Hemicrânia paroxística episódica: um novo caso

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Hemicrânia paroxística episódica: um novo caso
RELATO DE CASO
Hemicrânia paroxística episódica: um novo caso (?)
Episodic paroxismal hemicrania: a new case (?)
Roldão Faleiro de Almeida
Hospital Belo Horizonte
Ambulatório de Cefaléia do Hospital da Polícia Militar de Minas Gerais
Belo Horizonte, MG
RESUMO
Introdução: A hemicrânia paroxística episódica (HPE) é uma rara
cefaléia que se caracteriza por períodos de dor hemicraniana associada a sintomas autonômicos cranianos, separados por períodos de
remissão, como na cefaléia em salvas episódica (CSE). Objetivos:
Relatar um novo caso de hemicrânia paroxística episódica e discutir
os seus diagnósticos diferenciais pertinentes. Métodos: Um caso clínico é relatado, e a literatura relevante quanto ao diagnóstico diferencial é revisada. Conclusões: A HPE diferencia-se das demais
cefaléia trigêmino-autonômicas pela freqüência, duração e gatilho
dos episódios, além de apresentar uma absoluta resposta à indometacina.
PALAVRAS-CHAVE
Hemicrânia paroxística episódica; hemicrânia paroxística crônica;
SUNT; cefaléia em salvas; indometacina.
ABSTRACT
Background: Episodic paroxysmal hemicrania (EPH) is a rare
headache characterized by bouts of hemicranial pain with cranial
autonomic symptoms separated by periods of pain-free remissions,
very similar to episodic cluster headache (ECS). Objectives: To describe
a new case of episodic paroxysmal hemicrania, and to discuss its
pertinent differential diagnosis. Methods: A case is reported and the
relevant literature concerning differential diagnosis is reviewed.
Conclusion: EPH differs from other trigeminal-autonomic headaches
in the frequency, duration and triggering of the episodes, as well as in
its complete response to treatment with indomethacin.
INTRODUÇÃO
Tendo como principal representante a cefaléia em salvas (CS), as cefaléias trigêmino-autonômicas englobam um
grupo de cefaléias primárias que provavelmente compartilham as mesmas bases fisiopatológicas e apresentam basicamente o mesmo quadro clínico que se caracteriza geralmente por uma intensa dor estritamente unilateral associada a uma proeminente sintomatologia autonômica craniana,
porém divergem-se em relação ao padrão temporal das
crises e ao tratamento.
De acordo com a atual classificação da Sociedade Internacional de Cefaléias,1 estas cefaléias estão dispostas
no Grupo III, sendo que dois novos elementos passam a
integrá-lo: a SUNCT e a hemicrânia paroxística episódica
(HPE).
Apesar de ser considerada uma cefaléia muito rara
(com algumas dezenas de casos relatados), citaremos um
caso, cujas características nos levaram a pensar na possibilidade de tratar-se da HPE, levando-se em conta o
padrão temporal das crises, com fases de dor intercaladas por períodos de remissão, a presença de sintomatologia
autonômica craniana, a não resposta aos tratamentos propostos para cefaléia em salvas e para a migrânia e absoluta resposta à indometacina.
KEY-WORDS
Episodic paroxysmal hemicrania; chronic paroxysmal hemicrania;
SUNCT; cluster headache; indomethacin.
RELATO DE CASO
Uma mulher de 57 anos procurou-nos pela primeira
vez em 12/03/2003 com história de uma cefaléia recorrente fronto-orbital direita iniciada há mais ou menos 20 anos,
que ocorria em séries que permaneciam em média por dois
meses, separadas por períodos de remissão que duravam
em torno de dois anos. Os ataques demoravam menos de
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20 minutos e ocorriam três vezes ao dia. A dor era forte,
pulsátil, em pontadas ou em ardume, associada a náusea,
fobias sensoriais, semiptose e edema palpebrais, lacrimejamento e congestão nasal.
Quando nos procurou, estava sofrendo crises quase
diárias há duas semanas, usando pizotifeno e isometepteno,
sem melhora do quadro. Pensamos inicialmente em cefaléia
em salvas, sendo iniciado prednisona (60 mg/dia) com
suspensão dos demais medicamentos. Após uma semana,
a paciente retornou, relatando não ter havido o menor benefício com a medicação que foi, então, retirada.
Pensamos na possibilidade da paciente ser portadora
de HPE e iniciamos indometacina (25 mg em três tomadas
diárias) com total remissão do quadro em três dias, sendo
a medicação descontinuada pela própria paciente.
Em 01/07/2005 a paciente retornou com o mesmo
quadro iniciado havia um mês, usando desde então
amitriptilina, propranolol e diclofenaco de sódio prescritos por outro neurologista, porém sem o menor alívio
das crises.
Suspendemos as medicações prescritas e novamente
iniciamos indometacina. Após dois dias, a paciente já se
encontrava totalmente livre da dor, sendo a medicação
mantida por um prazo de duas semanas e descontinuada,
ficando a paciente assintomática até o momento.
DISCUSSÃO
A hemicrânia paroxística crônica foi descrita pela primeira vez em 1974 por Sjaastad e Dale2, porém, em 1987,
Kudrow3 começou a chamar a atenção para as formas
episódicas desta cefaléia, sugerindo que remissões cíclicas
na hemicrânia paroxística crônica poderiam ser consideradas um fenômeno transitório que inevitavelmente conduziria a um estágio crônico (pré-hemicrânia paroxística
crônica).
Em seu trabalho intitulado "Episodic paroxysmal
hemicrania?",3 Kudrow relata seis casos, sendo três homens e três mulheres, com a média de idade para início
das crises entre 27 e 50 anos e a média de duração em
torno de dois meses com a remissão durando em média
oito meses. A resposta à indometacina (75 mg/dia) foi dramática em praticamente todos os casos. Desde então, novos casos têm sido relatados, apresentando invariavelmente
uma absoluta resposta a indometacina.4
De acordo com a atual classificação,1 os critérios diagnósticos são os mesmos para a HPE e HPC, porém a
HPC ocorre basicamente sem períodos de remissão (Quadro 1).
As hemicrânias paroxísticas (tanto na sua forma
episódica com na sua forma crônica) podem ser conside24
Quadro 1
Critérios diagnósticos para as
Hemicrânias Paroxísticas Episódica e Crônica
Hemicrânias Paroxísticas
A. Pelo menos 20 crises preenchendo os critérios de B a D
B. Crise forte unilateral, orbitária, supra-orbitária ou temporal,
durando de 2 a 30 minutos
C. Pelo menos um dos ítens associados:
1. hiperemia conjuntival e/ou lacrimejamento ipsilaterais
2. congestão nasal e/ou rinorréia ipsilaterais
3. edema palpebral ipsilateral
4. sudorese frontal e facial ipsilateral
5. miose e/ou semiptose palpebral ipsilateral
D. As crises têm uma freqüência superior a cinco por dia em mais
da metade do tempo, ainda que períodos de menor freqüência
possam ocorrer
E. As crises são absolutamente responsivas à indometacina
F. Quadro não é atribuído a outro transtorno
radas entidades clínicas raras, sendo mais encontradas em
adultos caucasianos, embora possam ocorrer também em
negros sul-africanos.5 Se, por um lado, a HPC pode ser
mais prevalente nas mulheres na razão de 3:1,6 a HPE não
apresenta preponderância por gênero.
Clinicamente caracteriza-se por uma intensa dor de
severidade excruciante (terebrante), com qualidade pulsátil,
em pontadas ou em queimação, localizada na região frontoorbital, estritamente unilateral, durando em média dez a
trinta minutos, ocorrendo cinco ou mais vezes ao dia (podendo variar de um até quarenta ataques por dia) e sem
predominância noturna.7 De modo associado e contemporaneamente ao quadro álgico, ocorrem sintomas autonômicos cranianos (pelo menos um) e até mesmo sintomatologia migranosa.4,7 Durante a crise, aproximadamente 50%
dos sofredores permanecem quietos, enquanto a outra metade apresenta um comportamento semelhante ao do paciente sálvico, com sensação de inquietude ou agitação.7
O que diferencia as hemicrânias paroxísticas entre si
é o fato da HPC poder ocorrer basicamente sem períodos
livres de dor, enquanto a HPE apresenta um comportamento semelhante ao da cefaléia em salvas, com períodos
de dor intercalados por fases de remissão.
O diagnóstico diferencial das hemicrânias paroxísticas
deve ser feito com a cefaléia em salvas (o diagnóstico diferencial mais próximo da HPE) e com as cefaléias secundárias, que, neste caso, podem ter um comportamento semelhante ao da HPC. Outros diagnósticos podem ser lembrados, como a neuralgia trigeminal (cujo diagnóstico diferencial mais próximo e às vezes desafiador é a SUNCT)
e as migrâneas que podem ocorrer de modo agrupado
(migrânea cíclica) e/ou associada à sintomatologia autonômica craniana.
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HEMICRÂNIA PAROXÍSTICA EPISÓDICA: UM NOVO CASO (?)
Tentaremos agora "confrontar" a HPE com seus principais diagnósticos diferenciais, explicando o motivo que
nos fez pensar na possibilidade de estarmos diante de mais
um novo caso.
Cefaléia em Salvas
A cefaléia em salvas apresenta um padrão temporal
semelhante ao da HPE, com crises de cefaléia intensa associadas à sintomatologia autonômica craniana, porém
apresenta uma maior prevalência no sexo masculino8 e
boa resposta ao tratamento profilático transicional com
corticóides, 6,-10 porém não apresenta resposta à indometacina. No caso relatado, a paciente usou prednisona
por sete dias, sem a menor resposta terapêutica.
Migrânea
A migrânea pode apresentar um comportamento temporal semelhante ao da cefaléia em salvas e da HPE, ocorrendo de modo seriado, com fases de dor intercaladas por
períodos de remissão, podendo ser sensível ao lítio,11 denominada migrânea cíclica. A migrânea também pode apresentar-se associada à sintomatologia autonômica craniana.12
Em relação ao nosso caso clínico, apesar da paciente apresentar sintomatologia migranosa (que, como sabemos, pode
ocorrer), os ataques duravam em média vinte minutos (uma
crise migranosa demora de 4 a 72 horas) e, além do mais,
quando nos procurou pela segunda vez estava em uso de
propranolol e amitriptilina havia aproximadamente um mês,
sem nenhum benefício.
Hemicrânia Paroxística Crônica
Apesar de apresentar um quadro clínico idêntico ao
da sua "irmã caçula", a HPC caracteriza-se pela ausência
das fases de remissão, apesar da absoluta resposta à indometacina. Por outro lado, a nossa paciente procurou-nos
pela segunda vez depois de quase dois anos, uma vez que
durante este período estivera sem dor, sugerindo, portanto, o aspecto cíclico da HPE.
SUNCT (Severe unilateral neuralgiform headache
with conjuctival injection and tearing)
A SUNCT caracteriza-se por episódios dolorosos que
ocorrem basicamente sem períodos de remissão, sendo que
as crises são de curtíssima duração (de poucos segundos a
poucos minutos) e de alta freqüência (em média 28 crises
por dia), não respondendo aos tratamentos propostos para a
cefaléia em salvas, tampouco para a HPE, porém podendo
ser sensível a alguns neuromoduladores.7,13,14
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Mas, por que as hemicrânias paroxísticas respondem
de forma tão espetacular ao tratamento com a indometecina?
Esta é uma pergunta difícil de responder, pois se fosse
simplesmente pela inibição da transformação do ácido
aracdônico em prostaglandina, inibindo a enzima ciclooxigenase-2, outros AINEs cumpririam esta missão com a
mesma eficácia. Portanto, esta droga apresenta outros mecanismos de ação não totalmente elucidados.
Goadsby e Edvinson15 relatam o caso de uma mulher
portadora de HPC que teve uma amostra de seu sangue
retirado de sua veia jugular externa durante um episódio
doloroso e quando em uso de indometacina. Durante a fase
de dor, os níveis de CGRP (peptídeo relacionado ao gene
da calcitonina), que é um marcador da ativação trigeminal,
estavam em 123 pmol/L, comparados com os níveis de 41
pmol/L, medidos quando estava usando indometacina. O
mesmo ocorreu com os níveis do VIP (peptídeo intestinal
vasoativo), que é um neurotransmissor que marca a ativação parassimpática, pois este apresentava níveis de 32
pmol/L durante o ataque e níveis de 7 pmol/L durante o
uso do referido AINE.
Assim sendo, houve aumento de ambos os neuropeptídeos durante os "bouts" de dor e normalização com
o uso da indometacina, sugerindo-se, portanto, que esta
medicação possa apresentar alguma ação sobre a liberação destes neurotransmissores e, até mesmo, que as hemicrânias paroxísticas possam compartilhar os mesmos mecanismos fisiopatológicos com a cefaléia em salvas.15
Vale lembrar que as hemicrânias paroxísticas podem
responder de forma menos brilhante a outras drogas, como
naproxeno sódico, piroxicam, verapamil6 inibidores de COX2 e até mesmo o sumatriptano injetável,16 o que pode dificultar o seu diagnóstico caso as características clínicas
dos episódios de dor não tenham sido bem detalhados.
Baseando-se nos dados acima e na absoluta resposta a indometacina (a qual, aliás, pode ser empregada como
teste terapêutico), acreditamos tratar-se de mais um caso
desta rara entidade nosológica denominada HPE.
REFERÊNCIAS
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Recebido: 08/01/2006
Aceito: 23/01/2006
Endereço para correspondência
Roldão Faleiro de Almeida
Rua Castelo de Guimarães, 471/401– Castelo
31.330-250 – Belo Horizonte-MG
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