DA VELHA GUERRA FRIA AO NOVO "INIMIGO TOTAL"

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DA VELHA GUERRA FRIA AO NOVO "INIMIGO TOTAL"
DA VELHA GUERRA FRIA AO NOVO "INIMIGO TOTAL"
Raúl Enrique ROJO1
1. Um mundo desorientado
Na grande desordem que confunde a paisagem geopolítica depois da Guerra Fria, todos
os atores procuram achar sentido ou, pior ainda, pretendem impor aos outros sua visão do mundo e das
coisas. Dirigentes e cidadãos conferem "que são incapazes de descobrir o princípio fundador do mundo
pós-comunista"2 e admitem, como Henry Kissinger, que "precisamos encontrar novas formas de
pensar"3.
Conceitos fundamentais como os de "inimigo" ou de "ameaça", tão claros e precisos
durante a Guerra Fria, não têm mais o mesmo sentido sem que se saiba doravante a quem devem ser
aplicados exatamente.
Já no limiar do século XXI, alguns viam a ameaça principal na nebulosa islâmica que,
como uma nova Internacional, a partir de seus principais centros (Arábia Saudita, Irã ou Afeganistão)
procurava desestabilizar outros países muçulmanos como Egito e Argélia, susceptíveis de arrastar em
sua caída uma grande parte do mundo árabe. Face a eles se situavam os que pensavam que o
fundamentalismo muçulmano respondia antes de mais nada a causas locais e se desenvolvia a partir do
fracasso social e econômico de Estados autoritários e amiúde corruptos, como uma sorte de revanche
dos excluídos de uma modernização inacabada e capenga. De fato - segundo certas almas piegas -, sob
a aparência de extremismo religioso se assistia à irrupção tumultuosa e fanática de setores populares
preteridos por diversos regimes autocráticos de um mundo árabe esclerosado.
2. O 11 de setembro
Mas então chegaram os atentados de 11 de setembro de 2001. E um novo inimigo
"total" apareceu no horizonte: o terrorismo internacional. Este é, porém, um inimigo muito diferente dos
enfrentados antes. Este adversário não se refere a um território específico, nem tem una reivindicação
particular (como poderiam ter os movimentos de libertação do passado ou certos nacionalismos mais ou
menos agressivos de hoje, do tipo do ETA ou do IRA). Ele ataca às sociedades democráticas pelo que
1
Doutor em Sociologia pela Ecole des Hautes Etudes en Sciences Sociales (Paris, França). Professor e pesquisador do
Departamento e do Programa de Pós-graduação em Sociologia da UFRGS, assim como de seus Programas de Pósgraduação em Relações Internacionais e em Direito.
2
Raymond Barre, "Nouveau Moyen Age ou nouveaux barbares?", Le Point, 15/01/04.
3
"Conversación con H. Kissinger", El País, 17/01/03.
elas são: sociedades abertas, espaços de mobilidade social, Estados de direito nos quais impera a
separação das esferas pública e privada.
Assim sendo, está claro que é inútil, absurdo e até cobarde acreditar que algum país se
acha mais ou menos resguardado desse inimigo segundo o rumo que possa adotar sua política exterior:
França ou Alemanha (que se opuseram à invasão do Iraque) não estão mais seguras que Espanha, GrãBretanha ou Itália. Além do mais, França já tem sido alvo de ataques fundamentalistas em Karachi, da
mesma maneira que Austrália em Bali, Marrocos em Casablanca e Espanha em Madri. Para a visão de
Al-Qaeda, o território é um só, e o alvo é o mesmo. As sociedades ocidentais são objetivos fáceis,
golpeados em nome de uma batalha "contra os cruzados e os judeus" , com o pretexto da opressão
de que são vítimas os países muçulmanos. Por além, não só os pobres desesperados aderem ao
terrorismo: entre os autores dos atentados de 11 de setembro havia intelectuais e engenheiros, filhos de
famílias abastadas. E o mentor intelectual, Osama bin Laden, é um milionário...
Em nome deste combate, o novo adversário desenvolve uma estratégia terrorista de
uma simplicidade espantosa: matar o maior número de pessoas que seja possível. Não existe um
objetivo político concreto, além de impedir que as práticas políticas e os usos sociais ocidentais possam
desenvolver-se na esfera muçulmana. E apenas há um critério de sucesso: fazer o maior número de
mortos. Este adversário também não tem uma sede precisa. Não é um Estado ou um grupo de Estados,
ainda se possui em certos países (como nas regiões tribais de Afeganistão, Paquistão e, provavelmente,
na Arábia Saudita) sólidas redes de apoio. Não se trata de una guerrilha localizável em um perímetro
preciso. É uma organização que carece de "centro", que está estruturada em um exército de células
"adormecidas", que tem tecido, através das fronteiras, uma rede de apoios logísticos e dispõe de um
grande número de candidatos ao martírio, instalados em "Ocidente" depois de ter recebido em "Oriente"
(sobre tudo em Afeganistão e Paquistão) a doutrinação que poderia proporcionar-lhes algum emir
islâmico-extremista. Este adversário não responde à dissuasão política: não há negociação possível com
ele. Ainda menos servem com ele as negociações diplomáticas.
Este adversário, finalmente, não responde à dissuasão militar. Mesmo se tem sido
enfraquecido durante um tempo pelas operações levadas adiante em Afeganistão, não tem nem
território, nem população que defender, assim como tampouco possui instalações civis ou militares que
proteger, além de dos campos de trenamento situados em países amigos. Em esse sentido esta
confrontação não se trata de uma guerra no sentido clássico do termo, como parecem acreditar George
W. Bush e seus equipes de assessores; ainda menos de uma guerra como a travada contra Iraque. Pois,
com quem se assinaria uma rendição? Com quem se concluiria a paz? A força de Al-Qaeda consiste em
sua quase inexistência material, localizável. É mais uma idéia que um estado major. Dispõe de fieis mais
que de soldados. E só tem um programa: o ódio.
Ora, como se pode lutar contra um perigo destas características? A forma norteamericana de luta é conhecida. Pôde aparecer legítima em um primeiro momento (em atenção ao lugar
preponderante que o talibã afegão tinha no dispositivo de Al-Qaeda) mas tem conduzido aos Estados
Unidos a abrir em Iraque um parêntese lamentável, ilegítimo e inútil que os trágicos acontecimentos de
Madri deveriam ajudar a fechar... Por um lado, porque sabemos hoje que é falso um dos pretextos da
Guerra do Iraque (o vinculo entre o regime de Saddam Hussein e Al-Qaeda), e se percebe claramente
que, pelo contrário, as infiltrações dos partidários de Osama bin Laden são a conseqüência da invasão
anglo-americana. Por outro lado, porque a resposta global desenhada nos gabinetes norte-americanos,
consistente em querer alterar a geopolítica de Cercão Oriente, remodelando a região a partir do chute
dado ao "formigueiro" iraquiano, se tem revelado, tal como hoje se acham as coisas, inoperante e
produtor de mais terrorismo.
Aliás, seria mais justo falar de "forma Bush" que de "forma norte-americana de luta", já
que se afirma cada vez mais nos Estados Unidos (conduzida pelo candidato democrata John Kerry),
uma crítica radical a uma política exterior denunciada como exclusivamente ideológica. Não é outra
coisa, com efeito, que ideologia o que faz dizer ao desastroso Donald Runsfeld que ETA e Al-Qaeda
"são a mesma coisa". Como tem sido provavelmente a ideologia a que conduz ao governo de Aznar à
"mentira de Estado", que os espanhóis sancionaram imediatamente. Da mesma maneira que os
estadunidenses sancionarão, talvez, outras mentiras, proferidas, estas, por George W. Bush.
3. O 11 de março
"Fora Aznar!" Foi com estas palavras de ordem brutais, mil vezes repetidas por uma
multidão colérica, que José Maria Aznar teve que abandonar o governo. Ele, que havia preparado tão
minuciosamente sua retirada, deveu quitar a cena depois da derrota de seu sucessor designado,
Mariano Rajoy.
"Reviravolta", sublinhavam os jornais espanhóis, o dia seguinte. Quase que poder-se-ia
dizer "revolução". O Partido Popular (PP, de orientação conservadora), estava cinco ou seis pontos
percentuais adiante do Partido Socialista Operário Espanhol (PSOE, social democrata) até uns dias
antes das eleições. É verdade que na véspera dos atentados de 11 de março essa vantagem havia-se
reduzido a dois pontos (quase empate técnico), mas também era certo que ninguém dava como
vencedor ao PSOE.
A derrota do dia 14 se explica por uma forte participação (em um país onde o voto é
optativo chegou-se a 80% de comparecimento), uma mobilização excepcional do eleitorado de centro
esquerda, assim como pela participação decidida de dois milhões de jovens que votavam pela primeira
vez. Mas, o principal responsável foi o próprio José Maria Aznar.
Seu primeiro mandato foi um percurso quase que sem falhas. Mesmo aqueles que não
lhe apreciavam tinham que reconhecer que este dirigente sem carisma, proveniente de uma direita
autoritária que ainda cheirava a franquismo, tinha sabido ganhar seu lugar. Uma economia revitalizada,
um crescimento contínuo e a criação de uma direita moderna e que admitia, por fim, as regras do jogo
democrático, estavam aí para testemunhar de sua capacidade política.
Tudo mudou no ano 2000, quando Aznar foi reeleito com maioria absoluta no
Parlamento. Então ele adotou como divisa vae victis!4 e aquelas que passavam por qualidades se
transformaram em desvantagens: sua circunspeção se converteu em dissimulação, sua determinação em
obstinação, e sua reserva na arrogância daquele que decide doravante por si só.
Haveria que datar do verão de 2002, talvez (quando a primeira greve geral perturbou a
cimeira européia de Sevilha, presidida pela Espanha), o começo do divorcio de Aznar com a opinião
pública de seu país. Esta greve poderia haver sido evitada e, de fato, o governo dará marcha a ré
algumas semanas mais tarde.
Doravante, o divorcio se acentuará. Virá a gestão desajeitada da catástrofe do
petroleiro "Prestige", que verteu grande parte de sua carga nas costas da Galiza; uma crispação contínua
com os partidos nacionalistas moderados; um confronto constante com a oposição, acusada de
"traidora" quando ela intentava apenas fazer valer uma opinião diferente; um diálogo sindical rompido;
uma "domesticação" de boa parte das televisões, a tal ponto que a União Européia denunciará a
manobra. Finalmente, a última gota será o engajamento na Guerra do Iraque ao lado da coalizão angloamericana.
Este comprometimento tem dividido a Europa mas, sobre tudo, ignorou a oposição
muito forte da população. Os espanhóis manifestaram em massa, denunciaram de todas as formas a
aliança exclusiva com Washington e a entrada em guerra. Segundo Aznar, ele não era "desses que se
deixam arrastar pelas marés da opinião, esses são uns cata-ventos". Uma verdadeira liderança, para ele,
tem que adotar suas decisões, se necessário, "contra a opinião pública, se está pessoalmente
convencido que é pelo bem do país".
O que passou nos últimos dias de campanha eleitoral, em uma Espanha estarrecida
pelos atentados de Madri? Parece que o governo foi ultrapassado, em parte, pelos acontecimentos.
Mas, sobre tudo ele tentou, voluntariamente, de manipular a opinião pública obstinando-se na pista,
sempre lucrativa em termos eleitorais para ele, do terrorismo basco. Até os serviços secretos, irritados
pelas declarações do governo sobre a condução da enquête, teriam organizado "vazamentos" sobre a
realidade dos fatos.
José Maria Aznar se comprometeu pessoalmente, ligando para os responsáveis dos
grandes jornais espanhóis assegurando-lhes que a pista de ETA era a única consistente. A ministra de
Relações Exteriores, Ana Pastor, enviou um comunicado às embaixadas espanholas recomendando aos
diplomatas de aproveitar toda ocasião para confirmar a tese de ETA e, por se fosse pouco, pressionou
a seus colegas membros do Conselho de Segurança da ONU para obter desta instância internacional
4
"Aí dos vencidos!". Palavras de Breno, general gaulês, ao atirar sua espada no botim dos romanos e que lembram
que o vencido está à mercê do vencedor.
uma condenação, não só dos atentados, mas de ETA, em um momento em que todos os indícios
apontavam para um grupo islâmico. Um choque enorme se produziu na opinião, então. Um choque
suficiente como para fazer sair à superfície, em apenas três dias, a cólera provocada pelo engajamento
em Iraque e para socavar a confiança em uns dirigentes brutalmente desacreditados.
"Aznar, a guerra é tua, os mortos são nossos!" "A verdade! Não se especula com os
mortos!" "Manipular os votos é o pior crime contra a democracia!" "Antes de votar queremos a
verdade!" Tais algumas das palavras de ordem que gritavam os manifestantes o fim de semana das
eleições face à sede do Partido Popular. Um "cacerolazo" à madrilena se improvisou. Não eram
militantes, mas cidadãos de todas as idades, que expressavam sua indignação. Cada metrô derramava
seu novo contingente de manifestantes irritados e desolados, prevenidos pelos amigos, os parentes e os
vizinhos, alertados eles próprios pelo celular o por internet. "O governo nos mente, faz passar", "O PP
mente e manipula" eram os "torpedos" mais repetidos.
A emoção era evidente. "Toda Europa o sabe", gritavam os participantes. "É como em
tempos de Franco, somos obrigados de ler a imprensa estrangeira para estar informados", se queixava a
gente. As palavras de ordem misturavam os atentados e a Guerra do Iraque. "Aznar, culpável, tu és
responsável!" "Aznar, canalha, te veremos em Haia!" E, de novo, como em março de 2003, "Não à
guerra!" A sansão, o dia seguinte, nas urnas, será brutal.
E a mudança de estilo também. Enquanto Aznar aparecia tão arrogante e rígido na
derrota como em seus tempos de vitória, as primeiras palavras de José Luis Rodríguez Zapatero, o
candidato social-democrata triunfante, foram para "tender a mão" a Mariano Rajoy. À negativa de
compromisso, e até de diálogo, sobre dossiês tais como a aliança americana, as armas de destruição em
massa, a Constituição européia, mas também nas relações com as autonomias - basca e catalã, sobre
tudo - o novo eleito deverá opor uma gestão mais consensual.
4. A guisa de conclusão
Contrariamente ao que afirmavam aqueles que, pronto demais, anunciavam o "fim da
história", esta parece voltar com todas suas forças, trazendo do passado fantasmas que se acreditava
ultrapassados. Estas sombras do passado se confrontam, sob nosso olhar, às formidáveis
transformações produzidas pelos efeitos conjugados da revolução tecnológica e do vazio produzido
pela implosão do comunismo. Mas, se deixássemos ao integrismo comunitário o cuidado de lutar contra
o integrismo de mercado, escolhendo injustificavelmente seu maniqueísmo e seus métodos criminais,
sectários e igualmente excludentes, também não poderíamos superar o medo que nos paralisa. Já que os
discursos dos aiatolás y do doutor Fantástico5 se reforçam entre si, sem chegar sequer a aterrorizarse mutuamente.
A ação cidadã, que é depositária de enormes potencialidades, em compensação, pode
ser o ponto de partida de um vasto rechaço de todas as formas de terror político, de um pedido
generalizado de rendição de contas às lideranças e de reafirmação pacifista e pluralista. Um somos a
vida! como aquele proferido nas urnas pelos espanhóis o passado 14 de março, que lembre que vamos
a fazer da vida, justamente, um assunto de Estado. Não deixemos passar a oportunidade. Ou (já que da
Espanha estamos falando), como diz esse grande canta-autor catalã que é Lluis Llach: "no abrateixis el
somni" 6.
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Aquele personagem de Peter Sellers que "se tinha acostumado tanto à bomba que a chegou a amar".
"Não liquides a ilusão", pois, como acrescenta o próprio Llach, "poderias chegar a desprezar-te, depois".