
Terraços do Sabor e da Evolução Geomorfológica do
Rio Sabor mas deixava outras dimensões deste tipo
de aproximação numa formulação muito mais vaga.
O concurso e colaboração de vários especialistas,
laboratórios e unidades de investigação externas
viriam a permitir concretizar o arranque de programas
de estudo e analíticas especializadas não apenas sobre
a dinâmica fluvial mas igualmente sobre a dinâmica
de vertentes, a identificação dos recursos ambientais
e da sua manipulação antrópica (paleobotânica,
zooarqueologia, recursos minerais – nomeadamente
os metais, pétreos e as argilas) assim como o estudo das
populações humanas (antropologia física incluindo
uma analítica bio-antropológica)179. Ensaia-se deste
modo um esforço de reconstituição paleo-ambiental
178 Plano de Salvaguarda do Património, Adenda. Aproveitamento
Hidroeléctrico do Baixo Sabor, Empreitada Geral de Construção. 12.01.2012
e Revisão 1 do mesmo datada de 09.03.2012. AHBS/ADPSP.01.01.
179 Neste âmbito está a ser ultimado um protocolo de colaboração com
o CIAS, Departamento de Ciências da Vida - Universidade de Coimbra
Investigação e Desenvolvimento
global e multi-disciplinar180.
O diálogo que tem vindo a ser implementado
entre os diferentes investigadores e especialistas
envolvidos, cruzando os sucessivos avanços
obtidos no conhecimento, começa a permitir a
problematização das dinâmicas da ocupação humana
na longa diacronia do Baixo Sabor sobre uma base
empírica e analítica de largo espetro. O aprofundar
da reconstituição paleoambiental e o emergir da
importância das dinâmicas e relações entre a zona do
vale e os planaltos adjacentes está também a mostrar a
urgência da abertura de uma área de amostragem nesta
180 Estão neste momento envolvidos investigadores, laboratórios
e unidades de investigação como o CIBIO, Faculdade de Ciências –
Universidade do Porto, Cegot, Faculdade de Letras - Universidade do
Porto, UNIARQ – Universidade Nova de Lisboa, ITN – Universidade
de Lisboa, Universidade do Minho, e Grupo de Tecnologia Mecânica y
Arqueometalurgia - Universidade. Complutense, Madrid. Um indicador
quantitativo da dimensão do esforço empreendido é, por exemplo, o do
volume de sedimento arqueológico sujeito a flutuações para estudos
astrobotânicosue se contabilizava à data de 30/10/2013 em 38 505 litros! No
que respeita ao programa de datações absolutas através de radiocarbono
estão envolvidos diversos laboratórios nos EUA e na Holanda, as datações
TL estão a cargo do ITN – Universidade de Lisboa e Paleo-magnetismo da
responsabilidade do GPM - Universiddad Complutense, Madrid.
159
última zona do planalto uma vez que todo o processo
de intervenção no âmbito do PSP se centra, quase
em exclusivo, no fundo do vale, a área futuramente
inundada pelas albufeiras.
160
Paulo Dordio
Investigação e Desenvolvimento
161
9 a 12 - Cilhades (Felgar, Torre de Moncorvo). No topo de um esporão com amplo domínio visual, no local hoje conhecido por Castelinho, as escavações arqueológicas puseram a descoberto um sítio fortificado proto-histórico (Idade do Ferro). Já a ocupação humana
dos períodos subsequentes, mesmo a romana, parece privilegiar as zonas de topografia mais baixa e de maior proximidade com o próprio
Rio Sabor, no Cemitério dos Mouros e no Laranjal. Muito embora os vestígios da ocupação humana mais visíveis atualmente se prendam
com construções tardias, diretamente relacionadas com o aproveitamento sazonal dos terrenos agrícolas ali existentes – edifícios
de apoio agrícola, muros de socalco, muros apiários, poços de captação, levadas de água... – há neste pequeno lugar claras evidências
de uma ocupação continuada no tempo, iniciada ainda na Pré-história Recente (c. 3000 aC). Bastante mais expressivas são as marcas
deixadas durante a Idade do Ferro, o período romano e medieval até, praticamente, aos nossos dias. Cilhades manteve-se, até aos anos
de 1980, como uma zona de passagem fluvial importante, servida por uma barca que garantia o acesso de pessoas e bens entre as duas
margens do Rio Sabor. A importância desta passagem fluvial, documentado desde pelo menos a Época Moderna, é assinalável, observando-se este lugar destacado na cartografia portuguesa mais antiga, datada do século XVI, como Barca de Silhades. Esta embarcação só
seria suplantada em 1982 pela construção, nas proximidades do local de travessia, de um pontão.
162
Paulo Dordio
Investigação e Desenvolvimento
163
164
Paulo Dordio
13 a 16 - O sítio de Crestelos (Meirinhos, Mogadouro) está localizado num meandro do Sabor onde o rio abre uma ampla bacia propiciadora da ocupação humana e de características semelhantes às de Cilhades (Felgar, Torre de Moncorvo). Os estudos realizados nesta
área revelaram uma ocupação humana intensa desde o Paleolítico, no sítio do Medal, passando pelo Calcolítico, Idade do Bronze, Idade
do Ferro, período romano, Idade Média e a era Moderna, prolongada até hoje com a Quinta de Crestelos que estava ainda em exploração
no início da intervenção no âmbito do PSP. O povoado da II Idade do Ferro revela um modelo pela primeira vez reconhecido na região em
que um pequeno esporão fortificado, com várias linhas de muralha e fossos, se associa a uma extensa área habitacional aberta implantada no sopé da elevação. As principais construções de época romana e medieval (sécs. II-III a XIII) identificaram-se imediatamente a Oeste
dos actuais edifícios da Quinta de Crestelos, prolongando-se por debaixo destes. Estas edificações de alvenaria, exibindo uma densa e
complexa sequência construtiva, utilizaram diversas soluções arquitectónicas desde a casa de uma única divisão a casas de planta de
pátio central. Conexas desta fase identificaram-se dois cemitérios com numerosos enterramentos. Regista a memória local na aldeia de
Meirinhos que a Quinta de Crestelos era baldio da comunidade e apropriada pela família Távora, detentora de grande poder e influência
na região, uma vez que foi entregue pela população àquela família apenas por três vidas, ou seja três gerações, em troca da construção
da Capela de Santa Cruz, situada na aldeia, e da ponte de arco pleno que atravessa o ribeiro de São Pedro, ligando os termos de Meirinhos e de Valverde. A documentação arquivística e as fontes históricas entretanto identificadas no âmbito do PSP, estão a permitir
reconstituir e entender melhor os pormenores da difícil e conflituosa relação mantida ao longo dos séculos XV, XVI, XVII e XVIII, desde
que a família Távora se estabelece na região no final da Idade Média e é obrigada a contrariar a resistência das comunidades locais à
construção do seu extenso domínio territorial.
17 e 18 - Sondagens nas pinturas parietais da capela da Santo Antão (Parada, Alfândega da Fé), localizada na margem oposta à Quinta
de Crestelos, permitiram identificar três campanhas sucessivas sendo a primitiva, datada de meados do século XVIII, de uma enorme
qualidade artística e valor patrimonial, provavelmente associada a uma encomenda da família Távora a um pintor da Corte ainda não
identificado. A descoberta das pinturas no decurso da intervenção do PSP obrigou à reformulação do projeto inicial de salvaguarda
que passou a incluir a trasladação integral das pinturas murais e o restauro de todo o recheio artístico.
Investigação e Desenvolvimento
8. DESENVOLVIMENTO DE UMA METODOLOGIA ADEQUADA AO REGISTO E ESTUDO
DO CONTINUUM MULTIDIMENSIONAL QUE É
A PAISAGEM MAIS RECENTE E ACTUAL: O ESTUDO DO EDIFICADO.
E
165
patrimoniais individualizados (EP) em «processos»,
«técnicas», «vivências», «práticas» ou «expressões» de
nível superior. Verifique-se a especificação extraída do
PSP182:
«os levantamentos patrimoniais realizados no vale do Sabor
durante o EIA e o RECAPE do empreendimento identificaram um
número elevado de estruturas que se relacionam com a ocupação
do território durante a Época Moderna e Contemporânea (...).
Estes elementos patrimoniais contemplam habitações, estruturas da
arquitetura de produção, caminhos, muros de propriedade, obras de
contenção de terras e modelação do solo, obras de aproveitamento
do rio e manifestações de religiosidade popular. Ainda que
alguns destes elementos apresentem um valor próprio pela sua
tipologia, expressão arquitetónica ou artística, singularidade
ou caráter simbólico e social, a maioria deles só ganha expressão
quando integrada no conjunto de testemunhos dos processos de
assentamento, das técnicas construtivas, da vivência social, da
prática económica ou da expressão simbólica das comunidades que
ocuparam o vale do Sabor.
«Neste sentido entende-se que é essa dimensão integrada de
conjunto, no que diz respeito à integração histórica strito senso
e formal (formas que tal património assumiu na dinâmica da
ocupação histórica) que deve ser objeto deste estudo. De modo
simplificado, diremos que o registo das manifestações da arquitetura
tradicional e de todas as atividades desenvolvidas no vale do Sabor
em época que cremos ser moderna e contemporânea, tem como
principal objetivo um estudo que personificará a sua salvaguarda
na memória futura. As visões de conjunto caminham a par com
este registo».
stabelecendo o PSP uma estratégia de
abordagem em que todos os estudos
parcelares e ações a realizar deverão ser
perspetivados de modo articulado e integrador,
com o objetivo último de estudar na longa duração
a construção de uma paisagem, a do Baixo Sabor,
é talvez na investigação que o Plano de Salvaguarda
designa como «estudo sobre os elementos edificados e
construídos de caráter arqui­tetónico e etnográfico no
Vale do Sabor» que se levantaram os maiores desafios
no desenvolvimento de uma metodologia adequada
aos objetivos apontados uma vez que aqueles mesmos
elementos tem vindo a ser considerados de forma diversa
noutras intervenções de Minimização de Impactos.
Foi entendimento da coordenação da equipa em
campo, em articulação com a tutela, que o objeto
central do estudo proposto em PSP se foca sobre o que
designaremos paisagem tradicional entendida como o
momento de organização da paisagem imediatamente
anterior às profundas roturas que no prazo de apenas
meio século, entre 1950 e 2000, fariam reduzir o peso
da população rural portuguesa de valores superiores a
50% para valores inferiores a 5%. Perspetivada na longa
duração, a paisagem tradicional preenche o período
que se estende entre a Idade Média Plena (século XI) e
o auge da ocupação demográfica do espaço rural que
acontece nas décadas de 1950 e 1960.
A necessidade de compatibilizar a macro com a
micro arquitetura, o registo do material com o registo
das memórias e das representações dos habitantes181,
perspetivando a paisagem e o território como um
continuum, conduziu a reflexão metodológica à eleição
do “prédio rústico” como a unidade de informação
base nas tarefas de descrição e interpretação.
Importa realçar o que na formulação do
Plano de Salvaguarda surge como a «dimensão
integrada de conjunto», bem como a necessidade de
integração, expressa nesse documento, dos elementos
Para a execução dos objetivos propostos em PSP
entendeu-se que a operacionalização no registo
e no estudo da dimensão integrada de conjunto
deveria assentar na consideração do cadastro como
enformador das unidades funcionais (prédios rústicos)
através das quais é possível integrar diversos elementos
patrimoniais individuais (EP) que passam deste
modo a relacionar-se no interior de uma unidade de
paisagem. A integração é assim operacionalizada não
apenas na extensão ou espaço, como igualmente no
tempo e na História. Na verdade, cada uma daquelas
unidades de paisagem:
- é uma propriedade, quer dizer uma extensão
sobre a qual se exercem direitos associados a
determinados indivíduos ou famílias; os quais
foram, ao longo do tempo e das sucessivas gerações,
objeto de herança ou alienação;
- é uma unidade de exploração agrícola, quer
dizer um conjunto de recursos organizados de
acordo com as tecnologias disponíveis de forma a
garantir subsistência e rendimento que sofreram
ao longo do tempo processos de maior ou menor
intensificação ou de abandono;
- é uma memória, quer dizer um lugar
181 As entrevistas e inquéritos de caráter antropológico junto dos
habitantes do Baixo Sabor no período de 28/09/2009 a 25/09/2013
totalizaram 1067 inquéritos e entrevistas a 389 informantes tendo sido
obtidas 938 h de registos áudio e/ou vídeo.
182 Plano de Salvaguarda do Património, Aproveitamento Hidroeléctrico
do Baixo Sabor, Empreitada Geral de Construção, EDP, 2009, ponto 4.7.
Estudo sobre elementos edificados e construídos de caráter etnográfico no
Vale do Sabor.
166
Paulo Dordio
identificável pela comunidade por nome próprio
(micro-topónimo) no qual se acumulam e ao qual
se associam vivências e expressões que fazem parte
da memória e da História da mesma comunidade.
O passo seguinte neste processo de estudo da
paisagem, que visa uma compreensão global da
ocupação deste território pelas gentes da época moderna
e contemporânea, é o de uma integração de nível
sucessivamente superior das unidades de paisagem de
forma a dar conta do tecido contínuo e dinâmico que
a paisagem do Vale do Sabor constitui.
19 e 20 - Foz da Ribeira de Zacarias: olgas espraiadas e muito férteis; concentração de quintas: Crestelos e Barrais; Quinta Branca;
Quinta de São Gonçalo (Freguesia de Meirinhos- Mogadouro; Cerejais e Ferradosa - Alfândega da Fé). Levantamento Arquitetónico da
Quinta Branca. Alçados do Núcleo Central.
Investigação e Desenvolvimento
21 e 22 - Moinho do Freitas
(entre Vilar Chão, Alfândega da Fé e Paradela,
Mogadouro). Moinho de submersão, de caráter sazonal,
constituindo o tipo de moagem mais comum no passado
do curso do Baixo Sabor. A
vontade e a persistência do
seu proprietário e moleiro –
Sr. António Freitas – mantinham ainda em funcionamento
este moinho, até ao ano de
2011. Último descendente
de uma família de moleiros,
permitiu o registo vivo do
fazer e saber fazer bem como
da memória de várias gerações ligadas à utilização
tradicional da força do rio
como elemento essencial de
uma paisagem de pão como
foi a do vale e planaltos do
Baixo Sabor.
167
168
Paulo Dordio
9. INVESTIGAÇÃO E QUE DESENVOLVIMENTO?
P
róximos do momento da conclusão do
processo enunciado no Plano de Salvaguarda
do
Património
do
Aproveitamento
Hidroelétrico do Baixo Sabor - que se completará com
a publicação e difusão da síntese do conhecimento
produzido, já prevista sob a forma de uma colecção
de Monografias correspondentes a cada um dos
Estudos desenvolvidos – deverá ser-nos permitido
traçar um esboço de balanço do que de mais positivo
e, paralelamente também, de mais negativo, resultou
desta experiência e projecto.
Negativo
Positivo
Escasso conhecimento prévio dos valores patrimoniais em
presença no Baixo Sabor
Descobertas inesperadas e produção de conhecimento
arqueológico e histórico com contributos excecionais e
novos paradigmas
Dificuldades e atrasos ocasionados pelos processos
burocráticos de expropriação ou de abate de árvores
Dificuldade e atrasos na mobilização de recursos humanos
e materiais
Alargada concentração de recursos técnicos e científicos
que transformou o PSP do AHBS num dos maiores
projetos arqueológicos realizados em Portugal
Escassos indicadores à superfície do solo com a ocultação
dos níveis arqueológicos sob espessos depósitos de fundo
de vertente ou nos terraços do rio; forte ação destrutiva
dos níveis arqueológicos pela dinâmica do rio
Necessidade muitas vezes de um diálogo musculado
entre as partes e interesses envolvidos: Dono de Obra,
Empreiteiro Geral, Investigadores e Tutela
Inexistência de um Plano de Comunicação ao longo da
execução do projecto
Atraso na definição e elaboração de uma Estratégia e
Plano de Valorização e Difusão Futura
Compatibilização entre uma obra de construção civil
de grande complexidade e um projecto de estudo e
salvaguarda patrimonial muito ambicioso num contexto
de prazos muito apertados
Empenho e metodologia de proximidade na ação dos
organismos e técnicos da Tutela do Património
Experiência acumulada de redefinição de objetos
de atuação, desenvolvimento de metodologias mais
adequadas de registo e estudo e de instrumentos de gestão
Investigação e Desenvolvimento
169
23e 24 – Dinâmica e iniciativas do grupo informal Aldeia Viva*. O envolvimento e a proximidade de elementos das equipas do PSP com as
comunidades locais potenciou uma sequência de iniciativas conjuntas, que tiveram origem e continuam a ter lugar de forma paralela e
autónoma ao processo institucionalizado de Minimização de Impactos, mas que criaram seguramente raízes para futuro.
*As actividades do grupo Aldeia Viva podem ser acedidas através dos seguintes links: http://grupoaldeiaviva.wix.com/aldeiaviva; https://www.facebook.
com/aldeia.viva.5?ref=tn_tnmn; http://www.flickr.com/photos/97386232@N03/"
170
Paulo Dordio
Por último, quatro do que penso deverem ser princípios estratégicos de um desenvolvimento regional
futuro potenciado pelos valores patrimoniais identificados e estudados no âmbito do Plano de Salvaguarda
do Património do Aproveitamento Hidroeléctrico do
Baixo Sabor.
1. A participação e envolvimento das comunidades e dos decisores locais é a chave da sustentabilidade
de qualquer projecto local.
2. Mais do que criar novas estruturas importa
requalificar estruturas já existentes na região e promover redes e parcerias.
3. Os valores patrimoniais em presença sustentam absolutamente uma ambição muito elevada nos
futuros projectos a implementar.
4. Não é possível fazer valorização e educação
patrimonial de qualidade sem um continuado suporte em investigação e produção de conhecimento sobre
esse mesmo património. A futura investigação e produção de conhecimento sobre o património do Baixo
Sabor deverá promover uma estratégia regional de
investigação prosseguindo e potencializando as problemáticas abertas e a articulação com linhas de acção
complementares do projecto de investigação desenvolvido no âmbito do PSP do AHBS, procurando contrariar a tendência sempre mais comum de “começar
tudo de novo a cada vez”. Neste sentido, será importante identificar uma Rede regional de sítios arqueológicos e patrimoniais prioritários e de elevado potencial
bem como promover a criação de uma linha editorial
devotada à difusão de qualidade dos resultados da investigação.
A conclusão e o encerrar do Plano de Salvaguarda do Património do Aproveitamento Hidroeléctrico
do Baixo Sabor, com um balanço que, neste momento, só pode ser considerado positivo, deverá constituir
um novo desafio, em particular para os técnicos envolvidos neste tipo de processos de Minimização de
Impactos de Obra. Aqui chegados, importa agora, em
futuros empreendimentos, fazer a Regra do que se condescendeu aceitar, a mais das vezes, como uma Excepção irrepetível.
BIBLIOGRAFIA
Declaração de Impacte Ambiental (DIA) do AHBS
(2004) - Diário da República, II Série, N.º 233 — 2
de Outubro de 2004 [4719 – 14726]. Disponível
em
<http://www.ambs.pt/index.php/documentos/
category/5-decaracao-de-impacto-ambiental>.
[Consulta realizada em 3/02/ 2014].
FERREIRA, David; DORDIO, Paulo; LIMA,
Alexandra Cerveira (2013) – Paisagem Como
Fonte Histórica. Velhos e Novos Mundos. Estudos de
Arqueologia Moderna. Lisboa: CHAM – FCSH/NovaUAC.
Memória Descritiva. Prospecção Intensiva de Toda
a Área de Afectação Durante a Fase de Construção
do Aproveitamento Hidroeléctrico do Baixo Sabor.
(2011.04.03) AHBS/NTPSP.08.00, 25 p. + 4 ANEXOS.
(policopiado).
Plano de Salvaguarda do Património, (Adenda).
Aproveitamento Hidroeléctrico do Baixo Sabor,
Empreitada Geral de Construção. (2012.01.12) e
Revisão 1 do mesmo datada de (2012.03.09) AHBS/
ADPSP.01.01. (policopiado).
Plano de Salvaguarda do Património, Aproveitamento
Hidroeléctrico do Baixo Sabor, Empreitada Geral de
Construção (2009). EDP. (policopiado).
171
172
De vino ac vineas
viticultura romana no Vale do Douro
texto: Pedro Pereira
(UMR 5138 Archéologie et Archeonometrie (CNRS) e do CITCEM-FLUP (FCT)
Resumo
No século Iº a.C., Estrabão escreve uma das primeiras obras conhecidas, a Geografia, em que a Lusitânia
é referida. No primeiro parágrafo do terceiro capítulo
do terceiro livro, descreve os povos do Norte da Lusitânia enquanto consumidores de zithos, um tipo de
cerveja, “(...) mas são escassos de vinho, e o vinho que
teem bebem-no rapidamente em festas de casamento
com seus familiares.”. A Arqueologia, pelo seu lado,
tem vindo a comprovar este mesmo consumo, pelo
menos entre elites, na bacia do Douro pelo menos desde o século IIº a.C.
Todavia, a massificação de consumo e produção
de vinho serão fruto do processo de romanização,
empreendido a partir do século I a.C. e que consta da
triologia de produção romana, a passo com as produções cerealífera e oleícola.
A vinicultura romana é desde muito cedo associada
ao Douro na historiografia tradicional do século XIX,
mas será apenas em meados do século XX que será
comprovada a sua antiguidade na região, com as escavações do Alto da Fonte do Milho. Este será um momento fundamental para a história do vinho no Douro
e a partir do qual a Arqueologia do Vinho no Douro
nasce.
Palavras chave: vinho; Douro; romanização
Abstract
Strabo, on the Ist century B.C., writes one of the
fisrt known works on Lusitania, Geographia. On the
first paragraph of the third chapter of the third book,
he describes the people of Lusitania as drinkers of zithos, a type of beer, “(…) they are short of wine, and
when they have it, they drink it hastily during weddings with their kin.”. On the other hand, Archaeology
has proved this consumption, at least among the elites,
around the Douro basin at least since the IInd century
BC.
However, the increase of consumption and production of wine will be a reality only during the Romanization of the area. Starting mostly around the Ist
century BC, it’s part of the roman production classic
trilogy, along with the cereal and olive oil productions.
Early on the traditional XIXth century historiography, roman wine production has been associated the
Douro Valley. Yet, it will only be during the XXth century, that this will be proven, with the excavation of the
Alto da Fonte do Milho. It is an important moment for
the history of wine in the Douro region and it’s when
the Archaeology of Wine is born in the region.
Keywords: wine; Douro; Romanization
174
Pedro Pereira
Em 1947, Fernando de Russel Cortez chega à estação de caminhos-de-ferro de Peso da Régua com uma
bolsa do Instituto do Vinho do Porto para realizar uma
prospecção arqueológica no Vale do Douro. Um dos
seus objectivos é deveras específico: o de comprovar
a antiguidade do vinho na região. Seguir-se-ão vários
anos de escavação no que virá a ser conhecida como
a primeira estação arqueológica de cronologia clássica
com produção de vinho descoberta em território português, o Alto da Fonte do Milho (Canelas).
Em 2007 realizamos um trabalho de mestrado sobre a produção romana de vinho no Vale do Douro,
no qual abordamos todos os sítios arqueológicos com
produção e vestígios de consumo de vinho durante
a época romana. Em seguimento a este trabalho, estamos a realizar um doutoramento sobre tecnologia
e economia vinícola na Lusitânia. No decurso destes
dois trabalhos académicos, realizamos centenas de
prospecções, sondagens, escavações e estudos de ma-
1 - Lagar do Alto da Fonte do Milho
(Pedro Pereira, a partir de F.R. Cortez, 1947).
teriais e de sítios arqueológicos intervencionados anteriormente.
Durante a sistematização do nosso estudo, estabelecemos sete conjuntos de elementos que se revelam essenciais para compreender o papel que o vinho joga no
processo de aculturação que normalmente chamamos
de romanização e na economia regional. Em primeiro
plano, o estudo das estruturas produtivas, tanto as estruturas de exploração agrícola de maiores dimensões,
como as villae, tanto como as estruturas menos importantes, como os casais rústicos, e as estruturas de
produção de elementos de armazenamento e transporte, normalmente associados ou estabelecidos a curta
distância das estruturas de produção de vinho. Estes
três tipos de sítios, muitas vezes concomitantes, permitem-nos elaborar sobre como, onde e quando é que
o vinho era produzido e, muitas vezes, compreender
o seu destino final. Em segundo plano, o estudo dos
elementos utilizados para a plantação e tratamento da
De vino ac vineas
vinha, dos elementos utilizados para a produção de vinho e dos elementos utilizados para o armazenamento e transporte de vinho, permitem-nos compreender
a cadeia operatória de produção neste período e, em
conjunto com elementos variados, relacionados com a
vida quotidiana e/ou de carácter religioso, permitem-nos não só compreender como e quando se desenvolve a viti-vinicultura no período romano nesta região
mas também como é que esta actividade, com uma
matriz cultural tão forte, se implanta e floresce.
Num total de 19 sítios romanos com actividade
vinícola comprovada conhecidos na Lusitânia, seis
encontram-se na zona do Vale do Douro. Destes seis,
apresentaremos quatro dos mais representativos e dois
outros sítios, a Norte, na Hispania Tarraconensis, mas
ainda na zona do Douro.
O sítio do Alto da Fonte do Milho, o primeiro a
ser descoberto ainda na década de 30 do século passado183, consiste num provável povoado proto-histórico
ou castro, assimilado algures durante o século IIº da
nossa Era numa estrutura de exploração rural. Nesse
momento, o ponto mais alto do castro é totalmente
183 175
transformado e é construída uma série de estruturas
de apoio, típicas de uma villa, aproveitando o terreno
acidentado do Douro enquanto possível. Aqui é estabelecido um lagar e construída uma cella vinaria de
estrutura rectangular, embora durante as primeiras
escavações R. Cortez apenas tenha, aparentemente,
identificado o primeiro.
O lagar do Alto da Fonte do Milho consistiria numa
estrutura simples, de contrapeso ancorado na parede
do edifício (arbol). A viga exercia pressão sobre uma
estrutura de madeira que, por sua vez, faria com que as
uvas, que estariam dentro de sacos de fibra vegetal ou
fiscinae, libertassem o seu sumo. A fermentação seria
realizada directamente no interior dos dolia, recipientes cerâmicos de grandes dimensões revestidos com
pez, na cella vinaria.
O sítio do Prazo (Freixo de Numão) foi intervencionado entre as décadas de 80 e 90 do século XX. No
decurso desse trabalho, foi identificado um território
utilizado enquanto habitat humano durante pelo me-
TEIXEIRA, 1939.
2 - Prazo (ACDR de Freixo de Numão).
176
Pedro Pereira
piso elevado em opus signinum, aparentam ser parte
de um lagar. Da mesma forma, a própria orientação e
forma do edifício são similares a outras cellae vinariae
presentes na Lusitânia, como Torre de Palma (Monforte) ou Vale do Mouro (Coriscada). Da mesma forma,
nos níveis relativos à cronologia romana, foi descoberta uma grande quantidade de dolia recobertos com
pez. Foi também descoberto um bloco deste material,
associado a uma lareira.
3 - Rumansil I (Pedro Pereira, a partir de T. Silvino, 2003).
nos 8000 anos. No período tempo cronológico relativo à época romana, foram identificadas uma série de
estruturas que aparentam corresponder, pelo menos
parcialmente, à pars urbana, ou casa senhorial, de uma
villa. Entre outras, aparenta ter especial interesse um
edifício rectangular, re-ocupado durante a Alta Idade
Média e onde foram encontrados três tanques, parcialmente destruídos. Estas estruturas, associadas a um
O sítio de Rumansil I (Murça do Douro), à primeira vista, aparenta ser um casal rústico de pequenas dimensões. Todavia, a identificação do sítio de Rumansil
II, entretanto destruído, aparenta ilustrar a funcionalidade deste complexo artesanal como uma fracção da
pars rustica de uma villa, da qual o Prazo faria parte
enquanto pars urbana. Uma explicação que poderemos apresentar para a presença de duas cella vinarias
numa única villa pode prender-se com os terrenos difíceis onde Rumansil I se implanta e a distância entre
os dois núcleos. Ao mesmo tempo, a proximidade de
Rumansil I ao rio Douro facilitaria certamente um escoamento da produção.
4 - Calcatorium, lacus e lacus musti de Vale do Mouro (Pedro Pereira).
De vino ac vineas
177
Para além de uma cella vinaria extremamente completa e num estado de conservação excepcional, com
uma série cinco de tanques escavados directamente
sobre um rochedo e cobertos com opus signinum, o
sitio de Rumansil I possui também dois fornos de produção cerâmica, um dos quais de produção de dolia.
As formas detectadas em Rumansil I aparentam ter todas sido utilizadas para o armazenamento de vinho184.
O sítio de Vale do Mouro (Coriscada) é, até ao
momento, a villa de maiores dimensões conhecida no
Douro português. Com uma área intrevencionada ligeiramente superior a 5.000 m2 e com uma dispersão
de materiais superior a 12.000 m2, esta villa tem também o lagar romano de vinho em melhor estado de
conservação presente na região duriense. Composto
por uma área de prensagem e três tanques, o lagar é
completado por uma cella vinaria com uma dimensão
superior a cerca de 150 m2. A produção de vinho aparenta iniciar-se durante o século II da nossa Era, período, aliás, do estabelecimento da planta em peristilo
que podemos observar ainda hoje em dia, uma evolução da planta linear original. Nesse momento e com os
dados que possuímos, pensamos que a produção era
exclusivamente armazenada em tonéis, que não deixaram vestígios no registo arqueológico.
Num segundo momento da produção, a partir do
século IV e a par de alterações arquitectónicas na villa,
aparentemente assistimos a uma alteração de paradigma, com a utilização de dolia vinários em zonas que,
anteriormente, teriam funções distintas, facto bem patente na pars urbana, mas não só.
O sítio de Olival dos Telhões (Almendra), intervencionado na década de 1990 constitui outro exemplo
de uma exploração rural romana no Douro. Situado
numa zona de planície, entre o Douro e o Côa, a intervenção realizada neste sítio permitiu identificar um
lagar romano de vinho. Infelizmente, a fraca potência
estatigráfica e o facto de estarmos numa zona arada
com frequência não permite identificar exactamente
como se desenvolveria a estrutura, tendo-se descoberto apenas o lacus, calcatorium e zona de implantação
do praelum.
Para além das estruturas de exploração agrícola
de médias e grandes dimensões existem outras, muito menos visíveis tanto ao nível do espólio como das
184 MAZZA et SILVINO, 2003.
5 - Lagar escavado na rocha III de Pegarinhos (Pedro Pereira).
estruturas. Os elementos mais visíveis que temos destes casais são os lagares escavados na rocha. Todavia, a
própria morfologia do terreno do Douro é tacitamente
propícia à implantação de estruturas de menores dimensões e ao que aparentam ser minifundia. Assim, os
lagares escavados na rocha, enquanto forma simples
de garantir a produção de vinho em zonas de difícil
acesso, mas também de garantir a construção a valores
inferiores aos de um lagar em maçonaria, perduram
até aos nossos dias, sendo na maioria dos casos muito
complicado atribuir-lhes datações precisas.
Todavia, é possível compreender como é que são
utilizados e desenvolvemos uma tipologia simplificada
que, em 11 variantes, permite-nos identificar o esquema produtivo, necessidades específicas e, em alguns
casos, excluir determinadas datações e utilizações,
como as produções de azeite ou mel, entre as cerca de
duas centenas de lagares escavados na rocha conhecidos no Vale do Douro.
Chegamos assim aos elementos de armazenamento e transporte, que se caracterizam entre cerâmicos e
perecíveis.
A forma cerâmica mais facilmente associada ao vinho durante a época romana é a ânfora. Todavia, a sua
existência na zona do Douro é relativamente escassa
e encontra-se normalmente associada ao transporte e
armazenamento de produtos, entre os quais podemos
contar com o vinho, exógenos à região. Da mesma forma, não são conhecidos ateliers cerâmicos de produção na região e, entre as formas produzidas na Lusitânia, apenas uma é associável ao transporte de vinho,
embora apenas devido à sua morfologia formal185.
185 Aqui referimo-nos naturalmente à ânfora de tipo Lusitana 3, cujo
178
Pedro Pereira
A segunda forma cerâmica é o dolium. Infelizmente,
o estudo destes recipientes foi remetido para segundo
plano durante muito tempo, sendo que apenas recentemente se têm vindo a realizar estudos mais abrangentes sobre este tipo de forma cerâmica. Ao mesmo
tempo, a dimensão e forma desta tipologia permitiria,
quando cheios, uma deslocação que podemos classificar como muito reduzida. Nos últimos anos temo-nos
dedicado ao estudo e à identificação deste tipo de recipientes em várias estações arqueológicas de período
romano na Lusitânia, sendo que estabelecemos uma
tipologia de dolia vinários, dos quais pelo menos os
cinco primeiros tipos, de sete, eram produzidos no
Vale do Douro. A possibilidade que levantamos de
que dolia poderão ter sido transportados no Vale do
Douro186 parece comprovar uma deslocação, ainda que
reduzida, deste tipo de forma cerâmica de armazenamento.
Assim, e embora o registo arqueológico não nos
permita vislumbrar recipientes de vinho de formas
perecíveis no Douro, a iconografia, com as cupae, estátuas funerárias em forma de tonéis, e a etnografia,
com os odres, associados ao transporte de líquidos em
terrenos acidentados, à inexistência de outros tipos de
recipientes nos sítios arqueológicos de produção e de
consumo de vinho e às fontes clássicas permitem-nos
pelo menos colocar a hipótese de que estes tipos de
recipientes tenham sido utilizados, sobretudo a partir
da segunda metade século IIº da nossa Era, quando a
própria importação de ânforas vinárias para a bacia do
Douro apresenta uma forte queda.
Ao mesmo tempo, a comparação das cupae em pedra, monumentos funerários romanos que se encontram em toda a faixa Sul da Península Ibérica, com
tonéis do mesmo período descobertos na Europa do
Norte e Central, revela-nos uma série de similitudes,
sobretudo ao nível das tipologias formais e volumes.
Assim, todas as cupae conhecidas em território nacional inserem-se perfeitamente as cinco tipologias detectadas por Elise Marlière na sua tese doutoral187. No
Vale do Douro, e embora apenas se conheça um exemplar deste tipo188, pensamos que a utilização de cupae
6 - Rochedo afeiçoado para poderem ser enconstados dolia,
Rumansil I (A. Sá Coixão, 2000).
e de odres poderá ter sido extensiva para o transporte
e o armazenamento de vinho na época romana. Este
facto deve-se à parca existência de recipientes de tipo
anfórico utilisáveis para vinho de produção regional e
a uma fraca densidade de dolia que, quando existem
em quantidades suficientes para o abastecimento da
estrutura de exploração agrícola onde se encontram,
como sucede em Rumansil I (Murça do Douro), não
aparentam ser utilisáveis, pelo menos em larga escala,
para o transporte de vinho.
O estudo dos elementos associados à agricultura da
vinha, à produção de vinho e, sobretudo, à cultura do
vinho no período romano constituem outra das vertentes que consideramos essenciais para compreender
não só o esquema produtivo mas também como é que
a cultura do vinho inicia a sua progressão na malha
social e na psique duriense.
Existem dados que suportam a existência de um
consumo, ainda que apenas por elites, de vinho no
Douro, como é o caso do sítio de Pintia. Em contexto funerário, análises cromatográficas a várias peças
perfil ovalado a classifica como candidata ideal ao armazenamento de vinho.
186 PEREIRA, 2012.
187 MARLIÈRE, 2000.
188 FAUVRELLE, 2001.
7 - Cupa de Trevões (N. Fauvrelle, 2003).
De vino ac vineas
179
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Porto: Faculdade de Letras da Universidade do
Porto. Tese de doutoramento.
8 - Mosaico representando o triunfo de Baco, Vale do Mouro
(Pedro Pereira).
recuperadas de vários túmulos189 escavados na zona
revelaram consumo de vinho a partir do século II a.C.
Todavia, será apenas com o apogeu da incursão de
Decimus Junius Brutus em 138 a.C. e com as campanhas cantábricas, levadas a cabo por Augusto no final
do século II a.C. que a integração do território onde
se insere o Vale do Douro no território administrativo imperial e a subsequente aculturação romana será
mais evidente.
A cultura do vinho é retratada extensivamente na
iconografia peninsular durante o período romano, não
sendo a região de fronteira a que corresponde o vale
do Douro uma exceção. Desde representações de cenas agrícolas até à iconografia de teor religioso, como
o comprova o mosaico do triunfo báquico de Vale do
Mouro, o vinho e a vinha surgem representados na
vida quotidiana das populações locais desde pelo menos o século II d.C., marcando a vida dos durienses até
aos nossos dias.
189 MÍNGUEZ, C. S., CARNICERO, F. R., GAÑÁN, C. G. et DE PABLO
MARTÍNEZ, R., 2009; MÍNGUEZ, C. S., CARNICERO, F. R. et GAÑÁN,
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181
182
1980/2013
33 Anos de investigação arqueológica
nos concelhos de Vila Nova de Foz Côa e Meda
texto: António do Nascimento Sá Coixão / Museu da Casa Grande
([email protected])
Resumo
A partir do ano de 1980, o autor deste artigo iniciou a investigação arqueológica na área do concelho
de Foz Côa. Os dois primeiros sítios a serem intervencionados foram a villa Romana do Prazo e o Complexo Industrial Romano do Rumansil I.
Seguiram-se intervenções nas Villae Romanas do
Salgueiro e Zimbro II, bem como trabalhos de prospeção e inventário de sítios e todo o concelho, culminando com a publicação da Carta Arqueológica (já com
duas duas edições).
Em 1996, é inaugurado o Museu de Arqueologia da
Casa Grande em Freixo de Numão.
No ano de 2003, o autor inicia trabalhos arqueológicos no concelho de Mêda, com escavações no vicus Romano de Vale do Mouro, Castro de S. Jurge e
Templo de Marialva. Em paralelo, procede a trabalhos
de prospeção que culmina com a publicação da Carta
Arqueológica do Concelho de Meda, em 2009.
Palavras-chave: Arqueologia, Douro, Vila Nova de
Foz Côa, Meda
Abstract
Since 1980, the author has started a series of projects in the area of Foz Côa. The two first sites to be excavated were the roman villa of Prazo and the roman
industrial complex of Rumansil I.
The dig of the roman villae of Salgueiro and Zimbro II soon followed, as well as surveying and the inventory of other sites throughout Vila Nova de Foz
Côa, which would later be published in the local Carta
Arqueológica (already on its second edition).
In 1996 the Casa Grande Archaeological Museum
was inaugurated in Freixo de Numão.
In 2003 started a project in the Mêda region, with
the dig of the roman site of Vale do Mouro, the Castro
de S. Jurge and the Templo de Marialva. The surveys he
made in the region were published in the local Carta
Arqueológica in 2009.
Key-words: Archaelogy – Douro – Vila Nova de
Foz Côa – Meda
184
António Sá Coixão
OS 33 ANOS DE INVESTIGAÇÃO
N
o ano de 1980, mais precisamente a 19
de maio, é celebrada a escritura pública
da “Associação Cultural Desportiva e Recreativa de Freixo de Numão” (mais conhecida por
ACDR). Dão-lhe corpo um grupo de jovens que tinha
como propósitos a defesa e divulgação do património
Cultural e como mote “Em busca de uma identidade”.
Nesse verão iniciam-se trabalhos arqueológicos com
duas sondagens no sítio do Prazo.
Nos anos seguintes, durante toda a década, foram
intervencionados os sítios arqueológicos do Rumansil
I, Zimbro II, Salgueiro, Quintal da Casa Grande. Já na
década de 90, após aquisição dos terrenos do PRAZO
(cerca de 4 hectares) foram organizadas várias campanhas de escavação, com uma equipa na área do Romano, tendo como responsável o autor deste artigo e,
na área da pré-história, o professor da Faculdade de
Letras do Porto, Dr. Sérgio Rodrigues. Foram ainda
intervencionados os sítios da Mutatio das Regadas e
1 - Planta geral das escavações arqueológicas do sítio do Prazo
(Freixo de Numão – Foz Côa)
Colodreira/Escorna Bois, todos no termo da Vila de
Freixo de Numão.
Já nos finais da década de 80 (mais precisamente no
ano de 1989) iniciaram-se trabalhos de investigação no
sitio pré-histórico do Castelo Velho de Freixo de Numão, sob a orientação da Professora da Faculdade de
Letras do Porto, Professora Doutora Suzana Oliveira
Jorge, trabalhos esses que se prolongaram por mais de
uma década, com participação de estudantes de universidades espanholas e inglesas. O sítio foi adquirido
pelo IPPAR que executou um projeto de musealização.
Graças à disponibilidade de verbas comunitárias
(do II QCA), foram entregues candidaturas na CCRN,
tendo em vista a musealização de diversos sítios arqueológicos na área geográfica da Vila de Freixo de
Numão, tendo-se salvaguardado e tornado visitáveis
os sítios que viriam a integrar o “ Circuito Turístico-Arqueológico de Freixo de Numão”. De todos, o mais
emblemático continua a ser o sítio arqueológico do
Prazo, onde foram registados níveis e materiais de vários períodos da pré-história: Paleolítico, Mesolítico,
Neolítico, Calcolítico e Bronze (este, já na fase final),
uma importante villa Romana com três fases de ocupação, uma basílica paleocristã com ocupação até ao
século XIII, bem como vestígios de ocupação dessa
fase tardo-romana e, ou, alto medieva.
No sítio do Salgueiro, iniciou-se o estudo de uma
villa Romana associada à exploração de uma pedreira
de aplito (rocha granítica esbranquiçada e mole, fazendo lembrar a chamada pedra “de Ançã”). Essa pedreira teve exploração desde o período romano até pelo
menos o século XVIII. Fachadas de edifícios, brasões,
colunatas, essencialmente associadas ao barroco, têm
como matéria-prima o “Aplito do Salgueiro”.
Emblemático, no aspeto arqueo-industrial, o sítio
romano do Rumansil I. Ali cavando as rochas, os homens deram corpo a um lagar de vinho, ao respetivo
pio de receção, ao calcatorium, ao armazém de vinhos,
com concavidades nas paredes laterais de rochedos,
onde a pança dos dolia encostava e fermentava debaixo de tampas de xisto e em vasilhas com paredes interiores revestidas a pêz.
A recolha de uma provadeira em bronze poderá
colocar-nos perante a hipótese de, nos séculos III/IV
d.C., já se ter armazenado vinho naquele local, em
pequenas pipas de madeira. Através da peneiração, e
posterior trabalho de flutuação de carvões e terra carbonizada, foi possível recolher duas dúzias de grainhas
de uva.
30 anos de investigação arqueológica
185
2 - Planta geral das escavações arqueológicas do sítio do Vale do Mouro (Coriscada – Mêda) até ao ano de 2012
186
António Sá Coixão
3 - Foto geral das estruturas postas a descoberto no sítio arqueológico do Prazo
Poderá falar-se na existência de um “complexo industrial”, porque no conjunto dos edifícios, apenas um
compartimento poderá ter sido utilizado como “habitáculo”. Os restantes apresentam ou forno de fundição
de chumbo, forjas de trabalho de ferro, trabalhos de
canteiro, fabrico e armazenamento de vinhos, dois for-
4 - Lagar Romano e outras estruturas do sítio arqueológico do
Rumansil I
nos de cozer cerâmica (a maior para cozedura de dolia,
o mais pequeno para cozedura de pondus e cerâmicas
finas (vermelhas ou cinzentas). Milhares de fragmentos cerâmicos foram exumados na área exterior dos
citados fornos.
De realçar que a flutuação de algumas cinzas e terra carbonizadas, proveniente destes fornos, apresentavam a existência de grainhas de uva! Certamente que o
denominado bagaço das uvas terão servido para combustível dos mesmos, a par da urze.
Com os trabalhos de prospeção foi possível fazer
um inventário quase exaustivo de sítios arqueológicos,
da pré-história, à história, salientando-se um levado
número de lagaretas cavadas na rocha (a maioria em
rocha granítica). Na área do concelho de Mêda, já
Adriano Vasco Rodrigues, na sua obra Por Terras da
Meda, havia referenciado a existência de duas ou três
dezenas de lagaretas nos termos das freguesias de Marialva, Longroiva e Mêda.
Dentro da problemática de localização da ainda
30 anos de investigação arqueológica
187
5 - Fornos de cozer cerâmica postos a descoberto no sítio arqueológico do Rumansil I
não descoberta cidade romana de Meidobriga, o investigador Professor Jorge d’ Alarcão inclina-se para
a atual freguesia de Numão, onde foram inventariadas
algumas epígrafes, essencialmente rupestres.
Na área do concelho de Mêda salienta-se a investigação já efetuada no Vicus de Sangoabonia, atualmente denominado de “sítio do Vale de Mouro”, termo da
freguesia de Coriscada. Desde o ano de 2003 que uma
equipa Luso-Francesa (com arqueólogos de Lyon),
vem investigando cerca de 3 hectares de terreno. Foi
posta a descoberto uma casa senhorial (villa propiamente dita) com as termas, as salas com pavimento em
mosaico policromo, onde se salienta o Painel de Baco,
o Triclinium, igualmente com pavimento em mosaico,
o lagar de vinho e o correspondente armazém, salas
com pavimento em opus signinum, lareiras, braseiros
(localizados ao centro das salas), entre outros.
Na zona envolvente, um conjunto significativo de
edifícios, onde a presença de um grande celeiro, de
fornos de fundição e forjas, de áreas funcionais asso-
ciadas à tecelagem e à moagem nos levam a considerar
estarmos perante edifícios que pertenciam a homens-livres, pertencentes ao vicus.
Na área dos fornos de fundição, foi exumado um
6 - Mosaico Romano policromado, denominado “Painel de Baco”,
posto a descoberto no sítio do Vale do Mouro
188
António Sá Coixão
7 - Tesouro Monetário de 4600 moedas datadas de finais do seculo III e inícios do seculo V d.C., associado a artefactos de ferro,
exumado no sítio arqueológico do Vale do Mouro no ano de 2007
tesouro de 4600 moedas datado entre finais do século
III d.C. e inícios do século V d.C., juntamente com alguns artefactos em ferro.
Na zona da Devesa (Marialva) registamos a existência, no interior de um imóvel, da base de um templo (podium) dedicado a Júpiter. Também uma ação de
limpeza no local denominado de LAGO permitiu-nos
o registo de uma imponente barragem romana.
No termo da aldeia de Ranhados, junto à barragem
do Rio Torto, temos estudado um castro romanizado,
denominado “Castro de S. Jurge”. Vestígios da Idade
do Bronze, das 1.ª e 2.ª Idades do Ferro, ocupação romana (de pelo menos desde 35/36 a.C) e ainda uma
ocupação medieval, para já presente através de ruínas
de uma pequena igreja dedicada a S. Jurge e de dois
enterramentos no seu adro.
A arte rupestre, através da representação de cerca
de 1.000 fossetes ou covinhas, serpentiformes, podomorfos e outras figuras, está presente em mais de 80
rochas e, ou, estelas, já inventariadas.
Nas áreas dos concelhos de Foz Côa e Mêda, as várias epígrafes dedicadas a Júpiter (IOVI) levam-nos a
justificar a forte ocupação romana nesta zona do Douro: certamente a existência de um grande potencial
mineiro, através da exploração de metais como o ouro
(quartzítico ou de aluvião), do chumbo, do estanho e
do ferro. Recentemente, no interior da igreja de Longroiva, embutida numa das paredes, foi registada uma
epígrafe, onde se faz referência à divindade PLUMBVS, certamente associada à exploração do chumbo, ali
bem perto, na zona dos Areais.
Foi já feito pelo autor, um ensaio da rede viária no
tempo dos romanos, nas áreas destes dois concelhos,
salientando-se a existência de grandes vias com traçado de Sul para Norte (ou vice-versa), todas elas atravessando o rio Douro.
Igualmente com orientação Este-Oeste, temos um
conjunto de vias secundárias que cortam o rio Côa em
30 anos de investigação arqueológica
189
8 - Um dos 80 painéis com arte rupestre inventariada no Castro de S. Jurge (Ranhados – Mêda)
– rocha que denominámos de “Fraga Formosa”
ambas as margens. Um conjunto significativo de vias
cruza a civitas Aravorum (atual Marialva).
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190
191
Painel 3
HISTÓRIA
NO/DO DOURO
Carla Sequeira
Manuela Vaquero
Gaspar Martins Pereira
Otília Lage
192
A oposição à Ditadura Militar e
Estado Novo na Região Duriense
(1926-1949)
texto: Carla Sequeira - Investigadora do CITCEM. Bolseira de Pós-Doutoramento da FCT
([email protected])
Resumo:
Reflexão sobre a Oposição desenvolvida na Região
Duriense, entre o 28 de Maio de 1926 e a candidatura
presidencial de Norton de Matos, em 1949. Procuraremos compreender em que medida a defesa dos
interesses regionais conduziu a uma aparente colaboração com o novo regime. Examinaremos a evolução política regional, centrando-nos no confronto
entre Situacionistas e Oposicionistas, desde a revolta
reviralhista de Fevereiro de 1927, até à tentativa de
regresso ao regime constitucional através de uma «via
pacífica», concretizada na adesão, em 1931, à Aliança
Republicana Socialista. Abordaremos a campanha
da candidatura de Norton de Matos à presidência da
República, como uma nova tentativa de transição de
regime através da via eleitoral.
Palavras-chave: Ditadura Militar; Estado Novo;
Oposição política; Elites
Abstract:
Reflection on the Opposition developed in the Douro
Region between the 28th May 1926 and the presidential candidacy of Norton de Matos, in 1949. We will
seek to understand to what extent the defense of regional interests led to an apparent collaboration with
the new regime. We will also examine the evolution
of regional policy, focusing on the confrontation between the Situationists and Oppositionists since the
«reviralhista» insurgency of February 1927, until the
attempt of a ‘peaceful’ return to the constitutional regime through the 1931 association with the Socialist
Republican Alliance. Finally, we will discuss the presidential campaign of Norton de Matos as a new attempt of regime transition through an electoral route.
Keywords: Military Dictatorship; «Estado Novo»;
Political opposition; Elites
194
Carla Sequeira
1.
190 A comissão executiva era constituída por João da Silva Bonifácio
(presidente), António Cardoso da Fonseca Mirandela, Artur Gonçalves
Martinho e Manuel Pinto de Magalhães.
Vila Real (Infantaria 13 e GNR)195. Durante os acontecimentos, registaram-se confrontos na Régua, entre o
destacamento de Lopes Mateus (governamental), que
vinha de Viseu, e uma força de Infantaria 13, de Vila
Real (a caminho do Porto), comandada pelo major
Fernandes Varão, na tentativa de impedir que aquele atravessasse o rio Douro pela ponte da Régua. De
acordo com a imprensa local, viveu-se um cenário de
guerra civil e temia-se pelo destino do Douro, uma vez
que se acreditava que a Ditadura viria mudar a sorte
regional e agora «todo um programa em seu benefício
pode cair por terra»196. Em Lamego, onde se verificara a adesão do regimento de Infantaria 10197, alguns
elementos civis procuraram apoderar-se da administração do concelho mas foram repelidos pelas autoridades. Além dos factos referidos, registaram-se ainda
intentonas em Alijó e Valpaços198.
Os principais líderes durienses assumiram uma
postura de não comprometimento com a Revolta.
Na sequência do 28 de Maio, Antão de Carvalho decidira demitir-se também do cargo de presidente da
CVRD. As suas motivações eram não apenas políticas
mas também económicas, uma vez que o Alto Douro
atravessava uma grave crise de escoamento e as culpas
eram assacadas a este organismo. Tornava-se patente
a necessidade de novas formas de intervenção. Agregados em redor da defesa dos interesses ligados ao
sector vitícola, os notáveis regionais fariam ressurgir
o movimento dos paladinos do Douro, que pretendia
constituir-se como órgão de representação perante os
poderes públicos. Na sua liderança, surgia Antão de
Carvalho que, assumindo-se como um republicano
independente, se abstinha de tomar posições políticas
de modo a não prejudicar os interesses regionais, representados pela efectivação do «entreposto único e
exclusivo para os vinhos generosos do Douro em Vila
Nova de Gaia».
A defesa do Entreposto de Gaia levaria Antão de
Carvalho a, aparentemente, colaborar com a Ditadura Militar. Disso poderia ser indício a participação na
conferência proferida pelo major Alberto Lelo Portela,
na Régua, com a assistência de Cunha Leal, Craveiro
Lopes e Mendes Cabeçadas. Contudo, Antão de Car-
191 Cf. Autoridades administrativas. «O Povo do Norte», 1 Agosto 1926,
p. 2. Gaspar Monteiro era também, à data, presidente da Associação Comercial de Peso da Régua e da Direcção do Sindicato Agrícola da Régua.
195 Pina de Morais viria ainda a assumir a chefia dos serviços de comunicações durante os acontecimentos revolucionários (SEQUEIRA, 2007:
284-285).
192 Viria a ser presidente da comissão administrativa da Régua em 1934.
196 Hora de luto. «A Defesa do Douro» 13 Fevereiro 1927, p. 1.
193 FARINHA, 1998: 47.
197 FARINHA, 1998: 69.
194 FARINHA, 1998: 15.
198 FARINHA, 1998: 39.
O golpe de Estado de 28 de Maio de 1926
trouxe mudanças à realidade política da
Região Duriense. Assistir-se-ia, a partir de
então, a uma crescente clarificação política entre Situacionistas e Opositores. Pelo decreto nº 11.875, de
13 de Julho desse ano, foram dissolvidos todos os corpos administrativos. Republicanos históricos, como
Antão de Carvalho, Carlos Richter ou Macedo Pinto,
abandonaram os cargos políticos. A Câmara da Régua,
onde Antão de Carvalho era vereador190, foi demitida
e substituída por uma comissão administrativa, que
integrava personalidades como Gaspar Henriques da
Silva Monteiro191 e António Pereira do Espírito Santo
(como substituto)192, ambos pertencentes à primeira
comissão republicana reguense, em 1895.
2.
Ainda em 1926, teriam lugar algumas
acções conspiratórias contra a Ditadura
Militar. Contudo, a primeira manifestação organizada teria lugar em Fevereiro de 1927, com
o apoio político dos Partidos Radical, Democrático,
Esquerda Democrática, Acção Republicana e Seara
Nova193. Inaugurava-se, assim, a primeira fase de resistência à Ditadura Militar, conhecida pelo Reviralho,
devido às suas características revolucionárias de luta
armada, marcado por uma forte participação dos militares, e que predominaria até meados da década de
1930. Para Luís Farinha, o Reviralho «constituiu-se
como a mais importante frente de combate à Ditadura»194, empreendida por sectores democráticos e liberais que, tendo apoiado a Ditadura numa fase inicial,
deixam de se reconhecer nela e passam a combatê-la.
A Revolta eclodiu no Porto, a 3 de Fevereiro, e
previa-se uma acção simultânea em vários pontos do
país. A participação regional duriense fez-se sentir de
diversas formas. Em primeiro lugar, na fase da preparação, através da colaboração de Pina de Morais, que
conseguiu angariar a adesão das unidades militares de
A oposição à Ditadura Militar e Estado Novo na Região Duriense
valho declarara não ter aderido ao novo regime, embora também não fosse seu opositor. Afirmava que a
única política que lhe interessava era a da Região. E era
nessa perspectiva que manifestava o seu apoio ao ministro da Agricultura, Alves Pedrosa, pela criação do
Entreposto, que considerava a melhor obra da Ditadura Militar, e que era necessário não deixar desaparecer
devido à influência da viticultura do Sul e do sector comercial. Seria também nessa perspectiva que faria deslocar a Lisboa centenas de viticultores, em Fevereiro de
1928, prometendo a participação regional nas eleições
presidenciais de Março desse ano para legitimação de
Carmona no cargo de Presidente da República, a troco
da manutenção do Entreposto de Gaia199. Esta postura
de fidelidade aos interesses regionais acarretar-lhe-ia a
ostracização dos democráticos de Lisboa, que o acusavam de trair os seus antigos ideais.
3.
A fragmentação da elite política regional
acentuou-se com a adesão de vários republicanos históricos à União Nacional.
A primeira tentativa de organização da União Nacional ocorreu em 1927 (sendo então denominada de
União Nacional Republicana) e, também na Região
Duriense, se promoveram inscrições nesta data. Tinha
por objectivo consolidar politicamente o regime saído
do 28 de Maio200. Nesse sentido, uma das suas tarefas
consistiu na preparação das eleições presidenciais de
1928, desaparecendo de seguida.
Em 1930, seria fundada a União Nacional, no intuito de solucionar o problema político ainda em aberto201. Para Manuel Braga da Cruz, o Estado Novo era
inimigo do sistema partidário mas não do sistema representativo, pelo que necessitava «de um instrumento
político que activasse os mecanismos de sufrágio e de
representação que pretendia ver salvaguardados»202.
Foram implantadas comissões promotoras nas capitais
de distrito e nas sedes de concelho. As inscrições atingiram um número avultado logo em 1931, integrando
antigos membros dos partidos da Primeira República,
dos mais moderados aos mais radicais. Segundo Braga
da Cruz, o distrito de Vila Real era um dos com maior
199 Segundo a imprensa local (Cf. QUEIRÓS, Amâncio de - Eleição. O
Douro cumpriu. «A Defesa do Douro», 1 Abril 1928, p. 1), teria havido uma
forte participação regional, calculada em 81,4% por Manuel Braga da Cruz
(CRUZ, 1988: 219).
195
implantação203. Contudo, de acordo com o mesmo
autor, Vila Real foi também dos distritos que, conhecendo um grande número de adesões na fase inicial,
progressivamente foi perdendo inscrições.
Do ponto de vista da composição política das comissões concelhias da União Nacional na Região
Duriense, tomemos como exemplo a de Peso da Régua, constituída unicamente por monárquicos e evolucionistas (a que juntariam antigos unionistas, como
António Pereira do Espírito Santo). As restantes forças
políticas do concelho – lealistas, portelistas, radicais,
democráticos – unir-se-iam, a partir de Junho de 1931,
na Aliança Republicana Socialista, também conhecida como Frente Única. Estava-se, portanto, num novo
momento de clarificação política por parte das elites
locais.
A ARS era uma conjunção de opositores ao regime,
de carácter nacional e com sede em Lisboa. O seu Directório era constituído por Norton de Matos (PRP),
Tito de Morais (Nacionalista), Crispiniano da Fonseca
(Esquerda Democrática), Mendes Cabeçadas (União
Liberal Republicana), Maurício Costa (Acção Republicana), Almeida Arez (Partido Radical), Azevedo Gomes (Seara Nova), Ramada Curto (Partido Socialista),
António Luis Gomes, Azevedo e Silva, Paulo Falcão e
Duarte Leite (independentes)204.
A ARS fora criada com o propósito de conseguir
a transição de regime de forma pacífica, «através de
eleições»205. A primeira oportunidade surgia com as
anunciadas eleições municipais de 1931, que se transformaram na primeira tentativa de participação eleitoral da Oposição. Aproveitando as novas disposições legais eleitorais (decreto nº 19694, de 5 de Maio de 1931)
a ARS levou a cabo uma campanha para a inscrição de
eleitores nos cadernos eleitorais.
A adesão na Região do Douro foi imediata e global, assistindo-se à formação de delegações da ARS em
diversos concelhos e freguesias: Peso da Régua, Alijó,
Tabuaço, Freixo de Espada à Cinta, S. João da Pesqueira, Mesão Frio, Armamar, Vila Real, Carrazeda de
Ansiães, Santa Marta de Penaguião, etc. As comissões
concelhias eram formadas por eminentes vultos locais,
como Antão de Carvalho, João de Araújo Correia ou
Carlos Richter, reunindo em sua volta diversos quadrantes políticos. Com a finalidade de disputar as elei203 CRUZ, 1988: 228.
200 CRUZ, 1988: 130.
201 CRUZ, 1985: 366.
204 Seria também nomeada uma comissão de propaganda, da qual fazia
parte Raul Lelo Portela.
202 CRUZ, 1988: 164.
205 FARINHA, 1998: 17.
196
Carla Sequeira
ções, iniciaram-se acções de propaganda e de recenseamento eleitoral. Porém, sucediam-se na imprensa
as denúncias das dificuldades encontradas, devido ao
boicote das autoridades locais. Por outro lado, a própria União Nacional contribuía para esse boicote, ao
projectar pedir ao Governo a irradiação de todos os
funcionários que não votassem com eles.
Esta primeira tentativa de transição de regime por
via eleitoral não surtiria efeito. Como refere Luís Farinha, a participação activa de dirigentes da ARS na
revolta reviralhista de 26 de Agosto de 1931, foi o subterfúgio da Ditadura para adiar sine die umas eleições
que nunca haviam estado marcadas.
Em 1933, o motivo próximo da contestação prendia-se com a Constituição, sufragada em 19 de Março
desse ano. O novo texto constitucional consagrava a
confirmação do monopartidarismo e da representação,
atribuída à União Nacional, a separação de poderes e
a representação política através de uma assembleia
com capacidade legislativa e fiscalizadora dos actos do
Governo. Revestia também uma dimensão autoritária
através do reforço e independência de um «executivo
bicéfalo, partilhado entre o Presidente da República e
o do Conselho, e isento de responsabilidades perante
a assembleia»206. Consequentemente, desencadeou-se
a reacção, não apenas dos opositores do regime, mas
também «do sector liberal republicano dos fautores do
28 de Maio»207.
Em protesto contra a unicidade da representação
política ratificada no texto da Constituição, Antão de
Carvalho absteve-se no dia do sufrágio, manifestando
publicamente o seu acto. Por outro lado, organizava e
presidia a reuniões no sentido de fazer reviver a ARS
no concelho da Régua, que considerava absolutamente
fundamental naquele momento.
Neste contexto, a influência de Antão de Carvalho continuava a ser reconhecida, como o comprova
o aliciamento que lhe foi feito para que integrasse a
União Nacional. Argumentava-se com as declarações
de Antão de Carvalho, de ser partidário da Ditadura,
e prometia-se-lhe a nomeação para a presidência da
Casa do Douro. Todavia, se, num primeiro momento,
Antão de Carvalho parecera colaborar com a Ditadura Militar, essa atitude devera-se à sua fidelidade aos
interesses regionais. Antão de Carvalho continuava a
afirmar-se republicano, desejando o regresso ao regi206 GÓMEZ, 2011: 32.
207 CRUZ, 1985: 368.
me constitucional através de uma «via pacífica», não
tendo aceite o convite.
4.
Em 1945, inaugurou-se um segundo ciclo
de resistência essencialmente eleitoralista,
isto é, «assente sobretudo na exploração
das oportunidades legais-eleitorais»208. A dissolução
da Assembleia Nacional e o anúncio, pelo Governo, de
eleições legislativas (reguladas pela legislação de 22 de
Setembro de 1945), foi vista pela Oposição como uma
nova oportunidade. A 8 de Outubro, o Movimento de
Unidade Democrática, reunido no Centro Almirante Reis (Lisboa), fez publicar um manifesto em que
se exigiam eleições livres, o adiamento das eleições
por seis meses para organização de partidos da oposição, representação política às minorias, fiscalização
eleitoral, liberdade de candidaturas e um novo recenseamento eleitoral. Vastos sectores se reviam nestas
reivindicações, desde os democratas liberais, Esquerda Democrática, republicanos do PRP, monárquicos
independentes, socialistas, comunistas, anarquistas
e nacionais-sindicalistas, aos democratas-cristãos do
grupo Era Nova, a par de personalidades das artes, letras, ciências e forças armadas.
O Manifesto de 8 de Outubro foi recebido com
entusiasmo na Região Demarcada do Douro por parte dos opositores ao regime. Em contrapartida, os
apoiantes do Governo identificavam o MUD com o
Reviralho, devido à sua ligação ao Partido Comunista
e à memória da I República209.
Imitando o movimento de Lisboa, convocou-se
uma reunião em Vila Real, no dia 15 de Outubro, a que
acorreram republicanos de todo o distrito. De seguida,
constituíram-se comissões concelhias do MUD, nos
distritos de Vila Real e Viseu, algumas delas denotando a influência de Nuno Simões. Na Régua, a comissão concelhia do MUD era constituída por Antão de
Carvalho, António Cardoso Mirandela, António Silva
Correia, Cândido Bonifácio Gouveia e João de Araújo Correia, entre outros. Esta comissão empenhou-se
particularmente na recolha de assinaturas de apoio ao
MUD, mas, tal como em 1931, teve de enfrentar a política de intimidação das autoridades que, de imediato,
intimou dois dos seus elementos a esclarecerem o motivo da recolha, levando a um protesto formal «contra
tal arbitrariedade e desrespeito àquilo que foi autoriza208 ROSAS, 2010: p. 11.
209 Veja-se como exemplo, o artigo O que eles querem. «Ordem Nova».
28 Outubro 1945, p. 1.
A oposição à Ditadura Militar e Estado Novo na Região Duriense
do pelo Chefe do Governo»210.
Em solidariedade com as decisões tomadas no
Centro Almirante Reis, diversas comissões durienses
enviaram telegramas ao chefe de Estado, secundando
o pedido de eleições livres.
Segundo a imprensa211, republicanos de todos os
concelhos do distrito de Vila Real decidiram pedir
autorização ao Governador Civil para realizarem reuniões a fim de decidirem a estratégia perante o acto
eleitoral. Todas estavam programadas para o mês de
Outubro: em Vila Real, dia 12; Chaves e Santa Marta
de Penaguião, dia 14; Mesão Frio e Sanfins do Douro,
dia 15; Valpaços, dia 16; Alijó e Régua, dia 17. Também em Lamego, a cuja comissão concelhia pertencia
Alfredo de Sousa, foi solicitada autorização ao Governador civil de Viseu para uma reunião política no
Teatro Ribeiro Conceição. Revestia-se de uma especial
expectativa a reunião projectada para Santa Marta
de Penaguião, onde participariam representantes do
MUD dos concelhos do sul do distrito e de vários da
Guarda e Viseu (incluídos na região duriense), além
de delegados do mesmo Movimento, no Porto.
Como seria de esperar, todas as reuniões foram
proibidas nas vésperas das eleições, com o argumento
de que já não era possível apresentar candidaturas. Em
resposta, a comissão do MUD de Peso da Régua resolveu endereçar um telegrama de protesto ao Governador Civil de Vila Real.
Nos anos seguintes, o MUD manteve actividade
no distrito de Vila Real, havendo indícios de reuniões
em Favaios e Pegarinhos (concelho de Alijó), presididas por Nuno Simões e nas quais participaram Carlos
Amorim, Joaquim Pinto Furtado e Camilo Botelho,
entre outros, vindo a ser, por esse motivo, vigiados
pela PIDE.
5.
O MUD viria a ser ilegalizado em Março
de 1948. Concorrer às eleições presidenciais de 1949 dava-lhe uma nova possibilidade de voltar a uma actuação legal e o candidato
escolhido foi Norton de Matos (membro da comissão
consultiva do MUD), decisão que lhe fora comunicada
por ocasião do seu aniversário natalício, em Março de
1947.
O apoio à candidatura de Norton de Matos vinha
de um amplo sector, incluindo de «muitos membros
210 Um protesto da comissão da Régua. «República». 11 Novembro 1945,
p. 5.
211 Cf. O momento eleitoral. «República». 31 Outubro 1945, p. 4-5.
197
do Directório do Partido Republicano, previamente
contactados pela província»212. No Alto Douro, um dos
rostos visíveis desse apoio era Antão de Carvalho que,
por ocasião do aniversário do General, em 1947, dava
conta a Nuno Simões das iniciativas empreendidas na
Régua «de manifestação ao senhor General Norton de
Matos», de onde haviam sido enviados muitos telegramas individuais e um colectivo com 66 assinaturas de
republicanos «de destacada categoria social»213.
Apenas em Abril de 1948 Norton de Matos viria a
aceitar formalmente, declarando que aceitava concorrer desde que a campanha e os actos eleitorais tivessem
características democráticas de liberdade e independência214. Como referem Fernando Rosas e Armando
Malheiro da Silva, a candidatura e campanha de Norton de Matos correspondia ao fim do «segundo ciclo
de resistência»215, iniciado em 1945, mantendo-se na
senda de uma «via ordeira de contestação ao regime»216. A candidatura, com um programa de democratização semelhante ao do MUD, seria apresentada
ao Supremo Tribunal de Justiça em 9 de Julho de 1948.
Na Região do Douro, formaram-se diversas comissões (concelhias e de freguesia) de apoio à candidatura de Norton de Matos. Algumas como, por exemplo,
a da Régua, continuavam a denotar a influência de
Nuno Simões na sua constituição. Ao mesmo tempo,
demonstravam a continuidade de uma elite política
opositora, de cariz familiar, de que era testemunho a
presença de João Macedo Pinto na comissão concelhia
de Tabuaço. Em Lamego, a oposição continuava a ser
liderada por Alfredo de Sousa.
Além da constituição de comissões, organizou-se
uma vasta actividade de propaganda através da afixação de cartazes e distribuição de folhetos, bem como
de realização de comícios e conferências em diversas
localidades, das quais destacamos Peso da Régua, Vila
Real, Murça e Alijó. Várias destas sessões contaram
com a presença de personalidades eminentes da Oposição Democrática.
212 CRUZ, 1983: 713.
213 ADVRL – Fundo Nuno Simões – Correspondência recebida, Carta de
Antão de Carvalho para Nuno Simões, 23 de Março de 1947.
214 Durante a campanha eleitoral ficaria patente que as condições pedidas por Norton de Matos não haviam sido tidas em conta. Prova disso era o
corte de milhares de nomes do recenseamento eleitoral, entre os quais o de
Alves Redol. A falta de condições de liberdade de propaganda, realização e
fiscalização do acto eleitoral levariam Norton de Matos a desistir da candidatura a 12 de Fevereiro, véspera do acto eleitoral.
215 ROSAS, 2010: 9.
216 SILVA, 2010: 62.
198
Carla Sequeira
Em Lamego, o comício realizou-se a 2 de Fevereiro,
no Teatro Ribeiro Conceição, e foram oradores Alfredo de Sousa, Santos Almeida, Pina de Morais217 e F.
Fonseca Almeida. Pina de Morais marcaria também
presença na sessão realizada na Régua, juntamente
com o tenente-coronel Lelo Portela, Artur Castilho e
Alberto Gonçalves, entre outros.
Em Murça, registou-se a intervenção de Virgínia
Moura (membro da Comissão Distrital de Candidatura do Porto), e ainda de Artur Castilho, João Correia
Guimarães e José Alberto Rodrigues. Virgínia Moura seria novamente interveniente no comício de Vila
Real, em 10 de Fevereiro, ao lado de Rui Luís Gomes e
Alves Redol.
A par do movimento de apoio a Norton de Matos,
ocorriam manifestações dos apoiantes de Carmona, de
que era exemplo o artigo publicado por Vítor Queirós
de Vasconcelos – filho de Amâncio de Queirós, já falecido à data – no jornal Notícias do Douro, de 10 de Fevereiro de 1949. Em artigo intitulado O Douro e a sua
organização corporativa. As próximas eleições e o direito que o Senhor Marechal Carmona tem ao nosso voto,
o autor defendia que, por uma dívida de gratidão em
vista da organização corporativa da viticultura, toda a
Região Duriense devia votar no Marechal Carmona.
e, até a sindicalização da lavoura, através da criação
da Casa do Douro (embora esta contivesse disposições
contrárias ao movimento associativo e representativo,
com as quais os seus mentores não concordavam).
Quanto aos momentos e estratégias de oposição,
ficou patente a integração no quadro nacional de Oposição. A forma de contestação privilegiada foi a via
pacífica variando entre um «intervencionismo até ao
fim» (1931), abstenção (1945) e «desistência à boca
das urnas» (1949)218. De realçar, a forte capacidade de
mobilização das elites regionais; sintoma da permanência de clientelas e das antigas estruturas partidárias, permitia a rápida constituição de comissões e organização de acções de propaganda, particularmente
entre as classes mais ilustradas. À luz dos dados até
agora recolhidos, não surgem indícios de uma participação activa das classes mais baixas da sociedade nos
movimentos de oposição no Douro entre 1926 e 1949.
6.
Em conclusão, entre 1926 e 1949 assistiu-se a uma divisão política das elites
durienses, entre Situacionistas e Opositores ao novo regime. Essa situação foi particularmente
visível no concelho da Régua. Assim, enquanto Antão
de Carvalho, fundador da primeira comissão municipal republicana reguense, em finais do século XIX, se
situou do lado da oposição do Regime, outros republicanos também de longa data, aderiram à Situação,
passando a integrar as comissões administrativas nomeadas pelo Governo.
Contudo, a divisão em campos políticos opostos
não prejudicou a defesa dos interesses regionais. Na
verdade, a primazia dos interesses vitícolas sobrepôs-se à evolução política no Douro, como o demonstra a
postura de Antão de Carvalho, de uma oposição moderada, o que possibilitou a concretização de várias
reivindicações regionais, como o Entreposto de Gaia
217 Após o regresso do exílio, abandonara a defesa da via revolucionária
para a mudança de regime, manifestando a intenção de fazer oposição ao
Estado Novo no quadro da legalidade instituída; nesse sentido, aderira ao
MUD, em 1945, e viria a desempenhar papel político de relevo na campanha de Norton de Matos (Cf. SEQUEIRA, 2007: 543).
218 CRUZ, 1983: 703.
A oposição à Ditadura Militar e Estado Novo na Região Duriense
199
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CVRD – Comissão de Viticultura da Região do
Douro
MUD – Movimento de Unidade Democrática
PRP – Partido Republicano Português
200
O Tribunal da Inquisição
de Lamego
texto: Manuela Vaquero – Universidade de Trás-os-Montes e Alto Douro
– Centro de Estudos em Letras / Museu de Lamego *
([email protected])
* Regime de voluntariado
Resumo:
Pretendeu-se trazer à luz do dia um Tribunal, que
embora de vida efémera (1541 – 1547) desempenhou
um importante papel a nível da sociedade lamecense.
Uma das prioridades do trabalho foi tentar compreender o porquê do estabelecimento do Tribunal da
Inquisição na cidade de Lamego, avaliando o desempenho do bispo que doutrinava a diocese durante este
período, D. Fernando de Meneses Coutinho e Vasconcelos, primo de D. João III, bem como do cardeal
D. Miguel da Silva e a possível influência que ambos
tiveram na formação do Tribunal da Inquisição de Lamego.
Após transcrição do Livro de Denúncias referente
à Inquisição de Lamego efetuou-se uma pesquisa e levantamento das mesmas, bem como dos Processos dos
cristãos-novos lamecenses daí resultantes, arquivados
na Torre do Tombo.
Palavras-chave: Inquisição, Lamego, denúncias,
cristãos-novos
Abstract:
This study intended to expose a Tribunal that, although short-lived (1541 - 1547), played a somewhat
devastating role at the societal level in Lamego.
One of the priorities of our work was to try to
understand why the Tribunal of the Inquisition was
established in the city of Lamego, evaluating the performance of the bishop who indoctrinated the diocese
during this period, D. Fernando de Menezes Coutinho
and Vasconcelos, a cousin of D. João III, as well as the
Cardinal D. Miguel da Silva and the possible influence
that both had in shaping the Tribunal of the Inquisition of Lamego.
After the full transcript of the Livro de Denúncias
relating to the Inquisition of Lamego, it was undertooked a thorough research and survey of the same
book, as well as of the Processes of the New Christians
of Lamego, filed in the Torre do Tombo.
202
Manuela Vaquero
E
sta análise terá de inédito trazer à luz do dia
o Tribunal da Inquisição de Lamego, tema
muito pouco estudado, e mesmo praticamente suprimido nos muitos documentos e ensaios
sobre o tema. O estabelecimento da Inquisição em
Portugal foi resultado de um longo e complexo processo de adaptação de normas e cânones, com a finalidade de reprimir a heresia e consagrar a pureza da
fé católica, de acordo com a filosofia anunciada. Antes
da sua existência formal, houve no reino inquisidores
da fé que exerciam a sua atividade temporariamente,
embora coubesse ao tribunal diocesano o julgamento
de todos os casos de heresia, feitiçaria ou blasfémia,
coadjuvado pela justiça secular. Os conflitos entre os
judeus e cristãos limitavam-se, em geral, a pequenos
tumultos, sem graves consequências, provocados de
ambos os lados pelo ódio religioso e o consequente
sectarismo ou por circunstâncias de natureza financeira pois, desde a Idade Média, os judeus desfrutavam
de tolerância e proteção real, conforme a ordenação de
D. João I, situação que se manteve até ao reinado de D.
Afonso V, considerado como o último período sereno
dos judeus em Portugal.
No entanto, com a expulsão dos judeus de Espanha, em 31 de março de 1492, no reinado de D. João
II, dar-se-ia início à Inquisição em Portugal, ainda que oficialmente o seu estabelecimento viesse a
ocorrer apenas em 1536, por bula do papa Paulo III
. Durante este período de tempo, muitas negociações
são efetuadas, quer com Roma quer com os próprios
judeus, tendo em vista os interesses políticos e económicos da nação portuguesa .
Trazer à luz do dia um tribunal – o Tribunal da
Inquisição de Lamego – que, embora de vida efémera (1541–1547), desempenhou um importante papel
a nível da sociedade lamecense foi o repto, para tentar compreender e explicar o porquê do seu estabelecimento na cidade, a sua escassa durabilidade e as
circunstâncias da sua fundação – preocupando-nos o
aparente desinteresse a que o estudo da Inquisição de
Lamego tem sido votado, fazendo ele parte integrante dos primórdios do estabelecimento do Tribunal do
Santo Ofício em Portugal, quando estava ainda numa
fase inicial, procurando a sua consolidação no reino. É
certo que na urbe, bem como nas suas cercanias, existia uma comunidade judaica próspera e erudita, com
uma significativa importância económica, social e cultural mas tal facto, só por si, não justificava a formação
de um tribunal.
Como em muitas outras terras, também em Lamego
os judeus se organizaram de forma particular embora,
na prática, convivessem normalmente com os cristãos.
Apesar de viverem nas judiarias, as portas nem sequer
eram cerradas ao anoitecer, nem vigiadas como acontecia nas restantes espalhadas pelo território. Lamego
tornou-se um caso à parte onde não eram cumpridas
as leis provenientes do Estado que procuravam, o mais
possível, separar cristãos de judeus. Era enorme o
número de famílias hebraicas que habitavam o velho
burgo, radicando-se em duas judiarias que, no ano de
1436, eram povoadas por cerca de quatrocentos judeus e considerada uma comunidade muito numerosa
. Em 1541, no ano em que foi instituído o Tribunal da Inquisição de Lamego, os judeus residiam especialmente
na Judiaria Grande ou Judiaria Nova – cujos indícios
ainda hoje perduram, acabando por dar o nome à atual
Rua Nova. A sociedade judaica concentrava-se ainda
entre o bairro do Castelo, a rua da Seara e no núcleo
envolvente à igreja de Santa Maria Maior de Almacave,
sendo nas imediações deste santuário que se situava o
cemitério judaico onde se enterravam, em covas virgens, os seus mortos, facto que tantas delações viriam a
originar. O Livro de Denúncias da Inquisição de Lamego
, do qual fizemos a transcrição e que é parte integrante
deste estudo, nem sempre é rigoroso quanto à morada
dos judeus; muitas das denúncias referem apenas os
acusados como moradores em Lamego, mas quando
indicam as ruas constata-se que os judeus, muitos deles cristãos-novos, residiam além da rua Nova, na Praça, rua da Seara, rua da Cruz … todas elas situadas nas
imediações da Judiaria Nova.
O antagonismo entre cristãos e judeus era grande,
os conflitos estavam latentes; às razões habituais deste
antagonismo soma-se o facto de, em Lamego, o comércio e a produção agrícola serem controlados por
cristãos-novos, avolumando as razões que os tornaram alvo de profundas invejas e, depois da instituição
da Inquisição, levariam a que cristãos-velhos os denunciassem compulsivamente.
Os Breves e Bulas papais que permanentemente se
contradiziam desde o ano de 1532, ora beneficiando
ora acusando os cristãos-novos, muito contribuíram
para que o ódio entre cristãos e judeus se desenvolvesse e o medo tomasse proporções desmedidas na
consciência dos cristãos-novos, originando a fuga de
muitos do aro do burgo. Não por acaso, as manifestações de júbilo registadas na cidade de Lamego, quando
constou que o Tribunal da Inquisição iria aí ser estabe-
O Tribunal da Inquisição de Lamego
lecido, foram enormes.
D. Agostinho Ribeiro, então bispo da cidade, recebeu do rei D. João III, com data de 30 de junho de
1541, um traslado com os preceitos que deveria tomar,
para que no bispado de Lamego e no de Viseu, sob a
sua jurisdição, se formasse o Tribunal da Inquisição,
alegando que o executasse com a maior brevidade possível, em virtude do grande serviço que se iria prestar
a Nosso Senhor. Esta carta foi enviada em simultâneo
para o bispo do Porto e para o reitor da Universidade
de Coimbra .
Na missiva podemos ler as disposições que o soberano estabelecia para que os oficiais, de que a instituição iria necessitar, não usufruíssem de qualquer
pagamento e fossem pessoas da maior confiança, devendo aceitar o cargo pelo grande prestígio que este
lhes proporcionaria. Estávamos, claramente, numa
fase experimental da Inquisição em Portugal, onde
não tinha sido elaborado ainda um Regulamento
para que todos os tribunais espalhados pelo reino se
pudessem orientar e, por esse motivo, o cardeal-infante D. Henrique e inquisidor-geral, por nomeação de
seu irmão, o rei D. João III no ano de 1539, iria ainda
escrever mais uns despachos aos supracitados bispos
transmitindo-lhes mais instruções. Os inquisidores
iriam desfrutar, portanto, de toda a autoridade podendo nomear para funcionários do tribunal as pessoas
que reconhecessem competentes e com as habilitações
requeridas pelo monarca.
A Inquisição de Lamego teve por inquisidores, para
além do bispo D. Agostinho Ribeiro, homem descrito como de bom caráter, muito humano e letrado, o
doutor Manuel de Almada, cónego da sé de Lisboa e
o doutor Gonçalo Vaz. Foram seus notários os bacharéis António Gonçalves e Diogo Rodrigues, cabendo a
Sebastião Rodrigues e a Fernão Esteves as funções de
meirinho e carcereiro, respetivamente.
A Inquisição estabelecida em Lamego, para além
de transitória, foi também controversa e não admitida
por alguns historiadores lamecenses muito bem conceituados e que muito escreveram sobre a grandeza
desta urbe na época.
Não restam dúvidas nem faltam documentos que
comprovem a importância que a cidade tinha a nível
do reino neste período, pois os produtos manufaturados na região contribuíam para o engrandecimento e
riqueza do país, e a sua diocese tinha uma jurisdição
enorme a nível eclesiástico, sendo governada nos anos
30 do século XVI pelo bispo D. Fernando de Meneses
203
Coutinho e Vasconcelos, primo do rei D. João III que,
em simultâneo, exercia as funções de capelão-mor da
corte e conselheiro do monarca; posteriormente acedeu ao cargo de inquisidor-mor no ano de 1536, quando ainda doutrinava o bispado de Lamego e, segundo a
nossa ótica, foi a sua grande influência na corte e junto
do monarca, uma das causas do estabelecimento do
Tribunal da Inquisição em Lamego. De salientar, que
foi este antítese o patrono de uma obra, considerada
de referência pelos historiadores, Descripção do Terreno ao redor de Lamego duas leguas [1531-1532], da
autoria de Rui Fernandes, cidadão lamecense tratador
de lonas e bordatas de El-rei e mercador – cristão-novo – de ascendência judaica conforme registo no Livro
de Denúncias da Inquisição de Lamego, onde aparece
acusado, ele e os seus familiares, por crimes de judaísmo em várias delações. A descrição contida na obra
de Rui Fernandes proporciona uma informação detalhada sobre a cidade e suas redondezas, facultando
uma perspectiva do dia-a-dia das suas gentes, do seu
viver e do seu pensar. Através da sua leitura podemos
concluir que a região de Lamego tinha um enorme intercâmbio com a cidade do Porto, centro escoador dos
seus inúmeros produtos. Em meados do século XVI,
entre as produções do seu aro são de salientar os cereais, o sumagre, as sedas, frutas, azeite, panos de linho
e os vinhos, particularmente os “vinhos cheirantes” de
Lamego.
Apesar do Tribunal da Inquisição de Lamego ter tido
uma duração breve, os cristãos-novos da cidade protestaram veementemente contra a sua forma de atuar, por
causa do comportamento dos inquisidores em relação
às disposições da Bula de 23 de maio de 1536, pois os
abusos eram enormes sendo difícil controlar o poder
que lhes era oferecido. Os cristãos-novos temiam as
irregularidades das prisões que eram efetuadas, receavam as acusações verdadeiras ou forjadas dos atos de
judaísmo, pois tudo justificava a perseguição aos acusados e esta população de origem hebraica vivia aterrorizada pela chegada do terrível tribunal e pela nomeação de inquisidores com tão fraca reputação, apesar
de serem ainda bastante jovens – Manuel de Almada
tinha sido vigário capitular no arcebispado de Lisboa
e fora aí um flagelo para o próprio clero; e o licenciado Gonçalo Vaz era laico e comprovadamente bígamo.
Nada abonava em favor destes inquisidores. Não existem dados concretos para que possamos conhecer com
pormenor a limitação ou o desregramento com que
se houveram os inquisidores, embora estejamos con-
204
Manuela Vaquero
victos, pelos poucos dados existentes e lidos nos Processos, que os excessos seriam desmedidos, quer pela
falta de rigor especificada nas leis, que praticamente
não existiam, o que originava a que cada inquisidor
actuasse mediante a sua própria consciência; quer pelo
número de réus que faziam apelações para o Tribunal
de Lisboa para aí serem julgados e sentenciados.
O Tribunal da Inquisição de Lamego nunca dispôs
de sede própria. A casa do despacho da Santa Inquisição, situava-se no paço episcopal de D. Agostinho Ribeiro, localizado no Rossio e mandado reedificar pelo
seu antecessor D. Fernando de Meneses Coutinho e
Vasconcelos, ou nas pousadas de Manuel de Almada
ou de Gonçalo Vaz. Também o aljube era o episcopal
ou cárceres privados em casa dos inquisidores.
Outras questões surgem: apesar de D. Agostinho
Ribeiro ser considerado o menos cruel dos três inquisidores, era ele que, do alto do púlpito e no meio das
solenidades religiosas, impunha aos fiéis como um dever vingarem a paixão de Cristo, indo dar testemunho
contra os cristãos-novos. O povo era, portanto, estimulado pela Igreja a denunciar o amigo, o parente ou
o vizinho que, vivendo lado a lado, tinham criado entre si laços de estima e situações de familiaridade, mesmo com crenças bem diferentes. Em Lamego, como já
dito, o convívio entre cristãos e judeus tinha sido amistoso e, portanto, o judaísmo era vivido praticamente
a descoberto. Estes laços de convivência foram então
alterados pela palavra da Igreja, na qual a sociedade
daquele tempo se apoiava quase exclusivamente.
Alexandre Herculano descreve assim o descontentamento dos cristãos-novos lamecenses:
alguns réus que insistiam em não os aceitar por
juízes [Vaz e Almada] eram mandados para Lisboa.
Velhos, mulheres honestas, donzelas pudibundas marchavam em levas para a capital, e esse largo trânsito
convertia-se em dilatado martírio. Os guardas que
os conduziam eram parentes de Gonçalo Vaz, a cada
um dos quais os réus deviam pagar dois cruzados por
dia. Entretanto o processo prosseguia em Lamego,
sem audiência dos interessados, tomando-se, conforme se dizia, testemunhas que faziam ofício de depor
contra os suspeitos de judaísmo e pagas para isso. (…)
prendiam-se alguns indivíduos antes de denunciados:
depois é que se tratava de lhes achar culpa. Para isto
recorria-se não raro aos escravos e criados, que, conduzidos ao tribunal, quando de bom grado não queriam acusar os seus senhores, eram a isso compelidos.
(HERCULANO, 1975: 108-109)
E contámos, no Livro de Denúncias, quarenta e
uma delações de criados e escravos que incriminavam
os seus antigos amos acusando-os de práticas de judaísmo dizendo tê-las presenciado quando com eles
viviam. O supradito Livro de Denúncias abrange o período compreendido entre 20 de agosto de 1543 e 22
de dezembro de 1544, ou seja engloba 489 dias e contém 308 denúncias onde aparecem 997 acusados. Muitos dos denunciantes são serviçais, vizinhos, amigos e
familiares dos incriminados, o que consideramos muito relevante e nos indicia bem o espírito que norteava
as acusações, que têm por base, quase exclusivamente,
o judaísmo confirmado como heresia mais grave que
qualquer outro tipo de delito e os judeus seu alvo primeiro. Neste Livro, profundamente analisado, as denúncias apresentam-se bem clarificadas e prevalecem
muitos casos de ajuntamentos sucessivos aos sábados;
falar e possuir livros hebraicos; circuncidar os filhos;
de guardar os sábados, não trabalhando e vestindo-se
de festa; executar algum trabalho ao domingo e dia
santo de guarda; limpar candeeiros e deixá-los acesos
sexta-feira à noite até que se apagassem; não comer
peixe de pele ou rejeitar a carne de porco; jejuar o jejum maior, que era em setembro, não comendo todo
o dia até ao nascer das estrelas; solenizar a Páscoa comendo pão ázimo. Estes sinais, entre muitos outros,
todos eles do foro íntimo de cada família, eram os factos considerados passíveis de acusação pela Inquisição
e fazem parte integrante da tipologia de acusações que
o Livro contém. Mas é, contudo, sobre as mulheres que
recaem o maior números de denúncias e processos,
pois elas eram as grandes mestras da crença e as que
mais sofreram por ela manifestando um sentimento
de religiosidade maior, já que era dentro de casa que a
maior parte dos “crimes de judaísmo” eram praticados,
dado o seu caráter especificamente doméstico, apesar
da religião judaica ser pelos seus rituais predominantemente masculina. Registámos não só o judaísmo
mas todo o tipo de denúncias contidas no livro, mesmo que o seu número seja muito reduzido pois foram
tidas em conta neste tribunal:
O Tribunal da Inquisição de Lamego
Judaísmo.....................................................................827
Blasfémias e palavras proferidas contra a fé.......... 55
Manifestações contra o dogma................................ 33
Bigamia....................................................................... 6
Feitiçaria..................................................................... 3
Contra o Santo Ofício............................................... 7
Formulação de conteúdo erótico-sexual................ 3
Motivos extravagentes.............................................. 6
Diversos...................................................................... 44
Suborno...................................................................... 10
Culpas não definidas................................................. 3
Tipologia das Denúncias
Consideramos que o conteúdo do Livro de Denúncias encerra quase só delitos menores de heresia,
onde praticamente apenas há judaísmo, que é um
dos tipos de denúncia mais consistente para o Santo
Ofício, mesmo que a sua objetividade possa ser posta
em causa; mas o Tribunal de Inquisição de Lamego,
tal como os outros tribunais instituídos no reino, têm
algo a tratar que examinam com uma severidade extrema – o Judaísmo – que pensamos seria praticado,
nestes tempos, sem grande secretismo, em virtude dos
judeus viverem desde o reinado de D. Manuel e após
as perseguições que lhe foram feitas com uma certa liberdade e imunidade.
A comunidade cristã-nova nesta cidade vivia com
os seus usos e costumes mais ou menos a descoberto,
sem grandes sigilos, praticava os seus rituais judaicos
com um certo à vontade, sem sentir que necessitava
de grande discrição ou de se esconder. Daí a enorme
quantidade de denúncias que relatam que os cristãos-novos guardavam o sábado e nele faziam ajuntamentos, em casa uns dos outros ou à porta de casa, sem
qualquer tipo de precaução, o que não passava despercebido aos vizinhos que abraçavam outra crença e
outros ideais.
É de salientar que, nesta fase em que a Inquisição
dava os primeiros passos, não existia ainda um tipo de
inquérito absolutamente preciso, pelo que se constata
que, muito poucas vezes, são mencionadas as relações
entre acusados e acusadores; também como denunciantes aparecem cónegos, vigários e clérigos, embora o seu número seja insignificante, apenas dezassete.
Temos ainda a acrescentar que a crença foi normalmente omitida nos acusadores onde apenas 16 são
considerados cristãos-novos e os outros apresentam
crença desconhecida; já no grupo dos acusados tal não
acontece e dos 997 apenas cinco têm crença específica,
os restantes 992, mesmo que não estejam todos designados por cristãos-novos, as acusações feitas deixam
205
antever a sua fé; com esta análise conseguimos o acesso às vítimas sentenciadas, examinando a tipologia das
denúncias e crimes, constituição dos agrupamentos
familiares, proveniências geográficas, representações
sociais, bem como reconhecer as principais famílias
desta comunidade de cristãos-novos.
Ao reconstituir as famílias sobre as quais recaíram
maior número de delações também constatámos que
as denúncias da Inquisição de Lamego deixam antever
alguma ambição referente aos cristãos-novos de maiores possibilidades económicas ou com estatuto social
mais elevado. Eram eles o alvo de mais denúncias por
parte dos cristãos-velhos que revelavam um certo contentamento em ver os judaizantes, seus conterrâneos,
presos. É o caso da família de Pedro Furtado, que tem
um número significativo de denúncias pois era médico
de prestígio na cidade e arredores, onde atendia clientes de elevada posição social; foi julgado e preso pela
Inquisição e num traslado de culpas são incluídos quase todos os membros da família, sendo um acusado
de receber dinheiro dos cristão-novos para impedir o
negócio da Inquisição em Roma.
Todos os Processos arquivados na Torre do Tombo
incidem nos agregados familiares por nós identificados e grande parte recaem sobre elementos das mesmas famílias, chegando uma delas, com doze elementos, a deter treze processos levantados e abrangendo
apenas seis dos seus membros; detectámos a existência
de processos absolutamente inconclusivos, chegando o
Tribunal do Santo Ofício de Lisboa, para onde os réus
apelavam frequentemente, a pronunciar a sentença
num dos processos e a incluir nela os restantes elementos da linhagem a quem a sentença também abrangia,
embora não se chegue a saber o que lhes sucedeu.
Nos Processos, não encontrámos qualquer sentença
que puna verdadeiramente os cristãos-novos, apenas
abjurações, absolvições e a grande maioria não contém
qualquer sentença:
Não contêm sentença...............................................23
Abjurações.................................................................12
Novamente interrogados...........................................5
Incompletos.................................................................5
Absolvições..................................................................3
Soltas sob fiança..........................................................2
Ré ausente....................................................................1
Inutilizado...................................................................1
Sentenças dos Processos levantados na Inquisição de Lamego
206
Manuela Vaquero
Podemos afirmar que não existiu em Lamego qualquer auto-de-fé e que no Tribunal do Santo Ofício da
cidade iniciaram-se e concluíram-se somente vinte e
cinco processos, dos cinquenta e dois por nós encontrados e analisados. Por estes dados somos levados a
afirmar que o Tribunal da Inquisição de Lamego não
foi tão punitivo para os cristãos-novos como os outros
tribunais espalhados pelo reino na mesma época.
Na sequência do estudo feito estamos convictos de
que o Tribunal da Inquisição foi estabelecido no bispado de Lamego, tendo sob sua jurisdição o bispado de
Viseu, por influência do seu bispo D. Fernando de Meneses Coutinho e Vasconcelos que, sendo homem de
grande influência na corte, o fez instituir no bispado,
que acabava de abandonar, quando no reino eram, em
simultâneo, criados outros tribunais. De referir que a
ausência de documentação é a primeira dificuldade
que nos surge para podermos chegar a uma conclusão
definitiva que confirme estas afirmações, o que não
implica, no entanto, que não tivéssemos desenvolvido as investigações de molde a conseguir obter dados
mais consistentes e concretos que nos conduzissem a
respostas mais precisas e comprovadas. Também ponderamos a interferência, se bem que indireta segundo
o nosso parecer, do bispo e posteriormente cardeal D.
Miguel da Silva, relativa à criação do Tribunal do Santo Ofício em Lamego. Mesmo não possuindo dados
suficientemente claros que confirmem na totalidade
esta nossa asserção, há uma interdependência percetível entre o seu afastamento do bispado de Viseu e a sua
nomeação a Cardeal in petto no ano de 1539, e a defesa por ele assumida com tenacidade, junto do Sumo
Pontífice, em relação aos cristãos-novos e a criação do
Tribunal da Inquisição em Lamego. No ano de 1541
recebeu as insígnias de cardeal, no entanto, D. João III
não aceitou bem a sua nomeação e tudo fez para evitar
que ela se concretizasse219.
Em função desta circunstância, somos levados a
considerar a hipótese do Cardeal da Silva, embora, de
forma indireta, ter tido influência na criação do Tribunal do Santo Ofício no bispado de Lamego com a
diocese de Viseu sob a sua jurisdição. O rei e o inquisidor-geral pretenderam com a submissão do bispado
de Viseu, onde D. Miguel ainda pontificava, a um Tribunal de Inquisição recém-formado no patriarcado
Lamego, humilhá-lo e depreciá-lo pois D. Miguel da
Silva era, como provado, um dos defensores dos cris-
tãos-novos junto da corte de Roma. Também a importância estratégica da cidade, a sua antiguidade e o seu
poder sócio-económico no reino tiveram, por certo,
grande peso na formação do referido tribunal.
Subsiste como memória da existência deste tribunal de vida tão efémera um Livro de Denúncias completo, um macete com sete documentos soltos e um
fragmento de um outro Livro de Denúncias, que fomos
identificar na Torre do Tombo e que confirma a existência de outros livros de denúncias que desapareceram; também os cinquenta e dois processos levantados
pela Inquisição de Lamego, embora bastante inconclusivos, vão facultar-nos uma visão mais elucidativa sobre os efeitos que esta instituição teve a nível social,
incriminando especialmente as mulheres; no entanto,
não há registo de qualquer Livro de Reconciliações que
tenha chegado aos nossos dias; apenas encontrámos
num dos documentos soltos uma confissão/abjuração,
onde um Pêro Rodrigues, morador em Lamego, pede
perdão das suas culpas e, num outro documento apenso, a respectiva sentença pecuniária (1544)220.
Como reminiscência da Inquisição, não só em Lamego mas em todo Portugal, ficaram frases e ditos que
se propagaram através das gerações e fazem ainda parte do nosso quotidiano, sem que nos apercebamos da
sua verdadeira essência e do horror que elas causaram
a quem as sofreu na pele: “Ano da Graça”; “Levar couro
e cabelo”; “Dar neste e naquele”;“Dar o braço a torcer”;“Ficar sem pinga de sangue”;“Gastar cera com ruins defuntos”; “Negar a pés juntos”;“ Tens medo de entalar o
rabo?”;“Qual carapuça”; “Rabos de palha”;“O debaixo é
meu, o de cima é dum judeu”, entre muitas outras.
As leis não tiveram força para vencer os costumes e
a fé – ao longo dos tempos alguns cristãos-novos mantiveram-se fiéis às suas crenças; outros mesmo, tendo
a perceção da sua proveniência, eram já cristãos, embora todos saibamos que os cerimoniais aprendidos e
apreendidos na família e repetidos ao longo das gerações, deixam marcas profundas na identidade de cada
indivíduo e não são esquecidos com facilidade, nem as
pessoas deles se libertam num curto espaço de tempo
continuando, por esse motivo, a praticar rituais ancestrais, mesmo que eles não tenham a conotação que
lhes era atribuída.
A presença da Inquisição em Lamego causou muita intranquilidade entre as suas gentes, na medida em
que deixou em evidência as complexas relações entre
219 Cf. sobre o assunto: ALMEIDA, 1971: 666-669; KAYSERLING,
2009: 274; Corpo Diplomático Português, 1884: 141-144, Tomo IV.
220 Documento nº 5, faz parte de um macete arquivado no ANTT que
possui sete documentos soltos da Inquisição de Lamego.
O Tribunal da Inquisição de Lamego
os cristãos-novos, a sociedade lamecense e demais habitantes da região. As acusações eram inúmeras e criaram um ambiente de desconfiança entre as pessoas,
porque muitas delas apresentavam-se na Casa do Despacho do Tribunal, sem qualquer fundamento, denunciando atos praticados há mais de três, quatro, cinco
ou mesmo dez anos. Poderemos ainda concluir que,
ao contrário do que nos parece hoje absolutamente
ilógico, o Tribunal do Santo Ofício foi muito ansiado
e pretendido pela grande maioria da população lamecense221, bem como a de todo o reino; ele era desejado
porque representava a purificação das almas hereges,
numa época em que o religioso se confundia com o
social, o económico, o político e o espiritual.
207
BIBLIOGRAFIA
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Fundo do Santo Ofício
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22/12/1544): Denúncias
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221 Cf. Corpo Chronologico, parte 1ª, maço 75, doc. 75.
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209
210
Entre a Etnografia e a História:
os romances durienses de Alves Redol
texto: Gaspar Martins Pereira* (FLUP/CITCEM)
* Professor catedrático do Departamento de História e de Estudos
Políticos e Internacionais da FLUP. Investigador do CITCEM – Centro
de Investigação Transdisciplinar «Cultura, Espaço & Memória».
Resumo:
Para lá da trama ficcional dos quatro romances que
Alves Redol escreveu sobre o Douro, rio e região —
Porto Manso (1946), Horizonte Cerrado (1949), Os Homens e as Sombras (1951) e Vindima de Sangue (1953)
—, tentamos compreender, nesta breve comunicação,
as condições de produção desses romances, as fontes
de informação de que o escritor se serviu, desde elementos da observação etnográfica e de análise histórica de documentação da época até testemunhos orais,
e a forma como os incorporou na narrativa literária.
Cruzando tempos diversos, entre o tempo dos acontecimentos históricos e o tempo vivido e partilhado
pelo escritor no imediato pós-guerra, os romances
de Redol oferecem-nos um valioso quadro histórico
e antropológico das gentes do Douro, baseado na observação da vida das aldeias durienses, da faina fluvial
dos barqueiros e dos trabalhos da vinha, dos rituais e
tradições, mas também das preocupações e aspirações
dos diversos grupos sociais da complexa sociedade
duriense.
Abstract:
Beyond the fictional plot of the four novels that
Alves Redol wrote about the Douro, river and region
— Porto Manso (1946), Horizonte Cerrado (1949), Os
Homens e as Sombras (1951) and Vindima de Sangue
(1953) —, we shall try to understand, in this brief
communication, the conditions of production of these
novels, the sources of information used by the writer,
from the elements of ethnographic observation and
the historical analysis of contemporary records to the
oral testimonies, and the ways in which these elements where incorporated in the narrative. Trough time,
crossing the time of historical events and the time lived and shared by the writer in the immediate postwar
period, the novels of Redol offer a valuable historical
and anthropological framework of the people of Douro, based on the observation of life on Douro villages,
the work of the «barqueiros» (the Douro river boatmen) and of the work in the vineyards, the rituals and
traditions, but also the concerns and aspirations of the
various social groups of the complex Douro society.
Palavras-chave: Douro, Alves Redol, História, Etnografia, Literatura.
Keywords: Douro, Alves Redol, History, Ethnography, Literature.
212
Gaspar Martins Pereira
INTRODUÇÃO
D
ois dos trabalhos em que me envolvi nos
últimos tempos222 levaram-me a revisitar os quatro romances que Alves Redol
escreveu sobre o Douro e a compreender melhor as
condições de produção desses romances, as fontes de
informação de que o escritor se serviu e a forma como
incorporou na narrativa literária elementos da observação etnográfica e de análise histórica.
Nesta breve comunicação, e integrando-me num
painel sobre «História no/do Douro», gostaria de
destacar alguns desses aspectos da obra duriense de
Redol que, a meu ver, ultrapassa muito o domínio da
Literatura e constitui um valioso contributo para o conhecimento da região, nos planos da Etnografia e da
História, cruzando tempos diversos, com a liberdade
da ficção.
Tempos cruzados
Entre o tempo em que Redol escreveu os seus romances, desde meados dos anos quarenta ao início
da década seguinte, e o tempo em que os situou, recuando, no caso do «Ciclo Port Wine», às primeiras
décadas do século XX, intrometem-se, aqui e ali, por
vezes nas entrelinhas, outros sentidos e dimensões do
tempo. Por um lado, seguindo as concepções do realismo socialista, Alves Redol valorizou, numa dimensão intemporal ou de longa duração, o papel heróico
do povo na epopeia da criação da região vinhateira do
Douro e do vinho do Porto. Na epígrafe de abertura
do romance Horizonte Cerrado, o escritor comunista vincava a sua admiração pelo trabalho das gentes
do Douro: «‘Port Wine’ é o vinho dos Ingleses. Chamam-lhe sol engarrafado, mas só os Durienses sabem
o preço das tragédias e heroísmos que viveram para
criar esse sol — fazer um astro com as mãos é tarefa
de gigantes».
E, logo a seguir, na dedicatória «Aos Durienses»,
sublinhava: «Sonhei erguer, com este ciclo de romances, um monumento à vossa epopeia, soberana entre
as demais que o homem empreendeu».
Numa entrevista concedida a Francisco Tavares Teles, em Setembro de 1947, para ser publicada no jornal Trasmontano, do Clube Transmontano de Angola,
Redol destacava, entre os principais motivos do seu
222 PEREIRA, 2013a; PEREIRA, 2013b.
interesse pelo Douro, os problemas «sempre latentes»
que, ao longo dos séculos, caracterizaram a lavoura da
região:
[…] a riqueza de tipos durienses foi o principal
atractivo que o Douro me lançou. Ora eles não existem
com interesse quando não há problemas. Os do Douro
são dos mais complexos da vida nacional: o desbravamento dos montes quase inacessíveis que hoje orgulham
a nossa condição de homens, as vidas que por ali se gastaram, o vinho depois com as suas crises constantes, a
luta entre produtores e especuladores, a filoxera que foi
um dos mais dramáticos passos do país, as flutuações
de riqueza, misérias confrangedoras e riquezas principescas…223.
Nessa mesma entrevista, como em muitos dos seus
romances, deixava transparecer uma mensagem de
futuro, de libertação do homem, de valorização do
trabalho e de correcção das injustiças e desigualdades
sociais na sociedade que haveria de vir, em consonância com os ideais comunistas que perfilhava. À questão
«E acha que os lavradores do Douro poderão um dia
resolver esses problemas — descansar enfim?», Redol
respondeu:
Sem dúvida. O homem que já é capaz de vencer desertos, saberá dominar também estes problemas. Um
organismo colectivo que defenda os pequenos proprietários da agiotagem, concedendo-lhes créditos e colocando
directamente os seus produtos nos mercados consumidores, será a grande obra de defesa do viticultor e do
trabalhador durienses. É anti-nacional o que até hoje
vem sucedendo — que um dos maiores valores de exportação do país só deixe angústia e fome àqueles que são os
seus mais devotados realizadores. A solução deste problema exige tudo; não podem haver obstáculos que não
sejam destruídos para se obter essa justiça elementar.
/ Criem-se lagares em cooperativa ou mobilizem-se os
que já existem, conceda-se-lhes um longo crédito de base
para que os seus vinhos sejam beneficiados, armazenados e vendidos por conta própria, não só para criar uma
agricultura próspera, mas para salvar dos cardenhos, da
sub-alimentação, e da morte precipitada, os saibradores e os cavadores, as vindimadeiras e os lagareiros do
Douro, todos aqueles que fizeram, através [de] gerações,
de uma região fragosa e inóspita uma das mais ricas
223 A entrevista seria publicada, no ano seguinte, no jornal Trasmontano, comemorativo do 35º aniversário do Clube Transmontano de Angola,
sob o título O Douro encontrou o seu romancista, uma entrevista com o romancista Alves Redol, por Francisco Tavares Teles, com a indicação do local
e da data (Pinhão, Setembro de 1947). Cf. PEREIRA, 2013a.
Entre a Etnografia e a História
províncias de Portugal.224
Esta mesma projecção de uma economia cooperativa do Douro vinhateiro surgiria, pela voz do médico
Pimenta, nos romances do «Ciclo Port Wine»225. O futuro mistura-se, a cada passo, nos sentimentos e aspirações, nos gestos e trabalhos, ligados pela memória
e pelas tradições, no fio das gerações, na relação dos
homens com a terra. Entre muitos outros exemplos,
leia-se aquela passagem em que Francisco Teimas se
senta no degrau da escadaria de um socalco, recordando as palavras do pai, que acabara de falecer, a propósito do assentamento das pedras de xisto: «Não, assim
não, Francisco!», dissera-lhe o pai. «Mete essa pedra
mais a direito. Isso!... É um degrau para pôr os pés,
mas não é só a gente que aí vai passar… Serão os teus
filhos e os teus netos…».226
Ou, ainda, o desenlace do romance Porto Manso,
em que a vitória do caminho-de-ferro sobre os barcos
rabelos, se, por um lado, trazia a morte da ancestral
actividade fluvial dos barqueiros, por outro, se transformaria em «cavalo de Tróia para o futuro»227, dando
«uma vida nova» ao Douro. Era a mensagem neo-realista de esperança e libertação trazida pelos operários,
construtores da sociedade nova sobre os escombros da
tradição:
É da morte que a vida ressurge. São as batalhas perdidas que caldeiam o esforço novo da última batalha
para vencer. O anseio de cada lutador caído vai florescer no coração de centenas de outros homens. E depois
serão milhares. E depois milhões. / E essas flores não
se desfolham nem murcham, porque são vivas como
sangue e rijas como aço, são flores estranhas com perfume para uns e espinhos para outros, são flores com
alma — flores de alma eterna que vem das cavernas
e caminha para o futuro. E o futuro não se lhe pode
negar, porque a certeza dos que tombam é a certeza
dos que ficam. E todos permanecem até ao fim. Todos.
Até os mortos. Porque estes mortos não vão a enterrar — o seu sacrifício floresce no coração de centenas
de outros homens. E depois serão milhares. E depois
milhões. / É nesta morte que a vida ressurge e canta.228
E, no diálogo final entre o velho arrais António do
Monte e o seu filho, que se tornara ferroviário, Redol
224 Idem, ibidem.
225 Por exemplo, em REDOL, [1951]:182-187; REDOL, [1953]: 195.
226 REDOL, [1953]: 287.
227 REDOL, [1946]: 315.
228 REDOL, [1946]: 337.
213
reflectiu esse embate de tempos e representações:
— Sim. Foi o comboio que matou tudo isto: os homens e o rio, a alegria e até a honra. Os rapazes abalam;
as mulheres morrem sem marido.
— Que tenho com isso?...
— És um dos que andam a fazer o cavalo do Diabo.
Um filho meu!... O destino não perdoa; nunca perdoa.
— O destino são todos os homens.
— Os homens!... O destino da aldeia é a devastação.
São os vícios e a fome, a morte dos barcos e as terras
para novos donos que nunca lhe meteram a enxada. O
comboio arrasou tudo.
— E há-de construir tudo. O futuro anda já com ele.
— Um futuro de miséria, António. Tu não sabes…
— Sei uma coisa que o pai não viu ainda. O comboio
desencadeou todo o mal que queira; mas, lá dentro, vinham também os fogueiros, os maquinistas e os homens
das oficinas. Vinham os descarregadores e todo o outro
pessoal. Ele não tem culpa de haver uma companhia.
Aproximou-se do pai e apertou-lhe o braço, como
se quisesse transmitir-lhe a sua certeza. Um sorriso luminoso abriu-se no seu rosto tisnado; no olhar passou
uma firmeza de aço, que parecia capaz de transformar
o mundo.
— O pai talvez não compreenda; mas o comboio…
— Trouxe a companhia, como tu disseste.
— Mas trouxe também os operários.
Quatro romances do pós-guerra
Alves Redol escreveu os seus quatro romances sobre o Douro entre 1945 e 1952, no contexto do pós-guerra, quando a região vinhateira sofria o impacto de uma conjuntura comercial desfavorável para o
sector do vinho do Porto. Por essa altura, a sociedade
duriense mantinha ainda os quadros de vida tradicionais, com uma forte ruralidade em torno do trabalho
manual das vinhas, com grandes desigualdades sociais e profundas carências acumuladas desde o período filoxérico, na segunda metade do século XIX,
e sucessivamente agravadas, depois, com o esforço de
reconstrução do vinhedo, com as crises comerciais e,
mais proximamente, com as condições impostas pela
guerra, gerando enormes dificuldades de escoamento
dos vinhos, a par da sua depreciação, o que se reflectia
na vida miserável da maior parte das aldeias. Foi esse
Douro do imediato pós-guerra que Redol captou nos
seus romances, independentemente da época histórica
em que situou os respectivos enredos. Era ainda um
tempo em que alguns rabelos continuavam a sulcar o
214
Gaspar Martins Pereira
rio na faina do transporte das pipas de vinho para os
armazéns de Gaia, apesar da concorrência do comboio,
retratada em Porto Manso, e mesmo já de camiões.
Seria preciso esperar pelos revolucionários anos sessenta e pela construção da barragem do Carrapatelo
para que a faina fluvial dos rabelos se extinguisse de
vez, coincidindo com outras transformações, não menos radicais, na paisagem física e social das aldeias do
Douro, de que se poderiam destacar os movimentos
migratórios dos pobres e mais jovens para as cidades
e para a Europa, despovoando os lugares e impondo
novas relações laborais, devido à falta de mão-de-obra,
numa conjuntura comercial de grande crescimento,
mais favorável aos produtores. Mas o Douro de Redol é o Douro anterior a todas essas transformações,
coincidente, em múltiplos aspectos, com as representações de muitas outras obras de escritores de diversas
correntes literárias, que fizeram dos anos quarenta o
período áureo da literatura duriense. Basta recordar,
sem preocupações de exaustividade: os contos de Pina
de Morais, reunidos nos livros Sangue Plebeu e Vidas
e Sombras, publicados em 1942 e 1949; ou os de João
de Araújo Correia, Contos Durienses, Terra Ingrata e
Três Meses de Inferno, de 1941, 1946 e 1947, na sequência de Contos Bárbaros, saído em 1939; Miguel Torga
publicou os Contos da Montanha e os Novos Contos
da Montanha, em 1941 e 1944, a que se seguiria o romance A Vindima, em 1945; O caminho para lá, de
Domingos Monteiro, saiu a público em 1947; depois
de publicar A Aldeia das Águias, em 1939, Guedes de
Amorim daria à estampa Os Barcos Descem o Rio, em
1945; ainda dos anos quarenta é o romance de Sousa
Costa, As Filhas do Pecado, saído em 1946. Nunca a
literatura duriense foi tão pródiga como nessa década,
enriquecida também com os romances de Redol, Porto Manso (1946) e Horizonte Cerrado (1949), primeiro volume do «Ciclo Port Wine», a que se seguiriam
mais dois, Os Homens e as Sombras (1951) e Vindima
de Sangue (1953).
Por outro lado, vale a pena compreender as condições de produção da obra duriense de Redol, do ponto
de vista das vicissitudes que rodearam então a vida do
escritor e dos constrangimentos que lhe foram impostos pelo regime, através da censura prévia.
Alves Redol esteve pela primeira vez no Douro em
Setembro de 1943. Nessa altura, o escritor pretendia
reunir informações relacionadas com o trabalho na
região duriense, para um livro que deveria integrar
uma colecção sobre O Trabalho em Portugal, a lançar
pela Editorial Inquérito229. Nessa sua primeira estadia
no Douro, encontrou-se com José Arnaldo Monteiro,
editor da Régua230, que o terá acompanhado por vários
lugares, nomeadamente ao Pinhão, onde o apresentou
a Francisco Tavares Teles, de quem se tornaria amigo
para toda a vida231. Com 31 anos, Alves Redol era já
um escritor reconhecido e sê-lo-ia também no Douro,
sobretudo nos meios intelectuais de Oposição ao regime. Além de colaboração dispersa na imprensa, em
especial em O Diabo e Sol Nascente, tinha publicado
diversas obras, desde Glória, Uma Aldeia do Ribatejo
(1938), avançando, de forma pioneira, para uma estética neo-realista com o romance Gaibéus (1939), a
que se seguiram Marés (1941), Avieiros (1942) e Fanga (1943)232, entre outros. Mas esse primeiro projecto
duriense de Redol não teve sequência imediata, provavelmente porque se intensificou, logo a seguir, a
militância política do escritor, com a sua participação
nas actividades do Movimento de Unidade Nacional
Anti-Fascista (MUNAF)233 e na mobilização dos meios
operários da zona ribeirinha do Tejo. Na sequência do
importante movimento grevista de Maio de 1944, Alves Redol seria preso pela polícia política, dada a sua
intimidade com Soeiro Pereira Gomes234, seu compadre235 e um dos organizadores da greve, que passaria,
entretanto, à clandestinidade. Redol esteve quase três
meses na prisão, só sendo libertado em 5 de Agosto.
O apertar da vigilância policial poderá ter levado Redol a regressar ao seu projecto duriense, no início de
1945, instalando-se então em Porto Manso, uma aldeia
de barqueiros, no concelho de Baião, onde recolheu informações para o seu primeiro romance sobre o Douro.
De regresso a Lisboa, continuaria a envolver-se,
sobretudo a partir do final da Guerra, em actividades
políticas e em iniciativas culturais. Nos últimos meses desse ano, participou activamente na criação do
229 Cf. entrevista de Redol, publicada no jornal A Tarde, Porto, ano 1,
n.º 45, 21.02.1945, p. 1 e 4.
230 O jovem José Arnaldo Monteiro (?-1964) foi um reguense oposicionista ao salazarismo, com ligações ao Partido Comunista. Apaixonado
pelas letras e pelos livros, formou em 1935 uma sociedade (Figueiredo,
Correia & Monteiro, Lda.) com o médico e escritor João de Araújo Correia
e com Domingos Macedo de Figueiredo, para criar a Imprensa do Douro,
na Régua.
231 TELES, 1975: 49.
232 Sobre a importância da obra de Redol no neo-realismo português,
veja-se: FERREIRA, 1992; VIÇOSO, 2011.
233 PEREIRA, 1999: 349; GODINHO, 2001: 103-104.
234 FALCÃO, 2005: 115; REDOL, 2011: 265.
235 Era padrinho do filho de Alves Redol, António Mota Redol.
Entre a Etnografia e a História
215
MUD - Movimento de Unidade Democrática, a cuja
Comissão Central chegou a pertencer. Ao mesmo tempo, desenvolvia acções nas colectividades locais, como
o Ateneu Artístico Vilafranquense, e envolvia-se na
fundação de importantes organismos culturais, integrando a Comissão dos Escritores, Jornalistas e Artistas Democráticos, sendo-lhe atribuída a redacção do
«manifesto contra o regime fascista», publicado em
Novembro de 1945236. Ainda nesse ano, participou na
criação do Círculo de Cultura Teatral e, no início de
1946, do Teatro-Estúdio do Salitre, onde seria representada a sua peça de teatro Maria Emília, publicada
no ano anterior na revista Vértice. Nesse ano de 1946,
empenhou-se também na fundação do PEN Club, integrando a sua primeira direcção, como secretário-geral.
Redol terá escrito Porto Manso nesse período agitado da sua vida, entre o Verão de 1945 e os primeiros
meses de 1946. Talvez por isso, o resultado o tivesse
deixado insatisfeito do ponto de vista literário. Dirá,
mais tarde: «Porto Manso, por exemplo, que vou tentar
refundir, é um romance característico do que se não
deve fazer em literatura»237.
Quanto aos romances do «Ciclo Port Wine», cuja
ideia terá partido de conversas com José Arnaldo
Monteiro e Francisco Tavares Teles, provavelmente
ainda em 1945, a sua concretização foi também afectada por contínuos contratempos e pelas multifacetadas actividades do escritor. No Verão de 1946, após a
publicação de Porto Manso, Redol retomou a preparação do Cancioneiro do Ribatejo, que viria a publicar
em 1950, envolvendo-se ainda em outros projectos,
entre os quais a adaptação ao cinema de Porto Manso,
que acabou por não se concretizar. A partir de finais
de Setembro, e durante alguns meses, Redol viveu em
Paris, num hotel do Quartier Latin, multiplicando-se
em contactos para recolher informações para um novo
livro, A França — da Resistência à Renascença, que começaria a publicar em fascículos, no início de 1948.
No entanto, esse livro já deveria estar concluído ou
muito avançado no Verão de 1947, quando o escritor
anunciou ao seu amigo Tavares Teles a sua intenção de
começar a recolha de informações para o seu romance
sobre o Douro: «É desta vez que me disponho a fazer o romance do seu Alto Douro. Tenho aí no Pinhão
uma pensão ou taberna onde se arranje uma tarimba
e umas sopas?»238.
No início de Setembro, estava instalado na Pensão
Douro, iniciando as suas pesquisas. Durante cerca
de uma semana, compilou elementos, deslocando-se
à Régua, Lamego, Valença, S. Salvador do Mundo e
outros locais. Em Janeiro de 1948, já Redol começara
a escrever o primeiro volume do «Ciclo Port Wine».
Nessa altura, pensava dedicar ao Ciclo quatro volumes,
pedindo a opinião de Tavares Teles sobre os títulos que
tencionava dar-lhes: Esganados, Sangue dos homens ou
Horizonte fechado, Estrela a Estrela e Raízes na terra239.
Porém, logo a seguir, novas contrariedades na vida
de Alves Redol vieram perturbar a prossecução do seu
projecto. As relações com a Inquérito, que publicava
os seus livros desde 1944, degradaram-se até ao ponto
de ruptura e Redol teve de assumir funções de editor,
à frente da ARS – Editorial, para a publicação de novos fascículos de A França. Mesmo assim, não deixaria
de se deslocar ao Douro, pouco depois, para assistir
às cavas240. E, em Julho, estava já a fazer a revisão o
livro, com o título Horizonte Fechado, esperando poder dispor de uma pausa «para subir ao Douro» e ler
o texto aos amigos241. No início do Agosto, enquanto
preparava a edição da peça de teatro A Forja, procedeu
a uma nova revisão do Horizonte Fechado242, antes de
participar no Congresso Internacional de Intelectuais
para a Paz, que decorreu em Breslávia (Wroclaw), na
Polónia, entre 25 e 28 de Agosto243, e que reuniu alguns
dos maiores escritores, artistas e cientistas de todo o
mundo e onde Redol falou em representação dos intelectuais portugueses. Não sabemos se Redol chegou
a ir às vindimas do Douro nesse ano, como planeara,
mas no início de Outubro entregaria o original do livro à censura244. E, em Dezembro, estava na tipografia,
já com o título Horizonte Cerrado, ficando pronto em
Janeiro ou Fevereiro do ano seguinte. Pelo meio, a vida
conturbada de Redol enfrentou outros problemas, des-
236 243 REDOL, 2011: 268.
237 Diálogo com Alves Redol. «Gazeta Musical e de Todas as Artes», n.º
118, Janeiro 1961, p. 174.
238 Carta de Alves Redol para Francisco Tavares Teles, 15 de Agosto de
1947, publicada em PEREIRA, 2013a.
239 Carta de Alves Redol para Francisco Tavares Teles, 27 de Janeiro de
1948, publicada em PEREIRA, 2013a.
240 Carta de Alves Redol para Francisco Tavares Teles, 29 de Março de
1948, publicada em PEREIRA, 2013a.
241 Carta de Alves Redol para Francisco Tavares Teles, 7 de Julho de
1948, publicada em PEREIRA, 2013a.
242 Carta de Alves Redol para Francisco Tavares Teles, 3 de Agosto de
1948, publicada em PEREIRA, 2013a.
Cf. REDOL, 2011: 274-275.
244 Carta de Alves Redol para Francisco Tavares Teles, 11 de Outubro de
1948, publicada em PEREIRA, 2013a.
216
Gaspar Martins Pereira
de o envolvimento na empresa de materiais de construção, Redol & C.ª, que criara com o pai e o cunhado
em finais de 1947245, até à degradação da sua relação
conjugal com Maria dos Santos Mota, que conduziu
à separação do casal, em Outubro de 1948, com um
consequente maior afastamento de seu filho António,
então com cinco anos, que ficaria a viver com a mãe.
Redol teve de encontrar um quarto para recomeçar a
vida, com a sua nova companheira, Natália Cruz246,
com quem viveria durante cerca de quinze anos, até
1963.
A escrita do segundo volume do «Ciclo Port Wine»,
inicialmente intitulado Terra Mártir, foi ainda mais penosa. As dificuldades financeiras obrigavam-no a dedicar-se a tempo inteiro ao trabalho na empresa Redol
& C.ª, tirando-lhe ânimo para prosseguir, como confessou a Tavares Teles, em Agosto de 1949: «O segundo
volume do ciclo continua na mesma — e se não tivesse
escrito o primeiro deixaria o encargo para outros. A
empreitada é difícil e sem estímulos torna-se penosa.
É que isto de fazer literatura a pensar em pagamentos
de renda de quarto e de comida é tarefa superior a um
cérebro já cansado e que não pode achar repouso»247.
Mas, como é sabido, Redol oscilava entre períodos de
desânimo e outros de grande entusiasmo, em que escrevia sem parar. Menos de três meses depois, em Dezembro, já o escritor dava por concluído o segundo volume do «Ciclo», entregando o original à Censura, que
o sujeitou a inúmeros «cortes»248. Só seria publicado
mais de um ano depois, no final de Abril de 1951, com
muitas alterações. Ainda em Janeiro desse ano, Redol
revelava a Tavares Teles:
Entretanto cá prossigo, vencendo os inimigos exteriores e mais este que mora dentro de mim, dizendo-te que
“heroicamente” refiz por duas vezes Terra Mártir e só
agora o considero um romance digno do meu propósito:
o de dar ao ciclo o meu melhor trabalho. Alterei quase
tudo, para não dizer tudo, e modifiquei-lhe o título que
será agora Os Homens e as Sombras, reservando o outro, o primitivo, para o 3.º volume. A publicação deve
ainda demorar, porque não me abunda o dinheiro e não
procuro editor.249
245 REDOL, 2011: 268.
246 Natália Cruz terá sido a «mulher da sua vida», segundo REDOL,
2011: 275 e 303.
247 Carta de Alves Redol para Francisco Tavares Teles, 19 de Agosto de
1949, publicada em PEREIRA, 2013a.
Certamente, o reconhecimento público da obra de
Redol, a par da atribuição, em 1950, do Prémio Ricardo Malheiros, da Academia das Ciências de Lisboa,
ao romance Horizonte Cerrado, animou o escritor a
prosseguir. Em 1951 e 1952, trabalhou afincadamente no terceiro e último romance do «Ciclo». Em Maio
de 1951, tinha já imenso material recolhido, pedindo
ao seu amigo Tavares Teles para lhe arranjar um local
para dormir e comer em Valdigem ou Cambres, onde
tencionava passar alguns dias «para colher os últimos
elementos» de que necessitava250. Nesse ano e no seguinte, Redol deslocou-se algumas vezes ao Douro,
continuando a dividir-se entre a actividade comercial
do negócio familiar de materiais de construção, em
Vila Franca, a vida em Lisboa, a escrita e o cinema251.
Em Novembro de 1952, anunciava a Tavares Teles a
conclusão de Vindima de Sangue:
Ando em revisão do 3.º volume do ciclo, contente algumas vezes, descontentíssimo noutras, embora a
tipografia comece esta semana a imprimi-los. Mas até
ao fim há «espinhos» por arrancar, ficando ainda com
a certeza de que tantos outros permanecem, como a
avisar o pobre escriba que a literatura já se não pode
fazer por amadorismo. / Acabo, porém, o ciclo com a
impressão de que deixei nele o melhor que consegui até
hoje — e lembro-me quase todos os dias, eu que sou um
falhado de memória, naquilo que te prometi ao iniciá-lo. Tive vontade — sincero desejo mesmo — de subir até
ao Douro e fazer uma leitura contigo e o Zé Arnaldo.252
Observação etnográfica e análise histórica
Na construção dos seus romances durienses, Alves
Redol seguiu o método já utilizado em obras anteriores, desde Gaibéus, procurando que a narrativa não
só se aproximasse de um «documentário humano» da
vida popular, mas que emanasse também do povo, que
penetrasse nas suas mais profundas preocupações e
aspirações, numa lógica mimética, como salientou Vítor Viçoso253. Para isso, Redol utilizou a metodologia
etnográfica de recolha de informação, combinada com
1951, publicada em PEREIRA, 2013a.
250 Carta de Alves Redol para Francisco Tavares Teles, 24 de Maio de
1951, publicada em PEREIRA, 2013a.
251 Elaborou o argumento do filme Nazaré e os diálogos de Vidas sem
Rumo, ambos realizados por Manuel Guimarães e que seriam severamente
amputados pela censura. Carta de Alves Redol para Francisco Tavares Teles, 27 de Agosto de 1952, publicada em PEREIRA, 2013a.
248 Cf. REDOL, 2011: 137 e 277.
252 Carta de Alves Redol para Francisco Tavares Teles, 19 de Novembro
de 1952, publicada em PEREIRA, 2013a.
249 Carta de Alves Redol para Francisco Tavares Teles, 1 de Janeiro de
253 VIÇOSO, 2011: 35.
Entre a Etnografia e a História
o que chamaríamos hoje de «observação-participante», método correntemente utilizado pelos antropólogos. Desde o seu primeiro livro, Glória: Uma Aldeia do
Ribatejo, publicado em 1938, uma obra de etnografia,
inspirada nos trabalhos de Leite de Vasconcelos, Redol nunca deixou de usar o «trabalho de campo» para
recolher informações sobre acontecimentos, situações,
termos populares, alfaias de trabalho, tradições, formas de pensar, de dizer, de fazer e de viver dos personagens e ambientes que pretendia trabalhar nos seus
romances e que ia reunindo nos seus cadernos de notas. Recorria também ao uso da fotografia. Em 1945,
para escrever Porto Manso, acompanhou os barqueiros do Douro, em viagens perigosas de transporte de
vinho pelo rio. Em Fevereiro desse ano, sob o título O
humano romancista da Fanga, barqueiro entre barqueiros, foi instalar-se em Porto-Manso, aquém-Baião, onde
prepara um livro sobre a trágica vida dos mareantes do
Douro, o diário portuense A Tarde abria uma entrevista ao escritor com as seguintes palavras:
Chegou ao Porto e desembarcou na Ribeira. Veio
num rabelo carregado com 16 pipas de vinho fino e, durante dois dias e duas noites, pés descalços, camisola de
lã grossa a tapar-lhe o peito forte, a inseparável gorra
azul a cobrir-lhe a cabeleira espessa, fez vida de barqueiro. Em Entre-os-Rios, com a força da corrente e o espesso
nevoeiro — de cortar à faca — o barco bateu num pegão
e correu risco de naufrágio. Nem assim se intimidou.
Voltará para Porto-Manso pelo Douro acima e lá ficará
até colher todos os elementos de que precisa para o seu
próximo romance.254
No caso dos três romances do «Ciclo Port Wine»,
em que descreveu a vida de uma família de pequenos
viticultores do vale do Rio Torto no início do século
XX, Redol baseou-se em grande parte, como já o tinha
feito em Porto Manso, nas informações colhidas localmente, quer transmitidas pelos seus amigos durienses, em especial José Arnaldo Monteiro e Francisco
Tavares Teles, aos quais dedicou o romance Horizonte
Cerrado e com quem trocou abundante correspondência. Muitas cartas de Redol para Tavares Teles deixam
perceber a importância deste último como seu informador privilegiado, com quem discutia os romances
ou parte deles, antes de fixar a versão final255. De resto,
as estadas de Redol no Douro permitiram-lhe conviver com o povo das aldeias, observar fainas agrícolas
254 A Tarde, Porto, ano 1, n.º 45, 21.02.1945, p. 1 e 4.
255 PEREIRA, 2013a
217
(surribas, podas, cavas e vindimas, ceifas e malhadas,
etc.), ouvir os modos de falar locais, a que dava grande
importância, perceber as preocupações das pessoas,
colhendo materiais para os seus livros256. Neste ciclo
de romances, cujo enredo se situa, cronologicamente,
entre finais da Monarquia e os primeiros anos da República, Redol traçou, além disso, um notável painel
da história do Douro nesse período dramático que sucedeu à reconversão pós-filoxérica, marcado pela crise
comercial, por formas de concorrência desleal, com
imitações e falsificações, pela desvalorização do vinho
do Porto e pelas dificuldades de escoamento, que provocaram a pauperização das aldeias durienses e uma
forte agitação social, culminando no trágico motim
popular de Lamego de 20 de Julho de 1915. Nestes romances, Redol revela um profundo conhecimento histórico, situando com bastante rigor cronológico e factual, situações e acontecimentos regionais, nacionais
e europeus. Além das informações locais, Redol procedeu a uma intensa pesquisa de fontes documentais.
Alguma documentação que estudou foi-lhe fornecida
por amigos da região, mas completou-a, depois, nas
bibliotecas da capital, com leituras de jornais da época,
actas das sessões da Câmara dos Deputados e do Senado, memórias de políticos e diplomatas, etc.257
NOTAS FINAIS
C
onsiderando as fontes de informação de
que Alves Redol se serviu e a forma como
incorporou na narrativa literária elementos
da observação etnográfica e da análise histórica de documentação da época, não é difícil perceber a importância da sua obra para aprofundar o conhecimento
sobre o Douro, em diversos campos e sentidos. Antes
de mais, como procurámos salientar, oferece-nos um
quadro antropológico do Douro no pós-guerra, baseado na observação apurada da vida nas aldeias durienses, na faina fluvial dos barqueiros e nos trabalhos
da vinha, nos rituais e tradições, desde as «pulhas»
carnavalescas às canções de trabalho, como a «Maria
Cavaca» dos cavadores, mas também às preocupações
256 A este propósito, vale a pena ler o depoimento de TELES, 1975: 4957.
257 Como Alves Redol refere na coda do livro Vindima de Sangue: «Os
três volumes de que se compõe o ‘Ciclo Port-Wine’ abarcam os primeiros
quinze anos deste século, que se não pretendem historiar, embora o romancista se tenha documentado para o enquadramento das suas personagens
nos problemas da época». Também na correspondência para Francisco Tavares Teles se refere à leitura de memórias e documentos da época.
218
Gaspar Martins Pereira
e aspirações dos diversos grupos sociais da complexa
sociedade duriense. Por outro lado, tendo em conta
a interacção do discurso literário com as representações colectivas, a leitura atenta destes romances permite-nos perceber a importância e os significados
que as pessoas com quem Redol contactou no Douro atribuíam aos fenómenos que marcaram os movimentos populares do final da Monarquia e no início
da República e a sua integração nos movimentos regionais mais amplos. Finalmente, o contributo para o
conhecimento de diversas situações e acontecimentos
marcantes da história regional. Alguns deles, como o
motim de Lamego de 1915, apesar da sua importância,
foram, até há pouco tempo, praticamente ignorados
pela historiografia nacional, que lhes concedeu, quando muito, mesmo em obras de maior fôlego, algumas
linhas258, para não falar na deturpação dos acontecimentos259. É verdade que a historiografia mais recente sobre a região do Douro tem vindo a desenvolver
análises mais detalhadas e fundamentadas sobre este
período260. Mas não é menos verdade que só começou
a fazê-lo várias décadas depois da publicação dos romances de Alves Redol261.
Porto, Setembro de 2013
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
Obras de Alves Redol
REDOL, Alves [1946] — Porto Manso. 4.ª ed. Lisboa: Editorial Caminho, 1999.
REDOL, Alves [1949] — Horizonte Cerrado. 3.ª ed.
Lisboa: Publicações Europa-América, 1974
REDOL, Alves [1951] — Os Homens e as Sombras.
2.ª ed. Lisboa: Publicações Europa-América, s.d.
REDOL, Alves [1953] — Vindima de Sangue. 3.ª ed.
Lisboa: Publicações Europa-América, 1975.
Entrevistas a Alves Redol
Diálogo com Alves Redol. «Gazeta Musical e de Todas as Artes», n.º 118, Janeiro 1961, p. 174-177.
O humano romancista da Fanga, barqueiro entre
barqueiros, foi instalar-se em Porto-Manso, aquém-Baião, onde prepara um livro sobre a trágica vida dos
mareantes do Douro. «A Tarde». Porto, ano 1, n.º 45,
21.02.1945, p. 1 e 4.
Outras referências:
FALCÃO, Miguel (2005) — Espelho de ver por dentro – O percurso teatral de Alves Redol. Lisboa: Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa. Dissertação
de doutoramento em Estudos de Teatro.
258 Veja-se, por exemplo: PERES, 1954: 118-119; MARQUES, 1978: 159.
259 Por exemplo, na obra recente de António José Telo sobre a I República, pode ler-se a seguinte interpretação: «As vagas de assalto são sobretudo
um resultado da conjuntura de guerra e não podiam ser dela dissociadas.
A prova surge em Julho de 1915, quando o que tinha começado por ser
um movimento exclusivamente urbano se alarga às zonas rurais. Começam
nesse mês as “revoltas camponesas”, com as populações rurais a “invadirem” Lamego para assaltar armazéns e destruir tudo o que lhes cheirasse
a Estado que encontrassem pela frente, a começar na câmara municipal».
TELO, 2010: 328.
260 A propósito dos antecedentes e do contexto histórico em que se situam os romances de Alves Redol do «Ciclo Port Wine», veja-se SEQUEIRA, 2000; SEQUEIRA, 2003: 77-86; PEREIRA & SEQUEIRA, 2004: 59-77;
SEQUEIRA, 2011.
261 Já antes, Pina de Morais tinha centrado um dos seus textos no motim
de Lamego. No entanto, ao estilo de Pina de Morais, trata-se de um texto
breve, sem avançar para a contextualização ampla que Redol desenvolveria
nos seus romances. MORAIS, 1942.
FERREIRA, Ana Paula (1992) — Alves Redol e o
Neo-Realismo Português. Lisboa: Caminho.
GODINHO, José Magalhães (2001) — Alves Redol, Combatente pela Liberdade. In MARINHO, Maria
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de base. Lisboa: Iniciativas Editoriais,.
Entre a Etnografia e a História
MORAIS, Pina de — Sangue Plebeu. Porto: Marânus, 1942.
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Redol e o Douro. Correspondência para Francisco Tavares Teles. Porto: CITCEM/Edições Afrontamento/
Direcção Regional da Cultura do Norte. [no prelo]
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Sangue”: movimentações populares no Douro no final
da Monarquia e no início da República. Comunicação
ao Colóquio «Alves Redol e as Ciências Sociais – a literatura e o real, os processos e os agentes». Lisboa/Vila
Franca de Xira: FCSH/UNL e Museu do Neo-realismo, 7-10 de Novembro 2012. [no prelo]
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PEREIRA, José Pacheco 1999— Álvaro Cunhal.
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219
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VIÇOSO, Vítor (2011) — A Narrativa no Movimento Neo-Realista. As Vozes Sociais e os Universos da
Ficção. Lisboa: Edições Colibri.
220
Revoltas populares no Douro
Vinhateiro (Carrazeda de Ansiães e Lamego),
no final da Monarquia e início da República:
representações sociais e identidades
a partir da imprensa da época
texto: Maria Otilia Pereira Lage / Investigadora do CITCEM
e Professora Associada da Universidade Lusófona do Porto
Resumo:
Faz-se uma aproximação socio-histórica, com base
na imprensa local e nacional, aos movimentos sociais e
revoltas populares durienses verificados em Carrazeda
de Ansiães, Vila Flor, Sabrosa, Alijó, Régua e Lamego,
entre 1909-1910 e 1915, reflectindo-se, no contexto
da “Questão do Douro”, tonada questão nacional, e da
defesa da “marca regional” do vinho, sobre a emergência de representações sociais e identidades conjunturais/
contextuais, em situação de crise, cujas dinâmicas de
construção e afirmação específicas, se tentam qualificar, na perspectiva de análise sociológica dos levantamentos populares.
Abstract:
Makes it a socio-historical approach, based on the
local and national press, about social movements and
popular uprisings seen in Douro ( Carrazeda Ansiães,
Vila Flor, Sabrosa, Alijó Ruler and Lamego), between
1909-1910 and 1915, reflected whether in the context
of the “question of the Douro,” made a national issue,
and the defense of “regional brand” wine, on the emergence of social representations and identities situational / contextual, in crisis, whose dynamic construction
and affirmation specific if they attempt to qualify the
perspective of sociological analysis of popular uprisings.
Palavras-chave: Motins e revoltas populares; Região do Douro; século XX; Identidades e representações sociais
Key words: Riots and uprisings; Douro region; the
twentieth century; identities and social representations
222
Maria Otília Lage
INTRODUÇÃO
A
Região do Douro Vinhateiro é historicamente uma espácio - temporalidade altamente regulamentada e profundamente
normativizada, em especial desde que, com o Marquês
de Pombal, se tornou na primeira região vitivinícola
demarcada e cadastrada do mundo. Considera-se que
tal regulamentação, que desde então oscilou entre o
proteccionismo e o livre-cambismo, é factor de uma
latente e constante conflitualidade de interesses, melhor ou pior representados, mobilizando fortemente
em momentos de crise e ameaça de ruptura as populações locais, as quais, em diferentes conjunturas, assumiram formas extremas de manifestações sociais:
motins, tumultos, levantamentos, sublevações populares, comícios e outras formas de protesto que importa
estudar no seu conjunto, para melhor compreender o
seu significado histórico.
Nos finais da Monarquia e durante os primeiros
anos da Republica, milhares de trabalhadores e pequenos proprietários da Região Vinhateira do Douro
se manifestaram em revoltas e motins populares que
ocorreram, sucessiva e alternadamente, em diferentes
concelhos (Régua, Santa Marta, FozTua, Carrazeda de
Ansiães, Alijó, Vila Flor e Lamego), de 1910 a 1915,
tal como sucedeu noutras regiões vinhateiras da Europa de que é exemplo, o significativo movimento dos
vinhateiros franceses no Languedoc em 1907, com
desfecho trágico e grande amplitude, chegando a juntar cerca de 600.000 pessoas em Montpellier. (Gaspar
Martins Pereira e Carla Sequeira262).
No Douro, as contestações populares configuraram
um dos aspectos sociais e políticos mais relevantes da
designada “Questão do Douro”, cuja resolução institucional iria ser tentada, por legislação reguladora da
produção e comércio dos vinhos generosos e pela nova
demarcação franquista da região Duriense vinhateira
(1907-1908).
É neste processo social da história contemporânea
do Douro, profusamente informada pela imprensa,
mas historicamente pouco estudada, que se centra
agora o nosso interesse.
262 PEREIRA, Gaspar Martins, SEQUEIRA, Carla - Da Missão de Alijo
ao Motim de Lamego: crise e revolta no Douro Vinhateiro em inícios do século XX publicado em “Revista de História da Faculdade de Letras do Porto”,
Série III:vol.5, pág.59-77.
1. QUADRO TEÓRICO E METODOLÓGICO
DE ANÁLISE
D
esde a época moderna que a região Vinhateira do Douro tem sido um espaço de
forte tensão social e palco de recorrentes
manifestações populares. A sua análise, enquanto fenómenos isolados ou enquadrados noutras temáticas
tem merecido interesse esporádico dos historiadores
que os estudam, em regra, sob a perspectiva das suas
motivações, consequências e lideranças, em contextos
históricos mais latos, e não como fenómeno sócio-histórico autonomamente considerado, embora caracterizado por traços e características gerais próprias, no
quadro da Região Duriense, cuja história social, o seu
estudo reflexivo e crítico, em concreto, melhor ajudará
a iluminar.
Tenta-se então descrever e analisar com enfoque
em Lamego e Carrazeda e num enquadramento socio-histórico, as reivindicações e revoltas durienses dos
finais da Monarquia e primeiros anos da República,
período marcado por aguda crise comercial, superprodução e agitada conjuntura social em que tem lugar a nova demarcação franquista.
1.1. Lutas sociais e imprensa
Dada a importância e protagonismo dos órgãos de
comunicação social no contexto dos movimentos populares em observação, (Régua, Santa Marta de Penaguião, Armamar, Carrazeda, Alijó, Vila Flor e Lamego
com episódios idênticos noutros concelhos) num arco
temporal de 5 anos, a fonte principal — um manancial
inesgotável — há-de ser sempre a imprensa da época.
Tendo sido alvo de vasta cobertura da imprensa nacional, regional e local, estas manifestações podem ser
reconstituídas, recorrendo-se aos seus registos jornalísticos, embora seja delicada a tarefa do historiador,
já que “ a voz jornalística” sempre pretende conferir
objectividade a suas opiniões particularistas induzidas pelos interesses financeiros, políticos e contextos
sociais em que os jornais agem e tentam sobreviver,
sem se afastar muito do universo de seus leitores cuja
opinião pretendem formar.
Sabe-se que os meios de comunicação estão em
constante disputa pela sua sobrevivência que reside
nos seus públicos, cujas necessidades tentam conhecer
não para satisfazê-las mas para os não perder, móbil
Revoltas populares no Douro Vinhateiro
do carácter empresarial do jornalismo.263
Tal não inviabiliza porém o uso destas fontes, pois
se podem encontrar em suas páginas - “os rostos” da
multidão, editoriais sobre o assunto - , informações valiosas sobre as descrições dos acontecimentos, tentativas da explicação dos factos, mesmo que parcelares e
facciosas, conhecimento de como a cobertura foi feita,
de como chegou ao público leitor, quais as suas posições dominantes, como explicá-las e ainda poder descobrir, aspectos e características da composição social
dos revoltosos e lideranças.
É ainda de considerar a imprescindibilidade de
pesquisa e análise das notícias jornalísticas sobre as
revoltas sociais pela exiguidade ou até inexistência de
outras fontes directas sobre tais acontecimentos mais
ou menos “espontâneos e sigilosos”.
1.2. Para uma aproximação socio-histórica aos
levantamentos populares durienses
Impondo-se por outro lado, uma referência teórica consistente para o estudo socio-histórico destas
sublevações populares, recorremos à perspectiva dos
novos estudos sociais e históricos, estabelecida por I.
Wallerstein, sociólogo americano, director do Centro
Ferdinand Braudel, reportando-nos aqui, em especial,
a uma sua análise reflexiva actual dos mais recentes levantamentos populares em vários países do mundo264,
que caracteriza em 5 aspectos principais: 1 - contestação da legitimidade do estado, com uma tonalidade
de “esquerda” na arena política, pautada pela repressão
que age no curto prazo e/ou cedências; 2 - dificuldade
destes levantamentos em manter-se por muito tempo
em alto nível; 3 - protestos que deixam um legado, mudando sempre alguma coisa na política, para melhor;
4 - muitos, quase sempre “de direita” que se juntam
mais tarde a estes levantamentos, não fortalecem os
seus objectivos iniciais, antes os pervertem; 5 - todos
os levantamentos populares são envolvidos pela luta
geopolítica, o que exige perceber as suas consequências em termos de sistema mundo.
263 MARCONDES Filho citado por CHARLESTON José de Sousa Assis
- Grande imprensa e lutas sociais: os jornais e os populares na revolta popular carioca de 1987, pág.10, Disponível em www.encontro2010.rj.anpuh.
org/.../1276740123_ARQUIVO consultado em 2 /5/2013.
264 WALLERSTEIN, I. - Commentary No. 356, July 1, 2013. “Uprisings
Here, There, and Everywhere”. Disponível em http://www2.binghamton.
edu/fbc/commentaries/archive-2013/356en.htm, consultado em 3/9/2013
223
2. DESCRIÇÃO DE SUBLEVAÇÕES POPULARES NO DOURO E CONTEXTO HISTÓRICO
A
situação no Douro, no início do séc. XX,
caracteriza-se por uma profunda miséria
geral provocada por um vasto conjunto
de dificuldades inerentes em grande parte, aos múltiplos problemas de produção, escoamento e comercialização dos seus vinhos com especial destaque para
o Vinho do Porto, principal produto de exportação, e
respectiva legislação reguladora.
Nesse ambiente de crise generalizada e confrangedora desgraça, tornada questão nacional premente de
solidariedade, fraternidade e intervenção humanitária, designadamente em toda a imprensa, a “Miséria
do Douro” era denunciada, através dos males sociais
que atingiam a região, as suas populações e centenas
de trabalhadores e lavradores: fome, doença, morte,
promiscuidade primitiva dos casebres, emigração crescente, despovoamento, fisco implacável, velhos, mulheres e crianças à espera da caridade alheia, num quadro generalizado e pavoroso a que era urgente valer.
Caldeava-se assim um pano de fundo social gerador
de peditórios públicos e campanhas de solidariedade
através da imprensa e, em casos limite, revoltas e motins populares.
2.1.Tumultos em Carrazeda de Ansiães, Alijó,
Vila Flor… (1910-1912)
Por exemplo, no concelho de Carrazeda de Ansiães,
espaço significativo da RDD, o frio, a fome e as exíguas
condições de vida, por extrema falta de trabalho que
nem a cultura do tabaco então aí iniciada conseguiu
atalhar, chegaram a provocar vítimas mortais e explicam que recorrentemente se implore a caridade pública. Veja-se por exemplo, o que noticiava o “Primeiro
de Janeiro” em Fevereiro de 1909:
“Escrevem-nos de Carrazeda de Ansiães a propósito da miséria que lavra naquele concelho. É uma
senhora que se nos dirige. Começando por aplaudir a
nossa atitude e traçando depois o quadro de infortúnio que ali presencia dia a dia, jornaleiros e pequenos
lavradores não têm pão para comer. Os últimos ainda
têm algum vinho mas é quase o mesmo que não ter
nada, visto que oferecem 7$000 réis por cada pipa posta em Foz - Tua. Ora só carreto custa 2$500 réis… A
nossa leitora pede-nos que lembremos o seguinte (…)
- que se examine com mais atenção e justiça, a área
224
Maria Otília Lage
demarcada da região privilegiada do Douro, a fim de
serem atendidos os pobres daquela comarca.”
Continua a aflorar aqui, como na Representação às
Cortes dos Viticultores de Carrazeda, de 1907, a invocação de justiça e de um olhar atento para a Região
Demarcada do Douro.
Por sua vez, a Liga dos Lavradores do Douro representava ao Governo, em 4 de Fevereiro de 1909, sugerindo medidas e criticando as contradições da nova
legislação dita em favor do crédito de genuinidade dos
vinhos desta região e, advogando a causa dos operários pede-se “ao Estado que auxilie os operários com
obras nos caminhos que são ainda quase os mesmos
da época em que se iniciou o comércio dos vinhos do
Douro há quase 300 anos” 265
Pela mesma ocasião, em Fevereiro de 1909, “O Primeiro de Janeiro”, divulga uma grande foto de crianças
famintas nas ruas de Favaios, e publica carta de um
transmontano, com idênticas denúncias e o seguinte
alvitre conciliador:
“É sabido que há milhares de pipas de vinho sem
sequer ter pretendentes e que ainda não se fixou preço
a cada pipa, devido a não ter aberto preços a “Companhia Geral da Agricultura das Vinhas do Alto Douro”,
conhecida vulgarmente por “Companhia Velha” que é
a reguladora dos preços dos demais compradores….
Perante tamanha desgraça, sendo certo que a prosperidade da Companhia é devida à excelência dos vinhos
do Douro, haverá quem censure os seus directores por
pagarem os vinhos daquela região por preço que sem
prejudicar a Companhia, beneficie tanto infeliz?”
Esta fortíssima onda social de queixas aflitivas, denúncias de males “in extremis”, recorrentes representações dos viticultores e proprietários às Cortes, contra
as fraudes e visando influenciar as leis que o Governo preparava, acaba por explicar a súbita e sucessiva
emergência de motins e sublevações de milhares de
indivíduos e o alastramento da excitação popular, de
umas povoações a outras.
Em 1914, cresce ainda mais, no Douro, a agitação
social (imponentes comícios em Vila Real, Régua…)
reclamando do governo maior fiscalização e protecção
para os seus vinhos generosos e garantias de exportação do Vinho do Porto, cuja proveniência de origem
se defendia face às fraudes e concorrências protegidas
por leis, contestadas por não garantirem a marca ex265 “O Primeiro de Janeiro”, Fevereiro de 1909.
clusiva dos vinhos durienses, circunstâncias agravadas
pela escassez das colheitas de anos anteriores, falta de
trabalho e miséria dos trabalhadores.
2.2. O Motim de Lamego (1915)
Numa primeira fase, a designada “missão de Alijó”,
conferenciou com sindicatos, associações e várias câmaras da região, com reuniões na Câmara de Lamego,
gerando-se um forte movimento institucional visando
a alteração do artº 6 do Tratado de Comércio Luso-britânico (12 de Agosto de 1914) de forma a garantir
os direitos da região do Douro como único produtor
do Vinho do Porto para exportação. Numa segunda
fase (Jan. -Jun. de 1915), perante o impasse das negociações com o governo, a instabilidade governativa, visando afastar do poder os republicanos, a carestia e escassez de géneros intensificada pelo alastrar da Guerra
na Europa, assiste-se ao Motim de Lamego, expressão
máxima de enorme exaltação popular.
A 20 de Julho de 1915, o povo das aldeias de Cambres, Valdigem, Sande e Figueira, formando “uma
marcha da fome” de cerca de cinco mil pessoas, dirigiu-se à cidade de Lamego, manifestando-se em
frente ao edifício da Câmara. No momento em que a
comissão de representantes se encontrava a conferenciar com a Comissão executiva da Câmara de Lamego,
ocorreu a tragédia. De acordo com os relatos dos jornais (“ A Fraternidade”, Lamego, 24 de Julho de 1915,
p.1) tudo corria pacificamente, quando de repente, a
população foi atacada com bombas, caindo mortos ou
feridos vários manifestantes e debandando a maioria.
Com a população em fuga, mais nove pessoas seriam
atingidas, mortalmente pelas costas, por tiros disparados das janelas traseiras da câmara. 266. O balanço
trágico do “motim de Lamego” somou doze mortos e
vinte feridos.
As entidades oficiais, a começar pela Câmara Municipal de Lamego, procuraram atribuir as culpas aos
manifestantes, posição adoptada também por parte da
imprensa de Lamego, afecta ao Partido Democrático
267
. O povo era acusado de ter provocado as forças militares com desacatos. Por outro lado, conferindo um
carácter político aos acontecimentos, afirmava-se que
os manifestantes se deixaram aliciar por elementos
monárquicos que pretendiam derrubar a República.268
266 “A Defesa do Douro” Peso da Régua, 26 de Julho de 1125, p.3
267 “A Tribuna”, Lamego, 25 de Julho e 29 de Agosto de 1915, p.1
268 PEREIRA, Gaspar Martins, SEQUEIRA, Carla, ob. cit.
Revoltas populares no Douro Vinhateiro
A versão oficial dos factos, incluindo relatórios e
pareceres judiciais acusava o povo de Lamego, portador de armas brancas e de fogo, de provocar as forças
militares e os poderes instituídos e de premeditar a
repetição dos acontecimentos de Armamar e da Régua; pelo contrário, a percepção regional viu na acção
popular, um acto heróico em defesa dos interesses da
Região, considerando os mortos “mártires” da causa
que unira na luta as populações do Douro.
Em idêntico sentido, a imprensa269 lembra ainda,
recentemente, esses acontecimentos:
“(…) Há 90 anos, várias dezenas de explorados pelos grandes proprietários do Douro foram recebidos a
tiro por um destacamento militar, quando se dirigiam
à autarquia para reclamar melhores condições de vida.
Mesquita Montes, da Confraria dos Enófilos da Região
Demarcada do Douro, contou ao JN o significado da
evocação “Serve para lembrar aqueles que, numa altura em que o Douro vivia uma crise que parecia inultrapassada, apenas pediam pão e trabalho nas vinhas.
Mas as forças da ordem, por razões que não tem qualquer tipo de explicação, acabaram por metralhar gente
de chapéu”. (…)
Na sequência das revoltas vinhateiras do início do
século XX, em que o Douro enfrentou uma crise comercial aguda e o país vivia uma conjuntura económica depressiva,270 tem-se defendido271 a existência de
“uma empenhada intervenção das elites regionais” na
liderança dos movimentos populares e “um marcado
carácter regionalista” nos protestos durienses de 19141915, pela defesa da denominação de origem de Vinho
do Porto, para os vinhos produzidos no Douro.
269 Jornal de Noticias, 21/7/205.
270 Texto disponível em http://ler.letras.up.pt/uploads/ficheiros/9644.
pdf, consultado em 3 de Jan. de 2012. Ver da mesma autora o artigo Do
poder local ao poder regional: o movimento dos paladinos do Douro. Disponível em http://academia.edu/1368742/Do_poder_local_ao_poder_regional_o_movimento_dos_paladinos_do_Douro . Consultado em 10
Jan.2012.
271 SEQUEIRA, Carla - “Da ‘Missão de Alijo’ ao ‘Motim de Lamego’: repercussões do tratado luso-britânico de 1914 no sector do Vinho do Porto”.
Disponível em http://ler.letras.up.pt/uploads/ficheiros/2375.pdf, consultado em 3 Jan.2012
225
3. ANÁLISE DE JORNAIS - REPRESENTAÇÕES SOCIAIS E IDENTIDADES
O
anteriormente exposto, é ponto de partida
para a análise em concreto que, balizada
pelas noções de representações sociais272 e
identidades273, vamos agora fazer dos discursos transcritos de alguns jornais que noticiaram, em regra, denunciando, como violentas estas manifestações populares e reclamando forte repressão das forças da ordem
para se lhes pôr cobro.
3.1. Comentário analítico de algumas notícias
jornalísticas
As sublevações e motins ocorridos em Carrazeda,
Alijó, Sabrosa, Vila Flor, Santa Marta, Armamar, Régua e Lamego (1910-1915) eram assim noticiados na
imprensa:
Em Abril de 1910, decorridos 5 dias sobre os levantamentos populares de Carrazeda, “O Villarealense”,
Folha Regenadora274 que dá ainda noutro lugar, a noticia “alarmante” do assalto aos armazéns do Tua, inclui
na primeira e segunda páginas a seguinte noticia, com
base em informações telegráficas recebidas de Carrazeda, “Tumultos em Carrazeda de Anciães – a questão
duriense – assalto à repartição de Fazenda – documentos e mobília reduzidos a cinzas – situação alarmante”
(…)
“Depois dos acontecimentos do Tua recrudesceu a
indignação entre o povo de Carrazeda que queimando
a repartição de fazenda e arrombando as portas da recebedoria. (…)
Carrazeda de Anciães, 17, às 9h da manhã – Pela
uma hora da noite, mais de oitocentos homens armados com espingardas, cacetes e machados, entraram
272 Representações sociais, elementos simbólicos, sistema de interpretação da realidade, de composição polimorfa, são um conjunto de conceitos,
proposições e explicações com origem na vida quotidiana no desenrolar
das comunicações interpessoais (Moscovici,2003) isto é, “comportamentos em miniatura” (Leontiev,1978). São aqui tomadas como saber popular,
mitos, crenças, costumes, condensados de memórias e expressão de identidades múltiplas, convergentes e contraditórias que confluem num senso
comum e que são histórica e socialmente partilhadas.
273 Identidades sociais definidas num processo de identificação em que
os actores se integram num conjunto mais vasto de referência/pertença,
através do qual tendem a autonomizar-se e diferenciar-se socialmente, por
mecanismos de identificação a dois níveis: produção de identidades concorrentes – identidades locais e regional - que coexistem sem se anular; e
consolidação da identidade social, pelo acesso ao mercado gerando instabilidades e rebeliões.
274 5ªfeira, 21 de Abril de 1910
226
Maria Otília Lage
nesta vila e arrombaram as portas da casa onde está
a repartição de fazenda e recebedoria retirando de lá
tudo quanto existia para o meio da praça onde lhe pegaram o fogo, deitando-lhe algumas latas de petróleo
para ajudar. Alguma gente que tentou chegar às janelas
foi obrigada a retirar-se, ameaçada pelas espingardas e
pedras.
Às quatro horas, depois de estar a papelada e móveis queimados, retiraram-se, fazendo grande algazarra e dando tiros para o ar.
Carrazeda de anciães, 17 –
Consta que chega hoje aqui uma força de infantaria,
(…) Eram quatro horas quando tudo se retirou fazendo uma balbúrdia infernal.
As Novidades referindo-se a este procedimento
comentam da seguinte forma: a miséria do Douro é
grande mas não há miséria que justifique os factos
criminosos referidos nos telegramas de Carrazeda de
Anciães. (…) Aí de mistura com a miséria e a ruína há
evidente anarquia nos espíritos que ninguém já pode
modificar e cujos ímpetos somente podem ser contidos pela presença da força pública, à semelhança do
que se passa há mais de um ano em Sabrosa, onde a
tropa ocupa a repartição de fazenda e recebedoria.
Aqui deixamos de novo consignado o nosso protesto contra o vandalismo de incendiar repartições públicas, o que além de ser um gravíssimo crime, tira à
causa do Douro a simpatia que ela devia merecer aos
poderes públicos. (…)”
No dia seguinte é o “Jornal Nordeste”, semanário
regional de Bragança, especializado em comunicação
da informação dessa região, que cobre também assim
a matéria que qualifica como “estado de loucura a que
chegaram os povos daquela região”:
“Os arrombamentos da Estação do Tua – Na noite
de sexta para sábado da semana passada, uma grande
multidão… de perto de oitocentos homens dos concelhos limítrofes da estação de Foz-Tua, invadiram o
recinto dela, exigiram pela violência, do chefe da estação que lhes fosse abrir o cais fechado, e uma vez
ali retiraram e fizeram em estilhaços três cascos de vinho, que vinham do sul para os Cortiços do concelho
de Macedo de Cavaleiros. O acto daqueles indivíduos
constitui um crime grave e sem que haja atenuantes a
desculpá-lo porque os Cortiços ficam fora da região
do Douro, e aonde por isso, nos termos do regulamen-
to, podem dar entrada vinhos de fora desta região”.275
Outra notícia do mesmo dia e jornal dá também
conta do
“Incêndio da repartição de fazenda de Carrazeda
– Na madrugada de domingo, 17 do corrente (…) A
proximidade deste facto com o da estação do Tua, o
mesmo número aproximado de indivíduos, os vivas à
Pesqueira e a Alijó e principalmente a Presandães, um
lugarejo deste último concelho, fazem presumir que
daqueles concelhos sejam também os incendiários.
Partiram para Carrazeda contingentes de cavalaria
e infantaria e também o governador civil do distrito
para dirigir as investigações policiais.
Ficaram porém iludidos em seus projectos os incendiários…os magistrados procurarão reconhecê-los
através das máscaras, com que alguns cobriam os rostos; também na repartição de fazenda do distrito existe
a relação das dívidas relaxadas… e existem todas as
cadernetas para a reconstituição das matrizes…”276
Os “Motins no Douro” são ainda noticiados e comentados em 1910, por F. d’ Almeida e Brito em “A
Vinha Portuguesa”– publicação periódica da especialidade:
“Na madrugada do dia 16 deste mês [Abril] deram-se na Estação do Caminho de Ferro do Tua, no
Douro, graves tumultos que provam bem o estado de
excitação desta província.
Cerca de 2.000 pessoas, armadas dirigiram-se à
Estação do Tua, fizeram levantar o chefe da Estação,
obrigaram-no a abrir-lhes as portas dos armazéns e
verificando que aí se encontrava vinho, proveniente
do Sul, do Valado, arrombaram as pipas a machado e
rolaram outras para o rio.
(…) O vinho que se achava em trânsito dirigia-se
para o distrito de Bragança, Estação de Cortiços, linha
de Mirandela.
O decreto com força de lei, de 1 de Outubro de
1908, no seu artº 5º proíbe a entrada de vinhos de pasto, sem serem engarrafados, nas regiões de vinho licoroso, e de vinho de pasto, anexa, portanto, desde que
as autoridades e a Comissão da Régua não vigiam esta
determinação, os povos do Douro exercem por suas
mãos, e violentamente, essa fiscalização.
Mas o que o facto sucedido mostra é a tristíssima
situação em que o Douro se encontra. Sem vender as
275 “ O Nordeste”, 22.04.1910, p. 2
276 ibidem
Revoltas populares no Douro Vinhateiro
suas colheitas ou obtendo por elas preços miseráveis
os povos estão no último extremo. (… )
A lei do exclusivo da Barra do Douro, tão ardentemente solicitada, proclamada nos comícios como o
único salvatério! já não presta! (…)”277
Decorridos dois anos, motim idêntico ocorre em
Vila Flor, em 1912, sendo a propósito os acontecimentos de Carrazeda, fortemente criticados:
“Os incendiários de Vila Flor -… um magote de
dementados do concelho de Vila Flor veio, com o incêndio posto aos papéis da secretaria e tesouraria de
finanças daquele concelho, acrescer a má fama, que
os anais da justiça penal tem criado à gente do nosso distrito….E o crime foi premeditado e preparado
com muita antecedência, como se revela do facto de
ser praticado por indivíduos de diversas povoações e
todos os actos serem dirigidos a toque de apito por um
comandante. E nada se soube em Vila Flor! Mas o que
fazem os regedores por essas aldeias?...Quando dos
incêndios de Alijó e Carrazeda de Ansiães todos atribuíram o facto a questão política. Seria agora a mesma
causa? Mas nesse caso é um acto de rebelião, porque os
partidos republicanos não estão ainda organizados em
Vila Flor para tentarem um golpe daqueles, nem eles
por si o tentariam sem que tivesse repercussão noutros
concelhos (….) Se os incendiários de Carrazeda tivessem sido punidos…já agora não haveria tanta facilidade de se cometer o crime de Vila Flor… E não é só aos
incendiários de Vila Flor que é necessário fazer justiça:
é também aos de Alijó e de Carrazeda…e a República
não pode deixar ficar esquecidos os crimes cometidos
mesmo antes da sua proclamação…. Como suspeitos
estão já presos sete indivíduos e parece que alguns se
resolvem a falar.” 278
Esta vaga de rebeliões populares que uniam populações de vários concelhos contra os efeitos perniciosos das fraudes, concorrência desleal, desemprego
e miséria absoluta de trabalhadores, o fisco, autêntico
garrote dos pequenos lavradores, e outras circunstâncias adversas, como a não aplicação ou ausência de
fiscalização de novas leis e a inconsequência dos governos, repercutiu-se em 1915, de norte a sul do Douro não só em Lamego mas também na Régua, com
motins de centenas de pessoas, incêndios da Conser-
vatória do Registo Predial e das Finanças, para onde
foi deslocado um grande aparato de forças militares,279
como sempre aconteceu nas rebeliões durienses.
Observando as motivações, espaços, lideranças, resultados e significados destas sublevações populares
com manifestações violentas e violentamente reprimidas, verifica-se que: 1 - os factos referidos de natureza mais ou menos espontânea a que certa imprensa
atribui carácter de premeditação e motivos políticos,
ou uma situação de crise social generalizada, apresentam lideranças difusas e difusamente identificadas; 2ocorreram numa vasta e disseminada área da região
duriense; 3 - tendo-lhe sido atribuídas diversas causas
ou motivações - miséria generalizada; inconsequência
dos governos face à resolução dos graves problemas de
produção e comércio dos vinhos durienses, acusados
de favorecerem os vinhos e aguardentes do Sul contra
os do Norte; legislação regulamentadora de 1908 da
nova demarcação e exclusivo da Barra do Douro, sua
não aplicação efectiva, e deficiente fiscalização, dificuldades extremas de escoamento da produção, esta, por
sua vez, em crise profunda.
Quanto aos resultados e consequências, a generalidade da imprensa regista insistentes avisos ao governo para que tire dos tumultos as ilações necessárias e
tome providências enérgicas para proteger a Região
do Douro. As peças noticiosas que se lhe referem são
genericamente de denúncia acerva e crítica acérrima
dos actos tidos por criminosos e violentos, premeditados, em que o povo é induzido por forças e interesses
obscuros, a par da defesa insistente da repressão pelas
forças militares e judiciais, destes movimentos e seus
lideres, julgados e presos.
3.2. Representações sociais e identidades conjunturais emergentes
Prosseguindo a análise interpretativa desse movimento de sublevações, socorremo-nos das noções de
representações sociais e identidades conjunturais no
sentido de que a identidade é relacional e não essencial, como um processo em constante refiguração com
especial visibilidade em situações de crise, identidades
que (des)aparecem, em função de interesses conjunturais. (Clifford, 1998:10-11).
Numa observação de conjunto, verifica-se que são
recorrentes as seguintes representações sociais: indignação / onda de revolta / anarquia / vandalismo/ in-
277 Ano 25, Abril nº4 (1910), p.117-118.
278 “O Montanhês do Norte”, 10.11., 1912, p. 2
227
279 “A República”, 18 e 19 de Julho de 1915.
228
Maria Otília Lage
cendiários / dementados/ punir e fazer justiça/quem os
iludiu?/crime grave sem atenuantes / factos criminosos
que nem a grande miséria justifica/ aviso ao governo
/graves tumultos /estado de excitação desta província/
violentamente impedidos [chefes] de cumprir seus deveres/ reclamando-se a perseguição e repressão feroz dos
manifestantes.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
E
merge assim um processo de construção
identitária nas populações do Douro Vinhateiro, forjado em numerosas lutas da Região,
com as mesmas motivações mas diferentes níveis de
identificação e experiências enraizadas em problemas
locais/ internacionais, em que as relações com as instituições do poder são factor fundamental na estruturação e diferenciação de estratégias de uma unidade
possível, num contexto de diferenciação/identificação
em que os mais afastados das instituições do poder político se identificam, mais facilmente, com as pertenças
localistas/regionais, que afloram em contextos de crise. Foram, aliás, crises económicas da região duriense
que levaram à criação sucessiva das suas instituições
enquadradoras: Companhia Geral das Vinhas do Alto
Douro (1756), Comissão de Viticultura da Região
Duriense (1907) e Casa do Douro (1932), cuja acção
tem operado para homogeneizar uma identificação
regional.
Evidenciam-se factores comuns à Região, numa
base forte de identificação local/regional com problemas fiscais, dificuldades de trabalho e subsistência de
jornaleiros e pequenos proprietários, em tensão subterrânea com fortes interesses e influências económica, social e política de grandes proprietários, comerciantes e exportadores do Vinho do Porto, com mais
condições de liderança nacional/global.
Transpondo para o caso das revoltas populares
durienses nos inícios do séc. XX, a explicação sociológica de Wallerstein dos levantamentos populares actuais, podemos isolar, sem perigo de anacronismo, os
seguintes dispositivos analíticos tidos em conta, para
um melhor entendimento deste processo de rebeliões
populares:
a) Características gerais: tonalidades da arena
política e da arena social: grupos e interesses em confronto; movimentos de repressão e de concessões do
poder político; Objectivos dos levantamentos, evolução, aumento de escalada e legados idênticos.
b) Aspecto geopolítico, mais visível por exemplo
no Motim de Lamego em que entre outros motivos,
se contestavam disposições do tratado luso-britânico
que abriam formalmente os mercados ingleses a todos
os vinhos de Portugal, sem atender à especificidade da
região duriense, e seus efeitos nefastos na exportação
do Vinho do Porto e defesa da denominação de origem e marca.
Lembre-se por fim que à época deste movimento
de rebeliões, Portugal tomava parte activa na I Guerra
Mundial onde o que estava em causa como pano de
fundo socio-histórico era a passagem da hegemonia,
dentro do mesmo sistema mundo capitalista, da dominação inglesa para a americana.
Revoltas populares no Douro Vinhateiro
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Esclarecido e Intervenção Popular. Os motins do Porto
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Everywhere”. Disponível em http://www2.binghamton.edu/fbc/commentaries/archive-2013/356en.htm,
consultado em 3 Set. 2013.
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de 1915
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1912.
“ O Nordeste”, 22 de Abril de 1910
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comarca de Mogadouro, Dr. António Sérgio Carneiro,
publicado no semanário lamacense “A Tribuna”. Lamego: Tipografia de A Tribuna, 1916.
“A República”, 18 e 19 de Julho de 1915.
“A Tribuna”, Lamego, 25 de Julho e 29 de Agosto
de 1915
“O Villarealense”, Folha Regenadora, 5ª feira, 21
de Abril de 1910.
“A Vinha Portuguesa” Ano 25, Abril nº4 (1910),
p.117-118.
230
231
Painel 4
HISTÓRIA,
Património
e Acção
Local/Regional
Teresa Soeiro
Nelson Campos
Alexandra Cerveira Lima
232
Requiem
pelo património fluvial vernacular do Douro
texto: Teresa SOEIRO - UP/FLUP - CITCEM
([email protected])
Resumo:
Neste texto procuramos sumariar o património fluvial vernacular do Douro, material e imaterial, não só o perdido desde o início do séc. XX,
como aquele de que ainda restam testemunhos
físicos in situ e memória oral, fortemente ameaçados pelas transformações da sociedade e do território. Recordamos as actividades de transporte,
pesca e moagem, as respectivas infra-estruturas
edificadas, o equipamento, o saber e o quotidiano da gente do rio e dos que sazonal ou pontualmente desciam até esta artéria fundamental para
a região.
Destacamos o impacto negativo dos projectos de aproveitamento hidroeléctrico sobre o património vernacular vinculado às águas e a derradeira oportunidade que representam os afluentes
para o estudo e preservação de exemplares paradigmáticos.
Palavras-chave: rio Douro; património fluvial; tecnologia vernacular; imaginário do rio
Abstract:
Our aim in this paper is to give an overview of
the Douro’s fluvial cultural heritage, both tangible
and intangible. We cover what was gradually lost
since the beginning of the 20th century as well as
the physical evidence still remaining in situ and
recalled in oral memory, which is highly threatened by changes in society and territorial transformations. We review the transportation, fishing
and milling of grains activities, the related built
infrastructures, the equipment, the knowledge
and the daily life of the riverine areas inhabitants,
including the people who, seasonally or occasionally, would come down to this waterway/trade artery so vital for the region.
We emphasize the negative impact of the hydroelectric projects on the vernacular heritage
tied to the waters, and how the tributaries constitute a last chance for the preservation of prime
examples of this heritage.
Keywords: river Douro; fluvial culture heritage; vernacular technologies; river imaging.
234
Teresa Soeiro
1 - Paredão de pesqueira do rio Douro (S. João da Pesqueira. Fot. T Soeiro, 2003)
C
ompletou-se uma década sobre o trabalho de investigação e diagnóstico
do património fluvial do Douro que
realizei no âmbito da Estrutura de Projecto para
o Museu do Douro, missão liderada por Gaspar
Martins Pereira, entre 2001 e 2004. Pude então verificar quão pouco restava na área do Alto Douro
Vinhateiro das estruturas construídas e dos meios
técnicos afectos quer à navegação do rio e à pesca,
quer ao aproveitamento das suas águas como força motriz para a moagem de cereal.
No percurso de Mesão Frio/Resende à desembocadura do Sabor, apenas permanecia intacto o
paredão da margem sul de uma pesqueira frente a
Foz Tua, cuja preservação foi recomendada à Câmara Municipal de S. João da Pesqueira (Figura
1 e 2), sendo que, mesmo neste caso, a estrutura
complementar da margem norte (Carrazeda de
Ansiães) tinha sido desmontada para alargamento
do canal de navegação. Junto à Alegria (Linhares,
Carrazeda de Ansiães) afloravam também ruínas
de outra pesqueira. Nenhum conjunto moageiro
se montou nos últimos cinco decénios, os respec-
tivos açudes de suporte desapareceram, destruídos ou submersos. Em simultâneo com a desactivação e abandono deste edificado (permanente e
sazonal) perdeu-se a tecnologia associada.
Se a navegação de carga e passageiros que vi
ao longo do rio também em nada se assemelhava com a prática tradicional, já a pesca mostrou
maior resiliência. Embora sem pesqueiras, nasseiros ou caneiros, sem os migradores sáveis e lampreias (e o solho-rei) a subir para a desova, condicionada por metros de profundidade onde antes
se iam armar as artes a pé, continuou a ser praticada, obrigando o pescador a reaprender o rio e as
espécies, a utilizar novos aparelhos de rede e outro
modo de pescar. Os barcos eram ainda da família
rabela, construídos em ribadouro mas já difíceis
de manter ou substituir por outros idênticos, dada
a falta de carpinteiros de ribeira. Se claudicassem,
disseram, no seu lugar passariam a figurar embarcações de produção industrial.
Apesar deste cenário pouco promissor, talvez
por vício de arqueólogo, pareceu-me que se escavasse um pouco na memória da gente da beira do
Requiem pelo património fluvial vernacular do Douro
235
2 - Paredão de pesqueira com rede cabaceira Armada (rep. de Baldaque da Silva, 1892:205)
rio e nas arrecadações poderia encontrar pontos
de referência que por um lado materializassem
em peças musealizáveis, por exemplo, o equipamento piscatório (artes e aparelhos) que aprendera nas fontes documentais e bibliográficas terem
existido, e por outro revelassem o quotidiano ligado não só a essa prática de captura de importantes recursos alimentares, como à presença sazonal
das moagens, à utilização das barcas de passagem, à construção e reparação das embarcações
ou mesmo à participação na vida aventurosa de
arrais e marinheiro. Foi do cruzamento do saber
aprendido dos livros, documentos de arquivo e
imagens com o adquirido a ouvir os relatos, ver as
demonstrações e a manipular património móvel
que nos foi facultado (para ver, ser emprestado ou
integrar a colecção do MD) que surgiu o núcleo
da exposição Jardins Suspensos dedicado ao rio, e
o texto - Douro, um rio de vida - publicado no volume Viver e saber fazer (2003: 359-413).
Sumariei então artes e aparelhos, além de locais
onde ainda se encontravam pescadores a exercer
a faina, para a qual preservavam barcos de modelo rabelo. Pude recolher para o Museu redes já
obsoletas como a chumbeira, e armadilhas como
o côvo e a nassa de varas, por exemplo. O estudo
pormenorizado de caso não cabia no tempo de
realização daquele projecto, mas podia ainda ser
concretizado junto de pescadores isolados, com
memória familiar da profissão, e no remanescente dos aglomerados piscatórios (p.e.) de Godim e
Foz do Sabor.
Meio século de ausência tinha quase varrido
da memória a experiência da moagem de cereais
(OLIVEIRA et alii, 1983), com raríssimas excepções. Mas essa recordação pode (e deve) também
ser procurada junto da população que, vivendo
mais afastada do grande rio e habituada aos pequenos moinhos de ribeiro, percepcionou cada
descida estival às azenhas do Douro, feita na infância/juventude, como uma aventura singular,
marcante pelo esforço da caminhada e imponência da paisagem, assim nos narraram em Armamar.
Quanto à construção de barcos de modelo rabelo (de carga, travessia e pesca) tive oportunidade de confirmar que eram encomendados ou
adquiridos a mestres e carpinteiros de ribeira pertencentes a outra área do rio, para jusante de Mesão Frio. Foi também aí, a Lavadouros (Paços de
Gaiolo, Marco de Canaveses), que me desloquei
para solicitar a um destes antigos profissionais a
feitura de miniaturas que contemplassem as diferentes fases da construção do rabelo, exemplares
destinados à exposição e colecção MD.
Lamento que não tenha sido viável então realizar a investigação que suportaria o núcleo museológico dedicado ao rio, pensado para Barqueiros.
Esta foi uma comunidade excepcional, dependente da faina fluvial e implantada num local de transição para as características da navegabilidade,
que era também uma barreira onde o controle da
região demarcada, com toda a sua carga administrativa e policial, mais se fazia sentir.
Pelas informações transmitidas, coincidentes
com as colhidas em outras fontes de informação,
236
Teresa Soeiro
3 - Moinhos temporários do rio Tâmega (Amela, Penafiel/ Fasteilá, Marco de Canaveses. Foto Albano, 1964)
grande parte desta actividade tradicional do rio
terá esmorecido bastante desde a década de cinquenta, vindo a colapsar na seguinte, quando à
transformação socioeconómica do país a caminho da modernização se juntou o êxodo para a
Europa e a migração para os centros urbanos. No
rio, podemos dizer que o encerramento da barragem de Carrapatelo em 1971 (e as obras que o precederam) foi como que um novo Cachão, tornou
muito difícil a ligação fluvial entre as áreas produtoras e o mercado portuense. Ao mesmo tempo
submergiu as estruturas implantadas no leito e
margens do Douro até à Régua, onde em 1973 se
fecharia nova barragem, Bagaúste, que estendeu o
contínuo de albufeiras até ao Tua.
Como era prática comum na época, nenhum
registo sistemático do património cultural vernacular foi realizado nesta extensa área. Curiosamente, são dois documentários de objectivos
díspares que nos mostram realidades e reconstituições próximas do que seria a labuta ao longo
do percurso, que para o almirante Sarmento Rodrigues (RODRIGUES, 1972), um homem do regime, se estendeu de Barca de Alva até ao Porto.
Acompanhando esta Última descida do rio Douro
em barco rabelo (RTP - José Maria Tudela, 1971)
tomamos contacto com as artes de navegar e o tráfego, vemos a paisagem a partir do rio, passamos
pontes e cais, paredões de pesqueiras e pescadores empoleirados na penedia. Por fim ouvimos o
almirante justificar que as perdas e mudanças na
vida daquelas gentes ribeirinhas seriam amplamente compensadas pela riqueza energética gerada «para bem da nação». Numa perspectiva bastante
diferente, o realizador Adriano Nazareth, em Barcos
rabelos do Douro (RTP 1960) deixa-nos imagens
impressivas das dificuldades da navegação e do
quotidiano dos arrais e marinheiros na sua tare-
Requiem pelo património fluvial vernacular do Douro
237
4 - Derradeiro ano de montagem dos moinhos (Amela, Penafiel/ Fasteilá, Marco de Canaveses. Fot. Teresa Soeiro, 1986)
fa de transportar o vinho generoso desde a região
vinhateira até às caves de Gaia e à cidade do Porto. Não lhe faltam aspectos que hoje classificaríamos como património imaterial, desde questões
técnicas de carga, transporte e navegação à pobre
gastronomia e ao respeito pelo sagrado, especialmente marcado na quase mítica passagem pela
Senhora da Cardia.
O que podemos fazer para suprir esta lacuna
no registo? Certamente que pouco, mas mesmo
esse continua em espera, sendo de sublinhar a urgência de colher testemunhos directos desta faina
interrompida, porque os participantes, mesmo
que então crianças ou jovens, hoje terão idade
avançada. Algumas experiências na procura de
conhecidos construtores de embarcações já nos
mostraram a fragilidade destas testemunhas, que
de boa vontade marcam sessões de trabalho, mas
depois não as concretizam por impossibilidade física.
Outra perspectiva será espreitar as raríssimas
oportunidades em que as albufeiras têm de ser
esvaziada para nesse curto lapso temporal fazer
o levantamento do pouco que restar das estruturas construídas, a exemplo do trabalho realizado
em 1985 por Ricardo Teixeira relativamente à
Ponte dos Piares. A esta valeu-lhe o estatuto de
monumento medieval, o património vernacular
ficou mais uma vez esquecido pela tutela, como
sucederia também aquando do PROZED - Plano
Regional de Ordenamento do Território da Zona
Envolvente do Douro (1991).
Para montante da área central do Alto Douro
Vinhateiro há um curto tramo com especial interesse por o nível das águas não se ter elevado demasiado, entre a foz do Tua e o paredão da Valeira
(fechado em 1976). É aqui que, por exemplo, se
vislumbram as pesqueiras, como dissemos antes.
Além disso, o aglomerado de Foz Tua (Carrazeda
de Ansiães) continua a apresentar uma significativa ligação ao rio, não como porto de carregação
que foi, mas sobretudo no binómio pesca/gastronomia. Este aspecto é ainda mais forte na Foz do
Sabor (Torre de Moncorvo), onde bastava olhar
para o número de embarcações com aparelhos
238
Teresa Soeiro
5 - Moinho e engenho de linho no Museu de Penafiel (MMPNF/ Fot. Manuel Ribeiro)
para nos apercebermos da maior persistência desta comunidade piscatória, onde não faltam barcos
de pesca na linha do rabelo. O Sabor teve também
boas bateiras para travessia publica em locais convencionados (LADRA e PINHO, 2010-11) e deixava ver quase até à foz pequenos exemplares, de
estrutura simples e construção local, para uso privado dos lavradores com terrenos nas duas margens, que ali convivem com os modelos do grupo
rabelo.
Infelizmente, na albufeira da Valeira (1976)
como na obra mais tardia do Pocinho (1983)
nada se fez em prol do estudo do património
fluvial vernacular, atitude pouco desculpável.
Não se esperariam essas preocupações aquando
da construção dos aproveitamentos hidroeléc-
tricos portugueses no Douro Internacional, que
entraram em funcionamento entre 1958 e 1964.
Perscrutando imagens anteriores às obras, mais
uma vez encontramos na profundidade do vale
os açudes com as unidades moageiras sazonais e
os locais propícios para a passagem em barca, de
que a documentação nos fala. No entanto, mesmo para esta área de transformação mais antiga,
algumas tentativas de recuperação da memória se
mostraram relevantes, e tomamos como exemplo
a bem sucedida missão de Octávio Lixa Filgueiras na busca da jangada de botos (FILGUEIRAS,
1984), que em 1981 acabou por ver remontada e
a navegar.
Requiem pelo património fluvial vernacular do Douro
239
6 - Conjunto moageiro e engenho de maçar linho da Feitoria (Amarante. Fot. E. Biel)
A poente do Alto Douro, ou melhor para jusante da barragem de Carrapatelo, fica uma extensa área em que não havia aproveitamentos
moageiros apoiados em estrutura permanente.
Predominava a instalação de pesqueiras, nasseiros
e canais de pesca, que ganhava subida importância
(SOEIRO, 1998; 2001; 2008), o mesmo sucedendo
com a construção de rabelos. Daqui provinham os
mestres carpinteiros de ribeira, os arrais e muitos
dos marinheiros. Foi por isso alvo principal da investigação sobre as embarcações tradicionais do
Douro levada a cabo, por exemplo, por Armando de Matos (1940), François Beaudouin (1964)
e, com particular intensidade, por Octávio Lixa
Filgueiras (publ. 1955-93). A obra do primeiro
foi republicada em 2006, pela Associação de Amigos de Pereiros; relativamente à última, coordenei
para o Museu do Douro uma colectânea com todos os textos do autor referentes às embarcações
do rio, que devia ter sido apresentada em simultâ-
neo com a (re)edição em DVD do documentário
Arquitectura do Rabelo, produção da SinalVídeo
(1992), e a abertura ao público da exposição temporária intitulada Embarcações Tradicionais do
Douro: Homenagem a Octávio Lixa Filgueiras, integrada no projecto Rios Douro, de 2009-2010.
Esta mais do que merecida manifestação de dívida e gratidão do Douro a este especialista que
divulgou as embarcações rabelas e a região junto da comunidade científica mundial continua a
aguardar, enquanto os barcos rabelos desapareceram, incluindo um dos últimos exemplares de
grandes dimensões que teve o cuidado de fazer
recolher por instituição pública com obrigações
patrimoniais, pensando talvez que assim seria
preservado. Baldado esforço para nossa vergonha,
que o vemos desfazer-se sem remédio, enquanto
o rio se enche dessas formas estranhas que ainda viu despontar, com incómodo, chamando-lhes
pseudo-rabelos.
240
Teresa Soeiro
7 - Azenha e moinhos temporários da Feitoria (Amarante. Fot. T. Soeiro, 2008)
Sobram-nos uns quantos rabões com a sua carga de pipas vazias, permanentemente ancorados
ao cais de Gaia/Porto, que ganharam nova função
ao serviço da publicidade, e outros que no Alto
Douro ainda fazem pequenos circuitos de passeio.
Para a referida exposição, o Museu do Douro recuperou um rabão pertencente à Casa do Douro,
antes usado para publicidade frente à Régua, hoje
no espaço do museu.
Dos barcos de pesca remanescentes falámos
antes, das barcas de passagem fica-nos o exemplo
de Bitetos (Marco de Canaveses), outrora um importante ponto de cruzamento do rio, onde o barqueiro continua (2012) ao serviço dos transeuntes
com um espécime de linha rabela já gasto e mal
remendado, por não saber onde o levar para consertar.
Cabe aqui recordar o esforço de associações
em defesa deste património fluvial, nomeadamente a recolha feita desde a década de oitenta pela
Associação de Estudo e Defesa do Património
Histórico-Cultural de Castelo de Paiva, que nas
instalações do Parque das Tílias (Castelo de Paiva)
mantém o espaço visitável designado Sala do Barco Rabelo e do Arquitecto Filgueiras e, no exterior,
a sua embarcação rabela. O Museu Municipal de
Resende, aberto em 2006, expõe também artes de
pesca fluvial e referentes da navegação.
O valboeiro, muito usado de Entre-os-Rios
para jusante, será, pela sua dimensão, facilidade
de construção e versatilidade, o mais bem sucedido modelo desta família rabela e aquele que
continua a ser encomendado para utilização na
pesca e em deslocações, agora adaptado à utilização de motor. Melres e Avintes são os centros
onde se concentrou a actividade construtiva nas
últimas décadas do século XX. Mas, mesmo para
estas embarcações, o risco mantém-se, como verificamos ao vê-las desaparecer, por exemplo, de
Entre-os-Rios, o mais importante porto fluvial na
transição para o Baixo Douro. E não foi apenas
esta embarcação que deixou aquelas águas, há
quase meio século que os rabelos e rabões também o fizeram, e depois deles os barcos de pesca
Requiem pelo património fluvial vernacular do Douro
e passagem, que tinham encontrado refúgio no
Tâmega, até à conclusão, em 1988, da barragem
do Torrão (SOEIRO, 1987/88 e 2013). No Museu Municipal de Penafiel guardam-se dois destes
exemplares, uma barca de pesca/passagem e um
valboeiro com a respectiva vela.
A subida das águas devida ao encerramento
do aproveitamento hidroeléctrico de Crestuma
(1985) representa, por sua vez, o fim das pesqueiras do Baixo Douro destinadas à captura de sáveis e lampreias que subiam o rio para a desova.
Não só as estruturas construídas ficaram submersas ou foram destruídas, como as artes de pesca
e toda a vivência da ribeira se alterou definitivamente, pondo fim a um processo de abandono
que já se fazia sentir nas décadas anteriores, com
o desactivar das companhias que trabalhavam as
vargas, rede de arrastar para os grandes areios, e
mesmo dos alares, estacada com armadilha montada a cruzar o leito (SOEIRO, 1998; 2001; 2008).
Perdidos que estão esta prática e o saber com ela
construído - o conhecimento da morfologia do
rio, das correntes e marés, das espécies e suas características - não deixa de ser bizarro vermos os
municípios e agentes turísticos apoiar a gastronomia tradicional baseada naquele bem, que já não
é seu nem pela natureza nem pelo saber e mobilização dos habitantes locais para a faina. Ficou a
prática de, quando a lampreia é trazida de outras
águas, a manter viva durante algum tempo nestas, supostamente para que ganhe determinadas
características antes de ser cozinhada com o sabor
local, um património imaterial que tornou a região afamada.
Submerso que foi, em grande medida, o património fluvial vernacular do rio Douro - em
sentido literal pela subida das águas das albufeiras
e figurado pela obsolescência socio-económica estávamos confinados às hipóteses de estudo que
nos proporcionam os seus afluentes, nenhum deles, porém, replicando as características físicas e
de usufruição do grande rio.
Em um destes, o rio Tâmega, foi programado o
primeiro levantamento sistemático de estruturas
construídas de época moderna e contemporânea
a submergir por uma albufeira, executado entre
1984 e 1986, aquando da construção do aproveitamento hidroeléctrico do Torrão (Baixo Tâmega).
241
8 - Mecanismo e estruturas em degradação na azenha da Feitoria
(Amarante. Fot. T. Soeiro, 2008)
Na área era particularmente relevante a presença
de açudes (aqui dizia-se paredes) que atravessavam o rio, suporte para moagens de cereal, engenhos de macerar linho e também barreira para
abertura de boqueiros de pesca destinados às espécies migradoras.
Coube ao Instituto Português do Património
Cultural, através do Departamento de Etnologia dirigido por Henrique Coutinho Gouveia, a
iniciativa de promover o inventário, que contou
com o apoio logístico da EDP. O investigador no
campo foi Joaquim Roque Abrantes, autor do relatório publicado em 1985 com o título Património etnográfico afectado pela barragem do Torrão
(ABRANTES, 1985), responsável também pela
investigação de suporte ao documentário gravado
em vídeo, editado em 1989 pelo IPPC - Departamento de Etnologia.
Em simultâneo, a Câmara e Museu Municipal
de Penafiel completaram, com maior detalhe, o
242
Teresa Soeiro
9 - Canal ou caniço para a pesca no Tâmega (Amarante. Fot. T. Soeiro, 2008)
levantamento na área do município afectada, tendo sido por nós registadas em desenho e imagem
todas as estruturas existentes no rio, bem como o
património móvel que lhes era pertinente, tanto
moinhos amovíveis com todo o seu equipamento,
um engenho de linho que há algumas décadas não
era montado, como várias artes de pesca usadas
nas pesqueiras ou individualmente e as barcas de
passagem e pesca presentes.
A estes bens materiais, edificados e móveis, os
últimos oportunamente retirados para preservação no Museu Municipal, uma vez que no local
a mesma não era viável, juntámos informação
documental existente em arquivo, bibliografia e,
sobretudo, na memória oral recolhida junto das
pessoas que utilizaram estes recursos, fossem proprietários, responsáveis pela exploração e clientes, ou simplesmente vizinhos, lembrados da sua
existência. A sucessão de imagens (Figura 3 a 5)
da Parede da Amela (Boelhe-Penafiel)/Fasteilá
(Vila Boa do Bispo-Marco de Canaveses) ilustra
bem este processo de desinteresse pela actividade económica, neste caso a moageira: estava em
pleno funcionamento quando foi fixada por um
fotógrafo local (Fot. Albano) em 1964; já quase
desactivada no verão de 1985 em que percorremos o rio, com apenas um moinho a funcionar
e outro montado para obter a compensação; submersa e recuperados, em contexto museológico
(2009), exemplares de moinhos e um engenho de
linho, após os primeiros terem sido danificados
na cheia de 1986, quando já fora programada a
sua remoção devido ao fecho da barragem e subida das águas. No relatório Penafiel: o Tâmega de
ontem (SOEIRO, 1987/88) ficaram compilados os
resultados obtidos.
Esta oportunidade de retirar bens com interesse patrimonial que iriam ficar abaixo da cota
prevista para a albufeira seria, perante a insistência de Penafiel, oferecida pela EDP aos três muni-
Requiem pelo património fluvial vernacular do Douro
243
10 - Caniço de pesca do Tâmega (rep. de PINHO, 1995-08: 454)
cípios afectados, sendo que o primeiro, além da
diversificada informação, integra hoje na colecção
do Museu diversas peças com esta proveniência.
Infelizmente, apenas o município de Amarante
tinha então, e ainda mantém, a possibilidade de
preservar no rio significativos exemplares que
documentam as vivências deste original afluente
do Douro, que por não ser navegável facilitou a
implantação de dezenas de açudes-barragem para
suportar moagens e um sem número de pesqueiras e pesqueirões, particularmente importantes
nas áreas a jusante, onde chegavam em maior
quantidade as espécies migradoras que o subiam
para a desova.
A controvérsia então gerada pela elevada cota
das águas pretendida pela EDP e o seu pernicioso
efeito na cidade de Amarante bloqueou o diálogo e quase condenou o conjunto da Feitoria, onde
uma azenha pétrea instalada na margem convivia
com moinhos temporários montados com materiais perecíveis e um engenho de maçar linho,
um caso exemplar a que urge atender (Figura 6 a
8). A jusante da cidade, junto ao periférico bairro
da Torre e no ribeiro de S. Lázaro estão, na margem direita, as azenhas dos Morleiros, umas permanentes e outras de uso temporário, relíquia da
actividade moageira que envolvia toda a comunidade, estando muitas casas construídas sobre o
ribeiro ou as levadas para que a água tocasse durante grande parte do ano os moinhos de rodízio
que possuíam nos pisos baixos. Quando escasseava, recorria-se às azenhas do Tâmega que, pelo
contrário, eram insustentáveis durante os meses
de inverno devido ao caudal, testemunho de uma
complementaridade bem conhecida e imperativa
em todo o vale do Douro.
Agora que o património fluvial edificado do
Tâmega está também ameaçado para montante de
Amarante (a partir de Fridão), esperam-se novos
estudos de impacte resultantes da planeada construção das sucessivas barragens. Exemplos raros
de técnicas de pesca (Figura 9 e 10), como a documentada pelo canal ou caniço da Quinta das
Chouzas (Fridão), ficam em questão e precisam
que a sua preservação seja equacionada, visto estarmos perante casos remanescentes, se não únicos, de edificado e tecnologia que durante séculos,
pelo menos desde os centrais da Idade Média, serviram os habitantes da região do Douro (PINHO,
1905-08; SOEIRO, 2009: 271).
Outras formas de pesca, como a tão disputada colocação de alares (SOEIRO, 1987/88:124 e
244
Teresa Soeiro
2013:103) ou o uso da chumbeira, são inviáveis no
Baixo Tâmega. Raríssimas barcas da família rabela, que serviram as passagens e a pesca, seguem
no rio, no tramo final, mas é mais uma vez Amarante que tem condições favoráveis à manutenção
de embarcações de modelos originais, bem documentadas por Lixa Filgueiras (p.e. 1963), neste
caso guigas e gamelas que poderiam bem ser usufruídas para fins recreativos no parque ribeirinho
da cidade, embora saibamos que pelos construtores e exploradores deste filão é dada preferência
à construção em metal, mais rápida, duradoura e
segura, em detrimento do uso da madeira.
Outros afluentes do Douro têm merecido a
atenção e o cuidado de associações de defesa
especificamente dedicadas, bem como estudos
monográficos, sirvam de exemplo o rio Bestança (VENTURA, 1999), ou o Paiva (OLIVEIRA e
outros 1999). No extremo oposto do Douro português, o projecto transfronteiriço Arquitecturas
da Água investiga e procura preservar a memória
das moagens dos rios Côa e Águeda, bem como
do troço internacional do Douro, registando património moageiro construído e o imaterial ligado a esta actividade, sob a forma de publicação
e documentário - Mó - realização solicitada pela
Direcção Regional da Cultura do Norte (PINTO e
RODRIGUES 2013).
Mas foram mais uma vez os polémicos aproveitamentos hidroeléctricos dos grandes afluentes
do Douro que obrigaram a realizar levantamentos
sistemáticos, agora também atentos ao património
vernacular. Assim se fez no vale do Côa, tarefa de
início (1992-94) a cargo de uma pequena equipa
liderada por Nelson Rebanda. Interrompida que
foi a construção da barragem, terá ficado aberta a
via da preservação em condições protegidas pela
classificação do Vale e instalação do Parque.
De novo se lançaram as equipas para o terreno no Sabor (2009), sob a coordenação de Paulo
Dórdio, mas com recursos antes impensáveis, ao
abrigo das medidas de minimização dos impactos
negativos da construção. Segue-se a área da albufeira do Tua. Fazemos votos para que, parecendo
inevitável tamanha destruição do património vernacular, no mínimo dele fique bom registo para
memória futura.
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246
PROJECTO ARQUEOLÓGICO DA
REGIÃO DE MONCORVO,
1983-2013
BREVE BALANÇO DE CERCA DE 30 ANOS
DE ACTIVIDADE
texto: Nelson Campos - Direção do PARM e Investigador do CITCEM
Um primeiro balanço da actividade do PARM foi realizado pelo
signatário e pelo então presidente da direcção desta entidade, Dr.
Eduardo Carvalho, no 1º Encontro de Arqueologia Trasmontana,
realizado em Mirandela em 18-19/03/2005. O presente texto partiu
dessa apresentação, que não chegou a ser publicada.
Resumo:
Partindo de um programa de trabalho elaborado
em 1983 por um grupo de então estudantes de
Arqueologia, que se viriam a constituir em associação
em final de 1986, o autor faz um balanço da
investigação arqueológica, preservação do património,
acção formativa e intervenção cívica na região de
Moncorvo, sul do distrito de Bragança. É destacado o
papel da associação na recuperação e gestão do Museu
do Ferro, desde 1995. São referidas as dificuldades e
obstáculos passados e actuais. A bibliografia inclui
trabalhos realizados, impressos ou ainda inéditos.
Palavras-chave:
Associativismo, Arqueologia, Património,
Moncorvo
Abstract:
On the basis of a Work Programme drawn up
in 1983 by a group of then archaeology students,
which would later constitute as an association in late
1986, the author makes a review of archaeological
research, heritage preservation, formative actions and
civic intervention in the region of Moncorvo, in the
Southern District of Bragança. Is highlighted the role
of the Association in the recovery and management
of the Iron Museum since 1995. Making reference to
the past and current difficulties as well obstacles. The
bibliography includes research undertaken, published
or still unpublished.
Keywords:
Associations, Archaeology, Heritage, Moncorvo
248
Nelson Campos
INTRODUÇÃO – o que é o PARM?
O
PARM é uma associação de estudo,
defesa e divulgação do património
arqueológico, histórico e etnográfico,
com iguais preocupações relativamente ao meio
natural envolvente, centrada na “região” de
Moncorvo, definida como o concelho de Torre de
Moncorvo e concelhos limítrofes.
A associação teve por base um grupo de
então estudantes do curso de História-Variante
de Arqueologia, da Faculdade de Letras do
Porto280, que em 1983 deram seguimento a um
primeiro levantamento arqueológico do concelho
de Torre de Moncorvo, iniciado pelo signatário
(1981), com objectivo de se concretizar uma
Carta Arqueológica do concelho o mais completa
possível.
1 – emblema do PARM. Berrão das Cabanas de Baixo, achado
em 1895 (desenho do Prof. Santos Júnior)
Este trabalho não pretendia ser apenas um
mero registo arqueológico, pois tinha por trás um
programa científico, resultante de uma série de
debates internos, que culminou na publicação de
um texto intitulado precisamente “Introdução a
um programa de investigação regional – Projecto
Arqueológico da Região de Moncorvo”281, o
qual passou a valer como uma linha de rumo
orientadora do grupo de trabalho que então se
reunia regularmente no Porto e, temporariamente,
em Torre de Moncorvo.
Partindo de uma crítica do modus faciendi da
arqueologia à época, assente num paradigma de
especialização segundo períodos cronológicos, o
grupo do PARM procurava centrar a sua acção no
“território”, tal como defendiam as correntes mais
vanguardistas da Arqueologia, nomeadamente
da “New Archaeology”. Procurava-se assim
intervir na realidade “região”, não só ao nível
do conhecimento da sua evolução e construção,
mas também como agente de preservação e
transformação cultural, na linha do que então
já apontava Cláudio Torres e sua equipa, em
Mértola. Deste modo, entendia-se que os três
pólos da actividade do grupo deveriam ser:
«1) a nível científico, a proposta e resolução de um
problema do passado da região – o conhecimento
das sucessivas “paisagens” no seu processo evolutivo
até aos nossos dias;
2) a criação de um espaço de aprendizagem
onde os elementos do grupo [pudessem] aperfeiçoar
os seus conhecimentos e métodos de trabalho;
3) intervir culturalmente no sentido da
valorização da região e das suas populações e no
sentido do reconhecimento da função social do
arqueólogo»282
E, nesse texto fundador, acrescentava-se ainda:
«Ao desviar a atenção do arqueólogo de um ponto
único – a estação arqueológica – de modo a fixálo sobre a região, estamos a enriquecer a nossa
perspectiva de encarar os problemas acerca das
populações do passado e, ao mesmo tempo, a
possibilitar uma intervenção cultural ao nível
dessa região»283.
Nesse sentido, logo após um primeiro trabalho
de identificação, cartografia e registo dos sítios
arqueológicos do concelho de Torre de Moncorvo,
foram tentadas cartas de síntese para cada um
dos principais momentos da ocupação humana
do território, sendo o produto desse trabalho
dado a conhecer através de uma Exposição sobre
a Arqueologia e História da região, realizada no
Mercado Municipal de Torre de Moncorvo em
1986, a qual voltou a ser reeditada numa versão
mais abreviada, em 1987, aquando de uma visita do
então Presidente da República Dr. Mário Soares.
Nessa exposição se propunha uma retrospectiva
280 Fizeram parte desse grupo os seguintes elementos: Alexandra Pinto,
António Leal, Carlos Ferreira, Joaquim Henriques, Jorge Almeida, Maria
João Coelho, Miguel Rodrigues, Nelson Rebanda, Paulo Amaral, Paulo
Dórdio e Ricardo Teixeira.
282 PARM, 1985: 144
281 283 Idem, ibidem.
PARM, 1985.
Projecto Arqueológico na Região de Moncorvo
da história regional, através de textos, fotografias,
mapas de síntese e diversos vestígios da chamada
“cultura material” (fragmentos cerâmicos,
moedas, mós manuárias, estelas funerárias
romanas, um pequeno sarcófago de granito, etc.).
Esta mostra fez-se tendo em conta a
preocupação já referida de dar conhecer junto das
pessoas locais o produto do trabalho do grupo
de jovens investigadores, recém-licenciados. O
acolhimento por parte do público foi bastante
receptivo, o que encorajou o referido grupo a
constituir-se em associação (sem fins lucrativos),
podendo assim aglutinar muitas das pessoas que
se haviam manifestado mais interessadas nas
questões de arqueologia e património. A escritura
notarial foi feita em 21 de Novembro de 1986,
tendo sido publicada no Diário da República, em
7 Janeiro de 1987.
Desde então para cá, a associação manteve-se,
de modo ininterrupto, apesar de altos e baixos na
sua actividade resultantes de condicionalismos
diversos, como seja o rumo pessoal e profissional
de cada um dos elementos do grupo fundador,
tornando-se cada vez mais numa associação de
defesa do património.
Prosseguindo os seus desígnios no que à missão
social diz respeito, a associação assumiu a herança
de um pequeno núcleo museológico dedicado ao
Ferro, o antigo museu da empresa Ferrominas
criado precisamente em 1983, quando o PARM
se encontrava no seu início. O encerramento da
empresa em 1986, e o relativo estado de abandono
deste pequeno museu, levou à sua transferência
para a sede do concelho, em 1995, por protocolo
entre a Câmara de Torre de Moncorvo e a Empresa
de Desenvolvimento Mineiro, entregando depois
o município a gestão do museu ao PARM, através
de outro protocolo entre estas duas entidades.
Passemos agora a um breve balanço da
actividade do grupo, depois associação, e do seu
contributo para a Arqueologia da região Sul do
distrito de Bragança (e não só).
249
1 - A VERTENTE CIENTÍFICA
D
ecorrendo paralelamente aos trabalhos
de realização da Carta Arqueológica
do concelho de Torre de Moncorvo,
tendo em vista uma leitura totalizante do
território, fizeram-se também “incursões” nos
concelhos vizinhos de Vila Flor e Freixo de
Espada à Cinta, onde, através de elementos do
PARM, se identificaram o importantíssimo sítio
pré-histórico do Cabeço da Mina (Assares) e as
pinturas rupestres de Fraga do Gato (Poiares)284.
Outros trabalhos, essenciais a essa compreensão
sincrónico-diacrónica do território foram levados
a efeito: levantamento toponímico do Vale da
Vilariça e resto do concelho de Moncorvo; um
trabalho de cariz mais etnográfico sobre as Quintas
e Quinteiros da região de Moncorvo/Freixo
de Espada à Cinta; inventariação arquivística,
com transcrição de alguns dos pergaminhos do
Arquivo Municipal, etc.
Após o primeiro balanço que constituiu a
referida Exposição de Arqueologia de 1986, tendose constatado uma problemática bastante rica no
que à época medieval dizia respeito, ilustrada por
sítios tão emblemáticos como a “mítica” Santa
Cruz da Vilariça, o local da torre roqueira do
Baldoeiro com as ruínas da igreja de S. Mamede
(descobertas no âmbito de prospecções), várias
necrópoles de sepulturas escavadas na rocha,
igreja tardo-românica de Adeganha, restos dos
castelos de Torre de Moncorvo e de Mós, além
de abundante documentação medieval para a
Baixa Idade Média (parte dela hoje felizmente
resguardada no Arquivo Histórico Municipal),
o núcleo de investigadores do PARM decidiu
abrir uma via de pesquisa sobre esta época,
apresentando ao Conselho Consultivo do então
IPPC, um projecto de investigação intitulado: “A
região de Moncorvo na Idade Média”, o qual foi
aprovado em 1986285.
284 As primeiras estelas calcolíticas do Cabeço da Mina, Assares,
achadas pela família Ochoa Pimentel Gonçalves, proprietários do terreno,
foram dadas a conhecer a inicialmente a Mª. João Coelho, N. Rebanda e M.
Rodrigues em Dezº.1983, que depois as revelaram à comunidade científica.
Quanto às pinturas rupestres da Fraga do Gato, foram comunicadas a N.
Rebanda e F. Ochoa Morgado em 1985, que inicialmente as apresentaram
no 1º Congresso sobre o Rio Douro, V. N. Gaia, Maio de 1986 – cf.
REBANDA 2008.
285 LIMA et al., 1989.
250
Nelson Campos
2 – Grupo de elementos do PARM, junto das pinturas rupestres da Fraga do Gato, Poiares, Freixo de Espada à Cinta, 1986
Foi já no âmbito deste programa de investigação
na época medieval, que se fizeram várias campanhas
de escavações no sítio do Baldoeiro (entre 1987 e
1991), Santa Cruz da Vilariça, também conhecida
por Vila Velha ou Derruída (entre 1989 e 1991),
Castelo de Torre de Moncorvo (entre 1988 e 1989),
trabalhos que foram sendo publicados em revistas
especializadas (revista Arqueologia, do GEAP,
Trabalhos de Antropologia e Etnologia, Actas das
Jornadas de Cerâmica Medieval e Pós-medieval de
Tondela, etc.)286 Ainda ao abrigo deste projecto,
fizeram-se prospecções geofísicas no sítio romano
de Vila Maior (vale da Vilariça), onde se viria a
localizar posteriormente uma inscrição dedicada
a Júpiter, que permitiu identificar esse local como
sendo um “vicus”287. Ainda no mesmo local,
por elementos do PARM, foi descoberta uma
importante estela antropomórfica do período
Calcolítico288, que, juntamente com o núcleo
de estelas congéneres do Cabeço da Mina (Vila
Flor)289, Quinta do Couquinho e o chamado
“ídolo de Moncorvo”, indiciam um relevante foco
de povoamento do IIIº milénio a.C. centrado no
vale da Vilariça, culturalmente com afinidades ao
mundo mediterrânico, até aí desconhecido.
286 288 Descoberta por Ricardo Teixeira e Paulo Dordio Gomes, actualmente
exposta no Museu do Ferro & da Região de Moncorvo – vd. CUSTÓDIO
& CAMPOS 2002: 161-162.
Vd. Bibliografia no final do texto.
287 Esta ara foi identificada primeiramente por N. Rebanda em 1994,
que a registou e deu a conhecer a outros investigadores nesse mesmo ano
(F. S. Lemos) e anos seguintes (A. Coelho e A. Redentor).
Entretanto, continuou-se a actualização da
Carta Arqueológica do concelho, cujo Relatório
e respectivo ficheiro foram cedidos à Câmara
Municipal de Torre de Moncorvo para inclusão no
PDM em 1993. No seguimento desse trabalho foi o
PARM solicitado para acompanhamento de obras
particulares na vila de Torre de Moncorvo, tendose efectuado um levantamento do casco urbano
medieval, incluído no Plano de Salvaguarda do
Centro Histórico. Escavações de emergência em
289 Ver nota 6.
Projecto Arqueológico na Região de Moncorvo
251
3 – Escavações arqueológicas na vila deserta de Santa Cruz da Vilariça, 1990
alguns pontos da vila de Moncorvo, conduzidas
pelo signatário, se bem que no quadro do IPPAR,
contaram também com o apoio do PARM
(Largos Balbino Rego, 1996, e General Claudino,
1997, solar da Biblioteca, 1999, Praça Francisco
Meireles, 2002, casa nº 15 da R. dos Sapateiros,
2005), além de outros trabalhos (p. ex. prospecção
no traçado de acesso de Moncorvo ao IP-2, 19982001) e monitorização de sítios arqueológicos,
constatando ameaças ou destruições.
No que à etnografia diz respeito, fizeramse alguns trabalhos de recolha e estudo,
nomeadamente sobre o centro oleiro do Larinho
e Felgar, documentado desde o séc. XVII,
contextualizados no âmbito de outros centros
oleiros do distrito de Bragança e zona fronteiriça
de Espanha290.
290 RODRIGUES & REBANDA, 1995b), RODRIGUES & REBANDA,
1996.
No tocante ao património edificado e artístico,
além do registo de capelas, solares e fontenários,
foi realizado um estudo sobre a igreja matriz de
Torre de Moncorvo, monumento nacional do séc.
XVI, de que resultou uma monografia de autoria
de dois elementos do PARM291. Posteriormente,
um destes investigadores, Eugénio Cavalheiro,
também presidente da mesa da Assembleia-Geral
da associação, publicaria mais dois trabalhos
da maior importância sobre outros relevantes
monumentos concelhios: a capela de Senhora da
Teixeira (Açoreira) com as suas famosas pinturas
a fresco292 e igreja tardo-românica de Adeganha293.
Em 2002 foi estudada e publicada a colecção
temática do ferro herdada do núcleo museológico
da Ferrominas e ora patente no Museu do Ferro294.
291 CAVALHEIRO & REBANDA, 1998.
292 CAVALHEIRO, 2000.
293 CAVALHEIRO, 2011.
294 CUSTÓDIO & REBANDA, 2002.
252
Nelson Campos
2 – ESPAÇO DE APRENDIZAGEM
E
nquanto espaço de aprendizagem,
é de referir que os investigadores
constituintes do núcleo inicial do PARM
deram aqui os primeiros passos das suas carreiras
profissionais no âmbito do património cultural e
arqueologia. O trabalho de campo, sobretudo no
tocante à prospecção sistemática, funcionou como
verdadeira escola de aprendizagem, culminando
na detecção de vestígios arqueológicos de
primeira grandeza, como foi o caso das gravuras
rupestres do vale do Côa. A participação nos
trabalhos de campo e contacto com a associação,
decerto contribuiu para a opção de alguns jovens
colaboradores do PARM pelas áreas da Geologia,
Arqueologia e História.
Entre 1997 e 1999 o PARM, em colaboração
com o IEFP e apoio do município, organizou
um curso CPC (Conservação do Património
Cultural), frequentado por oito jovens formandos,
alguns dos quais vieram a trabalhar em museus da
4 – Sessão do curso CPC, durante uma visita de dirigentes do IEFP, 1998
região (Freixo de Numão e Museu do Ferro) e no
Posto de Turismo de Torre de Moncorvo.
Mas, quando se fala em aprendizagem, não
nos podemos cingir apenas às orientações
profissionais. Foram muitas dezenas os jovens
de Torre de Moncorvo (e não só) que ao longo
dos anos passaram pelas escavações do PARM,
através dos programas ocupacionais apoiados
pelo Instituto da Juventude (OTL, OTJ, IJOVip).
Para esses jovens, alguns dos quais mantêm
ligação à associação, embora tenham seguido
outros rumos, foi uma oportunidade que tiveram
de contactar com a arqueologia, de conhecer
melhor o património da sua terra e, a partir daí,
desenvolverem uma atitude pró-activa e uma
sensibilidade perante estas questões que, de
outro modo, talvez não tivessem. Além disso, a
experiência associativa e o voluntariado foram,
para alguns, um campo de formação cívica, no
sentido de uma melhor cidadania.
Projecto Arqueológico na Região de Moncorvo
3 – INTERVENÇÃO CULTURAL NA COMUNIDADE – O PROJECTO “MUSEU” E
OUTROS TRABALHOS
E
m relação ao resto da comunidade para
além do círculo dos mais interessados,
percorreu-se um caminho árduo e difícil,
desde o tempo em que ainda se questionava a
utilidade das “pedras, dos cacos e do ferro velho”
até se ter a percepção da importância “destas
coisas” enquanto elemento identificador das
pessoas locais e interessando também a “gente de
fora”. Para este efeito, sempre entendemos como
essencial a existência de um espaço de reunião
da informação recolhida e (re)produzida, que
funcionasse como espelho da comunidade, onde
as pessoas se pudessem rever. Como tal, desde
o início que se entendeu que o Museu deveria
ser o corolário lógico de toda a actividade do
PARM: museu enquanto local de recolha, mas
também estabelecimento educativo e célula de
sensibilização para as questões do património.
Numa nota do “texto fundador” referido
inicialmente, dizia-se: «A abertura em Dezembro
de 1983 do Museu do Ferro, é algo de novo no
panorama cultural local, mas ele não resolve,
pelo seu âmbito muito específico [a temática do
Ferro], a necessidade de um Museu Regional de
Moncorvo»295.
Devemos dizer que o desejo de um museu
local era uma ideia antiga, à época com quase um
século. Com efeito, foi em 1895 que o Abade José
Augusto Tavares, pioneiro da arqueologia do Sul
do distrito de Bragança, defendera um Museu
Municipal de Moncorvo, no que foi apoiado pelo
seu amigo José Leite de Vasconcelos296, fundador
do actual Museu Nacional de Arqueologia. Por
falta de vontade política dos poderes públicos
locais esta ideia não foi avante. Logo de seguida
surgiu o Museu Municipal de Bragança (1896),
mais tarde absorvido pelo Museu Regional, depois
chamado do “Abade de Baçal”, ficando Moncorvo
à espera, indefinidamente. Isto levou a que muitas
peças arqueológicas importantes saíssem do
concelho, como foi o caso das já mencionadas
estelas calcolíticas do Couquinho e “ídolo de
Moncorvo”, a ara que refere a “cividade” dos
295 PARM, 1985: 148.
296 VASCONCELLOS, 1895.
253
Banienses, os berrões das Cabanas de Baixo (um
dos quais adoptado como emblema do PARM297),
entre outras peças.
O encerramento das minas de ferro de
Moncorvo, em 1986, e a liquidação da empresa
“Ferrominas” em 1992, provocando a letargia
do pequeno Museu do Ferro, inicialmente
localizado no bairro mineiro do Carvalhal,
levaram a negociações entre o Município de Torre
de Moncorvo e a nova empresa concessionária
das minas, a EDM, no sentido de se transferir
o núcleo museológico do Ferro para a sede do
concelho. A essa decisão não foi alheia a chamada
de atenção, por parte do PARM, sobre o estado
de abandono em que se encontrava o Museu do
Ferro da Ferrominas, desde os finais dos anos 80.
Assim, após a promessa da cedência do
espólio desse Museu à Câmara Municipal, pela
EDM, veio a estabelecer-se um protocolo entre
a Autarquia e o PARM, no sentido de se criar,
na sede do concelho, um museu que reunisse as
duas vertentes: a Arqueologia & História, por um
lado, e o núcleo do Ferro, por outro. Esse primeiro
protocolo foi firmado em 27.11.1993. Com base
neste documento, fez-se a inventariação de todo
o espólio e, tendo-se assente a escolha do edifício
do antigo quartel da GNR (um solar do séc. XVII
entretanto devoluto), para sede do novo Museu,
foi o mesmo aqui instalado em 20.02.1995.
As deficientes condições das novas instalações,
apesar de algumas obras de conservação nos
inícios dos anos 90, levaram a associação do
PARM a recorrer a fundos comunitários para
recuperação do edificado, bem como para uma
melhoria da exposição permanente dedicada ao
Ferro. As obras ficaram concluídas em 2000 e a
instalação museológica ocorreu em 2002, ainda
sem a componente de Arqueologia e História por
não ter chegado a dotação financeira.
297 Este corresponde ao javali das Cabanas de Baixo (freg. de Cabeça
Boa) o melhor conservado do conjunto, guardado no Museu Nacional
de Arqueologia (Lisboa) sob o nº. E-5249. Além da importância da peça,
os responsáveis do PARM fizeram questão de usar um desenho do Prof.
Santos Júnior (1901-1990) incluído na sua obra Berrões proto-históricos
do Nordeste de Portugal (1975), também como forma de homenagear
este distinto investigador, com fortes ligações a Torre de Moncorvo. A
autorização foi solicitada, e concedida, por escrito, em 1987.
254
Nelson Campos
5 – Fachada principal do Museu do Ferro & da Região de Moncorvo, após as obras de 2000
A concretização do Museu tem sido, assim,
desde 1993 e, de modo mais efectivo desde
1995, a grande obra da associação do PARM.
Paralelamente realizou-se o 1º. Colóquio sobre
Mineração e Metalurgia do Ferro, em 1996 e
editaram-se algumas publicações, nomeadamente
o Catálogo do Museu, dedicado à parte do Ferro298.
A aposta na formação de pessoal qualificado
para museus e postos de turismo da região, levou
o PARM a organizar um curso de Conservação do
Património Cultural (CPC), em colaboração com
o Centro de Emprego/IEFP, como se referiu no
ponto 2.
No campo da animação cultural, o PARM,
no âmbito do Museu do Ferro & da Região de
Moncorvo e desde 1995 desenvolveu muitas
dezenas de actividades, designadamente
exposições de fotografia, pintura, artes decorativas,
sobre personalidades, arqueologia, etnografia,
além de palestras e outros eventos (passeios
culturais, jornadas de campo, participação no
programa Ciência Viva – Geologia, Arqueologia
298 REBANDA et al., 1996, CUSTÓDIO & CAMPOS, 2002.
e Ambiente), envolvendo a população local e
visitantes externos.
Além de trabalhos de maior envergadura,
como a revisão do Inventário Arqueológico do
concelho de Torre de Moncorvo para integração
no novo PDM299 e o Inventário de Arte Sacra
da igreja matriz de Moncorvo300, digamos que
a actividade do PARM, nos últimos anos, se
confunde um pouco com a do Museu do Ferro &
da Região de Moncorvo. Isto deve-se sobretudo
à necessidade de concentração no objectivo
principal protocolado com a autarquia que é a
gestão da estrutura museológica. Por outro lado,
os afazeres profissionais dos membros mais
activos da associação deixam pouca margem de
tempo para os demais objectivos estatutariamente
previstos.
299 PARM 2008a)
300 Este levantamento foi iniciado nos anos 90, com apoio do IPJ e
posteriormente no âmbito do curso CPC, sob orientação da Drª. Maria
João Moita. Foi revisto e ampliado em 2008 pelo signatário e Dr. Rui
Leonardo, tendo em vista a selecção de peças para o Museu de Arte Sacra
a instalar na Misericórdia, mediante protocolo entre o município, Diocese
de Bragança e Miranda e DRCN – Cf. PARM 2008b).
Projecto Arqueológico na Região de Moncorvo
255
6 – Visita guiada à igreja românica de Adeganha, organizada pelo PARM.
Goradas as expectativas de criação de um
gabinete de arqueologia no âmbito municipal301
que pudesse integrar quem melhor conhecia
a realidade do terreno, tentou-se (sem êxito)
que a autarquia criasse um quadro de pessoal
do museu com uma direcção efectiva, nem que
isso implicasse a sua municipalização integral,
conferindo-lhe assim uma base mais profissional
e estável para a prossecução das funções
museológicas, a saber: recolha, inventário, estudo
e publicação de materiais em reserva, assim como
recuperação e valorização de sítios arqueológicos,
com vista à criação de rotas específicas, tais como
uma Rota do Património Medieval (integrando
o Castelo de Torre de Moncorvo > Vila Velha >
301 Durante algum tempo (início dos anos 90) o PARM integrou uma
comissão de Arte e Arqueologia municipal, sendo chamado a dar pareceres
e a intervir em algumas situações de obras particulares. Posteriormente
foi constituído um gabinete de Património (sem a componente de
Arqueologia), integrado na estrutura municipal, sendo o PARM arredado
dos processos.
Baldoeiro > igreja de Adeganha) ou uma Rota do
Ferro (escoriais > Felgueiras > forja do Felgar >
bairro mineiro > galerias do Cabeço da Mua >
Minas da Carvalhosa > Vale de Ferreiros). Assim
se daria corpo (e alma) à tal leitura das diversas
“paisagens” que se formaram no passado e que
estruturaram a “região” até à realidade presente,
conforme referido no “documento fundador”.
Todavia, o máximo que se conseguiu foi a
requisição temporária do signatário (entre 2006
e 2010), alguns estágios e contratos a prazo com
jovens licenciados, em que boa parte do trabalho
realizado incidiu na organização de eventos
temporários, de maior interesse e visibilidade
para a autarquia302, além dos trabalhos de revisão
do inventário arqueológico e inventário de arte
sacra da igreja matriz, atrás referidos.
302 Segundo o protocolo entre o município e o PARM para a gestão do
Museu, é disponibilizada uma verba mensal para pagamento ao pessoal
(funcionários da associação), funcionamento e eventos.
256
Nelson Campos
DIFICULDADES E CONSTRANGIMENTOS
S
obre as dificuldades e constrangimentos
verificados ao longo destes 30 anos muito
haveria a dizer, embora alguns sejam
idênticos aos de outras organizações do chamado
Terceiro Sector, mormente associações sem fins
lucrativos.
Em termos gerais, a linha de rumo definida à
partida, de independência e autonomia face ao
poder político não ajudou, sobretudo tratando-se
de uma entidade que por vezes tinha de intervir
civicamente em prol do património (cultural e
natural), de que resultaram conflitos indutores de
uma certa marginalização da entidade e dos seus
dirigentes303.
Entre os problemas mais correntes, noutros
tempos, situaram-se os financeiros e logísticos,
com várias mudanças de sede304 e consequente
transferência de mobiliário, equipamentos e espólio
resultante de prospecções e escavações para vários
depósitos (alguns sem condições), obrigando a
bastante trabalho de encaixotamento, transporte,
estiva, e reorganização, o principal do qual ocorreu
antes e depois das obras no edifício do museu.
Hoje em dia, resolvidos alguns desses aspectos,
o problema principal reside na falta de novos
colaboradores empenhados, o que decorre da
desertificação humana e inerente ausência de
massa crítica. O decréscimo populacional, as
transformações sociais e maior diversidade da
oferta em termos de lazer (novas tecnologias,
desporto, música, etc.) não favorecem a adesão
dos jovens a causas ou interesses patrimoniais ou
ambientais, assim como as saídas profissionais
limitadíssimas neste campo também não
aconselham opções futuras pelas ciências que
303 Referimo-nos a posições críticas da associação face a demolições (ou
tentativas de) de edifícios antigos no Centro Histórico da vila de Moncorvo
– p. ex. actual Biblioteca Municipal e Casa Leopoldo Henriques.
304 Logo após a constituição a associação foi desalojada de uma sede
provisória que tinha no mercado municipal, ficando cerca de um ano
à espera de se conseguir uma nova sede, na que viria a ser a Casa das
Associações, obtida em acção concertada com outras associações. Aí viria
o PARM a inspirar e a integrar também um projecto de Rádio Local (198889), que está na base da estação emissora ainda hoje existente. Depois de
muitas vicissitudes e mudanças de sede, só em 25.04.2013 passámos a
dispor de um espaço mais definitivo, através de contrato de comodato com
o município por período de 20 anos, no r/c da Casa Leopoldo Henriques,
na rua Tomás Ribeiro, em Torre de Moncorvo.
estudam o passado humano.
Conclui-se também que uma cada vez
maior exigência (e incerteza) profissional dos
colaboradores seniores, para além da vida
familiar, deixa cada vez menos tempo livre para
a “carolice” e para o voluntariado ou participação
em actividades, sobretudo quando os membros
mais activos estão condenados a trabalhar fora da
região.
Vemos assim com séria apreensão o futuro
associativo, até pelo seu carácter temático bastante
especializado. A menos que se transforme numa
estrutura profissionalizante, de tipo empresarial, o
que induziria a alteração do pacto social. Todavia
essa solução também não se afigura a melhor num
cenário de crise sem fim à vista e tendo como
pano de fundo um neoliberalismo que preconiza
uma autossustentabilidade irrealizável no campo
da Cultura. Para mais numa região deprimida
do interior em que a progressiva desertificação
humana é facto sem retorno.
Talvez o PARM represente o fim de um tempo,
que foi o do voluntarismo, do chamado “amor à
camisola”; mas também o tempo dos “antiquários”
e dos “amadores”, no sentido “de aqueles que
amam” as “antiguidades”, se bem que com outras
preocupações científicas e uma visão aggiornata.
Quiçá o tempo de uma maior autenticidade na luta
em prol do património, face a novos profissionais
da arte que trabalham, sem rebuço, a soldo de
grandes obras públicas e privadas305. Talvez o
tempo do fim da inocência...
Mas, em jeito de conclusão, uma coisa nos
parece certa (se bem que estejamos a ser juiz
em causa própria): o contributo directo (e
indirecto), do PARM para a Arqueologia e para o
Património regional e até nacional, parece-nos ser
incontornável. Pelo que, apesar das vicissitudes,
terá valido a pena esta aventura.
305 Para não causar mais problemas com o poder local, a associação
decidiu, em assembleia geral realizada em 28.02.2004, não se pronunciar
oficialmente sobre uma grande barragem em construção no concelho, e
que se sabia que iria afectar um imenso património natural, arqueológico
e etnológico. Todavia não participou de modo algum nesse crime de lesapatrimónio, demarcando-se do processo.
Projecto Arqueológico na Região de Moncorvo
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Medieval e Pós-Medieval – Métodos e Resultados para
o seu Estudo» (Tondela, 28 a 31 de Outubro de 1992).
(Actas). Câmara Municipal de Tondela, Porto, 1995,
p. 51-66.
258
Nelson Campos
RODRIGUES, Miguel; REBANDA, N. (1995b)
- Centros oleiros do distrito de Bragança - olarias de
Felgar e Larinho. «1.as Jornadas de Cerâmica Medieval
e Pós-Medieval – Métodos e Resultados para o seu
Estudo» (Tondela, 28 a 31 de Outubro de 1992).
(Actas). Porto: Câmara Municipal de Tondela, 1995,
p. 207-220 (editado posteriormente em separata pelo
Museu do Ferro e da Região de Moncorvo, 1996, 16 p.)
RODRIGUES, Miguel; REBANDA, Nelson (1996)
- Produções de olaria na Terra de Miranda e o seu
enquadramento regional. «I Encontro de Etnografia
Trasmontana e Alto-Duriense» (Vila Real, Maio
de 1995). «Tellus», nº 25, Junho de 1996, Vila Real:
Câmara Municipal de Vila Real, p. 25-38.
VASCONCELLOS, José Leite de (1895) – Museu
archeológico em Moncorvo. «O Archeólogo Portuguez»,
tomo 1, nº 1. Lisboa: Museu Etnographico Portuguez,
p. 175-176.
259
260
Arquivo de Memória
2010-2013
Entre o Coa, o Águeda e o Douro Internacional
texto: Alexandra Cerveira Lima
ACOA — Associação de Amigos do Parque e Museu do Coa
([email protected])
Resumo:
O Arquivo de Memória promove encontros entre
gerações, regista testemunhos, digitaliza e conserva
pequenos arquivos familiares. Recorrendo às novas
tecnologias e a partir das recolhas de informação e
documentação realizadas, o projeto contribui para a
dinamização do conhecimento e da investigação, estimulando os laços intergeracionais e a ligação da comunidade ao património. São objetivos:
- Melhorar a qualidade de vida dos idosos, particularmente dos idosos integrados nos lares
- Dinamizar relações intergeracionais em torno da
construção da História Regional
- Promover a utilização de novas tecnologias
- Promover a investigação
- Promover a aproximação das comunidades
ao património
Abstract:
The project Arquivo de Memória promotes
communication between young and old people,
makes records of life stories, scans and preserves small
family archives. Using new technologies and from the
collections of information and documentation, the
project contributes to the promotion of knowledge and
research, encouraging intergenerational ties within the
community and a greater attachment to its heritage.
Goals:
-Improve the life quality of seniors, particularly of the ones integrated at nursing homes
-Promote intergenerational relationships
around the joint construction of Regional History
-Promote the training and the use of new technologies
-Promote research
-Promote community approach to cultural and
natural heritage
2010/2011 - projeto-piloto, Vila Nova de Foz Côa
2011/2012 - Parque Natural do Douro Internacional (no concelho de Figueira de Castelo Rodrigo) e aldeia de Serranillo (Ciudad Rodrigo).
2013 - Alargamento ao Vale do Coa e Douro Superior (apoio PROVERE do COA).
2010/2011 - The pilot project took place at Vila
Nova de Foz Coa.
In 2011/2012, it was extended to the International
Douro Natural Park, in the county of Figueira de Castelo Rodrigo, and to the village of Serranillo (Ciudad
Rodrigo).
2013 - extension to the Coa Valley and the Upper
Douro region.
Palavras-chave: Arquivo de Memória; Intergeracional; História
Key-words: Memory File; Intergenerational; History
262
Alexandra Cerveira Lima
N
o painel História, Património e ação local/
regional, optámos por apresentar o projeto Arquivo de Memória que tem vindo a
ser desenvolvido pela ACOA – Associação de Amigos
do Parque e Museu do Coa, através do Clube UNESCO Entre Gerações.
O projeto iniciou-se em 2010 com o apoio da Fundação Calouste Gulbenkian. Da memória descritiva
que integrou a candidatura apresentada ao PROVERE
do COA, entretanto publicada306 retiraremos descrição
do projeto piloto que decorreu em Vila Nova de Foz
Coa ao longo do ano letivo de 2010/2011.
1. O Projeto-piloto307
Foi candidatado o projeto Arquivo de Memória do
Vale do Côa ao programa Entre Gerações, no âmbito
do Programa Gulbenkian de Desenvolvimento Humano308, cujo principal propósito era «promover a coesão
social e diminuir o isolamento dos idosos, através do
estreitamento das relações entre os diferentes grupos
etários». Concorrendo com mais de 300 projetos, a candidatura realizada em nome da ACÔA foi aprovada.
1.1. Ficha Técnica do projeto-piloto
Duração do pro- Dezembro 2010 – Dezembro 2011
jeto
Montante atribuí- 30,000.00€
do
Equipa do projeto Ideia original: Alexandra Cerveira Lima
Coordenação geral: Alexandra Cerveira Lima e Mafalda Nicolau de Almeida
Coordenação executiva: Bárbara Carvalho
Antropologia: Inês Melhorado
Atividades, divulgação e novas tecnologias: Maria Sottomayor
Disseminação do projeto em F. C. Rodrigo: Ondina Monteiro/ Alexandra Cerveira Lima
Logótipo do projeto
306 LIMA et al., 2013: 9-18.
307 CARVALHO & SOTTOMAYOR, 2011: 57-68.
308 FCG (2009) — Entre Gerações, «PG Desenvolvimento Humano».
Disponível em <http://www.gulbenkian.pt/section154artId2196langId1.
html>. [Consulta realizada em 15/10/2013].
Arquivo e Memória
Parceiros
por temáticas
Sinopse
Jovens e idosos:
- Santa Casa da Misericórdia – Lar N.ª Sra. da Veiga
- Escola Secundária de Vila Nova de Foz Coa
Logística e articulação com a comunidade:
- Câmara Municipal de Vila Nova de Foz Coa
- Junta de Freguesia de Vila Nova de Foz Coa
Património cultural:
- Parque e Museu do Coa
- Comissão Nacional da UNESCO
Gestão da informação e documental:
- Arquivo Nacional da Torre do Tombo
- Sistemas de Futuro
- ACDR de Freixo de Numão
Disseminação do projeto:
- ICNB (DGACN/Parque Natural do Douro Internacional)
- Lares e Centros de Dia de Figueira de C. Rodrigo
- Junta de Castela e Leão, Fundação Duques de Sória e Associação Civitas
Através da articulação entre escolas, lares e centros de dia, o Arquivo de Memória promove encontros
entre jovens e idosos, regista histórias de vida, digitaliza e conserva pequenos arquivos familiares. Recorrendo às novas tecnologias e a partir das recolhas realizadas, cria-se um arquivo que deverá contribuir para a dinamização do conhecimento e investigação na região, criando laços entre a comunidade.
Esquema de ação:
1.2. Ações realizadas e resultados
Idosos
263
64 idosos envolvidos
21 visitas dos alunos ao Lar N.ª Sr.ª da Veiga
51 entrevistas
221 documentos cedidos para acondicionamento
8 atividades intergeracionais complementares
264
Alexandra Cerveira Lima
Esquema: Mafalda Nicolau de Almeida
Jovens
Aulas inseridas na disciplina de Área de Projeto
Frequência: semanal
12º ano - 3 alunos - 79h30m
7º ano - 21 alunos - 46h30m
Total ano lectivo: 126h
1º Período – Formação: recolha de histórias de vida; vídeo e som; fotografia; acondicionamento de
arquivos familiares; design e comunicação
Total de horas de formação : 21 horas
2º Período – Recolhas: realização de entrevistas junto dos idosos
Total 12º ano: 10
Total 7º ano: 9
Acondicionamento de espólios familiares
Total 12º e 7º anos: 79 documentos
3º Período – manipulação de dados
7º ano – animações e elaboração de um «livro do passado»
12º ano – realização de uma exposição no Centro Cultural em V.N.de Foz Coa
Arquivo e Memória
Ações
complementares
Envolvimento
comunidade
-
-
-
-
-
-
-
-
265
Visita intergeracional ao Museu do Coa
Participação na exposição da Feira do Livro de Vila Nova de Foz Coa
Participação no desfile alegórico da amendoeira em flor
Plantação de árvores no Museu do Côa
Tarde de jogos tradicionais no Orgal
Workshop de desenho com a artista Maria Lino
Visita à capela de Nª Sr.ª da Veiga e lanche
Atividades intergeracionais semanais no lar: jogos e navegação na internet
da Sessão de apresentação pública do projeto
Prémio “Associação do Ano 2011” atribuído à ACOA pela Associação Juvenil Gustavo Filipe
Recolha e acondicionamento de arquivos familiares
37 entrevistados realizadas
Total de recolhas
19 entrevistas realizadas pelos jovens
32 entrevistas realizadas pela equipa técnica
Total: 51 entrevistas
79 documentos acondicionados pelos jovens
142 documentos acondicionados pela equipa técnica
Total: 221 entrevistas
Divulgação
Imprensa: 2 artigos no site «Café Portugal», 4 artigos «Jornal Fozcoense», 2 artigos «Jornal da Guarda»,
1 artigo na «Sic Notícias» on-line, 2 artigos na Revista «Visão» e «Visão Júnior», 1 artigo na Revista
«Coavisão»
Facebook - 1410 amigos
Blog - 42 entradas
Disseminação
Figueira de Castelo Rodrigo
§ Parceria com ICNB/DGACN/Parque Natural do Douro Internacional: Agosto a Outubro
2011
§ Estágio curricular de Maria Ondina Monteiro. Orientação de Alexandra Cerveira Lima em
articulação com a restante equipa do projeto
§ Realização de 53 inquéritos em 4 lares
Castela e Leão
§ No âmbito da classificação de Siega Verde como Património Mundial enquanto extensão do
Vale do Côa é desenvolvida uma parceria entre a ACÔA/CLUBE UNESCO e a Fundación
Duques de Soria, em articulação com a Asociación Cultural Cívitas de Ciudad Rodrigo, entre
Outubro a Dezembro 2011 (com continuidade em 2012).
§ Contemplou: ação junto dos lares, recolha (inquéritos) e atividades intergeracionais articulando idosos e jovens.
Clube UNESCO
Assinatura de protocolo entre a Comissão Nacional da UNESCO e a ACOA para a criação do Clube
UNESCO Entre Gerações - 28 de Maio 2011
266
Alexandra Cerveira Lima
1 - Aluno do 7º ano de escolaridade da Escola Tenente Coronel Adão Carrapatoso entrevista Adelaide G. no Lar Nª Sra da Veiga, em
Vila Nova de Foz Coa, durante o projeto piloto (2010/11).
1.4. Objectivos alcançados
§ Combate ao isolamento e solidão — melhoria
da qualidade de vida dos idosos integrados em lares e
centros de dia.
§ Dinamização de relações intergeracionais entre jovens e idosos com base no património cultural.
§ Formação dos jovens no âmbito das novas tecnologias para a realização de recolhas do património
imaterial e História oral e sensibilizando-os para as
questões relacionadas com a intergeracionalidade, o
envelhecimento e o abandono social.
§ Criação das bases de uma recolha documental, um Arquivo de Memória (realização de entrevistas,
inventariação e acondicionamento de documentos).
§ Envolvimento da comunidade no desenvolvimento do projeto.
§ Criação do Clube UNESCO Entre Gerações.
Com o apoio da Fundação Calouste Gulbenkian
foi testado um projeto intergeracional centrado num
problema — o isolamento dos idosos nos lares e centros de dia e o distanciamento relativamente aos mais
jovens — e numa oportunidade — o potencial de memória que os idosos guardam. O projeto foi muito
bem acolhido pelos intervenientes e instituições parceiras e a sua avaliação, por parte da Fundação Calouste Gulbenkian309, foi positiva. Neste contexto o Clube
309 A Fundação Calouste Gulbenkian, para avaliar o desempenho dos
projetos que apoiou no âmbito deste programa, realizou uma parceria com
Arquivo e Memória
267
2 - Formação vídeo dos alunos do 7º ano (com Tiago Pereira em Vila Nova de Foz Coa)
UNESCO tomou o nome do programa da Fundação
Calouste Gulbenkian que apoiou o Arquivo de Memória: passou a designar-se Clube UNESCO Entre Gerações, tendo resultado da celebração de um protocolo
entre a ACOA e a Comissão Nacional da UNESCO.
Procurava-se assim ampliar o leque de parcerias e, no
futuro, dispor de um modo de atingir as comunidades imigrantes presentes nestes concelhos do interior,
através da ligação a outros Clubes UNESCO dos países
de origem.
O projeto piloto Arquivo de Memória contemplou
diversas ações intergeracionais, como uma visita conjunta de alunos e seniores ao Museu do Coa.
o Oxford Institute for Aging.
3 - Os alunos, com a equipa técnica do projeto, digitalizam e acondicionam, para que perdurem, os pequenos arquivos familiares.
268
Alexandra Cerveira Lima
4 - O projeto piloto Arquivo de Memória contemplou diversas ações intergeracionais,
como uma visita conjunta de alunos e seniores ao Museu do Coa.
2. DESENVOLVIMENTO ATUAL DO PROJETO
través de uma candidatura aprovada ao
PROVERE do Coa, o projeto Arquivo de
Memória está numa fase de consolidação e
crescimento, vital para o futuro.
Foram estabelecidos os seguintes objetivos para
esta fase:
1. Criação de uma rede virtual, através da base de
dados e sistema de gestão da informação In Patrimonium310, é possível colocar em rede e on-line, incluindo o interface proporcionado por um website, toda a
informação recolhida e produzida, inventariada e indexada. Sejam testemunhos vídeo ou áudio, sejam documentos digitalizados, sejam inventários de coleções
públicas ou privadas311.
2. Edição virtual contribuindo para o que designámos «A História Regional Recente do Vale do Coa».
Trata-se de registar, sob a forma de inquérito, conver-
sa, testemunho áudio ou vídeo, as memórias dos utentes dos lares e centros de dia, mas também de quem
vive nas aldeias e nas sedes concelhias. As recolhas são
feitas, através de uma empresa da área do património312, por alunos, por estagiários, por jovens oriundos
da região — que agora vivem noutras geografias, e que
passaram dias ou semanas recolhendo testemunhos
nas aldeias de onde as família são originárias —, por
interessados de várias formas no projeto, mas também
por alguns profissionais de som e vídeo a quem se encomendou trabalho no âmbito deste projeto.
3. Um evento intergeracional — Memória em Festa
— que passa por um dia ou um fim de semana numa
aldeia, a forma encontrada de se comunicar o projeto
junto das comunidades locais. Com a colaboração de
uma empresa a quem se entregou a comunicação do
projeto313, uma equipa faz recolha de testemunhos, divulgação, digitalização de documentos, inventariação,
acondicionamento, ao longo de um ou dois dias dia-
310 Empresa Sistema de Futuro
312 Histórias & Tempus
311 Brevemente no domínio www.acoa.pt
313 Setepés
A
Arquivo e Memória
loga com pessoas da comunidade, instala uma câmara
de vídeo, entrevista, procura memórias da aldeia, músicas, documentos, danças...
A uma outra empresa314 foi entregue a comunicação do projeto junto de parceiros institucionais e de
entidades que importa envolver agora e no futuro.
Conhecer realmente o vale do Coa, para lá de esteriótipos nascidos das histórias recentes do território,
é uma descoberta que importa promover. Entre o Coa,
o Águeda e o Douro Internacional, um território de
áreas classificadas, um território que se quer de referência.
4. Finalmente um seminário — a que se chamou
Imaterialidades — procurando levar, uma vez preparada a base de dados, a rede virtual, o sistema de gestão
da informação recolhida, o projeto e o que foi entretanto produzido até junto da Academia. Importa que
haja diversos olhares académicos, perspetivas enquadradoras, desenvolvimentos em duas frentes: a investigação e a criação artística. Importa levar o projeto e
as recolhas junto de distintos públicos para que o apropriem como seu, como matéria-prima que podem tratar, cuidar, investigar, analisar. Ou simplesmente fruir.
3. O FUTURO DO ARQUIVO DE MEMÓRIA
E
stamos neste momento no ponto que precede o seminário. E há uma tensão interessante que atravessa todo o projeto: por um
lado o caráter intergeracional, que é a componente que
à Fundação Calouste Gulbenkian importa, e por isso
o apoia, em que os espaços lúdicos, as conversas sem
fio definido ou atividades diversas são o traço forte.
Alunos, com pouca mestria ainda de câmaras e gravadores, captam o som de quem, com olhar paternalista, saudoso ou divertido, entrevistam. Por outro
lado a qualidade necessária à comunicação do projeto,
que exige filmagens profissionais, captação de som em
condições exigentes, profissionalismo que aos entrevistados por vezes incomoda, perturba... Teremos que
balancear habilmente estes dois distintos rumos de recolha de testemunhos315.
Um outro desafio procuramos, de momento, resol314 Milles Away
315 Foi atribuído ao Arquivo de Memória o Prémio Distinção Cinecoa
2013, durante o festival de Cinema que decorreu em outubro. Ficou patente
a força dos testemunhos recolhidos e a fraqueza que decorre da captação
amadora de som, mesmo com formação ministrada às equipas.
269
ver: o projeto-piloto assentou no par escola/lar, par virtuoso que vivia em grande medida da designada Área
de Projeto. Sem ela o Arquivo de Memória procura
um espaço, um canal, onde emergir na escola, sem que
seja um entrave ao regular curso do ensino curricular,
sem que se transforme numa impossibilidade.
Outras linhas procuramos desenvolver entretanto:
alargar a geografia, alargar o impacto. A ida regular
aos lares de um só concelho mobiliza várias pessoas
por muitos dias... e, para quem está num lar, embora
pareça dispor de tempo, realmente sabemos que o tempo se esvai, corre muito mais rápido do que deveria...
inexoravelmente. O projeto nasceu por não nos conformarmos com uma visão de uma tarde numa aldeia
do baixo Coa: um conjunto de pessoas silenciosas, na
sala de um lar, a olhar para uma parede branca e vazia. Num território em que a História recente está tão
pouco trabalhada, em que a documentação é escassa,
façamos deste propósito comum — contruir a História em conjunto, produzir conhecimento e promover a
criatividade — um estímulo poderoso para as diferentes gerações envolvidas... E se a partir dos testemunhos
e documentos procuramos divulgar conteúdos que interessam às comunidades emigrantes, emigração de
ontem e de hoje, é nosso propósito produzir conteúdos que importem também aos residentes, turistas e
visitantes dos vales do Coa, Águeda e Douro.
BIBLIOGRAFIA
CARVALHO, Bárbara; SOTTOMAYOR, Maria (2011): Arquivo de memória do Vale do Coa.
«Côavisão», vol. 13. Vila Nova de Foz Coa: Câmara
Municipal, p. 57-68.
LIMA, Alexandra Cerveira — Coa, um território de
referência. «Côavisão», vol. 12. Vila Nova de Foz Coa:
Câmara Municipal, p. 51-54.
LIMA, Alexandra Cerveira; CARVALHO, Bárbara; MURALHA, João; ALMEIDA, Mafalda Nicolau
(2013) — O projeto Arquivo de Memória do Vale do
Coa candidatado ao PROVERE do Coa. «Côavisão»,
vol. 15. Vila Nova de Foz Coa: Câmara Municipal, p.
9-18.
270
271
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