O foro por prerrogativa de - Procuradoria da República no Rio de

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O foro por prerrogativa de - Procuradoria da República no Rio de
O foro por prerrogativa de função na Espanha.
Andrey Borges de Mendonça
Procurador da República em São Paulo. Mestrando em Direito pela USP.
1. Introdução
O objeto do presente estudo é uma análise geral de como se estrutura o foro por prerrogativa
de função na Espanha, indicando, especialmente, aquilo que pode ser utilizado na comparação com
nosso sistema. Inicialmente, vale destacar que o estudo do tema exige, preliminarmente, uma
apreciação, ainda que em linhas gerais, de como é estruturado o sistema processual espanhol,
especialmente para compreensão do sistema processual misto e das funções do chamado juiz de
instrução. Da mesma sorte, será importante indicar e explicar rapidamente, ademais, quais os órgãos
que possuem atribuição para exercer a jurisdição penal naquele país. Após tais questões iniciais,
adentrar-se-á na análise do tema propriamente dito.
De início, porém, é importante deixar claro que o foro por prerrogativa de função na
Espanha também vem sendo objeto de profundos questionamentos. Realmente, analisando-o,
verifica-se que possui amplitude incomum para países europeus, encontrando-se em descompasso
com os demais países do mundo, pois está entre os países que contempla o maior número de
hipóteses de foro por prerrogativa de função, o que é objeto de crítica por parte de parcela da
doutrina especializada. Realmente, a instituição do aforamento na Espanha é difícil de ser
justificada. Como afirma a doutrina, somente para cargos de origem política pode-se dizer que há
mais de dois mil casos, segundo GÓMEZ COLOMER. Isso, como afirma o mesmo autor, é um
autêntico despropósito, que não se produz em nenhum outro país do entorno cultural e jurídico da
Espanha, chegando-se ao ponto de afetar o principio de igualdade1. De qualquer sorte, as
particularidades da Espanha, especialmente no tocante à legitimidade para o exercício da ação penal
e o longo período ditatorial pelo qual se submeteu, podem auxiliar a compreender tal panorama.
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GÓMEZ COLOMER, Juan Luis. Tratado Jurisprudencial de Aforamientos Procesales. Valencia: Tirant lo Blanch, 2009.
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Desde logo, antecipa-se que não se buscará esgotar a análise do tema, mas apenas traçar
linhas gerais de como se estrutura o foro por prerrogativa de função na Espanha, com suas
estruturas mais marcantes. Busca-se, com isto, permitir ao leitor ter um instrumental para comparar
e analisar, em última análise, o foro por prerrogativa de função no Brasil.
Porém, vale uma advertência. Como afirma Scarance Fernandes, o significado e a extensão
das diretrizes paradigmáticas para estabelecer um procedimento – ou seja, as regras e princípios que
constituem diretrizes fundamentais para formação dos procedimentos – variam de acordo com a
época, tradição e cultura de cada país. Assim, por exemplo, enquanto na Europa em geral extrai-se
do princípio da imparcialidade que o juiz que atuou na fase de instrução provisória ou que decidiu
medidas cautelares não pode julgar, no Brasil o mesmo princípio não possui a mesma extensão e
significado2. Portanto, não se pode fazer uma transposição sem critérios e acrítica de experiências
estrangeiras, sem uma consideração das circunstâncias históricas e culturais alienígenas. Isto, em
hipótese alguma, exclui a importância da análise do direito comparado, mas apenas adverte o leitor
da necessidade de realizar um filtro das particularidades e idiossincrasias locais.
2. Visão geral do processo penal na Espanha
A principal lei que disciplina o processo penal na Espanha – a Ley de Enjiciamiento
Criminal (LECrim), promulgada pelo Real Decreto de 14 de setembro de 1882 - foi editada sob os
auspícios da Constituição então vigente, a Constituição de 1876. A referida lei adotou o sistema
processual misto, de nítida inspiração francesa, baseando-se no Code d´instruction criminelle
napoleônico, de 1808 e afastando-se, portanto, do sistema inquisitivo vigente antes da Revolução
Francesa. É bem verdade que referido sistema processual foi muito alterado ao longo do tempo,
especialmente com a promulgação da Constituição espanhola de 1978, que trouxe outro desenho
para o Estado, constituindo-o como Estado Social e Democrático de Direito, preocupado com os
valores da liberdade, justiça, igualdade e com o reconhecimento de um longo catálogo de direitos
fundamentais, que dizem respeito à atividade persecutória.
De qualquer sorte, atualmente, este sistema processual misto é caracterizado por duas fases:
uma fase de instrução – com traços, em geral, inquisitivos – e uma fase propriamente processual, o
chamado juízo oral, onde se aplicam em plenitude os princípios constitucionais, especialmente da
publicidade, contraditório e ampla defesa. A característica deste sistema processual misto é que a
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FERNANDES, Antonio Scarance. Reflexões sobre as noções de eficiência e de garantismo no processo penal. In:
FERNANDES, Antonio Scarance; ALMEIDA, José Raul Gavião; MORAES, Maurício Zanoide de (coord.). Sigilo no processo
penal: eficiência e garantismo. São Paulo: Ed. Revista dos Tribunais, 2008, p. 15.
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jurisdição já se inicia na fase da investigação, sob a presidência de um Juiz Instrutor3.
De modo geral, pode-se dizer que o processo penal começa por uma etapa ou subfase inicial
chamada de sumário, procedimento preliminar ou, ainda, de instrução. Esta fase busca fornecer
elementos para que seja possível uma acusação contra determinada pessoa por um fato concreto,
preparando o Juízo Oral, a segunda fase do processo 4. Pode-se definir, portanto, esta fase como um
conjunto de atuações necessárias para decidir se se deve ou não abrir o juízo contra determinada
pessoa5. Assim, segundo o art. 299 da LECrim, esta fase preliminar é composta por um conjunto de
atuações “encaminadas a preparar el juicio y practicadas para averiguar y hacer constar la
perpetración de los delitos con todas las circunstancias que puedan influir en su calificación, y la
culpabilidad de los delincuentes, asegurando sus personas y las responsabilidades pecuniarias de los
mismos”. É uma fase que exerce a mesma função, mutatus mutandis, do inquérito policial no
Brasil, com a particularidade de que se trata de uma fase processual propriamente dita, presidida por
um Juiz de instrução.
Importa destacar que na Espanha o Ministério Fiscal não é o responsável pelas
investigações6. Quem leva a cabo esta investigação é, em regra, o Juiz Instrutor ou Juiz de Instrução
(Juzgado de Instrucción), responsável pela investigação exaustiva do fato, sob a inspeção direta do
Ministério Fiscal (art. 14.2, 303 e 306 da LECrim) 7. Como já dito, diferentemente do que ocorre no
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OLIVEIRA, Eugênio Pacelli. Curso de Processo Penal. Rio Janeiro: Lumen Juris, 13ª ed., 2010, p. 9. Importa gizar que há uma
forte tendência na Espanha em a fase inicial da investigação ficar sob a presidência de um membro do Ministério Público –
chamado de Fiscal na Espanha.
Segundo a lei, o procedimento preliminar se denomina “sumário” no procedimento penal ordinário para crimes mais graves,
“diligências prévias” no processo penal “abreviado” e “diligências urgentes” no processo penal para julgamento rápido de
determinados delitos. GÓMEZ COLOMER, Juan Luiz. Derecho jurisdiccional III: proceso penal. Valencia: Tirant lo blanch,
2009, 17ª ed., p. 123.
CORTÉS DOMÍNGUEZ, Valentín. Derecho Procesal Penal. Valencia: Tirant lo blanch, 3ª ed., 2008, p. 53.
É possível ao Fiscal realizar diligências, porém, prévias e em pequeno lapso de tempo. Sempre que for necessária uma ordem
judicial, a investigação passa a ser judicializada e o Juiz instrutor assume a investigação.
O Ministério Fiscal está regulado no artigo 124 da Constituição Espanhola, embora com uma estrutura aberta e muito pouco
delimitada no texto constitucional. Referido artigo dispõe: “Artículo 124. 1. El Ministerio Fiscal, sin perjuicio de las funciones
encomendadas a otros órganos, tiene por misión promover la acción de la justicia en defensa de la legalidad, de los derechos de
los ciudadanos y del interés público tutelado por la Ley, de oficio o a petición de los interesados, así como velar por la
independencia de los Tribunales y procurar ante éstos la satisfacción del interés social. 2. El Ministerio Fiscal ejerce sus
funciones por medio de órganos propios conforme a los principios de unidad de actuación y dependencia jerárquica y con
sujeción, en todo caso, a los de legalidad e imparcialidad. 3. La Ley regulará el estatuto orgánico del Ministerio Fiscal. 4. El
Fiscal General del Estado será nombrado por el Rey, a propuesta del Gobierno, oído el Consejo General del Poder Judicial”.
Ademais, na Espanha o Ministério Público (Ministério Fiscal) atua na fase da instrução como um fiscal das investigações,
embora haja uma tendência, iniciada desde a Ley del Jurado de 1995 em conceder ao Ministério Fiscal poderes investigatórios e
direção do procedimento investigatório (falando-se, então, em procedimento preliminar fiscal, em contraposição ao procedimento
preliminar judicial, que continua sendo a regra). Enquanto isso não ocorre continuará a crítica da doutrina: “El juez de instrucción
y el fiscal se encuentran en esta primera fase del procedimiento con papeles cambiados, en una especie de juego de travestismo
jurídico, en donde el juez debe investigar para el fiscal y éste ha de inspeccionar las investigaciones”. MORENO CATENA,
Victor. Prólogo. Ley de Enjuiciamiento criminal y legislación complementaria. Madrid: Tecnos. 25ª ed., 2010, p. 25. O autor
antes citado inclusive propõe que se afaste ao juiz da responsabilidade de dirigir a primeira fase do procedimento e a atribua ao
Ministério Fiscal. (ob. cit., p. 27). Porém, vale ressaltar que os membros do Ministério Fiscal Espanhol não possuem as garantias
de independência e inamovibilidade dos magistrados. Estão hierarquicamente subordinado ao Fiscal general (inclusive o Estatuto
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Brasil, esta fase de investigação se enquadra dentro do processo penal e não se constitui em uma
fase extraprocessual, especialmente porque é conduzida pelo juiz de instrução8. Esta primeira fase
do procedimento está caracterizada pelos princípios do sistema inquisitivo, embora muito mitigada
na prática9. Assim, deve ser sigiloso, inicia-se de ofício e deveria ser, em princípio, não
contraditório10. Como regra geral, como dito, quem é responsável pela primeira fase é o Juizado de
Instrução11. O instrutor é o verdadeiro impulsionador da atividade de investigação e poderá, de
ofício, realizar, entre outras, as seguintes diligências: ouvir o investigado, determinar medidas
cautelares, tanto reais quanto pessoais, conceder liberdade provisória, proceder a inspeções
judiciais, determinar perícias, reconhecimentos, ouvir testemunhas, etc. 12 Porém, não se pode dizer
que é um juiz inquisidor, ao menos na concepção histórica, pois não acusa e nem irá julgar o caso13.
Ao final da primeira fase, elabora-se um auto de processamento ou auto de conclusiones del
sumário (art. 622 da LECrim). Neste auto, o juiz de instrução conclui que foram realizadas todas as
investigações possíveis para esclarecer o fato e que no processo já existem os elementos
imprescindíveis para que as partes possam formular ou não a acusação14.
Finda esta fase, poderá ou não haver o oferecimento da ação penal 15. Se houver acusação
formal, esta deverá ser levada a cabo por órgão diverso do juiz de instrução, podendo ser proposta
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do Ministério Público afirma que exerce sua missão por meio de órgãos próprios e conforme os princípios e unidade de atuação e
dependência hierárquica, conforme art. 2.1). Embora alguns afirmem que essa subordinação esteja ligada à ideia sobrevivente do
Antigo Regime, para defender a “legalidade do Rei” (VILLEGAS FERNANDEZ. Por isto esse mesmo autor já disse: “La
estructura jerárquica del Ministerio Fiscal Español es inconciliable conceptualmente con la idea de independencia”. VILLEGAS
FERNÁNDEZ, Jesús Manuel. Crónica de una muerte anunciada: la supresión del juez instructor. Novembro de 2007.
Disponível em http://noticias.juridicas.com/articulos/65-Derecho%20Procesal%20Penal/200711-54648148434847.html. Acesso
em 21 de abril de 2010) há quem defenda que essa hierarquia busca, em verdade, trazer uma uniformidade de atuação, em prol da
segurança jurídica do indivíduo.
MORENO CATENA, Víctor. Derecho Procesal Penal. Valencia: Tirant lo blanch, 3ª ed., 2008, p. 72.
GÓMEZ COLOMER, Juan Luiz. Derecho jurisdiccional III: proceso penal. Valencia: Tirant lo blanch, 2009, 17ª ed., p. 127.
Em relação ao sigilo (art. 301 LECrim), se aplica em regra para os terceiros e não para as partes. Excepcionalmente, é possível
decretação de sigilo para as partes (não para o Ministério Fiscal), pelo prazo de um mês, prorrogável, nos termos do art. 302 da
LECrim. Também não há previsão de participação do investigado nas investigações, segundo a LECrim. Porém, o Tribunal
Constitucional espanhol, a partir da sentença 66/1989, de 17 de abril, passou a exigir que o investigado tenha possibilidade de
intervir nessa fase para contestar a acusação formulada, pedindo o arquivamento do feito ou a revogação do auto de conclusão,
para que novas diligências sejam realizadas. CORTÉS DOMÍNGUEZ, Valentín. Derecho Procesal Penal. Valencia: Tirant lo
blanch, 3ª ed., 2008, p. 55.
No procedimento ordinário espanhol, a instrução das causas é realizada, como regra, pelos Juzgados de Instrucción e Juzgados
Centrales de Instrucción. O primeiro para as causas de competência do Juzgados de lo Penal e Audiencias Provinciales. Os
Juzgados Centrales de Instrucción para as causas acometidas ao Juzgados Centrales de lo Penal ou Audiencia Nacional. JUNIOR,
Aury Celso Lima Lopes. Sistemas de instrucción preliminar en los derechos español y brasileño. Tese de Doutorado.
Universidade Complutense de Madrid, 1999, p. 311.
JUNIOR, Aury Celso Lima Lopes. Sistemas de instrucción preliminar en los derechos español y brasileño. Tese de Doutorado.
Universidade Complutense de Madrid, 1999, pp. 217 e 315.
JUNIOR, Aury Celso Lima Lopes. Sistemas de instrucción preliminar en los derechos español y brasileño. Tese de Doutorado.
Universidade Complutense de Madrid, 1999, p. 218.
CORTÉS DOMÍNGUEZ, Valentín. Derecho Procesal Penal. Valencia: Tirant lo blanch, 3ª ed., 2008, p. 54.
Se não houver acusação formal, será o caso de sobreseimiento da causa (art.642 e SS LECrim e 748 LECrim), especialmente em
razão do princípio acusatório. CORTÉS DOMÍNGUEZ, Valentín. Derecho Procesal Penal. Valencia: Tirant lo blanch, 3ª ed.,
2008, p. 57
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pelo Ministério Fiscal ou por um acusador particular, sendo variável a forma como se dará esta
imputação.
Questão muito relevante para se compreender o foro por prerrogativa de função na Espanha
é que na Espanha não há monopólio do Ministério Público (Ministério Fiscal) em exercer a ação
penal16. Em outras palavras, na Espanha a ação penal pode ser exercida por uma variedade de
órgãos e pessoas. Assim, além da Fiscalía, também podem propor a ação o ofendido e, ainda - como
particularidade espanhola17 - qualquer cidadão, em uma verdadeira ação penal popular, conforme
previsão do art. 125 da Constituição Espanhola18 e art. 101 da LECrim19, com algumas exceções20.
Inclusive, a jurisprudência do Tribunal Constitucional espanhol entende que a titularidade da ação
penal popular também cabe às pessoas jurídicas21.
Esta amplitude da legitimidade ativa faz com que seja comum a propositura de ações penais
por parte de pessoas ou associações em face de autoridades com participação política relevante,
ações estas com nítido caráter partidário ou político. Ademais, recorde-se que mesmo o Ministério
Fiscal não possui garantias de independência no exercício de suas funções, o que cria uma
perniciosa dependência diante do Fiscal Geral, escolhido pelo Ministro de Governo. Tais fatores
podem justificar e auxiliar a compreensão da amplitude do foro por prerrogativa de função na
Espanha, embora não o isente de críticas, diante de sua amplitude22.
De qualquer sorte, uma vez oferecida a acusação, há duas decisões possíveis neste momento:
16 Para estudo do Ministério Público espanhol, sua origem e características, veja a já clássica obra de DÍEZ-PICAZO, Luis María.
El poder de acusar. Ministerio Fiscal y Constitucionalismo. Barcelona: Ariel, 2000.
17 Sequer a Inglaterra possui um sistema desta forma, pois o acusador particular atua em nome da Coroa britânica. Isto é relevante
porque se a Coroa decide exercer por ela mesma a acusação, através de seus órgãos (Attorney-General e Director of Public
Prosecutions), o acusador particular é automaticamente afastado da ação penal. Isto não acontece na Espanha, em que a
legitimidade ativa para o exercício da ação penal decorre da própria cidadania. DÍEZ-PICAZO, Luis María. El poder de acusar.
Ministerio Fiscal y Constitucionalismo. Barcelona: Ariel, 2000, p. 153.
18 “Art. 125. Los ciudadanos podrán ejercer la acción popular y participar en la Administración de Justicia mediante la institución
del Jurado, en la forma y con respecto a aquellos procesos penales que la Ley determine, así como en los Tribunales
consuetudinarios y tradicionales”.
19 “Artículo 101. La acción penal es pública. Todos los ciudadanos españoles podrán ejercitarla con arreglo a las
prescripciones de la Ley”.
20 Veja o quanto disposto no art. 102 da LECrim: “Artículo 102 .Sin embargo de lo dispuesto en el artículo anterior, no podrán
ejercitar la acción penal: 1. El que no goce de la plenitud de los derechos civiles; 2. El que hubiere sido condenado dos veces por
sentencia firme como reo del delito de denuncia o querella calumniosas; 3. El Juez o Magistrado. e também no art. 102.2 da
Constituição Espanhola”.
21 Neste sentido, STC 53/1983 e STC 241/1992. DÍEZ-PICAZO, Luis María. El poder de acusar. Ministerio Fiscal y
Constitucionalismo. Barcelona: Ariel, 2000, p. 155. Inclusive, no caso da querela proposta em face do ex-Juiz de Instrução
espanhol Baltazar Garzón, por supostamente ter praticado o delito de prevaricação ao investigar os crimes praticados durante o
franquismo, especialmente os desaparecimento, quando “sabidamente” não era competente, a ação penal foi iniciada por um
sindicato (Sindicato Manos Limpias).
22 Outra justificativa para a amplitude do foro por prerrogativa de função pode ser buscada na longa ditadura que sofreu o país,
afastando-o dos princípios democráticos entre os anos de 1939 e 1976. O descaso pelo princípio da igualdade e pelo respeito aos
direitos fundamentais pode ser um fator para compreender porque motivo a Espanha não limitou o foro por prerrogativa de
função ao longo de sua história.
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não se reconhece a existência de base suficiente para acusar (“auto de sobreseimiento”) ou, ao
contrário, afirma-se a existência do direito ou poder de acusar (“auto de apertura del juicio oral”).
Apenas esta última decisão permite adentrar à segunda fase do procedimento 23. Quem tomará esta
decisão? O órgão variará a depender do procedimento. Em regra, quem decide não é o Juiz de
Instrução, mas sim pela Audiência Provincial, órgão encarregado pelo conhecimento da fase oral24.
Na fase do Juízo oral, serão produzidas as alegações e provas que permitirão ao Tribunal
proferir sentença, nos termos do art. 741, I, LECrim. É fase processual na qual se processa o
acusado para condená-lo ou para absolvê-lo, em sentença que põe fim ao processo25. Nesta fase
aplicam-se os princípios da publicidade, igualdade, contraditório, acusatório e especialmente o
princípio da oralidade, que possui assento constitucional na Espanha 26 e é inclusive a razão pela
qual se chama de Juízo Oral à fase do julgamento propriamente dito. A acusação, nesta fase, é
delimitada por uma peça escrita chamada “escrito de calificación provisional”, que é o ato por meio
do qual se concretiza a acusação27. Após, será dada oportunidade para a defesa se manifestar e,
ainda, será nessa fase que serão produzidas as provas, sendo impossível a condenação apenas com
base nos fatos constantes do Juízo de Instrução, salvo as provas antecipadas.
Como regra geral, a fase oral é de responsabilidade do Juzgado de lo Penal para os delitos
menos graves (pena cominada no tipo penal de até cinco anos de prisão) e para a Audiência
Provincial nos delitos mais graves (acima de cinco anos).
É também relevante destacar que na Espanha está bem definido que o juiz de instrução não
pode fazer parte do órgão julgador. Ou seja, se entende inerente ao princípio do juiz natural que o
juiz responsável pela instrução está proibido de julgar. Este entendimento foi fixado pelo Tribunal
Supremo, na STC 145/1988, de 12 de julho, ao afirmar que é inconstitucional que um mesmo juiz
que houvesse instruído as diligências viesse a julgar, fixando a chamada “doctrina constitucional de
prohibición del juez prevenido” 28.
23 CORTÉS DOMÍNGUEZ, Valentín. Derecho Procesal Penal. Valencia: Tirant lo blanch, 3ª ed., 2008, p. 52. Vale destacar que
este mesmo autor lembra que é comum se falar em uma fase intermediária do procedimento, entre a instrução e o juízo oral, que
compreenderia aqueles atos que põem fim teoricamente à primeira fase e permitem entrada na segunda. Esta fase, então, iria
desde o momento em que se encerra a instrução pelo auto de conclusión até o momento que o órgão jurisdicional dita o auto de
sobreseimiento ou o auto de apertura de juicio oral. Em síntese, nesta fase intermediária se decide se há ou não base suficiente
para a acusação (CORTÉS DOMÍNGUEZ, Valentín. Derecho Procesal Penal. Valencia: Tirant lo blanch, 3ª ed., 2008, p. 54).
24 Porém, no procedimento abreviado e no do Tribunal do Jurado quem decide sobre a abertura do juízo ou o “sobreseimiento” é o
Juiz de Instrução. Neste sentido, CORTÉS DOMÍNGUEZ, Valentín. Derecho Procesal Penal. Valencia: Tirant lo blanch, 3ª ed.,
2008, p. 56. Este mesmo autor afirma que esta diversidade decorre das diversas reformas legislativas à que a LECrim se
submeteu ao longo dos anos, o que faz carecer a distinção de qualquer significação.
25 CORTÉS DOMÍNGUEZ, Valentín. Derecho Procesal Penal. Valencia: Tirant lo blanch, 3ª ed., 2008, p. 57.
26 Dispõe o art. 120.2 da Constituição Espanhola: “El procedimiento será predominantemente oral, sobre todo en materia criminal”.
27 CORTÉS DOMÍNGUEZ, Valentín. Derecho Procesal Penal. Valencia: Tirant lo blanch, 3ª ed., 2008, p. 57
28 GÓMEZ COLOMER, Juan Luiz. Derecho jurisdiccional III: proceso penal. Valencia: Tirant lo blanch, 2009, 17ª ed., p. 45.
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4. Órgãos que exercem a jurisdição penal na Espanha
De regra, o julgamento dos crimes, na Espanha, será de competência da jurisdição ordinária,
com exceção daquelas causas reservadas por lei ao Senado, aos Tribunais de Guerra e Marinha e às
Autoridades administrativas ou de polícia, segundo o art. 10 da LECrim.
Feita esta observação, interessante verificar que a divisão dos Juízos e Tribunais espanhóis
não está, como ocorre no Brasil, estabelecida no texto constitucional, inexistindo um capítulo na
Constituição Espanhola que divida as atribuições entre os diversos órgãos do Poder Judiciário. Ao
contrário, a Constituição Espanhola afirma apenas que o exercício da potestade jurisdicional em
todo tipo de processo, julgando e fazendo executar seus julgados, corresponderá exclusivamente aos
Juízos e Tribunais estabelecidos em lei (art. 117.3). Ademais, a Constituição Espanhola, no art.
122.1, concede exclusivamente à Lei Orgânica do Poder Judiciário (LOPJ) – atualmente a Lei
Orgânica 6/1985 - a possibilidade de estabelecer e criar órgãos jurisdicionais na Espanha 29. Assim
sendo, para atribuição da jurisdição, é passo necessário verificar e conhecer os diversos órgãos que
estão estabelecidos na LOPJ, com o intuito de verificar quais os órgãos compõem a estrutura do
Poder Judiciário espanhol. De qualquer sorte, uma vez previsto o órgão na LOPJ, a competência e a
sua distribuição poderá estar disciplinada em outras leis30.
Na atualidade, a jurisdição penal na Espanha é exercida pelos seguintes tribunais 31: Juzgados
de Paz (Juízos de Paz)32; Juzgados de Instrucción33 e Juzgados Centrales de Instrucción34, Juzgados
de Violencia sobre la Mujer35, Juzgados de lo Penal36 e Juzgados Centrales de lo Penal; Juzgados de
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“Art. 122.1. La Ley orgánica del poder judicial determinará la constitución, funcionamiento y gobierno de los Juzgados y
Tribunales, así como el estatuto jurídico de los Jueces y Magistrados de carrera, que formarán un Cuerpo único, y del personal al
servicio de la Administración de Justicia”.
MORENO CATENA, Víctor. Derecho Procesal Penal. Valencia: Tirant lo blanch, 3ª ed., 2008, p. 64.
É difícil falar em juízo de primeira ou segunda instância na Espanha, pois o sistema recursal é diverso do brasileiro. Assim, tanto
o Juzgado de Instrucción quanto o Juzgado de lo Penal possuem atribuição recursal (em caso de decisões do juiz de paz). Da
mesma forma, a Audiencia provincial e Audiencia Nacional possuem competência recursal para julgamento das apelações contra
Juzgados de Instrucción e de Juzgados de lo Penal. Também os Tribunales Superiores de Justicia e o Tribunal Supremo possui
competência revisional. De qualquer sorte, é comum se dizer que os órgãos jurisdicionais superiores são as Audiências
(Provinciales e Nacional), os Tribunais Superiores de Justicia e o Tribunal Supremo. Neste sentido, MORENO CATENA, Víctor.
Derecho Procesal Penal. Valencia: Tirant lo blanch, 3ª ed., 2008, p. 75.
Os Juízos de paz têm competência para conhecimento de determinadas faltas – infrações penais menos graves – em primeira
instancia, cometidas no território municipal onde tenham sua sede, nos termos do art. 100.2 da LOPJ c.c. art. 14.1 da LECrim.
O Juizado de Instrução também é um juízo de primeira instância, que, em síntese, possui competência funcional para a instrução
(sumário) de todas as causas cujo julgamento (fase do Juízo oral) seja de competência das Audiências Provinciales e dos
Juzgados de lo Penal, com exceção daqueles casos de violência do gênero (art. 87.1.a da LOPJ.
Os Juzgados Centrales de Instrucción possuem mesma competência que os Juzgados de Instrucción, porém dos delitos que são
atribuídos à competência da Audiência Nacional. Art. 65 e 89 bis.3 LOPJ.
O Juzgado de Violencia sobre la Mujer possui competência para instruir os processos por crimes cometidos contra a mulher nas
relações de afetividade ou parentesco (homicídio, aborto, lesão corporal, etc.), nos termos do art. 83, ter.1. da Lei Orgânica do
Poder Judiciário.
Os Juzgados de lo Penal julgam os processos instruídos pelos Juizados de Instrução, quando não devem decidir a Audiencia
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Vigilancia Penitenciaria37 e Juzgado Central de Vigilancia Penitenciária38; Juzgados de Menores39 e
Juzgados Central de Menores; Tribunal del Jurado 40; Audiencias Provinciales41; Sala de lo Penal dos
Tribunales Superiores de Justicia42-43; Sala Penal da Audiencia Nacional44; Sala Penal e Sala
Especial do Tribunal Supremo45. Quanto ao Tribunal Constitucional Espanhol, não possui atribuição
para julgamento de causas. Porém, possui atribuição para analisar questões envolvendo direitos
fundamentais e, neste aspecto, poderá ter competência revisional para solucionar questões
envolvendo foro por prerrogativa de função, uma vez que se entende que este deriva do princípio do
Provincial ou Tribunal do Jurado.
37 Referido Juízo exerce as funções previstas em matéria de execução de penas privativas de liberdade e de medidas de segurança
(ver art. 91.1 da LOPJ).
38 Exerce as mesmas funções do Juzgado de Vigilancia Penitenciaria, mas dos delitos de competência da Audiência Nacional (ver
art. 94.4 da LOPJ)
39 Que conhecem os fatos praticados por menores entre 14 e 18 anos tipificados como delito ou falta no Código Penal ou em leis
especiais, assim como sua responsabilidade civil (ver LO 5/2000, que disciplina a Responsabilidade penal dos menores).
40 Tribunal formado por juízes leigos e presidido por um magistrado, em geral da Audiência Provincial. A sua competência está
fixada na Ley Orgánica 5/1995, de 22 de maio, que disciplina todo o Tribunal del Jurado, desde sua competência até a sentença.
Como já dito, é decorrência da Constituição Espanhola, como uma das formas de participação dos cidadãos na Administração da
Justiça (art. 125 Constituição Espanhola e art. 1º LO n. 5/1995), embora sua competência não esteja fixada no texto
constitucional espanhol, que o delega ao legislador ordinário. Sua composição é formada por um magistrado de carreira (em
geral, da Audiência Provincial), que o presidirá, e nove jurados (Art. 2.1 LO n. 5/1995). A divisão de funções entre os jurados e o
juiz é semelhante ao que ocorre no Brasil (os jurados decidem se está provado ou não o fato, enquanto o juiz elaborará sentença,
de acordo com o veredito dos jurados, e também resolverá sobre a responsabilidade civil, nos termos dos arts. 3 e 4 da LO n.
5/1995). Segundo o art. 1º da LO n. 5, possui competência para julgamento dos seguintes crimes (com a respectiva previsão no
Código Penal Espanhol): Del homicidio (artículos 138 a 140); De las amenazas (artículo 169.1); De la omisión del deber de
socorro (artículos 195 y 196); Del allanamiento de morada (artículos 202 y 204); De los incendios forestales (artículos 352 a
354); De la infidelidad en la custodia de documentos (artículos 413 a 415); Del cohecho (artículos 419 a 426); Del tráfico de
influencias (artículos 428 a 430); De la malversación de caudales públicos (artículos 432 a 434); De los fraudes y exacciones
ilegales (artículos 436 a 438); De las negociaciones prohibidas a funcionarios públicos (artículos 439 y 440); De la infidelidad en
la custodia de los presos (artículo 471). Vale destacar, porém, que se exclui da competência do Tribunal del Jurado os crimes de
atribuição da Audiência Nacional (art. 1º.3 da LO n. 5). Sobre a questão de foro por prerrogativa de função e Tribunal del Jurado,
veremos abaixo.
41 É um dos órgãos penais mais importantes na estrutura espanhola. Possui competência para julgar os processos por “delitos”
(infrações penais de grave e média gravidade), que não sejam de competência dos Juzgados de lo Penal ou de outros Tribunais
previstos na LOPJ, nos termos do art. 82.1 da LOPJ. As Audiencias Provinciales possuem também competência recursal para
julgar os recursos contra resoluções ditadas pelos los Juzgados de Instrucción y de lo Penal de la província (art. 82.2),
resoluciones em matéria penal ditadas pelos Juzgados de Violencia sobre la Mujer da provincia (art. 82.3), recursos contra as
resoluções dos Juzgados de Menores da província (art. 82.4) e os recursos contra as resoluções dos Juzgados de Vigilancia
Penitenciaria, quando a competência não for da Audiência Nacional (art. 82.5).
42 Referidos Tribunais, no âmbito penal, julgam as causas que os Estatutos da Autonomia conferem a este Tribunal, bem como as
apela recursos de apelação contra as resoluções ditadas em primeira instancia pelas Audiencias Provinciales, além de outras que a
lei lhe conferir (art.73.3 LOPJ)..
43 Cada comunidade autônoma – composta por várias províncias - possui um Tribunal Superior de Justiça. Para ver o mapa de cada
uma delas, acesse http://www.poderjudicial.es/eversuite/GetRecords?Template=cgpj/tsj/mapa.html. Acesso em 21 de abril de
2010.
44 A Audiência Nacional é um órgão muito discutido na Espanha, pois muitos alegam que se trataria de violação ao princípio do
juiz natural, especialmente pelos critérios imprecisos utilizados pela LOPJ para fixar sua competência. Referido órgão, com sede
em Madrid e jurisdição em toda Espanha, foi criado no ano de 1977 com o intuito de combater sobretudo o terrorismo – ligado ao
ETA. Atualmente, sua competencia está expresamente indicada na lei e é encarregado de conhecer os delitos mais graves
ocorridos naquele país, a saber: Delitos contra el Titular de la Corona, su Consorte, su Sucesor, altos organismos de la Nación y
forma de Gobierno; Falsificación de moneda, delitos monetarios y relativos al control de cambios; Defraudaciones y
maquinaciones para alterar el precio de las cosas que produzcan o puedan producir grave repercusión en la seguridad del tráfico
mercantil, en la economía nacional o perjuicio patrimonial en una generalidad de personas en el territorio de más de una
audiencia; Tráfico de drogas o estupefacientes, fraudes alimentarios y de sustancias farmacéuticas o medicinales, siempre que
sean cometidos por bandas o grupos organizados y produzcan efectos en lugares pertenecientes a distintas audiencias; Delitos
cometidos fuera del territorio nacional, cuando conforme a las Leyes o a los tratados corresponda su enjuiciamiento a los
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juiz natural.
Grosso modo, pode-se dizer que na base da estrutura estão os Juzgados de Paz. Acima, os
Juzgados de Instrucción e Juzgados de lo Penal. Sobre estes estão as Audiencias Provinciales e
Nacional. Depois, ainda, existem os Tribunales Superiores de Justicia. Por fim, há o Tribunal
Supremo e, julgando as questões constitucionais, o Tribunal Constitucional.
Estes Juízos e Tribunais são os responsáveis pelo julgamento de todas as causas penais na
Espanha, salvo as que correspondam à jurisdição militar (art. 9.3 LOPJ e 10 LECrim). Porém, como
veremos a seguir, somente possuem competência para julgamento por foro de prerrogativa de
função quatro órgãos: Juzgados de Instrucción, as Audiencias Provinciales, Tribunales Superiores
de Justicia e Tribunal Supremo.
5. Foro por prerrogativa de função - fundamentos
Visando preservar o livre e independente exercício de determinadas funções e cargos,
também a Espanha estabelece o foro por prerrogativa de função (personas aforadas), com fulcro em
critérios rationae personae, que alteram os critérios comuns estabelecidos. O Tribunal Supremo
(STS nº 1.193/99, de 19 de julho) já afirmou que não se trata de privilegiar uma pessoa, mas sim de
proteger, frente a interessadas perturbações, a especial função pública desempenhada pelo aforado.
Segundo o entendimento do Tribunal Constitucional, o estabelecimento de foros por
prerrogativa de função, além de previstos em dispositivos constitucionais esparsos, acabam
tutelados pelo princípio do juiz ordinário predeterminado por lei, estabelecido no art. 24.2 da
Constituição Espanhola (STC 22/1997, de 11 de fevereiro)46.
O Tribunal Constitucional Espanhol já asseverou, entre outros, pela sua Sentença n.
22/1997, de 11 de fevereiro, que a prerrogativa de foro não é um privilégio, e tampouco pode ser
considerado um pretendido "ius singulare", pois não existem as características da desigualdade e da
Tribunales Españoles (art. 65, 1, LOPJ). Além destes, julga todos os crimes conexos. Seu presidente é equiparado ao Presidente
do Tribunal Supremo (art. 63.2 LOPJ). Mas além desta atribuição, também é de competência da Audiência Nacional o
julgamento de tráfico ilegal ou imigração clandestina de pessoas (LO 13/2007) e os delitos de terrorismo (LO 4/1988),
certamente a competência mais conhecida deste órgão jurisdicional. Possui também atribuição recursal, para conhecer dos
recursos estabelecidos na Lei contra as sentenças e outras resoluções dos Juzgados Centrales de lo Penal, de los Juzgados
Centrales de Instrucción y del Juzgado Central de Menores e Juzgados Centrales de Vigilancia Penitenciaria (art. 65, 5 e 6).
45 É o ápice da organização do Poder Judiciário ordinário, nos termos do art. 123.1 da Constituição Espanhola, com exceção das
questões relativas às garantias constitucionais, competência do Tribunal Constitucional. Segundo o art. 53 da LOPJ, é “el órgano
jurisdiccional superior en todos los órdenes, salvo lo dispuesto en materia de garantías Constitucionales. Tendrá jurisdicción en
toda España y ningún otro podrá tener el título de Supremo”, segundo o art. 53 LOPJ. É o órgão que julga as Altas Autoridades
espanholas, conforme veremos com mais detalhe abaixo. Possui cinco salas, cada uma com competência em razão da matéria,
sendo certo que a matéria penal é de atribuição da 2ª Sala (art. 55).
46 Isto é relevante na Espanha porque se previsto dentre os direitos fundamentais é possível o uso do Recurso de Amparo perante o
Tribunal Constitucional.
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excepcionalidade. Pelo contrário, oferece um tratamento jurídico particular em razão das situações
subjetivas qualitativas e funcionalmente diferenciadas pela própria Constituição. Busca, em outras
palavras, proteger os membros do Governo frente a acusações que menoscabam suas funções, por
meio do uso abusivo de ações penais, que muitas vezes confundem os planos distintos, ainda que
não fáceis de distinguir muitas vezes, entre a responsabilidade política e a penal47. Ademais, já
afirmou o Tribunal Constitucional que o foro por prerrogativa também assegura a independência do
Poder Judiciário, frente a possíveis pressões externas que o aforado poderia exercer, em razão de
seu cargo político e institucional, sobre o órgão jurisdicional.
Assegura-se, portanto, certo
equilíbrio entre os poderes48.
Uma questão frequentemente arguida nos Tribunais espanhóis é a análise da compatibilidade
entre o foro por prerrogativa de função e o duplo grau de jurisdição, este último assegurado na
Espanha pela internalização do Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos, que assegura o
princípio do duplo grau de jurisdição em seu art. 14.5. Isto porque - como também ocorre no Brasil
- aqueles que são julgados nos Tribunais Superiores não teriam a possibilidade de usufruir de um
recurso ordinário, com ampla possibilidade de revisão das provas. Analisando a questão, vale
destacar que o Tribunal Constitucional já asseverou que “determinadas personas gozan ex
constitutione, en atención a su cargo, de una especial protección que contrarresta la imposibilidad
de acudir a una instancia superior, pudiendo afirmarse que esas particulares garantías que
acompañan a senadores y diputados disculpan la falta de un segundo grado jurisdiccional, por ellas
mismas y porque el órgano encargado de conocer en las causas en que puedan hallarse implicados,
es el superior en la vía judicial ordinaria" (STC 51/1985)49. Ou seja, em síntese, segundo o Tribunal
Constitucional, a natureza da prerrogativa e a particular proteção e garantia concedida compensa a
falta de um segundo grau de jurisdição.
6. Fontes materiais do foro por prerrogativa de função
Inicialmente, é na Constituição Espanhola que se encontram os primeiros dispositivos
tratando do foro por prerrogativa de função. Assim, o art. 71 afirma a competência do Tribunal
Supremo para julgamento dos Deputados e Senadores, da mesma forma que o art. 102 estabelece
que o julgamento do Presidente do Governo e dos Ministros é de competência da Sala Penal do
47
ALBA NAVARRO, Manuel. Sinopsis artículo 71 de la Constitución Española. Disponível
http://www.congreso.es/consti/constitucion/indice/sinopsis/sinopsis.jsp?art=71&tipo=2. Acesso em 21 de abril de 2010.
48 Tribunal Constitucional, Pleno. Sentencia 65/2001, de 17 de março de 2001.
49
ALBA NAVARRO, Manuel. Sinopsis artículo 71 de la Constitución Española. Disponível
http://www.congreso.es/consti/constitucion/indice/sinopsis/sinopsis.jsp?art=71&tipo=2. Acesso em 21 de abril de 2010.
em
em
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Tribunal Supremo50.
Embora a Constituição da Espanha estabeleça estas hipóteses de foro por prerrogativa de
função, entende-se que isto não impede que uma norma de estatura infraconstitucional possa fixar
outras hipóteses de foro por prerrogativa de função. Em outras palavras, diversamente do que se
entende no Brasil, o foro por prerrogativa de função não está estabelecido com exclusividade na
Constituição Espanhola. Isto autoriza uma gama muito ampla de hipóteses de foro por prerrogativa
de função.
Inclusive as Comunidades Autonômicas possuem competência para estabelecer casos de
foro por prerrogativa de função. Assim, há diversas previsões nos Estatutos da Autonomia - que
seriam o equivalente, grosso modo, às Constituições Estaduais - e, em razão da diversidade e
amplitude, não serão objeto de estudo. Fixe-se, apenas, que as Comunidades Autônomas possuem
atribuição para ampliar o foro por prerrogativa de função. Neste sentido, praticamente a totalidade
dos Estatutos de Autonomia determina que corresponderá ao respectivo Tribunal Superior de
Justicia o conhecimento dos atos delitivos cometidos pelos membros do Conselho de Governo no
cometidos no Território da Comunidade Autônoma e para a la Sala de lo Penal do Tribunal Supremo
os cometidos fora desse território51.
Porém, não apenas a Constituição e os Estatutos das Autonomias fixam a competência por
prerrogativa de função. A competência “ratione personae” também é estabelecida na Lei Orgânica
do Poder Judiciário (LOPJ), bem como outras leis infraconstitucionais. Isto faz com que o foro por
prerrogativa – ou “personas aforadas”, como comumente se chama – seja bastante amplo, como já
dito52. Alguns exemplos são: os arts. 57 e 73.3 da LOPJ, que estabelecem a competência da Sala do
penal do Tribunal Supremo e dos Tribunais Superiores de Justiça; a Ley Orgânica 2/1979, de 3 de
outubro, para Magistrados do Tribunal Constitucional; Ley Organica 3/1981, para o Defensor del
Pueblo, Ley Organica 2/1982, para os membros do Tribunal de Contas, entre outras regras
específicas.
Assim, diante da amplitude dos casos de foro por prerrogativa de função, é interessante fazer
50 Vale destacar que o Rei é inviolável e isento de responsabilidade, nos termos do art. 56.3 da Constituição Espanhola, razão pela
qual não há que se falar em foro por prerrogativa de função para o Rei. Esta regra, que tem origem histórica no antigo
fundamento teocrático, atualmente encontra seu fundamento na utilidade que representa a neutralidade de uma instituição no
conjunto dos poderes do Estado, como afirma MORENO CATENA, Víctor. Derecho Procesal Penal. Valencia: Tirant lo blanch,
3ª ed., 2008, p. 112.
51
TREVIJANO
GARCIA,
Ernesto.
Sinopsis
artículo
102
Constitución
Española.
http://www.congreso.es/consti/constitucion/indice/sinopsis/sinopsis.jsp?art=102&tipo=2. Acesso em 20 de abril de 2010.
52 Tanto assim que o art. 14 da LECrim, ao atribuir competência aos juízes, exclui os “casos que expresa y limitadamente atribuyen
la Constitución y las leyes a Jueces y Tribunales determinados”.
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uma análise de algumas autoridades que possuem foro na Espanha.
7. Autoridades que possuem foro por prerrogativa de função
Para facilitar a análise, faremos uma divisão por autoridades dos três poderes, verificando o
Tribunal correspondente. Como já dito, não se buscará esgotar a análise do tema, mas apenas traçar
linhas gerais de como se estrutura o foro por prerrogativa de função na Espanha. De qualquer sorte,
verifica-se que as mais altas autoridades dos três poderes espanhóis possuem foro por prerrogativa
de função. Vejamos.
No Poder Executivo, gozam de foro por prerrogativa de função o Presidente e os membros
do Governo (Ministros), que são julgados perante o Tribunal Supremo (art. 57.2 da LOPJ), assim
como os Presidentes dos Governos Autonômicos e os membros destes governos (Conselheiros), que
são julgados no Tribunal Supremo ou nos Tribunais Superiores de Justiça, conforme determine o
Estatuto da Autonomia (art. 73.3 da LOPJ).
Em relação ao Poder Legislativo, gozam de foro por prerrogativa de função os Presidentes
do Congresso e do Senado, os Deputados e Senadores 53, sendo todos processados perante o Tribunal
Supremo (art. 57.2 da LOPJ). Da mesma forma, os Presidentes dos Parlamentos Autonômicos, que
são processados no Tribunal Supremo ou nos Tribunais Superiores de Justiça, conforme determine o
Estatuto da Autonomia (art. 73.3 da LOPJ).
Em relação ao Poder Judiciário, estão aforados no Tribunal Supremo o Presidente e os
vogais do Conselho Geral do Poder Judiciário 54, o Presidente e os Magistrados do Tribunal
Supremo55, o Presidente e os Magistrados do Tribunal Constitucional, o Presidente e os Magistrados
da Audiência Nacional, os Presidentes e os Magistrados dos Tribunais Superiores de Justiça (art.
57.2 e 3 da LOPJ). Ademais, possuem foro os Magistrados de outros juízos, que serão processados
nos Tribunais Superiores de Justiça, sempre que não possuírem foro no Tribunal Supremo.
A par das três funções clássicas, também há outras Autoridades com foro por prerrogativa.
Todos os membros do Ministério Fiscal possuem foro por prerrogativa de função. O Fiscal Geral e
53 O art. 10 do Protocolo 11 sobre os Privilegios y las Inmunidades de las Comunidades Europeas de 8 de abril de 1965 estende o
mesmo regime aos integrantes do aos integrantes nacionais do Parlamento Europeu.
54 O Conselho Geral do Poder Judiciário é um órgão de governo do Poder Judiciário, com competência em todo território espanhol,
cuja principal atribuição é velar pela garantia da independência dos Juízes e Magistrados no exercício de suas funções
jurisdicionais que são próprias. É presidido pelo Presidente do Tribunal Supremo e composto por vinte vogais, nomeados pelo
Rei.
55 O legislador foi precavido e a LOPJ estabeleceu a criação de uma sala própria, a Sala Especial, quando o julgamento envolver os
Presidentes das Salas do Tribunal Supremo ou quando uma das salas estiver comprometida, pelo envolvimento de todos ou da
maioria de seus membros, conforme dispõe o art. 64 da referida Lei Orgânica. Referida Sala será composta pelo Presidente do
Tribunal Supremo, os Presidentes das Salas e o magistrado mais antigo e mais novo de cada uma delas. A atribuição desta sala
será para a instrução e julgamento das causas contra os Presidentes de Sala ou contra os magistrados de uma sala, nesta última
hipótese quando todos sejam julgados ou a maior parte dos que constituem. Assim, se o Presidente da Sala Penal for processado,
será julgado por esta Sala especialmente composta.
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os Fiscais que atuam no Tribunal Supremo respondem perante este Tribunal (art. 57.2 da LOPJ). Os
demais Fiscais serão processados nos Tribunais Superiores de Justiça, sempre que não possuírem
foro no Tribunal Supremo (art. 73.3 da LOPJ). No mesmo sentido, os Presidentes e os Conselheiros
dos Tribunais de Contas, o Presidente e os Conselheiros de Estado e o Defensor del Pueblo 56
possuem foro perante a Sala Penal do Tribunal Supremo (art. 57.2 da LOPJ).
Por fim, há funções ligadas à Segurança Pública que também possuem foro por prerrogativa
de função. Assim, segundo o art. 8.1.3 da LO 2/1986, os membros das Forças e Corpos de
Segurança do Estado, no exercício de suas funções, seriam processados e julgados perante o
Juzgados de Instrucción quando se tratar de uma falta ou, nos casos de infrações de delitos, perante
a Audiência Provinciales. Porém, o Tribunal Constitucional declarou inconstitucional o parágrafo
primeiro do art. 8 da Lei Orgânica n. 2/1986, porque estabelecia que a instrução e o julgamento
caberiam à mesma autoridade, o que violaria o princípio do juiz natural, conforme STC 145/1988.
Assim, enquanto para uns esta decisão praticamente diluiu e acabou com o referido foro por
prerrogativa de função57, para outros, o foro continua, porém repartindo-se a instrução e o
julgamento entre o Juzgado de Instrucción e a Audiencia Provincial, respectivamente58.
De qualquer sorte, o que se verifica é que os mais altos membros dos Poderes Executivo,
Legislativo e Judiciário são julgados especialmente pelo Tribunal Supremo e pelos Tribunais
Superiores de Justicia, que, sem dúvida, comportam os mais importantes casos de foro por
prerrogativa de função na Espanha.
8. Alcance do foro por prerrogativa de função
Em geral o foro por prerrogativa de função na Espanha é amplo e alcança todas as infrações
praticadas pelo aforado, mesmo que não possuam relação com o exercício das funções (chamado
pela doutrina de aforamento absoluto ou próprio). A exceção a esta regra são os Juízes e membros
do Ministério Públicos julgados pelos Tribunais Superiores de Justiça, que somente possuem foro
por delitos o faltas cometidos “en el ejercicio de su cargo” , nos termos do art. 73.3.b da LOPJ
56 Vale destacar que o Defensor del Pueblo é uma figura particular da Espanha. É um órgão do Poder Legislativo encarregado de
receber reclamações do povo especialmente sobre os serviços públicos. Porém, não possui poder de propor ações civis ou penais
para correção das irregularidades. Sua atribuição se limita à recomendação – com alto grau de aceitação, diga-se de passagem –
para que sejam observadas as disposições legais. Caso referida recomendação não seja acatada, elabora um relatório para o Poder
Legislativo para que este tome as providências que entender cabíveis.
57 CASTILLO GÓMEZ, Manuel M. Gómez Del. Los aforamientos en España en el ámbito penal. In: Revista Alzada, n. 77,
abril/junho 2004, p. 74.
58 PÉREZ-CRUZ MARTÍN, Agustín-Jesús. FERREIRO BAAMONDE, Xulio-Xosé; PIÑOL RODRÍGUEZ, José Ramón;
SEOANE SPIEGELBERG, JOSÉ LUIS. Derecho Procesal Penal. Derecho Procesal Penal. Navarra: Civitas, 2009, p. 78.
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(chamados de aforamento impróprio)59.
9. Instrução dos casos de foro por prerrogativa de função
Vale destacar que o art. 303 da LECrim afirma que a primeira fase do processo penal – a
instrução ou sumário - , em hipóteses de foro por prerrogativa de função, não será de competência
do juiz instrutor ordinário. Porém, nos casos de foro por prerrogativa de função estabelecido nos
Tribunales Superiores de Justicia e do Tribunal Supremo – que são os mais importantes - não se
instituiu um Juízo ou Tribunal a quem seria responsável pela instrução, em substituição ao juiz
instrutor ordinário. Como consequência, tanto a instrução como a decisão cabem ao próprio
Tribunal60. Porém, vale relembrar que o Tribunal Constitucional, conforme decisão já mencionada STC 145/1988- entende que não é possível ao juiz instrutor participar do julgamento da fase oral.
Justamente por isto, alterou-se a LOPJ para determinar que quando o Tribunal deva instruir e
decidir, será designado, segundo um turno preestabelecido, um instrutor entre os membros do
Tribunal, que não poderá formar parte do julgamento 61. Neste caso, o Magistrado da Sala assume
com plenitude as faculdades de instrução62. Pode-se verificar, assim, que a fase de instrução é
incumbida a um dos Magistrados do próprio Tribunal, que ficará impedido de fazer parte do
julgamento. É o que se chama de Juez Instructor Especial. Este Juiz irá realizar todas as diligências
da fase do sumário, preparando o julgamento para a fase do Juízo Oral.
Porém, nada impede que este Juiz de Instrução delegue suas atribuições para um Juiz
Instrutor chamado de ocasional ou comissionado, que é o juiz instrutor diverso do originário. Pode
ocorrer tal delegação, no caso de foro por prerrogativa de função, em duas hipóteses: por delegação
do juiz instrutor e por disposição legal, em caso de urgência. Vejamos separadamente.
Na primeira hipótese ocorre delegação do próprio Juiz de Instrução do Tribunal, sempre que
houver “imprescindível necessidade”, nos termos do art. 303, IV, da LECrim, designando-se um
Juiz de Instrução do lugar onde deva ser praticada a diligência.
Na segunda hipótese, a lei autoriza que um Juiz Instrutor ordinário – ou seja, de primeiro
grau - realize atos e diligências urgentes. Assim, antes de enviar os autos ao Tribunal competente, o
juiz instrutor ordinário poderá determinar a realização de algumas diligências urgentes e cautelares,
59 CASTILLO GÓMEZ, Manuel M. Gómez Del. Los aforamientos en España en el ámbito penal. In: Revista Alzada, n. 77,
abril/junho 2004, p. 73.
60 MORENO CATENA, Víctor. Derecho Procesal Penal. Valencia: Tirant lo blanch, 3ª ed., 2008, p. 72.
61 MORENO CATENA, Víctor. Derecho Procesal Penal. Valencia: Tirant lo blanch, 3ª ed., 2008, p. 72.
62 GÓMEZ COLOMER, Juan Luiz. Derecho jurisdiccional III: proceso penal. Valencia: Tirant lo blanch, 2009, 17ª ed., p. 127.
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em que houver perigo na demora. Neste caso, haverá a atuação do juízo de primeira instância
apenas para preparação da causa pelos delitos cometidos pelas autoridades com prerrogativa de
função, realizando os atos urgentes, ou seja, a determinação de medidas cautelares relacionadas à
prova, ao acusado e às vítimas. Estas primeiras diligências, segundo o art. 13 da LECrim, serão a
“de consignar las pruebas del delito que puedan desaparecer, la de recoger y poner en custodia
cuanto conduzca a su comprobación y a la identificación del delincuente, la de detener, en su caso, a
los presuntos responsables del delito, y la de proteger a los ofendidos o perjudicados por el mismo,
a sus familiares o a otras personas”. De qualquer sorte, após a realização destas diligências e já
identificada a participação do aforado, o juiz instrutor ordinário remeterá causa o mais breve
possível ao Tribunal, em prazo que não supere três dias, para que o Tribunal competente resolva
sobre a abertura do sumário (art. 303 LECrim). Veremos abaixo, em tópico próprio, o momento
próprio para a remessa dos autos ao Juízo competente.
10. Modificação das regras de competência em razão da conexão
No presente tópico estudaremos o que ocorre em relação ao foro por prerrogativa de função
quando há conexão subjetiva ou objetiva entre infrações.
Inicialmente, destaque-se que o foro por prerrogativa de função prevalece sobre o foro
estabelecido em razão da matéria. Assim, se um delito é de competência da Audiência Nacional
(terrorismo, por exemplo), mas foi praticado por um Conselheiro de Governo de Alguma
Comunidade Autônoma, com foro no Tribunal Superior de Justicia, o julgamento será deste último
Tribunal63.
De outro giro, é de se perquirir o que ocorre se uma pessoa sem foro de prerrogativa de
função é processada conjuntamente outra pessoa aforada. Segundo o art. 272 I e II da LECrim, se
várias pessoas são imputadas em um processo por crimes conexos e uma delas possui foro por
prerrogativa de função, em princípio o julgamento será atribuído ao órgão jurisdicional superior 64.
Vale destacar que as causas de conexão estão disciplinadas no art. 17 da LECrim 65, sendo que
63 MORENO CATENA, Víctor. Derecho Procesal Penal. Valencia: Tirant lo blanch, 3ª ed., 2008, p. 69.
64 “Artículo 272. Si el querellado estuviese sometido, por disposición especial de la Ley, a determinado Tribunal, ante éste se
interpondrá la querella. Lo mismo se hará cuando fueren varios los querellados por un mismo delito o por dos o más conexos, y
alguno de aquéllos estuviese sometido excepcionalmente a un Tribunal que no fuere el llamado a conocer, por regla general, del
delito”.
65 “Artículo 17. Considérense delitos conexos: 1. Los cometidos simultáneamente por dos o más personas reunidas, siempre que
éstas vengan sujetas a diversos Jueces o Tribunales ordinarios o especiales, o que puedan estarlo por la índole del delito; 2. Los
cometidos por dos o más personas en distintos lugares o tiempos si hubiera precedido concierto para ello; 3. Los cometidos como
medio para perpetrar otros o facilitar su ejecución; 4. Los cometidos para procurar la impunidad de otros delitos; 5. Los diversos
delitos que se imputen a una persona al incoarse contra la misma causa por cualquiera de ellos, si tuvieren analogía o relación
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majoritariamente se entende que se trata de numerus clausus.
Em princípio, como dito, nestes casos de conexão subjetiva o julgamento de todos os réus –
com ou sem foro por prerrogativa de função – ocorrerá no Tribunal superior. Ou seja, as pessoas
não aforadas, quando cometem um crime com outra pessoa sujeita a foro por prerrogativa de
função, serão julgadas no juízo do foro de prerrogativa.
Porém, é interpretação corrente na doutrina e na jurisprudência espanhola, sobretudo do
Tribunal Supremo, que a competência por prerrogativa de função, por ser exceção ao princípio da
igualdade, da segurança jurídica e do juiz natural, deve ser interpretada restritivamente. Justamente
por isto, embora inicialmente o foro seja para todas as partes envolvidas, o Tribunal Supremo, em
regra, somente mantém no foro por prerrogativa de função as pessoas aforadas 66. Para os que não
possuem foro por prerrogativa de função, como o Tribunal não possui a condição de Juiz
predeterminado por lei67, deverá ocorrer a cisão da causa, remetendo-se o julgamento para a
primeira instância. Apenas em casos excepcionais, quando justificados por razões de possível
ruptura da continência da causa ou contradições nas decisões que puderem ser tomadas, o foro por
prerrogativa se estenderá ao corréu sem foro68.
10.1. Tribunal del Jurado e foro por prerrogativa de função.
Interessante solução adota a Lei Espanhola sobre as hipóteses em que o Tribunal del Jurado
deve julgar uma pessoa aforada. Como já dito, o Tribunal del Jurado possui competência assegurada
na Constituição Espanhola, como forma de participação do cidadão na Administração da Justiça.
Porém, diferente do Brasil, o texto constitucional delegou à Lei a fixação de sua competência, o que
foi desincumbido pela Lei Orgânica n. 5/1995. Como já foi dito, a composição do Tribunal del
Jurado é formada por nove jurados e por um magistrado, em geral, integrante da Audiencia
Provincial, que o presidirá (art. 2.1 LO n. 5/1995). Porém, quando a questão envolver julgamento de
entre sí, a juicio del Tribunal, y no hubiesen sido hasta entonces sentenciados”.
66 ATS 8170/2009, Tribunal Supremo. Sala de lo Penal, Municipio: Madrid -- Sección: 1, Ponente: FRANCISCO MONTERDE
FERRER, Nº Recurso: 20106/2009, Fecha: 04/05/2009
67 Neste sentido, decidiu o Tribunal Supremo: “Con respecto a los no aforados este Tribunal no tiene esa condición de Juez
predeterminado por la ley. La doble consideración de los principios en juego, el derecho al Juez predeterminado por Ley y las
exigencias de la seguridad jurídica, hace necesario que en los supuestos de concurrencia de aforados y no aforados se determine
en las incoaciones, con precisión y claridad, el ámbito de la competencia de esta Sala para la instrucción de las causas valorando
el contenido esencial que el derecho fundamental comporta y las exigencias de la seguridad jurídica que, respectivamente,
puedan concurrir, y sobre las que no pueden realizarse juicios apriorísticos.- Así declaramos la competencia exclusivamente sobre
el aforado Sr. Millán” (ATS 2485/2008, Tribunal Supremo. Sala de lo Penal Municipio: Madrid -- Sección: 1, Ponente: JUAN
RAMON BERDUGO GOMEZ DE LA TORRE, Nº Recurso: 20662/2007 -- Fecha: 05/05/2008).
68 STS 22.10.04 (RC 2222/2003).
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pessoa com foro de prerrogativa de função em que o juízo deva se celebrar no âmbito do Tribunal
Supremo ou do Tribunal Superior de Justicia, o Magistrado-Presidente do Tribunal del Jurado será
um Magistrado da Sala Penal do Tribunal Supremo ou da Sala Civil e Penal do Tribunal Superior de
Justicia, conforme o caso (art. 2.1 LO n. 5/19995)69.
Porém, nas hipóteses em que a competência por prerrogativa de função estiver prevista na
própria Constituição Espanhola – o que ocorre com o Presidente ou membro do Governo, Deputado
e Senador (artigos 102.1 y 71.3) – não poderá o julgamento ser feito pelo Tribunal do Jurado em
nenhuma hipótese, pois nestes casos a própria Constituição indicou o foro por prerrogativa de
função – o Tribunal Supremo – o que não poderia ser alterado por lei infraconstitucional70.
11. Momento para remeter os autos ao foro por prerrogativa de função
Inicialmente, cumpre verificar que analisando a Constituição Espanhola, a LOPJ ou, ainda,
as regras mais específicas (Estatutos de Autonomia, Leis Orgânicas reguladoras de instituições) não
há um momento processual concreto a partir do qual as regras de competência de foro afastam as
regras gerais71. Somente a Lei que regulamenta o foro por prerrogativa de função na Espanha para
Deputados e Senadores (Lei de 9 de fevereiro de 1912), em seu artigo 2º, determina que a remessa
dos autos ao Tribunal Supremo ou ao Conselho Militar deve ocorrer assim que aparecerem indícios
de responsabilidade contra algum Senador ou Deputado.
De qualquer sorte, sobre o momento oportuno para enviar os autos, o Tribunal
Constitucional e o Tribunal Supremo possuem consolidada linha jurisprudencial no sentido de que
não basta, para deslocar a competência para o foro, a mera imputação, sem dados ou indícios
fundados de responsabilidade contra o aforado. Como se tratam de normas de caráter excepcional
devem ser interpretadas e aplicadas restritivamente (neste sentido, SSTC 68/01 e 69/01, ambas de
13 de março). Assim, é possível a investigação por juízo que não o do aforado, apenas sendo
proibida a prática de atos que sujeitem o aforado a um procedimento penal, que tenha um juízo de
responsabilização, ou, ainda, a prática de atos que materialmente entranhem o mesmo significado
69 No original, assim dispõe o artigo citado: “Si, por razón del aforamiento del acusado, el juicio del Jurado debe
celebrarse en el ámbito del Tribunal Supremo o de un Tribunal Superior de Justicia, el Magistrado-Presidente del
Tribunal del Jurado será un Magistrado de la sala de lo Penal del Tribunal Supremo o de la Sala de lo Civil y Penal del
Tribunal Superior de Justicia, respectivamente”.
70 Circular 3/1995, de 27 de diciembre, de la Fiscalía General del Estado, relativa a los criterios de actuación del Ministerio Fiscal
en el proceso ante el Tribunal del Jurado.
71 Consulta 1/2005 sobre competencia de las Fiscalias para tramitar diligencias de investigacion que afecten a personas aforadas.
Madrid,
31
de
marzo
de
2005.
Disponível
em
http://www.fiscal.es/cs/Satellite?
pagename=PFiscal/Page/FGE_buscadorArchivoDocument&cid=1240559967917&_charset_=UTF8&buscador=1&palabra=aforada&desde=&hasta=&btnBuscar2=Buscar. Acesso em 10 de março de 2010.
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(SSTC 123/01 y 124/01, ambas de 4 de junho)72.
Portanto, a causa somente deve ser atribuída ao foro por prerrogativa de função no momento
em que houver concretos indícios de culpa, dotados de mínima verossimilhança sobre a participação
nos fatos delitivos. Neste sentido, segundo o Tribunal Supremo, o juiz instrutor somente deve
remeter a causa ao Tribunal após individualizar a conduta concreta da pessoa com foro por
prerrogativa de função e depois de indicar algum princípio ou início de prova que possa apoiar esta
imputação. Entende-se que a investigação deve ser esgotada em primeira instância, porém sem
dirigir-se contra o aforado. Somente ao final, quando ficar individualizada a conduta delitiva
concreta da pessoa aforada e, ainda, se houver algum indícios ou princípio de prova que possa vir a
razoavelmente servir de base para a imputação criminal é que os autos devem ser enviados ao foro
por prerrogativa de função, segundo entendimento do Tribunal Supremo (ATS de 12-1-2000, ditada
na Causa Especial 2.490/99)73. Naturalmente a determinação deste momento não pode ser preciso e
concreto, mas sim variará em cada situação concreta em função da constatação dos indícios, sua
relevância de convencimento dos fatos e de participação do aforado 74. Por isto, como decidiu
recentemente o Tribunal Supremo, para que se envie os autos para o Tribunal competente é
necessário “no solo que se individualice la conducta concreta que respecto a ese aforado pudiera ser
constitutiva de delito, sino también que haya algún indicio o principio de prueba que pudiera servir
de apoyo a tal imputación”75.
A finalidade desta interpretação é justamente impedir denúncias, querelas e imputações
insidiosas ou interessadas, com uma desproporcional e desnecessária alteração do regime comum
do processo penal, - uma vez que somente se deve remeter ao foro competente por prerrogativa de
função quando houver indícios concretos de participação. Isto evita a repercussão midiática de
determinadas demandas que afetam pessoas com foro por prerrogativa de função, pois o
deslocamento para o foro por prerrogativa de função é sempre um fator que é muito explorado pela
mídia e pelos opositores com finalidades políticas.
72 Consulta 1/2005 sobre competencia de las Fiscalias para tramitar diligencias de investigacion que afecten a personas aforadas.
Madrid,
31
de
marzo
de
2005.
Disponível
em
http://www.fiscal.es/cs/Satellite?
pagename=PFiscal/Page/FGE_buscadorArchivoDocument&cid=1240559967917&_charset_=UTF8&buscador=1&palabra=aforada&desde=&hasta=&btnBuscar2=Buscar. Acesso em 10 de março de 2010.
73 No mesmo sentido, AATS 21 de enero de 1995, 9 de junio de 1995, 17 de julio de 1995, 18 de julio de 1995, 15 de septiembre de
1995, 11 de septiembre de 1996, 27 de septiembre de 1996, 29 de enero de 1998, 21 de abril de 1998, 23 de abril de 1998, 6 de
julio de 1998, 21 de noviembre de 1999, entre outros.
74 STS 286/2010, Tribunal Supremo, Sala de lo Penal, Recurso n. 1023/2009, Nº de Resolución: 19/2010, Procedimiento:
RECURSO CASACIÓN, Ponente: ANDRES MARTINEZ ARRIETA.
75 ATS 6994/2009, Tribunal Supremo. Sala de lo Penal, FRANCISCO MONTERDE FERRER Nº Recurso: 20184/2009 -Fecha: 21/05/2009.
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12. Perpetuatio jurisdictionis: cessação do exercício do cargo
Na Espanha o foro por prerrogativa de função, segundo entendimento do Tribunal Supremo,
apenas se mantém durante o período em que o aforado mantém-se no cargo. Se a causa está
tramitando em um foro e finda o exercício do cargo, deve o feito ser remetido à primeira instância.
Embora a lei que discipline o foro dos Deputados e Senadores, datada de 9 de fevereiro de 1912,
afirme, em seu art. 1º, que a competência se estenderá até a conclusão do processo, o art. 71.2 da
Constituição Espanhola afirma que o foro se refere ao "periodo de su mandato". Porém, mais além
da interpretação literal, o Tribunal Supremo entende que somente se mantém a prerrogativa
enquanto o agente está no exercício de suas funções por se tratar de medida excepcional, que,
portanto, merece interpretação restritiva. Até porque o foro por prerrogativa diminui as chances
recursais. Embora esta última condição não seja decisiva na definição, deve atuar quando a situação
não for clara76.
Referida interpretação vale inclusive para outros cargos públicos, sendo certo que o Tribunal
Supremo decidiu que o magistrado que perde seu cargo não mantém o foro por prerrogativa de
função (STS 4-4-2001, RC 1737/2000)77. Neste julgado se afirmou que “Si la cesación en esa
condición [juez, magistrado o fiscal] se presenta como irrecuperable (jubilación o renuncia expresa
a ella) parece que la finalidad de proteger la independencia en el desempeño de sus funciones del
individuo afectado no puede presentarse como argumento para mantener el aforamiento”. Ademais,
afirma que tanto quem se aposenta como quem renuncia à condição de juiz deixa efetivamente de
ter esta condição.
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21 de abril de 2010.
76
Neste sentido, as seguintes decisões: ATS 2063/1993, Tribunal Supremo. Sala de lo Penal, Ponente: ENRIQUE RUIZ
VADILLO, Nº Recurso: 240/1992 -- Fecha: 15/12/1993, Tipo Resolución: Auto; ATS 4580/2008, Tribunal Supremo. Sala de lo
Penal, Municipio: Madrid -- Sección: 1, Ponente: JUAN SAAVEDRA RUIZ , Nº Recurso: 132/2005 -- Fecha: 24/06/2008, Tipo
Resolución: Auto;
ATS
4580/2008,
Tribunal
Supremo.
Sala
de
lo
Penal
Municipio: Madrid --,
:
Ponente: JUAN
SAAVEDRA
RUIZ
Nº Recurso: 132/2005 -- Fecha: 24/06/2008, Tipo Resolución: Auto Sección: 1.
77 STS 2834/2001, Tipo Órgano: Tribunal Supremo. Sala de lo Penal , Municipio: Madrid -- Sección: 1 , Ponente: JOAQUIN
MARTIN , CANIVELL Nº Recurso: 1737/2000 -- Fecha: 04/04/2001
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