Migrânea oftalmoplégica.p65
Transcrição
Migrânea oftalmoplégica.p65
RELATO DE CASO Migrânia Oftalmoplégica Ophthalmoplegic Migraine Paulo Hélio Monzillo,1 Victor Marçal Saab,2 Gustavo Guimarães Protti,2 Agnaldo Rodrigues da Costa,3 Wilson Luiz Sanvito4 1 Coordenador do Ambulatório de Cefaléia da Disciplina de Neurologia da Santa Casa de São Paulo; 2 Médico Residente da Disciplina de Neurologia da Santa Casa de São Paulo; 3 Médico da Disciplina de Neurologia da Santa Casa de São Paulo; 4 Professor Docente-Livre da Disciplina de Neurologia da Santa Casa de São Paulo RESUMO KEY WORDS A Migrânea Oftalmoplégica (MO) é uma condição extremamente rara e de etiologia controversa, caracterizada por crises recorrentes de cefaléia unilateral fixa (sem alternância de lado), associada a paresia de um ou mais nervos oculomotores (III, IV ou VI) homolaterais à dor. É descrita uma paciente com diagnóstico de MO, de acordo com os critérios estabelecidos pela International Headache Society (IHS-2004), com aspectos clínicos e demográficos não usuais. Ao contrário das descrições da literatura, sua primeira crise ocorreu na idade adulta. Houve troca de lado num dos episódios e no último evento ocorreu apenas a manifestação ocular sem a presença de cefaléia. Em virtude do diagnóstico de MO ser sempre de exclusão, abordaremos outras causas de oftalmoplegia dolorosa a serem afastadas através de investigação apropriada. Ophthalmoplegic migraine; painful ophthalmoplegia; ocular pain. PALAVRAS-CHAVE Migrânea oftalmoplégica; oftalmoplegia dolorosa; dor ocular. ABSTRACT Ophthalmoplegic migraine (OM) is a rare syndrome in which episodic fixed unilateral headaches are associated with ipsilateral ophthalmoplegia. Its pathophysiology remains obscure. We describe a patient with OM according to the International Headache Society (IHS-2004) criteria, who had an unusual demographic and clinic presentation. The first OM episode occurred in adult life, the side of the pain changed in one episode and she also has oculomotor abnormalities without pain. We discuss the differential diagnosis and the need for etiologic investigation in theses cases. 140 INTRODUÇÃO A migrânea oftalmoplégica (MO) foi inicialmente descrita por Gubler em 1860, mas foi Charcot quem introduziu o termo “migraine ophtalmoplégique” em 1890, ao relatar o vigésimo caso de MO à época. Até 1974 haviam sido relatados apenas 116 casos de MO, sendo que apenas uma minoria deles havia sido investigada com angiografia cerebral.1 De acordo com a classificação da IHS-1988,2 a MO foi considerada uma variante da enxaqueca, entretanto sempre se indagou a real relação (clínica e fisiopatológica) com esta forma de cefaléia primária. De fato, as características clínicas das crises da MO (que não preenchem os critérios para enxaqueca), o comprometimento oculomotor por vezes desvinculado da crise álgica por um período de dias, vinham deixando a MO cada vez mais distante de qualquer forma clínica de migrânea.3 O emprego da ressonância magnética (RM) como método investigativo acabou por separar definitivamente estas duas entidades, uma vez que alguns pacientes com MO apresentam captação anormal de contraste paramagnético na região cisternal do nervo oculomotor comprometido. Razão pela qual, a IHS-2004 passou a incluir a Migrâneas cefaléias, v.7, n.4, p.140-142,out./nov./dez. 2004 MIGRÂNEA OFTALMOPLÉGICA MO no grupo das Neuralgias Cranianas e Causas Centrais de Dor Facial.3 A MO é caracterizada, como segue, na classificação da IHS-2004: Descrição Crises recorrentes de cefaléia com características migranosas associadas a paresia de um ou mais nervos oculares (comumente o III nervo), na ausência de outra lesão intracraniana demonstrável, exceto as alterações à RM do próprio nervo afetado. Critérios diagnósticos A. Pelo menos duas crises preenchendo o critério B e C. B. Cefaléia migrânea-símile, acompanhada ou seguida dentro de quatro dias do seu início, por paresia de um ou mais dentre os III, IV e/ou VI nervos cranianos. C. Lesões paraselares, na fissura orbital e fossa posterior excluídas por investigação apropriada. Comentários Esta condição é muito rara. É improvável que a 13.17 Migrânea Oftalmoplégica seja uma variante da migrânea, uma vez que a cefaléia freqüentemente dura uma ou mais semanas e há um período latente de quatro dias entre o início da cefaléia e o início da oftalmoplegia. Além disso, em alguns casos a RM mostra um realce pelo gadolínio na porção cisternal do nervo afetado, o que sugere uma neuropatia desmielinizante recorrente.3 RELATO DO CASO Mulher, 34 anos, branca, doméstica, natural e procedente de São Paulo. Há sete anos iniciou quadro de cefaléia de início súbito, forte intensidade, hemicraniana esquerda fixa, latejante, que se irradiava à região ocular deste mesmo lado. Esta crise apresentou duração de 15 dias e foi acompanhada de náusea, vômito, fotofobia e fonofobia. A paciente não tinha lembrança de qualquer fator desencadeante. A intensidade da dor era amenizada substancialmente com o uso de naproxeno sódico, na dose única diária de 550 mg (via oral). Cerca de dois dias após o término da crise, houve o aparecimento de quadro visual, caracterizado pela presença de diplopia horizontal, secundária ao comprometimento dos nervos III e VI, ipsolaterais à manifestação dolorosa prévia. Esta oftalmoplegia perdurou por cerca de duas semanas, com recuperação completa do déficit. A paciente foi submetida nesta ocasião à investigação complementar, com exames laboratoriais, tomografia computadorizada (TC) de crânio, RM de crânio, exame do Migrâneas cefaléias, v.7, n.4, p.140-142, out./nov./dez. 2004 líquor cefalorraquidiano (LCR) e angiografia cerebral digital dos quatro vasos, que não evidenciaram nenhuma anormalidade. No período de sete anos, ocorreram mais 11 episódios, sempre à esquerda e todos com características clínicas superponíveis. A exceção de um deles, que, embora semelhante, ocorreu no lado direito. Os intervalos assintomáticos entre uma crise e outra foram em média, de seis meses. Os períodos de dor tiveram uma duração média de 2 a 15 dias e a oftalmoplegia de 7 a 240 dias, todas com recuperação completa. Para excluir-se o diagnóstico de Síndrome de TolosaHunt, foi introduzido teste terapêutico com prednisona 1mg/ kg/dia por quatro dias, na vigência do segundo episódio, sem que houvesse qualquer tipo de melhora clínica. Foi então sugerido tratamento profilático para enxaqueca, porém a paciente recusou-se a utilizá-los. Transcorridos sete anos do evento inicial, a paciente apresentou quadro de diplopia horizontal, às custas de paresia do nervo abducente esquerdo, não precedida ou acompanhada por cefaléia ou dor ocular. Nesta ocasião, o restante do exame neurológico era normal, assim como a avaliação oftalmológica e a investigação complementar com TC. Eletrocardiograma, lactato sérico, glicemia e prova de falcização foram realizados neste episódio, para excluir-se doença mitocondrial (Kearns-Sayres), neuropatia diabética e anemia falciforme, respectivamente. A paresia indolor do nervo abducente que se desenvolveu durante o último episódio de MO persiste após dois anos de seguimento clínico. DISCUSSÃO A MO é uma entidade rara cuja manifestação inicial geralmente ocorre na infância e de predomínio no sexo masculino.1,4,5 Descrevemos uma MO numa mulher, cuja primeira manifestação clínica ocorreu somente aos 26 anos de idade. Exceto pelo último episódio, no qual não houve concomitância do quadro doloroso, todos os demais preenchiam os critérios estabelecidos pela IHS- 2004. Os nervos oculomotor (III) e o nervo abducente (VI) foram os mais freqüentemente comprometidos, evidenciando uma combinação não usual.6 Na maioria dos casos de MO encontrados na literatura, o nervo oculomotor é o mais freqüentemente acometido e de forma isolada,1,4,5 uma vez que a paresia do nervo abducente, isolada ou não, é relatada em apenas 10% dos casos.7 O comprometimento do nervo troclear é excepcional.8 Chamou-nos também a atenção, no caso ora relatado, a alternância dos sintomas, com troca de lado num dos 141 PAULO HÉLIO MONZILLO E COLABORADORES episódios. Não encontramos na literatura consultada, citação semelhante. Embora não seja usual a persistência do déficit após episódios recorrentes de oftalmoplegia,6 alguns pacientes com quadro de MO podem desenvolver seqüelas da motricidade ocular ao longo do seguimento clínico.1,4 A etiologia da MO permanece ainda uma questão em aberto. Diferentemente da classificação da IHS-1988,2 que considerava a MO uma forma de cefaléia primária (grupo das enxaquecas), atualmente esta entidade encontra-se incluída dentro de um grupo de entidades cujas manifestações dolorosas possivelmente apresentem um substrato orgânico subjacente (IHS-2004). E possivelmente numa futura revisão da classificação, nem receba mais a sinonímia de “migrânea”, uma vez que as características clínicas das crises de MO, embora semelhantes a uma crise de enxaqueca, não satisfazem completamente os critérios diagnósticos estabelecidos. Atualmente o principal diagnóstico diferencial da MO é a Síndrome de Tolosa-Hunt. Ambas as entidades podem apresentar alterações inespecíficas no exame de RM de crânio, entretanto em diferentes topografias. Alterações de imagem à semelhança das encontradas na MO são descritas em outras doenças, como em algumas infecções virais, em processos desmielinizantes (Síndrome de MillerFischer), na paralisia de Bell, na neuropatia sensorial do nervo trigêmeo e na polineuropatia inflamatória desmielinizante crônica (PIDC), quando há comprometimento de nervos oculomotores.9,10 As alterações da captação de contraste paramagnético na região cisternal do nervo comprometido9 durante a crise de MO não são observadas em todos os pacientes. Sua ausência, portanto, não constitui critério excludente para esta entidade, à semelhança do caso aqui relatado, cuja RM de crânio não revelou anormalidades. Em sua revisão, Carlow reuniu casos de necropsia de pacientes com MO, nos quais a descrição histopatológica de três deles foi compatível com hipertrofia e formação cicatricial no nervo, talvez conseqüentes a episódios repetidos de desmielinização e remielinização,11 consistente com os achados por vezes encontrados no exame de RM. Com base nestes dados, muitos autores consideram atualmente que a MO esteja mais relacionada com uma forma de neuropatia inflamatória ou desmielinizante recorrente, que envolve nervos oculomotores.1,5,12 como das manifestações oculomotoras podem ocorrer na MO, conforme descrito no caso acima. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS 1. Daroff RB. Random comments: neurologists and neuroophthalmology; the “ocular motor” system; and update on ophthalmoplegic migraine. Semin Neurol 2000;20:145-149. 2. Headache Classification Subcommitee of the International Headache Society. The International Classification of Headache Disorders, Cranial Neuralgias and Facial Pain. Cephalalgia 1988;8(suppl 7):1-96. 3. Headache Classification Subcommitee of the International Headache Society. The International Classification of Headache Disorders – 2nd edition. Cephalalgia 2004;24(suppl 1):s1-s160. 4. Walsh FB, Hoyt WT. Clinical Neuro-Ophthalmology, 5th ed. Vol 1. Baltimore: Williams & Wilkins, 1998:1227. 5. Lance JW, Zagami AS. Ophthalmoplegic migraine: a recurrent demyelinating neuropathy? Cephalalgia 2001;21: 84-89. 6. O’Halloran HS. Ophthalmoplegic migraine with unusual features. Headache 1999;39:670-3. 7. Verhagen WI, Prick MJ, van Dijk Azn R. Onset of ophthalmoplegic migraine with abducens palsy at middle age? Headache 2003;43:798-800. 8. Wong AMF, Sharpe JA. Fourth nerve palsy in migraine. Neuroophthalmology 1996;16:51-54. 9. Mark AS, Casselman J, Brown D, et al. Ophthalmoplegic migraine: reversible enhancement and thickening of the cisternal segment of the oculomotor nerve on contrast-enhanced MRI images. Am J Neuroradiol 1998;19:1887-1891. 10. Arroyo JG, Horton JC. Acute, painful, pupil involving third nerve palsy in chronic inflammatory demyelinating neuropathy. Neurology 1995;45:846-847. 11. Carlow TJ. Oculomotor ophthalmoplegic migraine: is it really migraine? J Neuro-Ophthalmol 2002;22:215-221. 12. van der Dussen DH, Bloem BR, Liauw L, et al. Ophthalmoplegic migraine: migrainous or inflammatory? Cephalalgia 2004; 24:312-315. Paulo Helio Monzillo Av. Albert Einstein, 627/1306, Morumbi, 05652-000 – São Paulo/SP [email protected] CONCLUSÃO A MO é uma entidade rara que geralmente se manifesta na idade adulta e constitui sempre um diagnóstico de exclusão. A troca de lateralidade tanto dos sintomas álgicos 142 Migrâneas cefaléias, v.7, n.4, p.140-142,out./nov./dez. 2004
Documentos relacionados
Arquivo da Palestra - VI Jornada Gaúcha de Medicina Física e
Cefaleia durante ≥15 dias por mês por pelo menos 3 meses1 ≥ 5 crises prévias de migrânea1 Durante ≥8 dias por mês, cefaleia preenche os critérios para migrânea1 • ≥2 dos seguintes: a) unilateral; b...
Leia maismigranea hemiplegica.p65 - Sociedade Brasileira de Cefaleia
no braço curto do cromossoma 19p13 e em 20% no cromossoma 1. Em 30% das famílias não há ligação com nenhum dos dois cromossomas demonstrando a existência de pelo menos um terceiro gen (Ducros et al...
Leia maiscefaléia em salvas.p65 - Sociedade Brasileira de Cefaleia
apresenta miose e semiptose palpebral, que permanecem depois de cessada a crise (ataque). Lembramos que uma ou mais das manifestações pode faltar (todas podem faltar em torno de 3% dos casos)4 e qu...
Leia mais