e agora, brasil? - Revista Política Democrática

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ISSN 1518-7446
Obra da capa: Festa, óleo s/ tela, de Lucília Neves Delgado.
Ficha catalográfica
Política Democrática – Revista de Política e Cultura – Brasília/DF: Fundação Astrojildo Pereira, 2014.
No 41, abr./2015.
200p.
CDU 32.008 (05)
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Podem ser livremente veiculados desde que identificada a fonte.
Política Democrática
Revista de Política e Cultura
Fundação Astrojildo Pereira
E AGORA, BRASIL?
Abril /2015
Sobre a capa
A
autora dos belos trabalhos que embelezam capa e contracapa desta edição é a mineira Lucilia de Almeida Neves Delgado, nascida em São João Del Rei e que, com apenas dois anos
de idade, mudou-se com a família para Juiz de Fora, onde cresceu
e desenvolveu o gosto pelas artes e pelo estudo das humanidades.
Nesta cidade, que sempre foi fértil em manifestações culturais, ela
conheceu o trabalho de importantes artistas locais, que ganharam
projeção nacional e internacional. Entre eles destacam-se Carlos
Bracher, Nivea Bracher, Arlindo Daibert e Dnar Rocha.
A pintura abstrata sempre a atraiu e a ela somou-se um gosto
especial por pintores modernistas, como Portinari, Tarsila do
Amaral, Anita Malfati, Matisse, Modrian e Gustav Klimt e Picasso.
Sua escolha profissional, todavia, foi pelos estudos da História e
da Ciência Política. Tanto que, após formar-se em História (UFJF),
concluiu o Curso de Mestrado em Ciência Política pela UFMG e o de
Doutorado, também em Ciência Política pela USP, e atua como professora universitária, a cerca de 40 anos, e já lecionou na Universidade
Federal de Minas Gerais, PUC Minas e Universidade de Brasília.
No decorrer de sua vida profissional escreveu centenas de
artigos e publicou 15 livros nas áreas de sua especialidade. Entre
eles destacam-se: O Comando Geral dos Trabalhadores no Brasil
(1961-1964), PTB: do getulismo ao reformismo (1945-1964) e o Brasil
Republicano, em quatro volumes.
Seu gosto pelas artes plásticas e pela literatura continuou sendo
cultivado ao longo desses anos. Como desdobramento publicou três
livros de poesias: Jardim do Tempo, Amor e Asas e Noites Solares.
Nos últimos dois anos, tem se dedicado à pintura, com predominância de acrílico sobre tela. Em suas telas, destaca-se o predomínio de contrastes claro/escuro e o uso de diferentes técnicas.
Sua preferência recai sobre o estilo abstrato, mas também trabalha
com pintura figurativa sempre moderna, utilizando curvas ou
linhas retas que se intercalam.
Adepta de telas grandes, muitas vezes recobertas por texturas,
gosta especialmente de coloração viva. Dessa forma, em seu trabalho
predomina uma gama cromática marcada por tonalidades fortes, ora
demarcadas, ora sobrepostas. Usa alternadamente espátulas e
pincéis para pintar quadros, quase sempre compostos por várias
camadas de tons e sobretons. Suas pinceladas são largas e compõem
um estilo eclético que se afasta do convencional e do acadêmico.
Sumário
EDITORIAL
A crise e o cenário de sua superação. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .
7
I. TEMA DE CAPA: E AGORA, BRASIL?
O Brasil Hoje – Março 2015
Moacir Longo . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 13
Superar a crise, construir a democracia
Alberto Aggio . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 18
Fim de ciclo e nova hegemonia para refundar a república
Marcio Sales Saraiva. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 25
Um outro mundo é possível
Luiz Werneck Vianna. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 31
II. OBSERVATÓRIO
Trinta anos de retorno à democracia
Roberto Freire . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 37
Desafios da democracia
José Antonio Segatto. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 43
A mulher na política merece seu real espaço
Tereza Vitale . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 49
III. CONJUNTURA
Inquietantes semelhanças entre o lulopetismo
e o kirchnerismo
Sergio Fausto. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 57
Mãos limpas à brasileira?
Luiz Sérgio Henriques . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 61
Democracia, entendimento e o fator Temer
Paulo Fábio Dantas Neto. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 65
IV. QUESTÕES DO ESTADO E DA CIDADANIA
A intenção, a meta e a imprecisão
Luís-Sérgio Santos. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 75
O Brasil descobre a água
Lúcio Flávio Pinto. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 79
Laicidade enganosa
Luiz Antônio Cunha. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 86
V. O SOCIAL E O POLÍTICO
O nó do saneamento
Cassilda Teixeira de Carvalho. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 91
Políticas educacionais e formação de professores
Renata Cabrera / Luciana Lunardi Campos . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 95
VI. BATALHA DAS IDEIAS
Reflexões provisórias sobre o poder,
a democracia e a tentação totalitária
Paulo Elpídio de Menezes Neto . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 107
Considerações sobre o liberalismo econômico e a democracia
Leandro Gavião. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 114
VII. ECONOMIA E DESENVOLVIMENTO
O ano que já acabou
Míriam Leitão. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 123
Desenvolvimento só com reformas
Antonio Machado. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 128
VIII. MUNDO
A Europa inova na forma-partido
Rudá Ricci . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 133
Podemos, o fim de uma época do sistema partidário espanhol
Joan Alcazar . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 142
IX. ENSAIO
O fenômeno das redes
Fausto Matto Grosso . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 151
A formação do primeiro grupo dirigente do Partido
Comunista Brasileiro (1919-1930)
Michel Zaidan . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 163
X. HOMENAGEM
Comunista que soube valorizar a vida e a democracia
Marco Aurélio Nogueira . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 177
Brinde ao cangaceiro do cinema
Severino Francisco. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 183
XI. RESENHA
O golpe, as armas e a política
Adelson Vidal Alves . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 189
Bravura cívica
Luiz Eduardo Soares. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 194
A crise e os cenários
de sua superação
U
m observador externo, alheio às marchas e contramarchas
da política brasileira, chegado repentinamente ao país, poderia pensar que a principal característica dos primeiros
dias do segundo mandato da presidente Dilma Roussef tenha sido
a falência inesperada de um governo vitorioso há pouco nas urnas.
Para um observador interno, o mesmo fenômeno pode ser visto de
forma diferente, como a confluência súbita de um conjunto de crises. Cada crise seguia, até então, com seu ritmo e rumo próprios,
até que, por um chamado qualquer, todas se encaminharam para
um encontro marcado, nas ruas e na consciência dos cidadãos.
Reunidas, as crises potencializam-se reciprocamente e ganham
uma dimensão que retira a credibilidade e ameaça a legitimidade
do governo, do projeto político que o inspira e, finalmente, do sistema político vigente.
O catalisador desse processo na percepção dos eleitores foi, ao que
indicam as pesquisas de opinião, a questão ética. A dimensão da
corrupção revelada até agora pelas investigações sobre o caso da Petrobras, o caráter organizado do sistema de corrupção e a denúncia de
parlamentares e partidos do governo como beneficiários desse sistema
repercutiram fortemente num eleitorado que experimentou um
aumento expressivo na sua escolaridade e no acesso à informação, nas
duas últimas décadas. Acrescente-se a isso a percepção aguda do fosso
existente entre os diagnósticos e propostas da candidata Dilma Roussef
com as ações inaugurais do mandato da Presidente eleita: um ministério discrepante do discurso de campanha e, principalmente, a adesão
a um ajuste fiscal, proposta anunciada pelo candidato de oposição e
demonizada pela campanha da candidata vitoriosa. A expressão este7
lionato eleitoral, veiculada na mídia e nas redes sociais, descreve a
reação de muitos eleitores a essa guinada brusca e pouco explicada.
A questão ética foi, portanto, o estopim, a trombeta que convocou
as demais crises a dar as caras, que fez aflorar a insatisfação difusa
que cada uma delas provocava. Dentre elas a mais evidente é, sem
dúvida, a crise econômica. Um período prolongado de baixo crescimento econômico, juros elevados e inflação alta sinaliza, já no curto
e médio prazos, uma situação de maior desemprego e de corrosão
da renda das pessoas. Embora os impactos no emprego e na renda
apenas comecem a se fazer sentir, a continuidade desse cenário
significa pauperização das pessoas.
Trabalha no mesmo sentido, de deterioração das condições de
vida do cidadão, a crise, menos comentada, que atravessa há
tempo a gestão do Estado. Há um conflito evidente que opõe as
expectativas dos brasileiros em relação à prestação de serviços
produzidos ou regulados pelo Estado e a oferta efetiva desses
serviços. A verdade é que quase metade da população não dispõe
de saneamento básico; e mais da metade está submetida a um
sistema de locomoção urbana que rouba muito do seu tempo útil,
à violência, criminosa e policial, a um sistema educacional sistematicamente mal avaliado pelos testes de comparação internacional e a um sistema de atendimento à saúde notoriamente
moroso e insuficiente. É claro que a responsabilidade por essa
situação deve ser partilhada entre União, Estados e Municípios.
É claro também que houve alguns avanços nos anos recentes.
Mas o ritmo desses avanços é lento e o aumento das expectativas
é rápido. Essa diferença de velocidades explica muito das manifestações ocorridas em 2013, se fazendo presente também nas
manifestações que agora ocorrem.
Está em curso ainda uma crise política que podemos classificar como estrutural. Sua origem está na contradição latente
entre nosso sistema eleitoral e os avanços democráticos ocorridos
na vigência da Constituição de 1988. Seu sintoma maior é o
descrédito crescente dos políticos, dos partidos e dos Poderes
Executivo e Legislativo junto à maioria dos eleitores. Seu agravamento recente, contudo, procede da percepção da capitulação do
governo do Partido dos Trabalhadores a práticas por ele condenadas em seus tempos de oposição. O cidadão rejeita cada vez
mais campanhas eleitorais com custos astronômicos; doações, na
verdade empréstimos, de grandes grupos econômicos a partidos e
candidatos; partidos fragmentados e amorfos; coalizões governa8

mentais sem coerência programática; inexistência de prestação de
contas de mandatários entre uma eleição e outra.
Um dos pilares do sistema – a concentração de poderes no
Executivo – ruiu integralmente porque, no momento em que, em
razão de conflitos que integram o corpo da crise, o Legislativo
suspendeu a delegação automática que vigorava até então de
parte de seus poderes ao Executivo. A rejeição à política e aos
políticos pode ser comparada ao “que se vayan todos” da política
argentina da virada do século. Entre nós, chegou ao ponto da
exclusão das siglas partidárias da rua, por vontade dos manifestantes, tanto em 2013 quanto neste ano.
Mas há também uma crise política conjuntural, uma crise na
coalizão de apoio ao governo, expressa no conflito entre o Partido
dos Trabalhadores e os demais partidos da base, principalmente o
PMDB. Esta crise é antiga. Sua origem é a postura hegemonista
do PT em relação a seus aliados. Manifestou-se, desde sempre, na
desproporção entre o número de ministérios concedidos ao PT e
seu peso real na sustentação do governo, bem como no conflito
que afastou o PSB do governo, em 2013 e 2014. Manifesta-se hoje
na sub-representação do PMDB no governo e na tentativa, frustrada, de esvaziamento de sua representação parlamentar, com
sua exclusão da discussão de temas centrais da agenda do
governo, como o ajuste fiscal. De novo, nessa crise, só a reação do
PMDB, a partir do comando das duas Casas do Congresso
Nacional, é que teve capacidade de forçar o governo a reorganizar
a aliança sobre bases novas.
Na verdade, essas crises estavam articuladas entre si, mesmo
antes da percepção dos cidadãos operar uma conexão entre elas.
Tem uma origem comum, um mesmo modelo de mudança social
que alimenta boa parte da tradição da esquerda que se encontra
no poder há três mandatos presidenciais. A eclosão das crises, a
impossibilidade de continuar a administrar as dificuldades de
maneira protelatória, expressam a falência desse modelo.
Comprovou sua falência o modelo econômico que se fundamenta no dirigismo estatal do processo produtivo, para o benefício
suposto de grandes grupos nacionais. O assim chamado capitalismo de Estado demonstrou sua inoperância nas condições de
um mundo globalizado.
Chegou também ao fim, aparentemente, o sistema político
conhecido como presidencialismo de coalizão, fundado na concentração de poderes no Executivo por meio de barganhas diversas
A crise e os cenários de sua superação
9
com um Congresso fragmentado. De forma semelhante, a gestão
dos serviços públicos, a partir da diretriz de um centralismo burocrático, parece ter esgotado sua capacidade de responder às
demandas da população. No lado da crise de gestão política da
coalizão governamental, o estilo de liderança de corte hegemonista, que tende a tratar adversários como inimigos e aliados como
subalternos, já chegou ao seu ápice e encontra-se em declínio
vertiginoso. Finalmente, a corrupção e a adaptação a ela não são
mais toleradas pelos eleitores.
Uma crise dessas proporções produz um enorme vácuo político. Não parece provável, até o momento, uma escalada crescente
das manifestações até à ocupação permanente de espaços
públicos, a exemplo do que ocorreu na Espanha, nos Estados
Unidos e na Primavera Árabe. O governo, por sua vez, parece
resistente ao aprendizado dos fatos. Aparentemente, procura
ganhar tempo, apostando no esvaziamento das manifestações, na
diluição da rejeição popular, estratégia que pareceu vitoriosa em
2013, e na recomposição com os partidos aliados. A crise, no
entanto, e o consequente desgaste da esquerda, identificada de
modo geral com o petismo, abriram espaço para a manifestação de
tendências de direita, tanto de orientação democrática quanto
autoritária. Para ambas, a crise é uma oportunidade de ganhar
legitimidade política para construir alternativas partidárias que
os representem.
Nenhuma dessas possibilidades - a refundação do status quo
ou a guinada conservadora - são satisfatórias para aqueles empenhados na construção de alternativas positivas e democráticas
para a crise. Para iniciar esse processo, na conjuntura presente,
duas condições devem ser preenchidas. Em primeiro lugar, a afirmação intransigente dos princípios democráticos e republicanos,
inclusive em confronto com as tendências autoritárias oposicionistas. Em segundo lugar, a formulação de uma agenda política
que aponte soluções para cada uma das dimensões apontadas da
crise: uma política econômica universalista, com benefícios seletivos apenas para micro e pequenas empresas; reforma política;
reforma democrática do Estado; maior transparência na gestão
pública e responsabilização dos seus agentes.
Com o deslocamento da operação política para o coração do
Legislativo federal, se tivermos objetivos, é possível construir
saídas para a crise que joguem os anseios manifestados pela
intensa participação popular no sentido de renovar e fortalecer as
estruturas de representação da democracia brasileira.
10

I. Tema de Capa:
E agora, Brasil?
Autores
Alberto Aggio
Professor titular de História da Unesp/Franca, presidente do Conselho Curador da
Fundação Astrojildo Pereira.
Luiz Werneck Vianna
Cientista social e político, professor e pesquisador da Pontifícia Universidade
Católica (PUC) do Rio de Janeiro.
Marcio Sales Saraiva
Cientista político, formado em Ciências Sociais na UERJ com básico em Teologia na
PUC-Rio, é mestre pelo Programa de Pós-Graduação em Serviço Social da UERJ. Foi
fundador do Programa de Estudos Políticos (PEP) no Nuseg e é pesquisador na área
de políticas públicas, filosofia política e teoria democrática.
Moacir Longo
Jornalista, ex-vereador da Câmara Municipal de São Paulo cassado, consultor e
assessor de imprensa.
O Brasil Hoje – Março 2015
Moacir Longo
A
s jornadas de protestos de junho de 2013 já indicavam o despertar da sociedade brasileira para uma realidade enganosa
vendida pelo lulopetismo. Realidade criada por marqueteiros
e pela dupla Lula/Dilma, baseada no ufanismo, no baluartismo e
na mentira. Apesar disso, os protestos de junho de 2013 acabaram
esvaziados pela ausência de lideranças e organizações com capacidade e reconhecida legitimidade para capitalizar as insatisfações
difusas e de transformá-las em um programa objetivo de reformas
e levá-lo às ruas e às esferas das instituições nacionais.
Afinal, teríamos logo em seguida àqueles acontecimentos a
Copa do Mundo e as eleições gerais, que passavam a chamar
todas as atenções. A oposição, tímida e minguante ao longo dos
12 anos de governo do lulopetismo, ficou inerte durante os acontecimentos de junho de 2013, razão pela qual não se habilitara
para, com uma ação vigorosa, representar os anseios de mudanças
claramente manifestados pela nação. Não se dispôs a desmascarar as imposturas de um suposto “governo de esquerda” que se
associou a grupos oligárquicos, institucionalizou o aparelhamento
do Estado e empresas estatais, com objetivos claros de se perpetuar no poder.
Resultado, o lulopetismo percebeu que, apesar dos protestos, o
caminho para conquistar mais quatro anos de mandato estava
livre, como estivera em 2006, depois das lambanças do mensalão,
e em 2010, quando o candidato da oposição José Serra chegou a
proclamar que Lula, patrono da candidatura Dilma, “estava acima
13
do bem e do mal, era quase um deus”. De tal modo que o que se
discutia nos primeiros meses de 2014, além de futebol da Copa,
eram as eleições de outubro que se aproximavam e uma fácil vitória
do petismo. Porém, eis que surge um fato novo. O governador de
Pernambuco, Eduardo Campos, decide disputar a Presidência da
República e leva seu partido, o PSB, a retirar-se da chamada base
governista, provocando interessante mudança no quadro eleitoral.
Assim, as expectativas de uma campanha eleitoral morna, com
uma disputa entre uma candidatura governista de Dilma, poderosa, e uma candidatura Aécio, pela oposição, anêmica, começam
a mudar, na medida em que Campos consolida sua candidatura e
seu partido explicita a ruptura com o governo petista. Desse modo,
o pleito de outubro, que se aproximava, já passava a contar com
três candidatos competitivos, aumentando as possibilidades de
haver segundo turno. E mais, o PSB absorveu uma liderança em
ascensão, Marina Silva, que não conseguira viabilizar o registro
do seu partido, a Rede. Forma-se, então, a dupla Campos/Marina,
que procura se credenciar para representar, na disputa eleitoral,
os anseios de mudanças para uma nova política e uma nova realidade, explicitadas durante as manifestações de junho de 2013.
Mas, vem o acidente aéreo que tirou a vida de Campos, e
Marina assume a titularidade da candidatura presidencial pelo
PSB-PPS e outros pequenos partidos, fato que provoca uma inesperada reviravolta no quadro eleitoral e a certeza de segundo
turno, com possibilidade de vitória da oposição. O lulopetismo
entra em pânico e desespero. Tem início uma campanha sórdida,
suja e mentirosa, visando a desconstrução não só da candidatura
de Marina, mas também de sua imagem como pessoa, ao mesmo
tempo em que os marqueteiros do governo lulopetista apresentam
na TV a imagem de um Brasil perfeito, rico, poderoso, sem nenhum
problema a ser resolvido, em suma, um jardim florido.
O eleitorado começa a prestar mais atenção no processo eleitoral e a reagir diante da campanha suja desencadeada pela
candidatura governista. Ao perceber que Marina se apresenta
frágil para reagir aos ataques e às calúnias levantadas, resolve,
então, se deslocar para a candidatura Aécio Neves, do PSDB.
O segundo turno se confirma e por muito pouco a oposição deixa
de vencer a eleição.
O povo, que diante do agudo embate em que se transformou o
pleito, cujo processo acompanhou e dele participou, gravou na
memória as promessas da candidata Dilma e o que ela disse que não
14
Moacir Longo
faria “nem que a vaca tussa”, e percebeu, logo em seguida à apuração
dos votos, que fora enganado. Resultado: a última pesquisa, divulgada no dia 17 de março, feita sobre a avaliação do governo lulopetista de Dilma deu como resultado apenas 13% de ótimo/bom, e
62% de ruim/péssimo, segundo o Instituto Datafolha.
E o universo pesquisado não foi somente aquele taxado de
“elite branca” pelos áulicos do governo, já que foram ouvidas
pessoas em todas as regiões do país e o resultado mostra um
descontentamento uniforme da sociedade como um todo, de uma
ponta a outra do nosso imenso território. O ruim e péssimo é
cravado no Sudeste (66%), no Nordeste (55%), no Sul (64%), no
Norte (51%) e no Centro-Oeste (75%).
Desse modo, iniciamos o ano de 2015, com novo velho governo
repudiado pela sociedade e a caminho do completo isolamento político. Com o país em crise de graves proporções porque ela envolve
a economia em recessão, o aumento do desemprego, os juros altos,
a inflação crescente acima do teto da meta, os elevados déficits nas
contas interna e externa, reforçada pela crise política que tem o
governo, mais uma vez, envolvido em um escândalo de corrupção
sem paralelo na história brasileiro, tendo como foco a Petrobras.
Portanto, não cabe surpresa ao se constatar a insatisfação da
sociedade com o estado de coisas presente no Brasil. É o sentimento de revolta de um povo que se sente enganado por governantes sem escrúpulos e por isso foi para as ruas na jornada de
15 de março de 2015 expressar sua indignação, de forma pacífica,
mas clara e enérgica. O recado está dado. Cabe às forças políticas
de oposição se unirem e se prepararem para liderar um processo
de mudanças que, mais uma vez, o povo está exigindo e não
encontrou resposta adequada até agora.
As manifestações do dia 15, as maiores já ocorridas no país,
não tinham palanques, não tinham apresentadores, não tinham
listas de oradores, não tinham bandeiras de partidos políticos.
Tinham faixas e cartazes improvisados, condenando a corrupção,
o desgoverno Dilma e o sistema de poder, baseado no populismo,
na corrupção e na mentira.
As manifestações tinham a insatisfação com tudo o que aí
está, mas faltou explicitar o que fazer e como fazer. Qual o
programa de mudanças a ser implementado. Faltou e nem podia
ser diferente, já que as manifestações ocorrem por iniciativa das
multidões. A formulação de um programa claro e objetivo é tarefa
que cabe às lideranças políticas dos partidos de oposição e dos
O Brasil Hoje – Março 2015
15
movimentos sociais que haverão de aparecer para liderar o
processo, apontando as medidas e caminhos para superar a crise,
com reformas de profundidade, a partir de uma ampla mobilização das forças democráticas, que leve o país ao crescimento
econômico, à geração de emprego, à melhor distribuição de renda,
à radical melhoria do sistema de saúde pública e da educação, da
segurança pública e da mobilidade urbana.
Apesar da gravidade da crise e do isolamento do governo, tudo
indica que dificilmente teremos uma ruptura que conduza, de
imediato, ao afastamento da presidente da República, a não ser
que surjam fatos novos de grande relevância e a interrupção do
mandato de Dilma se torna inevitável, em consequência. Sendo
assim, é preciso que as forças políticas de esquerda, democráticas
e progressistas, por meio de suas lideranças mais lúcidas, se coloquem à frente dessa batalha iniciada com a jornada de 2013, e
ampliada em março de 2015, preparando um programa de
mudanças e reformas fundamentais para qualificar o salto de
qualidade, almejado pelo país, superando esse quadro de perplexidade em que está mergulhada a nação.
Mas, na eventualidade de ocorrer o afastamento da presidente
em meio ao período do seu mandato, é preciso que as forças democráticas e progressistas liderem também o encaminhamento de
soluções institucionais para o mandato tampão que a sucederá, e,
com medidas de emergência, estancar a crise e preparar as condições para as eleições de 2018, constituindo um bloco hegemônico
capaz de vencer o pleito, formar um governo comprometido e
disposto a realizar mudanças e reformas de profundidade, sem as
quais o Brasil não encontrará o caminho do crescimento sustentável, com o aprofundamento da democracia em escala de massas,
atento às reivindicações que os milhões de manifestantes que
foram às ruas e que, certamente continuarão indo, reclamam e
não aceitam mais tergiversação.
É clara, portanto, a percepção de que, para fazer as mudanças
do porte sugeridas, torna-se indispensável a junção de forças em
um bloco poderoso, capaz de vencer resistências. É possível que
seja necessário constituir uma nova formação partidária que
reúna as lideranças mais lúcidas dos diferentes partidos atualmente existentes. O apoio e a participação dos movimentos sociais
organizados, envolvendo todas as classes e camadas sociais a
essa nova formação partidária, permitirão construir a força hegemônica que conduzirá a luta para uma nova acumulação, suficientemente forte para levar à prática um projeto nacional de
16
Moacir Longo
reformas, capaz de tirar o Brasil da crise estrutural que tem
gerado irritabilidade e travado seu progresso.
Não se deve imaginar que transformações, pelas quais o Brasil
precisa passar, se darão de uma hora para outra e por meio de um
golpe de força. Será necessário passar por um processo de acumulação pela via institucional, promovendo revisões constitucionais
empreendidas por um Congresso com poder constituinte, que poderia
ser eleito já no pleito de 2018, para abrir o caminho das reformas.
Esses poderes constituintes, limitados no tempo, terão que ser
respaldados por um amplo movimento de apoio participativo e
construtivo da sociedade. Assim, teríamos uma combinação da
utilização do processo eleitoral, com as pressões de massas dos
movimentos sociais organizados, e uma ação institucional no
âmbito do Congresso, com poderes constituintes, para concretizar
as reformas e dar maturidade à nossa democracia.
As forças de esquerda, democráticas e progressistas, lideradas
pelo PCB, no período do após guerra, tinham um projeto nacional
de mudanças fundamentais e revolucionárias para o país, que,
nos anos 1963/64, foi sintetizado no Programa de Reformas de
Base. Derrotadas pelo golpe militar de 64, em um primeiro
momento instalou-se um quadro de perplexidade, desalento e até
de apatia diante da frustrante derrota. Logo, essas forças se recuperaram, trataram de definir os novos objetivos da luta e, em
torno deles, acumular forças para derrotar a ditadura e instaurar
um Estado democrático de Direito no Brasil.
A tarefa de hoje é parecida com aquela que, depois de 20 anos
de luta contra a ditadura, foi possível convocar a Assembleia
Nacional Constituinte e promulgar a Constituição de 1988.
A partir de então, para dar o passo seguinte, as forças de esquerda,
democráticas e progressistas, teriam que se concentrar na realização de reformas estruturais e, no plano político, construir uma
democracia de massas, institucionalizá-la, para completar a transição iniciada com o processo constituinte de 1988. No plano
econômico, impunha-se uma agenda de modernização do país,
acelerando o desenvolvimento das forças produtivas para gerar
empregos e renda, e combater a pobreza que foi se acumulando ao
longo dos séculos. Nessa direção, foi dado um passo importante:
o programa de estabilização da moeda, mas não foram dados os
passos seguintes. Resultado, o país não conseguiu superar a
crônica crise estrutural. É preciso continuar tentando até vencer
esse desafio.
O Brasil Hoje – Março 2015
17
Superar a crise, construir
a democracia
Alberto Aggio
N
ós, brasileiros, somos muito céticos em relação às possibilidades de construção da democracia em nosso país. Não
são poucos os momentos em nossa história em que predomina esse sentimento crítico, tendo como base o reconhecimento
dos imensos problemas que envolvem essa construção. Sabemos
também que nenhum país construiu a democracia a partir de um
plano previamente idealizado que eliminava impasses e conflitos.
Há muitas dimensões a serem consideradas nesta construção e
não há possibilidade de se aceitar a ideia de que alguém, por qualquer razão, tenha controle ou domine os caminhos dessa empreitada. Os arquitetos da democracia, em qualquer tempo e latitude,
são de natureza humana e vivenciam experiências historicamente
determinadas, ainda que disso não tenham plena consciência.
Um dos problemas mais importantes na construção da democracia é a dificuldade em se estabelecer e sustentar uma relação de
equilíbrio entre política e economia, entre os avanços político-institucionais e os avanços econômico-sociais. Os processos de modernização na periferia do mundo apresentam complicações adicionais
se comparados aos países em que eles foram originários ou àqueles
que se estruturaram na primeira fase de generalização do modo de
produção especificamente capitalista ao redor do mundo. Assim, de
maneira tardia, além de conquistar a democracia e aprender a
conviver com sua complexidade, o grande desafio para nós seria o
de fundamentar a democracia não apenas como um regime político,
mas também como um tipo de sociedade. Em outras palavras,
mesmo depois de alcançarmos uma nova situação democrática,
como é o nosso caso depois da década de 1980, haveríamos que dar
conta de sedimentar no conjunto da sociedade os ideais e os valores
da democracia entendidos enquanto fundamentos de uma cultura
política cívica que se constituísse nos alicerces normativos e simbólicos de uma sociedade democrática.
Desta maneira, o caminho para a construção da democracia no
Brasil é e continua a ser bastante complexo, paradoxal e ainda hoje
pouco compreendido. E isso complica sobremaneira a capacidade de
ação dos atores políticos e sociais para elaborarem projetos factíveis
18
visando soluções positivas para as questões que afligem o conjunto
da sociedade, para realizarem e darem sustentação a alianças políticas com os mesmos objetivos, para enfrentarem, enfim, os diversos
dilemas e as crises que emergem a cada momento na construção da
democracia, fazendo com que prospere, em muitas ocasiões, uma
descrença na eficácia da política democrática.
Em nossa história republicana, há poucos exemplos de
governos que tomaram para si a tarefa de estimular a construção
de uma sociedade democrática no país. Mas há muitos exemplos
de governos que, eleitos democraticamente, pouco impulsionaram
esse projeto. Foram oligárquicos e por isso apequenaram a política da democracia. Em contrapartida, tivemos governos que não
podem ser qualificados propriamente como democráticos, mas
que conseguiram implementar mudanças e gerar situações novas
que, por sua vez, possibilitaram, em sua vigência e mais adiante,
extraordinários processos democratizadores no plano social,
embora tivessem congelado ou mesmo cancelado a sua dimensão
política. Isso evidencia o desequilíbrio que acabou predominando
em nossa história entre o político, o social e o econômico. É uma
situação muito característica de países da periferia do mundo,
como mencionamos acima. Desta maneira, paradoxalmente,
poderíamos dizer que o processo político que deu base para a
construção do Brasil moderno e que criou as condições para o
advento e perenização da questão democrática em nossa sociedade se caracteriza por uma “ampliação autoritária da República”,
para usarmos aqui uma expressão do cientista político Luiz
Werneck Vianna. E, por essa razão, sempre andamos às voltas
com os fantasmas do autoritarismo, mesmo depois de conquistarmos uma situação democrática favorável à expansão da ideia
de uma sociedade democrática, o que representaria uma verdadeira revolução na história do país.
Vale insistir nesse ponto. O curso dessa história, desde o
nascimento da República entre nós até o regime ditatorial,
passando pela Era Vargas, estabeleceu uma trajetória de consequências indeléveis: o nosso caminho rumo a uma sociedade
democrática não se caracterizou por condutas e pelos métodos da
democracia política. Há um desequilíbrio em nossa história que,
não obstante, não impediu o avanço da modernização, muito ao
contrário, foi reproduzido por ela e criou uma forma de pensar e
fazer política eivada de problemas. Mesmo assim, desde o fim do
regime ditatorial, a sociedade brasileira tem demonstrado, com
maior ou menor ímpeto, maior ou menor clareza, que está disposta
Superar a crise, construir a democracia
19
a vivenciar o desafio de encontrar um novo caminho para a construção democrática da nossa República, invertendo o vetor até
agora dirigente da nossa história. E, em todos os governos pósditatoriais, de Sarney a Dilma, passando por Itamar, FHC e Lula,
houve avanços consideráveis nessa direção, apesar de alguns
percalços e de uma sensação perturbadora frente ao fato de que a
democracia política parece se consolidar e, simultaneamente, se
percam pelo caminho os valores e fundamentos que dão sustentação a uma sociedade democrática.
Trata-se de um impasse contundente e que não pode ser abordado sem um ajuste contas, não à maneira revolucionária, como
nos velhos tempos, com os passivos de ordem social, cultural e
política que marcam nossa história. Afirmar que a construção da
democracia significaria uma verdadeira revolução guarda relação
com a ultrapassagem histórica que ela supõe e que incorpora
tanto as questões que envolvem a cultura cívica dos indivíduos
até as dimensões de engenharia político-institucional que este
processo demanda. Um processo que necessita de atores movidos
não por horizontes teleológicos e sim por objetivos políticos permanentes de mudança.
O passivo principal se traduz no índice elevado de desigualdade social, uma marca dolorosa que ainda se mantem, a despeito
da ampliação do consumo das classes populares nas últimas
décadas. Mesmo depois das iniciativas dos governos Lula ainda é
um consenso compartilhado entre diversos especialistas que o
Brasil, apesar da diminuição da extrema pobreza, não conseguiu
resolver o problema da desigualdade social dentro de parâmetros
aceitáveis. Tanto mais porque o último governo Dilma adotou uma
política macroeconômica desastrada que resultou na diminuição
do crescimento e fez vistas grossas para o avanço da inflação, o
que coloca flagrantemente em risco esses parcos avanços. Não
resta a menor dúvida de que essa é uma questão que fragiliza a
nossa democracia, estando à espera de soluções de caráter mais
estrutural e orgânico para que sejamos realmente distintos do
nosso passado.
Em favor dos últimos anos, se poderia dizer que a democracia
ajudou a construir uma nova visão a respeito desse problema no
sentido de indicar que a superação desse passivo não deve ser mais
vista como um problema exclusivamente atinente ao Estado e
externo à sociedade civil, ainda que se deva observar os avanços
extraordinários realizados pelo Ministério Público, chamando para
si uma função democrática que antes pouco se notava. De qualquer
20
Alberto Aggio
maneira, estabilizada a transição à democracia e imersos nos seus
complexos problemas, os brasileiros vêm demonstrando consciência de que o esforço cabe a cada um e à sociedade em seu
conjunto, por meio das instituições públicas. Esse “espírito” novo,
que se espalhou pela Nação, expressa a necessidade cada vez mais
presente de consolidação de uma nova cultura cívica valorizadora
do espírito público, da conduta republicana, do respeito à lei e aos
direitos individuais e coletivos. Em outras palavras, com a democracia parece haver melhores condições para se realizar uma maior
e também nova conexão entre o político, o social e o econômico.
Ainda que de maneira pouco elaborada, foi isso que fez explodir
as já históricas jornadas de junho de 2013, que lotaram as ruas e
avenidas das principais cidades brasileiras. Com acertos e erros,
típicos de manifestações difusas, aquele foi um momento em que
a sociedade brasileira, já mais acostumada ao livre curso da vida
democrática, pode expressar toda sua vitalidade, surpreendendo
a todos.
Quem não se recorda da frase: “vocês não me representam”?
Dentre todas consignas que foram consagradas pelas ruas em
junho de 2013, esta talvez tenha sido a que mais ficou registrada
na memória coletiva como expressão do rechaço ao sistema político e anseio por mudanças. Em meio à multidão, a frase sintetizava a crise de representação que, dentre outras coisas, atualizava mais uma vez o Brasil ao mundo, em simultaneidade com
eventos similares que marcavam as ruas e praças na Europa e
nos EUA. Crise substancial e de largo espectro, mas de delicado
equacionamento fora dos ditames do realismo político, aquele
brado foi perdendo impacto e, como um eco, permaneceu latente
até os dias de hoje, expressando-se também no último processo
eleitoral mediante a centralidade que assumiu a ideia de mudança
e também o elevado índice de abstenção. Aqueles que não se
sentiam representados ainda continuaram a emitir sinais no
sentido de encontrar seus representantes ou então uma nova
forma de representação, muitas vezes codificada pela noção de
democracia direta e concebida invariavelmente em substituição à
democracia representativa.
As multidões que ocuparam as ruas naquele junho pareciam
buscar uma via de passagem para um “represamento”, já então
angustiante. A ira e o ódio contra os políticos, os governantes e
seus partidos explodiram do fundo da alma. Contudo, em meio ao
turbilhão, as multidões não invocaram o desejo e nem imprimiram
uma prática que visasse colocar abaixo a democracia fundada na
Superar a crise, construir a democracia
21
Carta de 1988. Esta manteria sua legitimidade intocada, revelando que a ameaça que pairava sobre a ordem constitucional
estava sendo urdida bem longe das ruas. Como “um grito parado
no ar”, a frase lembrada acima não apontava e nem mesmo insinuava um caminho de mudanças, que depois viria a ser objeto
das mais extravagantes proposições.
Nas manifestações, um tanto ingenuamente, e, de maneira
ardilosa, nas respostas sugeridas desde as alturas do poder,
pareceu haver a expectativa de que se pudesse solucionar nossa
manifesta crise de representação a partir de um lance acrobático,
decretando-se institucionalmente a criação de “espaços” de participação para os “verdadeiros representantes” do povo que foi à
rua, cindindo o conjunto da cidadania brasileira. Combinada com
a pulverização de “conselhos” representativos dos movimentos
sociais em todos os órgãos da administração pública emergiu
também a ardilosa proposição de “Constituinte específica”, cuja
intenção declarada seria a realização da reforma política. Ambas
proposições deram o tom de nonsense às respostas governamentais que viram ou quiseram ver as jornadas de junho e sua plural
vocalização de descontentamento como um acontecimento unidimensional. À impropriedade adicionaram-se a impressão de oportunismo eleitoral e uma inquietante preocupação com propósitos
obscuros que poderiam emergir num futuro relativamente breve.
Tudo isso redundou em perda de confiança da opinião pública em
relação às duas proposições feitas pelo governo Dilma e em distanciamento até mesmo daqueles que haviam abraçado o movimento
espontâneo e difuso que havia brotado do chão das ruas.
Mas há que se olhar todo esse processo a partir de uma perspectiva mais ampla. Se por crise se deve entender a perda de
critério que orienta a normatividade de nossas condutas, a que
emerge atualmente nas democracias contemporâneas, inclusive
na brasileira, é uma crise específica e não uma crise orgânica ou
histórica que estaria a demandar a construção de um novo Estado,
como nos ensinou Gramsci. As jornadas de junho e o que se
seguiu expressaram uma crise específica de legitimação dos mecanismos do sistema político, uma crise na democracia e não uma
crise da democracia. Guardada a particularidade das experiências
históricas, a democracia brasileira pode ser considerada “tão
democrática” quanto as democracias hodiernamente em vigência.
Em todas elas, a necessidade de reformas constantes que visem
aperfeiçoar seus sistemas de representação e participação é parte
integrante da sua própria natureza.
22
Alberto Aggio
“Democratizar a democracia”, uma consigna evocada de
maneira mais organizada pelos manifestantes, expressaria formalmente um diagnóstico similar, de operacionalidade e prognósticos, todavia, incógnitos. Outro significado, contudo, guardaria a
mobilização da noção de democracia direta, que se fundamenta,
sobretudo, numa hipersimplificação do político, um ilusionismo
que visa traduzir o ato de governo como algo simples e direto, sem
delegação, no qual o envolvimento dos cidadãos com a coisa
pública seria contínuo e permanente. Adicionalmente, argumentase a total compatibilidade da democracia direta com a revolução
digital em curso. Esquece-se, contudo, que a fórmula da representação política foi criada no mundo contemporâneo, e com
sucesso, para superar a dicotomia entre a democracia dos antigos
(de ênfase pública) e a dos modernos (na qual se introduz dimensões do mundo privado na vida política). Esquece-se também,
como argumenta Pierre Rosanvallon, que, hoje, a democracia não
se exaure nas eleições e tornou-se uma realidade política complexa,
composta de arenas participativas e de novos fluxos comunicacionais que ampliam, condicionam e estabelecem a vigilância entre
representados e representantes. Não há mais, por assim dizer,
uma democracia liberal tout court, apartada das tensões e crises
próprias à de um laboratório conceitual e prático do presente em
que se transformou a experiência democrática contemporânea.
De uma forma ou de outra, o Brasil também participa do
percurso de construção dessa democracia dos contemporâneos.
Entretanto, os últimos anos de “presidencialismo de coalizão”
acumularam práticas paralisantes que bloquearam uma relação
livre e produtiva entre o Estado e os movimentos autônomos
nascidos da sociedade. O resultado tem sido o pouco enriquecimento da cultura cívica entre nós e, com ele, a diminuição de
nossa capacidade, como sociedade, em nos envolvermos seriamente nas questões atinentes à engenharia das instituições e à
renovação da relação povo-poder.
Um cenário cada vez mais problemático e que tende a se
agudizar nos próximos anos em razão de um descrédito generalizado que toma conta do governo “conduzido” por Dilma Rousseff,
um governo que acaba de tomar posse depois de uma reeleição
apertada e já se apresenta envelhecido. Em sua composição se
observa uma clara dissintonia, não apenas discursiva, entre seus
membros e na hierarquia de comando. O novo governo não conseguiu, até o momento, superar o passivo que carrega em relação
aos processos de corrupção na Petrobrás, de consequências políSuperar a crise, construir a democracia
23
ticas imprevisíveis, nos quais estão implicados técnicos e políticos
da sua base de apoio. Além do descompasso com o discurso de
campanha (falou-se uma coisa e se faz outra), um autêntico “estelionato eleitoral” que, no tocante ao programa econômico e gerencial, vem erodindo inclusive o apoio da sua própria base social.
Por outro lado, a nova marca deste governo – “Brasil, pátria educadora” – por não apresentar nada de concreto, e, ao contrário, retirando recursos do setor, deixa a sensação de que o enfoque de
marketing ainda é o predominante. Por último, mas não menos
importante, a menção no discurso de posse de Dilma Rousseff de
um dito apócrifo, confirmando a sua visão de que “o impossível se
faz já”, só pode ser suportado com o beneplácito concedido a uma
quase septuagenária que ainda vive intimamente os devaneios de
sua juventude rebelde. O agravamento da crise econômica nesses
primeiros dias da nova gestão e a falta de convicção em relação às
medidas que estão sendo tomadas expõe a grande desorientação
na qual o governo está enredado, aproximando-o de uma deriva de
degradação política, o que perigosamente pode ultrapassar o
terreno da sociedade política e se espalhar por um tecido social
que, cada vez mais, perde a sua capacidade de coesão social.
Há, portanto, uma crise instalada e que provavelmente irá ser
redesenhada, nos próximos quatro anos. Isto se coisas mais
graves não acontecerem nesse percurso. O PT, partido da presidente e líder da coalizão de governo, mostra-se incapaz de afrontar
a crise uma vez que parece se encontrar ainda prisioneiro de um
virtuosismo mafioso, ainda incólume, cujas consequências não
fazem outra coisa senão empastelar os pressupostos da democracia que os brasileiros vêm construindo a duras penas e que
deveria cada vez mais se abrir à participação ativa de milhões.
A conjuntura não favorece, portanto, visões otimistas e ampliamse as dificuldades e os desafios colocados a todos os atores políticos para encontrarem, com realismo, os termos, meios e modos
para superar a crise e conseguir recompor a confiança do país em
continuar vivenciando e ampliando a política da democracia.
24
Alberto Aggio
Fim de ciclo e nova hegemonia
para refundar a república
Marcio Sales Saraiva
Mas, enquanto se vive neste mundo, existe alguma esperança; porque é melhor ser um cão vivo do que um leão
morto (Eclesiastes 9:4 – Bíblia NTLH)
O
novo governo de Dilma Roussef (PT) já nasce desatualizado, politicamente, logo após assumir em 1º de janeiro de
2015. Há dois sentidos para esse envelhecimento precoce.
Primeiro, ele herda a “herança maldita” de si mesmo, na busca
de recauchutagem para a estagnação do ciclo de grandes obras
(inacabadas!) e “pacotes de bondades”. Não dá mais para continuar a festa e chamam o ortodoxo Joaquim Levy, eleitor de Aécio,
para arrumar as contas públicas e tentar retomar credibilidade.
Além disso, o governo Dilma comete erros nas escolhas públicas e
alianças que aprofundam a crise econômica e política.
No campo político e simbólico, o governo criou uma dissonância cognitiva nos eleitores brasileiros. Dilma e João Santana
prometeram um governo à esquerda do que realiza, desdenharam
de um possível ajuste fiscal com tarifaço, acusaram os adversários de serem fantoches a serviço dos bancos privados, dos juros
altos e da inflação. Desconstruíram Marina Silva (PSB-REDE) e
Aécio Neves (PSDB) como candidatos contrários aos direitos dos
trabalhadores e programas sociais. A imagem da ex-guerrilheira
empolgou pessoas de boa fé e alimentou a esperteza dos que
apenas queriam conservar o poder nas mãos da coalizão que
caminha para dezesseis anos, já tendo Lula como candidato da
“mudança com continuidade”. O choque de realidade eletrizou o
sentimento popular: “fomos enganados”.
Hoje, sabemos que a vaca já tossiu, a irresponsabilidade fiscal
é nítida, a gastança “neodesenvolvimentista” de Guido Mantega/
Dilma criou assimetrias graves na economia e o programa eleitoral do PT em 2014 parece uma projeção psicanalítica no outro
daquilo que faria na presidência. E fez. Os resultados aí estão.
Perda de credibilidade, erosão da base de apoio parlamentar –
depois de tentarem ser mais espertos que o velho PMDB –, impopularidade, protestos, negativação dos indicadores macroeconô25
micos e escândalos de corrupção que colocam o “mensalão” como
coisa de estagiários.
O país está dividido. Por um lado, temos as forças produtivas em
ritmo lento, em alguns casos, processo de paralisia. Capital e trabalho
estão perdendo e o PIB não decola. Na outra ponta, setores sociais
são insuflados contra o suposto “golpismo” da oposição, criando um
clima de “nós” contra “eles”, como se vivêssemos em 1964.
O Congresso Nacional, atingido pela crise da “Lista Janot”, fruto
da Operação Lava Jato, parece imobilizado e mal humorado com o
governo. Eduardo Cunha (presidente da Câmara) e Renan Calheiros
(presidente do Senado), ambos do PMDB, sentem-se constrangidos
com o envolvimento dos seus nomes no esquema do chamado
“petrolão” e perdem força, mas prometem arrastar o governo na
crise que se aprofunda. Sem uma articulação política competente
– quem é Pepe Vargas? – e isolando Michel Temer, vice-presidente
da República e presidente do PMDB, o petismo desce a ribanceira.
Para piorar o cenário, a presidente Dilma é conhecida nos bastidores como pessoa pouco afeita ao diálogo político que envolve
perdas e ganhos na construção de um consenso possível. Forjada
no marxismo autoritário das guerrilhas antiditadura e no caudilhismo brizolista, entronizada no PT pelo ex-presidente Lula da
Silva, ela parece indisposta diante da urgente necessidade de um
pacto nacional e perde prestígio dentro do próprio partido, ainda
que vá para a TV falar em humildade e diálogo. Quem acredita?
O governo, montado de forma esquizóide no loteamento de
cargos e ministérios para agradar a diversos interesses partidários e sociais contraditórios, reúne Kátia Abreu, do agronegócio,
até os militantes dos sem-terra (MST). É impossível governar com
tamanho espectro ideológico e manter maioria num Congresso
com 28 partidos políticos em busca de fatias do orçamento.
As disputas internas na máquina governamental só aumentam a
percepção de fragmentação e de ausência de um eixo programático que dê unidade às forças governistas. Falta liderança.
A oposição cresce, não pela capacidade de intervenção e mobilização do PSDB ou mesmo de Aécio Neves, o nome que capitalizou
milhões de votos no último pleito. Cresce nas ruas, na sociedade
civil. E é neste ponto que as “esquerdas tradicionais” (PDT, PCdoB
e PT) se encontram perdidas. Como defender um governo, supostamente de esquerda, liderado pelo PT em aliança com setores nitidamente de direita e fisiológicos, sendo este mesmo governo o objeto
de repúdio da maioria nacional? É patético ver as esquerdas tradi26
Marcio Sales Saraiva
cionais na contramão do sentimento popular, dissociadas da realidade do país e, por vezes, defendendo um governo que tem o apoio
de setores expressivos do que se convencionou chamar de direita.
Cresce então a percepção antiDilma e, com a corrupção nas estatais, o antipetismo ganha colorações quase histéricas, mas é compreensível. Há razões suficientes para este sentimento de repulsa.
As forças de oposição assistem a tudo isso bestializadas – para
lembrar José Murilo de Carvalho – e também tem dificuldades
para se articular com a sociedade que pulsa nos protestos organizados por movimentos que mantêm distância defensiva dos
partidos políticos, tal como o “Vem para a Rua”. O sistema político, carente de uma reforma, não consegue processar o que vem
das ruas, as demandas da sociedade, num curto-circuito do
sistema de input-output. Nem o governo anda, nem a oposição
parece ter um projeto de país, ficando no varejo das críticas
pontuais e surfando nos erros do dilmismo.
As manifestações de 15 de março de 2015 revelam a força de 2
milhões de pessoas que foram as ruas protestar contra o governo
petista e os diversos esquemas de corrupção, isso sem máquinas
partidárias ou sindicais. O alvo foi o Palácio do Planalto e agora o
PT experimenta seu próprio veneno ao ver o povo clamando “Fora
Dilma” e, em alguns casos mais exaltados, “Impeachment já”. Os
que protestam aprenderam com o PT e seu desprezo pelas regras
do jogo democrático durante duas décadas. Enquanto o PCB, na
década de 1980, já entendia a democracia como valor universal e
compreendia a importância de se construir frentes democráticas
que possibilitassem mudanças sociais significativas (WEFFORT,
1984), priorizando os interesses do mundo do trabalho, o PT flertava com o esquerdismo mais infantil, moralista (no pior sentido!),
purista e inconsequente.
É importante perceber que estes movimentos de protestos antigoverno têm apoio discreto dos partidos de oposição e sofrem
críticas da autodenominada “oposição de esquerda” que tem no
PSOL seu maior referencial, mas incapaz de mobilizar e sacudir as
ruas. Na prática, os pequenos partidos de ultraesquerda acabam,
na ausência de perspectivas de uma mudança social radical,
alinhando-se ao petismo como “mal menor” ou “medo do pior”.
O espantalho do “golpe” é usado pelo governo como agente de
unidade na guerra contra “eles” (tucanos, “coxinhas”, “PIG”, “elites
brancas”, oposição).
Fim de ciclo e nova hegemonia para refundar a república
27
Como não existe espaço vazio na política, setores ultraconservadores tentam ocupar o campo social antiDilma com seu arsenal de
irracionalidades, tais como os pedidos de intervenção militar,
slogans anticomunistas, críticas à pedagogia do oprimido de Paulo
Freire (tida como “doutrinação marxista”) e “Fora STF”. Estas vozes
da extrema direita anticomunista e claramente golpista não têm
sustentação na opinião pública e nem nos aparatos militares do
Estado, formam uma minoria nos protestos – ainda que úteis ao
governismo para caricaturizar toda a oposição – mas se o campo
progressista, democrático e de esquerda não abrir diálogo com o
conjunto dos movimentos antiPT e anticorrupção ou se entrar no
jogo ultraesquerdista da generalização, etiquetando-os todos como
“agentes da direita reacionária”, essa minoria antidemocrática que
se faz presente nos protestos anti-governo poderá crescer e ganhar
hegemonia. É aí que está o perigo para todos os democratas e a
necessidade de juntos, oposição e governo, cerrarmos fileiras na
defesa do Estado de Direito democrático. Dito de outra maneira, ou
a esquerda democrática e todos os progressistas assumem seu
papel nos movimentos de oposição ao governo Dilma/PT, ou poderemos assistir um crescimento dos setores golpistas e de extrema
direita que, no vácuo, vão ocupando espaços físicos e simbólicos.
Não se nega a legitimidade dos protestos contra Dilma e o PT,
pois há razões de sobra na atual conjuntura, mas se faz necessário disputar no campo do discurso e da mobilização social o tom
que deve ser dado, a agenda, os eixos, e ampliar a leitura para
além do personalismo e do partido da ocasião. Os movimentos
sociais de oposição ao governo carecem de (1) uma cognição mais
ampliada sobre os problemas estruturais da corrupção – para não
ficar preso ao moralismo tipo UDN –, (2) compreender os erros das
políticas públicas adotadas durante a “Era PT”, (3) perceber os
limites do presidencialismo de coalizão que temos hoje (colocar o
parlamentarismo na agenda poderia qualificar a discussão na
oposição), (4) saber que nem tudo emana da presidência (como se
fossemos uma monarquia absolutista) e, portanto, as críticas
devem ser também dirigidas às elites políticas do Parlamento
federal. Por último, (5) entender que parte das elites empresariais
deste país estão aliançadas com o poder petista, recebem subsídios questionáveis do BNDES e bancos públicos, financiam os
esquemas de corrupção política.
É preciso apontar, por exemplo, para a necessidade de uma
reforma política que dificulte processos de corrupção nos quais o
poder econômico, em conluio com setores da burocracia estatal (os
28
Marcio Sales Saraiva
“anéis burocráticos” que falava FHC na década de 70) e da burocracia dos partidos que estão no poder, distorcem o processo democrático, influenciam na escolha do eleitor e transformam as escolhas governamentais em benefício privado, quitando assim favores
de campanha eleitoral. Bem pior que a roubalheira aberta são os
“investimentos” que os grandes grupos econômicos fazem no
processo eleitoral para mais tarde retirar ganhos escusos e nada
republicanos. São essas “trocas de favores” que estão na origem do
“petrolão” e isso ainda não é devidamente percebido pelos movimentos sociais de oposição à Dilma/PT. O exemplo dado por Przeworski; Manin; Stokes (2006, p. 113) é bastante ilustrativo.
O fato é que para existirem e se apresentarem aos eleitores, os
partidos políticos precisam arrecadar fundos. Quando estes
fundos vêm de interesses particulares, são trocas de favores.
Presumidamente, se Philip Morris Co. Inc. contribuiu, em 1996,
com mais de US$ 2,5 milhões para o Comitê Nacional Republicano (New York Times, 28 de janeiro de 1997, p. 3), deve ter esperado pelo menos US$ 2,5 milhões em favores; de outra forma,
seus dirigentes poderiam ter sido despedidos pelos acionistas. Os
intercâmbios de contribuições políticas por favores de políticas
geram distorções através de seus efeitos na distribuição de
recursos. O custo social de tais distorções é provavelmente muito
maior do que aquele do roubo aberto, que causa distorções apenas
através de seus efeitos sobre os impostos.
Um novo campo político pode nascer, compreendendo que
responsabilidade com os gastos públicos e maior eficiência e racionalidade na maquina estatal e nas escolhas públicas não é uma
questão de “neoliberalismo”, mas um consenso entre todos os espectros políticos que já entenderam que o bem comum deve caminhar
com o realismo necessário, pois “não podemos através da política
alcançar o ideal absoluto, como ensinava Platão com cativante sinceridade” (CRICK, 1981, p. 1). E isso é construir uma nova esquerda
“pós-moderna”, libertária, compromissada com os procedimentos e
as regras do jogo democrático, articulando-se nas instituições da
democracia representativa, nas ruas e movimentos autorais, sem
querer encampá-los para si. Optando por ser retaguarda que alimenta
o bom debate do que a vanguarda das certezas do passado. Utilizandose de mecanismos de democracia direta e participativa, sem interesses ocultos de esmagar as minorias com o autoritarismo majoritário, tal como vemos nos regimes bolivarianos. Uma esquerda que,
a despeito da derrocada do socialismo real, não se envergonhe de
dizer que “os mercados capitalistas desenfreados ainda apresentam
muitas das consequências indicadas por Marx, inclusive a predomiFim de ciclo e nova hegemonia para refundar a república
29
nância da ética do crescimento [predatório], uma objetivação
universal [mercantilização da vida] e uma polarização econômica
[assimetrias socioeconômicas]” (GIDDENS, 1996, p. 21).
Pressupondo que os partidos políticos ainda têm um papel
importante nas poliarquias, regimes de maximização da liberalização e participação políticas que correspondem à democracia
possível (LIMA JÚNIOR, 1997, p. 86-87), o PPS, Rede Sustentabilidade, PSDB, verdes e PSB poderiam construir um novo bloco
histórico-político, em conjunto com diversos atores importantes
da sociedade civil, que romperia com o petismo de cooptação e
isolaria os discursos ultraconservadores e ultraesquerdistas,
ampliando a democracia e restaurando solidariedades danificadas
(GIDDENS, 1996, p. 21). Ofertar aos movimentos de protestos – e
à sociedade brasileira como um todo – uma agenda reformista,
ambientalmente sustentável e economicamente viável, que não se
apegue ao Estado-Leviatã e nem se submeta aos interesses de
curto prazo dos mercados, seria a construção razoável de uma
saída política para a crise. É desta terceira via que precisamos
para refundarmos a República em novas bases socioeconômicas,
jurídicas, políticas e ambientais. É isso que entendo como “ser
dirigente já antes de conquistar o poder governamental” (Gramsci).
O ciclo pós-Sarney (1985-2015), chamado de Nova República,
está chegando ao fim justamente com o partido que representava o
novo no final do ciclo militar (1964-1985). É hora de construirmos
o futuro e sem medo de ser feliz, pois “a esperança é um elemento
decisivo em qualquer tentativa [de] mudança social na direção de
maior vivência, consciência e razão” (FROMM, 1984, p. 24).
Referências
CRICK, B. Em defesa da política. Brasília: UnB. 1981.
FROMM, E. A revolução da esperança. Rio de Janeiro: Zahar.
1984.
GIDDENS, A. Para além da esquerda e da direita: o futuro da
política radical. Rio de Janeiro: Unesp. 1996.
LIMA JÚNIOR, O. B. Instituições políticas democráticas: o segredo
da legitimidade. Rio de Janeiro: Jorge Zahar. 1997,
PRZEWORSKI, A.; MANIN, B.; STOKES, S. C. Eleição e
representação. Lua Nova, n. 67, 105-138.
WEFFORT, F. Por que democracia? São Paulo: Brasiliense. 1984.
30
Marcio Sales Saraiva
Um outro mundo é possível
Luiz Werneck Vianna
I
sso que aí está é o fim do mundo ou é começo de outro? Os
sinais que vêm das ruas, ocupadas por multidões, que se renovam quase semanalmente, embora desencontrados, expressam, cada qual a seu modo, a mesma sensação de mal-estar com
os rumos do país e de desconfiança na ação dos partidos e, em
geral, na dos dirigentes políticos.
À diferença das manifestações de 2013 que apresentavam
agendas de políticas públicas definidas sobre temas concretos,
como os da mobilidade urbana, dos serviços de saúde e de
educação, as que se iniciaram a partir de 15 de março de 2015,
bem mais encorpadas, optaram pela marca difusa de um protesto
contra a política, na forma como a que temos praticado.
No espaço de dois anos, o país se vê varrido por duas grandes
ondas de mobilização social – mais duas estão a caminho. Sem
contar a dos sindicatos que têm feito das ruas e rodovias lugar de
teatralização das suas manifestações – a ocupação da Ponte RioNiterói por uma passeata de metalúrgicos foi a mais contundente
–, a que se somam as de incontáveis movimentos sociais.
As ruas têm sido instituídas numa esfera pública paralela, à
margem dos partidos e das organizações formais, mas, ao contrário
das gregas e espanholas, nelas não se delibera e não se procura
produzir autoesclarecimento sobre o que, afinal, nos aflige na
hora presente.
De fato, não há por que tergiversar com a gravidade da situação,
nem se pode contar com a garantia de que o caráter pacífico dessa
leva de manifestações dos idos de março será preservado, pois a
cólera e as paixões irracionais, se não contidas por ações responsáveis, trazem o risco de converter disputas políticas em guerra
entre facções.
Não se pode ignorar que a sociedade, independentemente
de suas clivagens partidárias, sente que seus sonhos foram
roubados. O principal deles é o de que estaríamos em marcha
batida para a afluência, com o bilhete premiado do pré-sal,
cornucópia que nos permitiria o acesso a recursos abundantes
31
para a modernização do nosso parque industrial e para políticas afirmativas de inclusão social.
A descoberta de uma sinistra trama a envolver a Petrobras
numa rede de relações corruptas com empresas e partidos da base
governamental, inclusive com o hegemônico, afetando suas atividades e a própria credibilidade da empresa, não só posterga a
concretização desses legítimos anseios, como já deixa em seus
rastros o desemprego de milhares de trabalhadores e a ruína de
cidades que prosperaram em torno dos seus negócios.
Mas como tudo o que é ruim pode piorar, mal saído de uma
eleição presidencial, o país é advertido pela presidente Dilma de
que, ao contrário do que sustentou quando candidata, seria
necessária uma mudança de rumos: um severo ajuste fiscal
tomaria o lugar da aceleração do crescimento.
Trocar sonhos por pesadelos não é uma boa experiência.
Chamada à realidade por eles, a sociedade defronta-se com um
mundo para o qual não tem referências para se situar diante dos
novos desafios a que está exposta. Sem confiar nos partidos,
descrente do governo, faz das ruas um tribunal, pondo a política
no pelourinho. Perigosamente, o demos se dissocia da República,
abrindo passagem para soluções salvacionistas e homens providenciais, dos quais temos a infausta memória do regime militar e
da eleição de Collor na sucessão presidencial de 1989.
A sinalização está feita – esta é uma hora que demanda com
urgência a ação dos Poderes republicanos a fim de preservarmos
e aprimorarmos as instituições conquistadas com a democratização do país.
As reformas políticas têm de ser feitas e os crimes contra o
patrimônio público ser apurados e punidos. Mas essas tarefas,
embora necessárias e ingentes, não nos bastam. A emergência às
ruas das multidões, em si auspiciosa, também tem revelado a
rusticidade da nossa cultura política. A desinstalação do capitalismo de Estado como ideologia reinante nos chega por imperativos sistêmicos, e não pela ação autocrítica do governo, que não
reconhece os seus erros.
Décadas de passividade, de empobrecimento do debate público,
sob o obscurantismo de concepções anacrônicas sobre os poderes
demiúrgicos de um Estado tutelar e de heróis providenciais nos
apresentam, agora, a sua conta: o maniqueísmo é a marca dominante da nossa cultura de massas.
32
Luiz Werneck Vianna
Saudáveis como são, essas manifestações de 2015, além de
erráticas – quem defende o governo discorda de sua política econômica, quem o ataca a defende –, vêm à luz, contudo, condenadas
ao efêmero, não nos deixando em seus rastros ideias novas. Nada
nelas evoca os movimentos que deram partida ao Syriza, na
Grécia, nem os que, na Espanha, serviram de base para a organização do Podemos e dos Cidadãos.
Elas são apenas especulares da miséria intelectual – sintomático o “nós contra eles” – a que nos condenou uma política realizada em nome de uma esquerda que, mesmo diante das inúmeras
oportunidades que se apresentaram para abrir caminho em
direção ao moderno, optou, com um pragmatismo sem alma, pela
caixa de ferramentas e pelo repertório herdados do nosso passado,
concedendo vida nova ao nacional-desenvolvimentismo e à estatolatria, sempre presente em nossa História.
Não se vive um fim do mundo, mas desse mundo aí. A crise
que o anuncia é a hora de oportunidade para a afirmação dos
Poderes republicanos, em particular do Judiciário e do Legislativo, este último a se desprender – não importando as motivações
de algumas de suas lideranças – da sua gravitação em torno do
Executivo. Sob a modalidade bastarda como o conhecemos, soou
a hora final para o nosso presidencialismo de coalizão, forma
velada com que o autoritarismo político encontrou passagem para
se reproduzir no cenário da Carta de 88.
Em meio a um cenário de escombros, com o que ainda resta de
pé dá para entrever que um outro mundo é possível.
Um outro mundo é possível
33
II. Observatório
Autores
José Antonio Segatto
Professor Titular de Sociologia da Unesp campus de Araraquara.
Roberto Freire
Advogado, deputado federal, presidente nacional do Partido Popular Socialista.
Tereza Vitale
Pedagoga, feminista, militante política e editora de profissão.
Trinta anos de retorno
à democracia
Roberto Freire
E
ste 2015 tem um sabor especial para nós brasileiros, apesar de toda a crise que o Brasil está vivendo na economia,
na política, no institucional, na ausência de credibilidade,
no comportamento amoral de homens públicos e muitas outras
deformações, resultado mais do que evidente sobretudo dos 12
anos de governo do Partido dos Trabalhadores, o qual, conforme
anunciava alto e bom som, desde sua fundação em 1980, iria “virar o país de ponta cabeça” e eliminar tudo o que havia de errado,
corrupto, injusto e desigual. Ao contrário do que homens e mulheres, dominados por rica esperança, aguardavam de real mudança
a partir de 2003, ocorreu exatamente a continuidade das nossas
mazelas, em todos os planos, e, o que é mais grave, aprofundadas
pela gravíssima deformação do lulopetismo de que tudo é válido e
correto para se manter no poder.
Tal sabor especial deste ano decorre, antes e acima de tudo,
das imensas mobilizações de massas, ocorridas, neste último dia
15 de março, nas capitais e em muitas cidades – consideradas as
maiores realizadas no último meio século em nosso país – condenando o governo Dilma, Lula e o PT, mas decorre também do fato
de estarmos completando 30 anos de retomada do processo democrático, que havia sido bloqueado, violentamente, pelo golpe
militar-civil de 1964. Coincidentemente, nesse mesmo dia e mês,
o ex-governador José Sarney, um civil, e na condição de vice-presidente, assumiu a Presidência da República. É que, na noite
anterior, faltando menos de 12 horas para a posse, o presidente
eleito Tancredo Neves fora internado às pressas no Hospital de
37
Base de Brasília, com fortes dores abdominais, febre alta, dificuldade respiratória e tremores, o que o levou a sofrer uma cirurgia
no intestino e após 38 dias e seis outras cirurgias veio a falecer.
Recorde-se que a expressiva vitória da oposição, no dia 15 de
janeiro de 1985, no Colégio Eleitoral criado pelo regime, foi resultado de uma ampla articulação, que começou logo após a derrota,
no Congresso Nacional, em abril de 1984, da emenda do deputado
Dante de Oliveira (PMDB-MT), que propunha o retorno de eleições
diretas. Após 21 anos de ditadura, a escolha de Tancredo Neves
para o cargo de chefe da nação, mesmo que por meio de eleições
indiretas, significava o fim do ciclo dos governos militares, com a
retomada da supremacia civil nos destinos da República.
Político experiente, conhecido sobretudo pela sua capacidade
de conciliação, o então governador de Minas enfrentou o ex-governador de São Paulo e deputado federal Paulo Maluf, do PDS, o
partido que dava sustentação política ao regime. Mesmo sem o
apoio de parte da oposição, incluindo o PT e setores do PMDB,
Tancredo costurou uma ampla aliança, na qual foi decisivo o
surgimento de uma dissidência no PDS, capitaneada pelos
ex-governadores Aureliano Chaves, de Minas, e José Sarney, do
Maranhão (que, em troca desse apoio, foi escolhido para o cargo
de vice). Numa tensa sessão que durou três horas e meia, Tancredo
obteve 480 votos, contra 180 de Maluf (166 deputados de seu
partido votaram no PMDB e outros se abstiveram). Infelizmente,
logo depois foi acometido de terrível doença que o levou à morte,
no mês de abril daquele ano.
Nas ruas e praças das capitais, o público delirou com o resultado, que já era esperado. Na bancada do PT, os oito deputados
haviam rachado sobre a determinação da legenda de se abster da
votação. Dos oito, três se rebelaram e por sua atitude foram expulsos
do partido que, à época, era presidido por Luiz Inácio Lula da Silva:
o deputado Ayrton Soares, líder da bancada na Câmara, além de
Bete Mendes e José Eudes, os quais foram acolhidos, posteriormente, nas fileiras do PCB. É lamentável a pouca compreensão dos
petistas em relação ao processo de conquista democrática, quando
condenaram o Colégio Eleitoral como meio para derrotar a ditadura, validado posteriormente pela história.
Tratava-se de mais um importante e decisivo passo na reconquista de um regime de amplas liberdades, base para a implantação de novos e essenciais avanços na vida nacional. Estamos,
há muito, convencidos de não haver outro caminho para solu38
Roberto Freire
cionar os graves problemas nacionais, fora da democracia. Qualquer atalho sempre dará em desastre.
E quando falamos em democracia estamos definindo grandes
processos de articulação que possam romper com o sebastianismo
político, com o salvacionismo que, de alguma forma, esteve
presente no amplo movimento que levou Lula ao poder, em 2003.
Se as amplas alianças políticas dos idos de 1970 e 1980 foram
fundamentais para derrotar o regime autocrático, elas são impostergáveis para mudar o Brasil, hoje. Não alianças de qualquer
tipo, com forças conservadoras ou oligárquicas, ressuscitando
figuras como Collor, Maluf, Renan e tantos outros, feitas por Lula
e Dilma, apenas em nome de uma certa governabilidade canhestra.
A democracia e as reformas estruturantes
Aos 30 anos, a democracia que nasceu naquela eleição indireta tem se consolidado, não se corre o risco hoje de uma regressão
autoritária, mas ainda carece de avanços, que dependem das
chamadas reformas de base (reforma democrática do Estado,
reformas política e eleitoral, reforma tributária, reforma educacional e outras mais) e da construção de cidadãos e cidadãs que
compreendam e se deixem envolver na atividade política, e que
sejam capazes de diagnosticar, sugerir caminhos à frente e tudo
fazer para que as coisas aconteçam.
A liberdade é parte inerente das aspirações de cidadãos do
mundo moderno. Não existe ganho de curto prazo capaz de
compensar a opressão estatal. Um Estado que sufoque a sociedade acaba minando a energia criativa dos cidadãos, componente
vital para o surgimento de novas ideias e novos avanços. O Estado
deve ser forte o suficiente para impor a ordem, garantir a lei,
financiar atividades socialmente desejáveis e se sobrepor às elites
de cada momento histórico; mas não a ponto de impedir que a
sociedade se desenvolva livremente. E nossa classe política parece
viver num mundo à parte.
O Brasil é uma democracia, mas há situações muito desiguais
entre nós por não termos estabelecido plenamente o império da
lei. A verdade é que temos problemas em praticamente todas as
frentes. Há o desequilíbrio nas relações entre o Executivo e o
Legislativo assim como com o Judiciário, que transforma o presidente brasileiro em um dos mais poderosos do mundo. Nossa
infraestrutura é frequentemente apresentada como uma das
Trinta anos de retorno à democracia
39
piores do planeta. Temos talvez o mais complexo e ilógico sistema
tributário, em que paga mais imposto quem menos deve pagar.
Temos um sistema educacional pateticamente distante do que é
referência lá fora, e os sinais de evolução são para lá de modestos.
Não haverá crescimento de verdade se não optarmos por enfrentar
estas questões, uma a uma.
Porém, deve-se ressaltar um dado novo e positivo: temos
segmentos inteiros da sociedade que, antes inebriados pela
chegada de um partido de trabalhadores ao poder, começam a
reagir, sob as mais diferentes formas, após constatarem uma
desastrosa experiência. É que os brasileiros em geral, sejam ricos
ou pobres, sentem-se confrontados por um governo e um partido
que, por meio da mentira sistemática de sua propaganda, vendem
a ilusão de um país que não existe. Flagrado num processo sistemático de aparelhamento e partidarização do Estado e de criminosos esquemas de manutenção do poder como já detectado no
julgamento do “mensalão”, e agora com dimensão redobrada no
esquema do “petrolão” que fragilizou a mais importante empresa
do país, a Petrobras, a cidadania tem se manifestado de maneira
inequívoca, desde as jornadas de junho de 2013, as quais tiveram
continuidade neste mês de março, de forma nunca vista na história
deste país e cuja tendência é, daqui em diante, ser cada vez mais
crescentes e surpreendentes.
Tudo isso ocorre, pois contamos, lamentavelmente, com um
governo hegemonizado, há 12 anos, por um partido de esquerda,
fato não corriqueiro em nossa história, mas que paga pesado
tributo por não ter feito até agora nenhuma reforma estruturante
nem ter apresentado projeto estratégico para o país.
É que, nesse período, revelou-se uma grande despreocupação
dos seus principais líderes com os princípios e questões democráticos e republicanos, alicerce dos tempos novos que vivemos, e
que exigem se propor e se tentar construir um novo ciclo para o
nosso Brasil. Os governantes lulopetistas não precisavam se
render ao fisiologismo, ao clientelismo, que sempre foi a marca
determinante do Estado patrimonialista que temos, nem muito
menos à malversação dos recursos públicos e à própria corrupção.
Já existe um nível de consciência no Brasil de que precisamos
buscar um caminho novo. Não podemos ter uma economia que
patina, uma inflação que cresce, um país que ainda vive (desde a
chegada dos portugueses, no século XVI) de exportar matérias
-primas (as chamadas commodities) ao invés de produtos indus40
Roberto Freire
trializados, agregadores de valor, e uma sociedade perversamente
desigual, com péssimos serviços de educação, saúde, mobilidade
urbana e segurança pública.
Esta consciência parece estar na expressiva maioria dos brasileiros, e o que falta agora é se ter a capacidade de se exigir fim à
enganação, à retórica e ao assistencialismo. Precisamos resolver
isso, ter um movimento social, um movimento político que dê
consequência à política transformadora. Sem qualquer preocupação hegemônica, desejamos ser um dos atores desse processo
de mudança e de câmbio da sociedade brasileira.
Nesses 30 anos de reconstrução democrática, estamos superando obstáculos, e talvez nunca tenhamos vivido um período tão
rico como agora. E não devemos fazer coro aos que veem, por
exemplo, nas manifestações, nas intensas mobilizações iniciadas
em junho de 2013 e até nos excessos, de ambos os lados, seja da
repressão ou dos movimentos sociais, algo que coloque em risco a
democracia. O que vemos é a ajuda à consolidação desta. Até
porque democracia é isso, não são os excessos, evidentemente,
mas um processo de educação do próprio movimento social, e
também de controle que se tem que ter da máquina policial e do
sistema de repressão e de coação, que pode ser democrático e
pode transbordar e ter aspectos abusivos.
É claro que não se pode admitir, por exemplo, a invasão de
prédios públicos, a quebra de agências de bancos e de outras
empresas comerciais, a queima de ônibus e de outros tipos de
veículos. E muito menos agredir ou matar pessoas. Isso não é
prática de nenhum movimento social que queira aprofundar a
democracia. E os governos federal e estaduais precisam ter a
capacidade de saber como resguardar a ordem pública, sem ir
para a repressão com abuso e, inclusive, com mortes, como tem
acontecido também, o que é inadmissível.
Vamos coibir os excessos, vamos nos educar para essa prática
democrática, mas não vamos ter medo de uma manifestação. E, particularmente, das manifestações dos excluídos, dos oprimidos, até
porque estes nunca tiveram tanta oportunidade como agora que o
regime democrático está ofertando. Porque sempre foram reprimidos.
Precisamos continuar reafirmando caminhos democráticos,
pois o golpismo, presente em nossa cultura, vive a pairar sobre a
política, sobre a sociedade, sobre nossos homens públicos e
nossas instituições. Nossa postura hoje deve continuar a ser de
uma política ampla com o objetivo de unir as forças democráticas,
Trinta anos de retorno à democracia
41
particularmente a esquerda democrática. Aquilo que foi importante para derrotar a ditadura, é importante hoje para colocar o
Brasil no lugar que está a merecer, de recuperarmos a política que
está deformada pelo “em dando se recebe” para que seja a mais
rica e correta atividade humana; de restabelecermos a economia,
que foi colocada em delicada e difícil crise; e sobretudo retomarmos o caminho das verdadeiras reformas, capazes de fazer a
sociedade brasileira dar o salto que ela tanto sonha e necessita,
de tornar-se uma sociedade de progresso e de equidade.
Esperamos que a ditadura, definitivamente, tenha sido varrida
da nossa história como experiência. E, para tanto, tudo temos
feito, fazemos e faremos para que os despreocupados com as liberdades democráticas e com a coisa pública ou ajam de acordo com
as regras da boa convivência e do correto uso do aparelho estatal,
integrem-se às exigências da maioria dos brasileiros (como manifestadas nas mobilizações de ruas, praças e até estradas ou via
redes sociais) ou abandonem o espaço que lhes foi concedido, sob
o signo da esperança e da mudança.
A democracia, como já se disse, talvez tenha muitas imperfeições, mas nada melhor foi inventado para ocupar o seu lugar.
E as comemorações dos 30 anos do nosso retorno ao caminho
democrático são mais que uma boa lembrança dos resultados das
lutas empreendidas pelos brasileiros, pois se constituem sobretudo um estímulo para as batalhas que desenvolvem, a cada dia,
para dar novos rumos ao país.
42
Roberto Freire
Desafios da democracia
José Antonio Segatto
A
vitória da Aliança Democrática, há exatamente três décadas
(15/01/1985), no colégio eleitoral, ao eleger para Presidência
e Vice da República, Tancredo Neves e José Sarney, encerrou
um ciclo de 21 anos de regime ditatorial e demarcou a transição
para o Estado de direito democrático. Constituiu-se, ademais, momento extraordinário do desfecho do longo e complexo processo de
transição democrática que, com avanços e retrocessos, culminou
com a promulgação da Constituição de 1988.
Desencadeada ainda nos momentos sombrios da ditadura, foi
conduzida por forças que optaram pela luta política em detrimento
da ilusão do confronto armado e que, pacientemente, construíram
uma ampla frente democrática composta por todos aqueles que se
opunham ao arbítrio, ao cerceamento das liberdades, à lógica da
força, à violação dos direitos e ao domínio do medo.
Aglutinando numerosas e variadas organizações e instituições
da sociedade civil e política, o movimento pela democracia travou
uma longa e árdua “guerra de posições”, envolvendo embates eleitorais, mobilizações, resistências, denúncias, lutas, campanhas,
greves, protestos etc. – lançamento das anticandidaturas presidenciais de Ulisses Guimarães e Barbosa Lima Sobrinho em
defesa do restabelecimento do Estado de direito democrático;
campanhas eleitorais vitoriosas do MDB em 1974/76/78; reorganização e mobilização do movimento estudantil; reação contra
tortura a partir do ato ecumênico quando o assassinato do jornalista Vladimir Herzog (1975); volta ao cenário sociopolítico do
movimento sindical a partir das greves do ABC paulista em
1978/80; intervenções constantes da Igreja Católica, associações
empresariais, OAB, ABI, SBPC, imprensa e outras instituições da
sociedade civil em prol da democratização; movimentação pela
liberdade dos presos, perseguidos e cassados pelo regime ditatorial e a conquista da anistia em 1979; eleição de governadores de
oposição em vários estados em 1982; campanha das diretas-já em
1974; além de outros fatos, episódios e acontecimentos fundamentais que levaram ao isolamento e derrota do regime de exceção
e à conquista das liberdades democráticas.
43
Nesse processo de construção democrática e de superação de
instituições e ordenamentos, concepções e práticas do regime de
exceção, criaram-se muitas expectativas e esperanças transformadoras, não só políticas, mas também socioeconômicas. De fato,
houve uma ampliação dos direitos de cidadania – tanto civis, como
sociais e políticos, quanto de “novos direitos” (da mulher, do
jovem, do idoso, da população negra, dos portadores de necessidades especiais, dos homossexuais, do consumidor etc.) –, o fortalecimento das instituições da sociedade civil e política, a ampliação
das liberdades e a diminuição da iniquidade.
A Constituição de 1988, denominada “cidadã”, incorporou e
tornou lei demandas e aspirações, desde as históricas até as
hodiernas – nos capítulos referentes aos direitos fundamentais, a
organização dos poderes, suas atribuições e relações com a sociedade civil, a defesa das instituições democráticas e da soberania
popular compreende normas e princípios inovadores para a
garantia da “dignidade da pessoa humana”, da igualdade de
condições e das liberdades indispensáveis. Posteriormente à sua
promulgação, muitas disposições foram regulamentadas,
ampliando e aperfeiçoando alguns direitos e instituições.
Simultaneamente, não obstante as conquistas efetivas formalizadas juridicamente, preservou-se muito da cultura política e
das práticas pretéritas. O patrimonialismo e o clientelismo, o
corporativismo e os privilégios, a desigualdade e a coerção, a
violência e a intolerância e outros vestígios característicos da
formação do país foram reatualizados e compatibilizados às novas
formas de relações sociais e políticas, amiúde nas brechas ou ao
arrepio das normas legais. “Chegava-se à democracia política sem
cultura cívica, sem vida associativa enraizada, sem partidos de
massa e, mais grave ainda, sem normas e instituições confiáveis
para a garantia da reprodução do sistema democrático” (VIANNA;
CARVALHO, 2000, p. 28). Isto é, manteve-se a tendência histórica na qual em todas as transições de um regime a outro, as alterações da ordem sempre continuaram fortemente impregnadas
pelo passado – como em 1822 com o rompimento do estatuto colonial e a fundação do Estado nacional; em 1889 com a implantação
da República; 1930 com o movimento político-militar que levou ao
poder forças políticas sob a direção de Vargas; em 1937 com o
golpe que inaugurou a ditadura estadonovista; em 1945 com a
democratização do pós-guerra; em 64 com o golpe de Estado que
estabeleceu o regime ditatorial e outros momentos e processo
extraordinários. Nelas, os elementos de conservação predominam
44
José Antonio Segatto
sobre os da mudança, o presente revigora ou mesmo perpetua o
extemporâneo.
Pela recusa das classes dominantes de transformarem a ordem
legada dos regimes autoritários precedentes, as instituições não
reformadas serão insuficientes para controlar e debelar as formas
de incivilidade presentes na sociedade brasileira, sempre agravadas depois de regimes de exceção, na ordem democrática.
A sucessão de cada período autoritário, intocado pelos governos
que emergem das transições, agrava e reativa o legado autoritário
(PINHEIRO, 2001, p. 265).
Observada pela perspectiva formal e/ou institucional, a democracia parece estabilizada em seus procedimentos e regulação. No
entanto, no exercício ordinário ou corrente é demasiado insuficiente na salvaguarda e na prática das liberdades, na garantia das
condições de igualdade e dos direitos. O ardil político, o patrimonialismo renitente, a transgressão tornada norma, a cultura política autoritária reatualizada, o clientelismo capilarmente enraizado,
o bloqueio do poder estatal à ativação da sociedade civil, os direitos
manietados, a indulgência dos poderes, a reativação contínua dos
mecanismos fisiológicos e de cooptação do Legislativo pelo Executivo, a judicialização da política, a indiferença aos valores e aos
bens públicos, o desapreço pela transparência nos atos e na gestão
estatal, a dissociação entre representantes e representados,
governos e órgãos (legislativo, judiciário) destituídos de fé pública,
sociedade civil e política flácidas e carentes de protagonismo,
partidos políticos privados de ideias, vocação hegemônica e compromissos cívicos, além de outras vicissitudes constituem um complexo
conjunto adverso à ampliação e aprimoramento da democracia e ao
exercício dos direitos de cidadania. Isso, em sua totalidade, tem
gerado um déficit democrático e operado “a redução da cidadania a
uma massa passiva, mero objeto de políticas compensatórias e dos
eventuais benefícios provenientes das máquinas que manipulam
clientelas” (VIANNA, 2002, p. 9).
Tomando emprestada uma classificação elaborada por José
Murilo de Carvalho (2001, p. 215-217), segundo a qual os cidadãos brasileiros podem ser ordenados em três categorias distintas,
consoante suas condições socioeconômicas e, pelo acesso aos
direitos, eles podem ser analisados na seguinte disposição:
a) os privilegiados – grandes proprietários urbanos e rurais e
detentores de capital (empresários, banqueiros, fazendeiros,
grandes comerciantes etc.), políticos e burocratas do alto
Desafios da democracia
45
escalão – cidadãos de primeira classe, procuram sempre que
podem estar acima e/ou à margem da lei e se valem constantemente da transgressão para garantir seus interesses e
negócios; portam-se, comumente e com poucas exceções,
como arautos da conservação e, no mais das vezes, tratam
os bens e recursos públicos como direito adquirido e
costumam justificar a ilicitude e os privilégios em função de
“fins nobres”;
b) uma grande massa de cidadãos de segunda classe, “que
estão sujeitos aos rigores e benefícios da lei”. Constitui uma
camada intermediária, modesta ou remediada, composta de
trabalhadores assalariados formais, funcionários públicos
de baixo escalão, pequenos proprietários urbanos e rurais
etc. “Para eles existem o Código Civil e o Penal, mas aplicados de maneira parcial e incerta” (CARVALHO, 2001, p.
216); quando podem também se utilizam da esperteza para
burlar as normas;
c) os da terceira classe, compostos de uma população marginal
das grandes cidades, trabalhadores urbanos e rurais informais, posseiros, empregados(as) domésticos(as), biscateiros,
camelôs, mendigos, indivíduos ocupados no tráfico de
drogas e no jogo do bicho etc. “Para eles vale apenas o Código
Penal” (CARVALHO, 2001, p. 217); é corriqueiro o fato de se
manterem indiferentes à vida pública e, constantemente,
abdicarem de seus direitos e deveres cívicos – presas fáceis
das políticas clientelistas que reproduzem a iniquidade,
percebem seus direitos como dádivas e enxergam o Estado
como provedor caritativo; indefesos e subalternizados continuam sendo mantidos pelos donos do poder na condição
passiva e assujeitada e induzidos à desobrigação do protagonismo, mesmo que coadjuvante; na dura luta pela sobrevivência, são incitados à malandragem ou à esperteza e à
transgressão, tornando-se, não raramente, cativos e vítimas
do submundo do crime; a apatia e o aviltamento dessa
massa de despossuídos foi possibilitada pelo bloqueio ao
acesso às instituições da sociedade civil e política.
A desigualdade extremada de condições e oportunidades,
associada à disparidade no exercício dos direitos, no acesso à
justiça e às instituições estatais geram, por seu turno, uma cidadania mutilada e a reprodução da opressão e da iniquidade.
É fato, verificável a olho nu, que as camadas subalternas vivem
relegadas ao infortúnio e a toda sorte de adversidades. “O Estado,
46
José Antonio Segatto
os governos, as classes dominantes não asseguram as condições
básicas para a realização e a efetivação dos direitos para a maioria
da população pobre e vulnerável” (PINHEIRO, 2001, p. 266). Essa
situação inscrita na realidade do país tem desempenhado um
papel perverso de amesquinhamento dos valores democráticos e
da deterioração dos direitos.
Tornou-se senso comum a constatação de que quem “cumpre
a lei no Brasil é o povo, os inferiores, os subordinados” (DAMATTA,
2000, p. 104). Recentemente, o então presidente do Supremo
Tribunal Federal, Joaquim Barbosa, afirmou que a justiça brasileira pune pobres, negros e “quem não tem relações políticas” e
que as pessoas “são tratadas diferentemente pelo status, pela cor
da pele, pelo dinheiro que têm”. E foi além: “Uma pessoa poderosa
pode contratar um advogado poderoso, com conexões no judiciário, que pode ter contatos com juízes, sem nenhum controle do
Ministério Público ou da sociedade. E depois vêm as decisões
surpreendentes” (RECONDO, 2013, p. A4). Disso decorre o fato de
não se estranhar “que a violência tenha se apropriado do cotidiano dos cidadãos”, acentuando-se o sentimento de medo e insegurança coletivos, “de que as leis não são aplicadas, de que a
impunidade é regra, de que os mais fortes podem impor sua
vontade sob ameaça do uso da força” (ADORNO, 2011 p. 563).
Pode-se, assim, no limite, afirmar que – apesar de as instituições e normas democráticas terem sido aprimoradas e ampliadas,
dos direitos de cidadania terem sido amplificados, reconhecidos e
materializados em leis – a desigualdade e a iniquidade, a arbitrariedade e as injustiças teimam em manter-se vivas e incrustadas
nas relações sociais e políticas. O passado excludente e autoritário insiste em projetar-se no presente, ou ainda, as marcas
provectas e os resquícios extemporâneos mantêm-se impressos
na contemporaneidade ou a ela acomodados.
De fato, houve um inconteste aggiornamento do processo de
transição democrática. As forças, outrora, renovadoras, que o
conduziram – quando elevadas ao poder e tornadas mandatárias
da Republica –, ajustaram-se, em grande medida, à velha ordem.
Não tiveram capacidade ou vontade suficiente para encaminhar e
dirigir um projeto com referenciais programáticos e práticos reformadores e democráticos, tornando-se impotentes para encaminhar soluções transformadoras – um empreendimento sociopolítico que pudesse efetivar transformações que garantissem a
realização do ser social em condições de equidade e democracia.
Isso implicaria a reordenação das forças partidárias, a recompoDesafios da democracia
47
sição do poder, a publicização do Estado, a ativação da sociedade
civil, a atualização da cultura política, o alargamento dos espaços
e esferas de participação, a superação das múltiplas e desmesuradas desigualdades, a criação de instrumentos de reapropriação
social do excedente gerado etc. O desafio está posto, à espera de
agentes que possam remover entraves e dar curso progressivo à
dinâmica democrática, criando pressupostos necessários para
que suas prerrogativas sejam efetivamente socializáveis e de
desfrute coletivo.
Referências
ADORNO, S.. Violência e crime: sob o domínio do medo na
sociedade brasileira. In: BOTELHO, A. SCHWARCZ, L. M. (orgs.)
Agenda brasileira. São Paulo: Companhia das Letras, 2011, p.
554-565.
DAMATTA, R. Entrevista. In: COUTO, J. G. (org.) Quatro autores
em busca do Brasil. Rio de Janeiro: Rocco, 2000, p. 89-107.
CARVALHO, J. M. A cidadania no Brasil. Rio de Janeiro:
Civilização Brasileira, 2001.
PINHEIRO, P. S. Transição política e não-Estado de Direito na
República. In: ______. et al. Brasil: um século de transformações.
São Paulo: Companhia das Letras, 2001. p. 260-305.
RECONDO, F. Barbosa questiona admissão de recursos e critica
conexões de advogados poderosos. O Estado de São Paulo,
04/05/2013, p. A4.
VIANNA, L. W. Apresentação. In: ______. (org.) A democracia e os
três poderes no Brasil. São Paulo/Belo Horizonte: Humanitas/
UFMG, 2002, p. 7-16.
______. CARVALHO, M. A. R. República e civilização brasileira.
Estudos de Sociologia, Araraquara, Departamento de Sociologia,
ano 5, nº 8, p. 7-33, 1º semestre de 2000.
48
José Antonio Segatto
A mulher na política
merece seu real espaço
Tereza Vitale
D
esenvolver atividades num partido político e compreender
a importância desta determinação significa lutar ativamente em favor de uma ideia, melhor dizendo, de um ideal. Nosso envolvimento nesta luta pode se dar em torno da macropolítica, de interesse para o conjunto da sociedade, ou em torno
de políticas específicas (mulheres, crianças, juventude, educação,
terra, LGBT) ou, ainda, em torno de temas vários que compõem
um todo.
Tenho para mim que a política, embora esteja tão mal avaliada
por alguns e tão rejeitada pelas pessoas mal instruídas e mal
informadas, ainda nos traz esperanças de melhores dias e
melhores oportunidades para a sociedade. Dizem que fazer política é uma nobre missão. É assim que eu penso e é isso que me
move para estar nas fileiras de um partido.
Quando nos referimos à política, ela imediatamente nos remete
a “políticos” e nossa reação é dizer que não gostamos de política e
que os políticos são todos ladrões etc... E esses políticos são
homens e mulheres exatamente aqueles que elegemos e que nos
representam nos parlamentos e nos executivos.
Se pensarmos bem, constataremos que somos nós os únicos
responsáveis por eleger, num processo de disputa democrática, a
presidente da República, o governador, o prefeito, o senador, o
deputado, o vereador. Desta constatação surge uma dúvida que
cada um de nós, homem ou mulher, não pode deixar de estar
sempre atento: é a política que não presta ou somos nós que não
estamos sendo tão exigentes quanto é necessário nas escolhas
que temos feito e que precisam ser mais bem avaliadas?
Permitam-me que lhes fale – já que escrevo este texto no dia 8
de Março – a respeito da mulher se envolver com a política. E o
que tem esse papo todo de política a ver com as mulheres participarem ou não dos partidos?
Neste sentido, eu gostaria de considerar dois pontos. O primeiro
deles é que a política faz parte da nossa vida e ficarmos atentas a
ela significa participarmos das decisões que podem melhorar a
49
nossa vida e a de todos os cidadãos. Melhorar nosso dia a dia, o das
nossas famílias, o de nossas filhas e filhos, o de nossas amigas e
nossos amigos. Se não estivermos envolvidos e dedicados à política,
as coisas vão continuar acontecendo, mas da forma como eles, “os
políticos”, querem que elas aconteçam e não da forma que seja
melhor para nós. Nós, o povo! Nós, a comunidade!
Outro ponto a considerar é que nós, mulheres, somos mais de
50% da população brasileira. Acontece que quem decide a nossa vida
são os homens, pois são eles que constituem a expressiva maioria
dos executivos e legislativos do país. Como pode ser isso? Incrível,
não? Pois é esta a realidade. São as leis brasileiras que determinam
nossas vidas. Determinam a educação, a saúde, a segurança pública,
o trabalho, o combate à violência e com isso, dependendo dos
projetos, podem ou não contemplar as mulheres e criar ou não
melhores oportunidades para que sejamos consideradas cidadãs de
1ª classe. Ou alguém acredita que homens e mulheres têm oportunidades iguais de trabalho, de educação, de lazer...?
Vou dar um exemplo: As mulheres estão indo mais à escola
do que os homens, mas continuam ganhando muito menos do
que eles, mesmo ocupando funções idênticas. Mesmo sabendo
que os rendimentos das mulheres ajudam a reduzir a pobreza
extrema não se tenta mudar essa situação absurda. Nem por
isso os olhos dos legisladores se voltam à igualdade entre a
trabalhadora e o trabalhador. Além de ser mal remunerado, o
trabalho doméstico segue sendo uma tarefa somente das
mulheres, sem qualquer tipo de política que mude esta prática.
Dizer que é uma prática cultural, não justifica e em nada colabora, apenas reforça a questão de exploração e opressão das
mulheres. Alguém conhece uma política educacional e leis trabalhistas que possam alterar essa situação?
Outro exemplo: O câncer de mama ainda mata muitas
mulheres, mesmo que saibamos que quando descoberto, no início,
as chances de cura são enormes. Mas faltam mamógrafos, e não
se adotam medidas para prevenir e combater o câncer de mama e
demais doenças femininas. Ainda temos altos índices de mortalidade materna nos rincões do nosso Brasil e mesmo nas capitais.
Lidamos aqui com uma verdade inominável: mulheres sempre
abortaram e sempre abortarão, não importa sua família, sua
classe social, sua religião... não importa nada. O aborto inseguro
é hoje a quinta causa de morte materna no Brasil. O Estado brasileiro, à frente a Presidência da República, é criminoso quando não
assume sermos o lugar que mais mata mulheres no mundo em
50
A mulher na política merece seu real espaço
decorrência de aborto ilegal. Nada faz para aliviar esse mal
chamado gravidez indesejada que não escolhe nem mesmo idade,
limita-se a permitir o debate moral e religioso. O Estado, à frente
a Presidência da República, sabe e nada faz mediante os índices
indecentes de morte das mulheres pobres e negras, as maiores
vítimas da criminalização e os maiores números de óbitos por
fazerem uso das clínicas ilegais que proliferam pelo país. Isso
quando não caem na mão de carniceiros em sua própria casa.
Não precisamos de repressão ou omissão. Não há espaço para
que outros que não cada mulher decida sobre seu próprio corpo,
sobre suas dores, suas emoções. Precisamos de uma rede pública
que assista as mulheres que querem ou precisam abortar. Precisamos que o Estado entenda que esta delicada questão é caso de
saúde pública e como tal tem que estar inserida nas políticas de
saúde para as mulheres.
A segurança pública no nosso país é um “caso de polícia” e para
as mulheres é especialmente calamitosa. Como trafegar por ruas
desertas ou escuras para frequentar a escola no período noturno,
para ir à igreja, para sair com as amigas, familiares ou namorado?
Como entrar numa delegacia para dar parte de um abuso ou
violência? Como morar na periferia ou em lugares cuja criminalidade se confunde com aparatos da polícia? Além do mais, temos
casos e mais casos de polícia mal preparada e de falta de equipamento público para atender as mulheres como postos de polícia
feminina, casas de apoio, varas da família, plantões de polícia
comunitária, Judiciário eficiente para atender a pequenas causas.
A violência contra a mulher está longe de acabar e afeta toda
nossa vida. Pesquisas mostram que a maioria das jovens e dos
jovens ainda reforça comportamentos de repressão às mulheres
na sociedade. Muitas vezes esses comportamentos nem são reconhecidos como violência. E assim ela se perpetua dentro de casa
e no espaço público. A violência não é somente física e sexual, é
também emocional, psicológica, moral. Atinge as mulheres e as
crianças preferencialmente. “Isso porque se trata de uma relação
de poder e opressão. O homem é mais forte, ele pode.” Depois do
assassinato, a mais grave violência é o estupro que vitima milhares
de mulheres cotidianamente no nosso país. Dados estatísticos
revelam que o número total de estupros registrados no Brasil
subiu 19,3% em 2012, em relação ao ano anterior, atingindo 50,6
mil casos – ou seja, quase seis denúncias a cada hora. Especialistas dizem que esses números podem ser ainda maiores já que
nem toda mulher tem coragem de denunciar situações de violência,
A mulher na política merece seu real espaço
51
principalmente a sexual. Por isso, destaca-se a importância de
fortalecer os outros serviços, sobretudo os de segurança, e
promover campanhas para combater as causas da violência sexual
contra as mulheres: a impunidade e o machismo. Não pode haver
tolerância a esses tipos de crimes. A proposta é fortalecer os
serviços de segurança pública e mostrar para a sociedade que o
Estado está do lado da vítima, para que ela realize a denúncia e
receba o acompanhamento médico e psicológico necessário, e
também que seu agressor seja punido e impedido de continuar o
ciclo de violência ou fazer novas vítimas.
A Lei Maria da Penha, conquista formidável das ativistas pelos
direitos das mulheres, é ótima e exemplar! Mas sem total regulamentação torna-se pouco eficaz. A falta de legado de uma presidente mulher, nos últimos anos, aponta para esta falta de regulamentação da Lei Maria da Penha como seu exemplo maior de
descaso. Compara-se ao não cumprimento de metas em relação à
construção de creches prometidas em campanha e aos cortes
generalizados no Orçamento Mulher.
A cultura e o lazer, além da educação, também devem ser
oferecidos às mulheres. Tempo disponível é essencial para isso.
Creches, centros de convivência com cinema, teatro, biblioteca,
espaços para atividade física, salões para festas, escola infantil,
de 1º e 2º graus, cursos profissionalizantes... Tudo precisa estar
próximo dos seus lares e locais de trabalho. O desenho das cidades
pode e deve ser repensado. Os parlamentos municipais podem
aproximar-se dessas políticas urbanas e habitacionais.
Pesquisa Ibope, divulgada em julho de 2014, mostra que 80%
dos brasileiros consideram que deveria ser obrigatória a composição dos legislativos municipais, estaduais e nacional por metade
de mulheres. Entretanto, essa amostragem não corresponde à
realidade porque vemos que as mulheres não são bem votadas, já
que os parlamentos não têm mais do que 10% delas. E por que
será? Serão as mulheres incapazes ou menos preparadas?
Não! Claro que não! A cada dia, vemos que elas são cada vez
mais capacitadas e preparadas para legislar, mas nossa sociedade
é patriarcal. As mulheres ainda são vistas como inferiores e, às
vezes, elas mesmas acreditam nisso. Acham que o seu papel é
cuidar da casa e dos filhos, em 1º lugar. Acham que os homens
são mais capazes para ocupar o espaço público. O pior é que
passam esta visão equivocada e submissa às filhas e aos filhos.
52
A mulher na política merece seu real espaço
Bem, de qualquer forma, o que quero dizer é que nossas lutas
passam por nos dar maiores referências e representatividade nos
parlamentos municipais, estaduais e federal, porque quem ocupa
a maioria das cadeiras é o parlamentar homem eleito. A mim não
me representam integralmente. A mim me faltam a voz e o voto
das mulheres. Queremos a paridade. 50% de homens e 50% de
mulheres trabalhando pela sociedade formada por homens e
mulheres que tenham suas opções de vida respeitadas. Sua orientação sexual respeitada. Que nos mostrem parlamentos multifacetados. Ainda não podemos votar em candidatas fora de partidos
políticos, por isso, se é o que se nos apresenta, vamos tentar
trabalhar da melhor forma possível. Já estamos em pleno século
XXI e não temos políticas que sejam atraentes para trazer as
mulheres para militar num partido político.
Vamos em busca de melhores dias e melhores condições de
vida. Vamos nos juntar à juventude, à negritude, aos gays, às
lésbicas, aos católicos, aos evangélicos, a todos os homens e
mulheres que sonham e acham possível transformar nosso mundo
num lugar mais generoso e respeitador das pessoas, dos animais,
do meio ambiente, das diferenças!
Referências
ALAMBERT, ZULEIKA. A mulher na história, A história da mulher.
Brasília: FAP/Abaré, 2004.
AVERBUCK, Clara. Aborto não é questão de opinião. Disponível
em: <http://www.cartacapital.com.br/blogs/escritorio-feminista/
aborto-nao-e-questao-de-opiniao-3068.html>. Acesso em:
03/2015.
CNMdoPPS, Coordenação Nacional de Mulheres do PPS.
Plataforma Política das Mulheres do PPS. Brasília: Documentos
PPS, 2014.
DIP, Andrea. Lei é eficaz para matar mulheres. Disponível em:
<http://apublica.org/2013/09/lei-e-eficaz-para-matar-mulheresdiz-pesquisador/>. Acesso em: 03/2015.
INDRAWATI, Sri Mulyani. A América Latina depende das
mulheres. Disponível em: <http://www.pressreader.com/brazil/
folha-de-spaulo/20150304/281539404418472/>.
TextView>. Acesso em: 03/2015.
A mulher na política merece seu real espaço
53
III. Conjuntura
Autores
Luiz Sérgio Henriques
Tradutor e ensaísta, editor do site Gramsci e o Brasil (www.gramsci.org).
Paulo Fábio Dantas Neto
Cientista político e professor da Universidade Federal da Bahia.
Sergio Fausto
Cientista político, diretor executivo do Instituto Fernando Henrique Cardoso.
Inquietantes semelhanças entre
o lulopetismo e o kirchnerismo
Sergio Fausto
D
ilma Rousseff apenas inicia, ao passo que Cristina Kirchner está por terminar o seu segundo mandato presidencial. Apesar disso, Brasil e Argentina parecem, ambos,
viver o encerramento de um ciclo político de mais longa duração.
Em que pesem claras diferenças, há inquietantes semelhanças
nos processos políticos experimentados pelos dois países sob o
lulopetismo e o peronismo kirchnerista.
A maior delas reside em que, a despeito de quase tudo indicar
o esgotamento dos respectivos projetos políticos, não se verifica a
articulação clara de alternativas à altura das melhores aspirações
de renovação das instituições políticas e da cultura democrática
nos dois países. Em larga medida, estão em crise não apenas os
respectivos governos, mas também os sistemas políticos, que
apresentam déficits crescentes de prestígio. A crise política se
soma à crise econômica e ambas se acentuam pela sucessão de
escândalos que revelam a disseminação de práticas nada republicanas, num e noutro caso.
Os problemas econômicos decorrem de erros de concepção e
implementação de políticas públicas. Eles têm magnitudes diferentes porque na Argentina o “experimento desenvolvimentista” –
semelhante ao que se iniciou, aqui, no final do governo Lula e se
desdobrou a plena carga nos últimos quatro anos – teve mais
tempo e menores freios para seguir em frente. O Brasil se encontra
estrutural e conjunturalmente em melhor situação, mas não cabe
ter ilusões: há pelo menos um ano, a deterioração da economia
57
brasileira surpreende pela velocidade e a tendência por ora não foi
estancada, muito menos revertida.
Os problemas políticos, se não produzidos, pelo menos agravados sob o lulopetismo e o kirchnerismo, são ainda maiores:
personalismo da liderança, beirando às raias do culto à personalidade; aparelhamento do Estado para fins partidários; entrelaçamento promíscuo entre interesses políticos e empresariais.
Ao início, o kirchnerismo exibiu feições de uma versão moderna
e progressista do peronismo. O governo de Néstor Kirchner deu
resposta eficaz às expectativas de recomposição da capacidade de
governo na esteira da crise brutal que atingiu a Argentina em
2001/2002. No plano econômico, com Roberto Lavagna, no Ministério da Fazenda, reestruturou a impagável dívida externa do país
e definiu uma política econômica apta a controlar a inflação e
retomar o crescimento, aproveitando o vento de cauda soprado
pela alta das commodities. No social, lançou programas de transferência de renda para reduzir a pobreza então crescente, ao passo
que o mercado de trabalho começava a se beneficiar da retomada
da economia. No político, buscou alianças fora de seu grupo político e colocou no topo da agenda o acerto de contas judicial com
as violações dos direitos humanos durante a ditadura militar.
Em 2006, porém, o kirchnerismo sofreu uma mutação ativando
genes presentes em seu DNA peronista, até então atenuados: o
“transversalismo político” dos primeiros anos cede lugar à lógica
do “nós” contra “eles”; a necessária recomposição da capacidade
de governar, esfacelada pela crise, se transforma em obsessiva
procura por concentrar poderes na presidência e exercê-los de
forma cada vez mais intrusiva e discricionária; com a saída de
Lavagna, a condução da economia e dos negócios do Estado passa
a submeter-se a objetivos políticos e eleitorais de curto prazo e a
subordinar-se à estratégia de perpetuação do kirchnerismo no
poder, sob Néstor ou Cristina. Cresce a manipulação de dados
públicos sobre a economia e o Estado é colocado a serviço do
governo e do grupo político dominante, sob uma ideologia
nacional-estatista.
Mutatis mutandis, trajetória parecida se observa ao longo dos
12 anos de governos do PT. Embora se tenha elegido em condições
bem mais favoráveis que Néstor Kirchner, também Lula teve de
responder a uma conjuntura econômica delicada, em parte produzida pela própria desconfiança do chamado “mercado” em relação
à atuação de seu governo, principalmente na área macroeconô58
Sergio Fausto
mica. Superada essa desconfiança, por virtú própria e fortuna, o
governo petista sofreu igualmente a sua mutação, ainda que
menos virulenta, adotando doses crescentes de um desenvolvimentismo voluntarista e discricionário, embebido no formol do
nacional-estatismo.
Nos limites deste artigo, é impossível uma comparação cuidadosa do lulopetismo com o kirchnerismo. No plano político, cabe
destacar, nos dois casos, o recurso insistente ao argumento do
“cerco conservador” e seus derivados, como “o golpe da mídia”,
agora desdobrado, lá e cá, no “golpe do Judiciário”, para justificar
o que é injustificável sob uma ótica política progressista (sem
aspas). Como pode ser progressista uma força política cuja ação
solapa as bases institucionais e culturais de vida democrática?
Esta pergunta deve ser dirigida também ao lulopetismo, embora
se deva reconhecer que a inclinação autoritária do kirchnerismo é
mais pronunciada. Ainda assim, não é pequeno o dano provocado
pelo lulopetismo nas instituições e na cultura política brasileira.
Para ampliar o seu raio de manobra na composição de coalizões parlamentares, o PT e seus governos fomentaram a proliferação de novos partidos sem qualquer lastro na sociedade e a
mercantilização do apoio parlamentar, aprofundando a crise do
sistema político.
Para assegurar o financiamento do projeto partidário de perpetuação no poder, promoveram o conluio entre grandes empresas
privadas e estatais para irrigar com recursos públicos os cofres do
partido e, em menor grau, de seus aliados, não apenas ampliando
a escala da corrupção, mas também dando origem a um poder
invisível e paralelo cujas dimensões vão se revelando à medida em
que se desenvolvem as investigações do escândalo da Petrobras.
Para controlar as forças sociais organizadas, o PT e seus
governos cooptaram, com recursos públicos e posições no aparelho
de Estado, sindicatos, centrais sindicais e movimentos sociais, em
flagrante contradição com a reivindicação de autonomia para a
sociedade civil e para o sindicalismo que marcam a origem e, por
longo período, a própria trajetória do partido.
Por fim, mas não menos importante, buscaram ativamente
estigmatizar partidos e lideranças de oposição; fazer tábula rasa da
história do país, para atribuir exclusivamente a si avanços sociais
construídos pelas forças democráticas, a partir da Constituição de
1988 e do Plano Real; apresentar a disputa política democrática
Inquietantes semelhanças entre o lulopetismo e o kirchnerismo
59
como o embate entre um “nós” comprometido com os interesses
nacionais e populares e um “eles” descomprometido com tais interesses, conferindo-se a si mesmos uma espécie de legitimidade
especial em comparação com as demais forças políticas.
Nesse empenho, como não poderia deixar de ser, o PT e seus
governos se valeram, de forma organizada, pela ação e pela palavra
de suas principais lideranças e por intermédio de uma rede de blogs
e sites financiados com recursos públicos, de doses crescentes de
inverdades e distorções que contribuíram para empobrecer e envenenar o debate público. No período recente, à medida que as investigações sobre o escândalo da Petrobras põem a nu o nada republicano modo petista de governar, a mistificação foi levada ao
paroxismo. A tal ponto que as perdas patrimoniais causadas pelos
erros e crimes cometidos na maior empresa estatal brasileira são
apresentadas como prova de uma suposta conspiração de interesses antinacionais interessados em destruir a Petrobras.
Como disse Fernando Gabeira, em um dos artigos que publica
semanalmente em O Estado de S. Paulo, a única chance que o governo
tem de emplacar essa interpretação dos fatos é a de o país se transformar num hospício em que as pessoas estejam prontas a aceitar
como plausível qualquer disparate externado pelas autoridades.
Para concluir, prefiro explicar as diferenças entre o lulopetismo e o kirchnerismo, menos por características intrínsecas e
mais por fatores externos às duas forças políticas. Eles residem
na maior qualidade das instituições brasileiras: aqui o Judiciário
tem maior independência, o Ministério Público maior autonomia,
a Federação menor dependência do governo central etc.
Todavia, se nos oferecem os mecanismos para a solução pacífica dos conflitos, as instituições não podem, por si mesmas,
suprir a falta de uma liderança política coletiva que defina novos
caminhos. Com o governo enredado nas mentiras da campanha
eleitoral e no escândalo da Petrobras, cabe fundamentalmente às
forças de oposição indicar e construir esses caminhos.
60
Sergio Fausto
Mãos limpas à brasileira?
Luiz Sérgio Henriques
D
ados os acontecimentos em torno da Petrobras e suas
conexões com o sistema político e empresarial, tornou-se regra a referência à Operação Mãos Limpas que, nos
anos 1990, abalou a primeira república italiana, nascida sob os
escombros do fascismo, levando de roldão partidos solidamente
enraizados, como, em particular, a Democracia Cristã e o Partido
Socialista (PSI).
No cenário delineado pela queda do Muro de Berlim e a dissolução do socialismo real, a famosa operação judicial desvendou
boa parte da intrincada rede de corrupção no país que fora uma
das fronteiras mais “quentes” da Guerra Fria. Ruía assim, estrepitosamente, a Tangentopoli, a cidade da propina, que mantinha
azeitado um poderoso sistema de poder, sustentado, ainda por
cima, pela relação de forças internacionais típica do período.
Os democratas-cristãos dirigiram o Estado e o próprio processo
de acelerada modernização do país, administrando de modo
“transformista” – cooptando e recrutando para funções em geral
subalternas – forças moderadas da esquerda, como o tradicionalíssimo PSI. O principal partido de oposição, com toda a sua
progressiva “heresia” em relação ao então monolítico mundo
soviético, era o PCI. Um partido de cultura política e intelectual
acima do comum, participante igualmente ativo da modernização,
especialmente por administrar, com espírito plural, algumas das
regiões mais ricas – as regiões ditas “vermelhas”, como a Emilia
-Romagna, não casualmente mais modernas e independentes do
clientelismo estatal – e por protagonizar embates como o do
divórcio e o dos direitos reprodutivos da mulher em plebiscitos
famosos. E, apesar de seu papel fundamental na defesa e no
cumprimento da Constituição do segundo pós-guerra, condenado
a uma situação “eternamente” minoritária e oposicionista.
Mais além dos escandalosos casos de malversação do dinheiro
público e do comprometimento entre máfias, lojas maçônicas
suspeitas e altas esferas da política e da economia, esta era a raiz de
Tangentopoli: a interdição da competição democrática, com o veto –
contrário à letra e ao espírito da lei, mas amparado pela “consti61
tuição material” do país – à presença de uma importante força
popular na área de governo, fosse ainda nas condições do cauteloso
“compromisso histórico” pactuado entre dirigentes da envergadura
de Aldo Moro e Enrico Berlinguer, para fazer referência à conjuntura
de meados dos anos 1970, anterior às “mãos limpas”.
Como não pode deixar de ser, entre o mundo de ontem e o
nosso mundo de agora há todo um enredo tecido de continuidades
e descontinuidades. Para apontar um dado de total descontinuidade, caíram por terra, mesmo na turbulenta América Latina, os
vetos que impediam à esquerda, em sentido lato e sem exclusão
de suas vertentes populistas, aceder aos governos e conquistar
vistosas bancadas parlamentares, além de buscar a correspondente implantação social. Uma novidade epocal, que passou a
legitimar, de uma só vez, todos os atores que se dispusessem a
jogar o jogo das instituições, articulando a partir deste terreno
privilegiado propostas, concorrentes entre si, de reforma do Estado
e da sociedade.
Só personagens egressos da Guerra Fria, que, deixados a si
mesmos, guardariam até certa bizarrice, podem atribuir aos
sucessivos governos petistas a intenção de “implantar o comunismo”, mediante programas, como o Bolsa Família, difundidos e
abençoados por instituições financeiras globais. Inversamente, só
os ideologicamente alucinados podem detectar nas crescentes
dificuldades enfrentadas pelo regime chavista e assemelhados a
mão pesada do “império”, como se houvesse algum termo de
comparação possível entre os males que afligiram ou afligem os
bolivarianos Hugo Chávez ou Vicente Maduro e as sangrentas
vicissitudes que derrubaram Salvador Allende.
Mas continuidades também existem, e não é anedótico ou irrelevante, por exemplo, que um dos governos petistas – para não
mencionar a “sociedade civil” que sustenta este partido, isto é,
seus intelectuais e simpatizantes – tenha acolhido controverso
personagem da esquerda armada italiana dos anos 1970, aparentando escassa compreensão da pacífica circunstância eleitoral
que trouxe o PT ao poder de Estado a partir de 2003. Ao mesmo
tempo, a solidariedade com os regimes ditos bolivarianos, nos
quais a alternância parece um verbete cancelado, faz temer que
no cerne do petismo também operem categorias de uma esquerda
atrasada, para a qual as dinâmicas institucionais contam pouco
– e tudo se resolve em “disputa política” na qual estão franqueados
golpes abaixo da linha da cintura.
62
Luiz Sérgio Henriques
Segundo os parâmetros desta luta, e a exemplo das realidades
bolivarianas, constrói-se agressivamente uma resposta à questão
clássica de um arquiconservador: “quem é meu inimigo?”.
O inimigo seria a social-democracia à moda do PSDB, travestida
pura e simplesmente de neoliberal, assim como outrora stalinistas
estigmatizavam
social-democratas
como
“social-fascistas”.
E assim como, entre nós, “neoliberais” ou “golpistas” serão todos
os adversários – Marina, Aécio ou quem quer que se apresente
como ameaça eleitoral.
O problema com categorias anacrônicas é que se chocam com
as exigências da política em situações complexas. Imaginando
interditar o funcionamento natural das instituições, possibilitam
a interpretação de que, em outra época e latitude, tenta-se armar
um sistema de poder espraiado pelos organismos de Estado e
pelas empresas públicas, como na Itália antes das “mãos limpas”.
E ainda se acena agora, entre nós, com o perigo de que a ação
legal das instâncias de controle, como o Ministério Público, a
Polícia Federal e o Poder Judiciário, desmanchando a montagem
de tal sistema, aponte para um cenário de terra arrasada em que
vinguem as propostas mais radicais da antipolítica, como a seu
tempo Berlusconi e, hoje, os movimentos da direita anarquista,
como o do comediante Beppe Grillo. Tais movimentos existem um
pouco por toda parte e, frequentemente, têm potencial desestabilizador das instituições, ao denunciar demagogicamente a atividade política e o papel dos partidos como expressões de uma
“partidocracia” indesejável.
Uma esquerda renovada culturalmente, capaz de identificar e
representar os novos sinais de insatisfação social, seria a melhor
barreira contra tendências regressivas deste tipo. De certa forma,
o Partido Democrático italiano, que fundiu antigas tradições reformistas, inclusive católicas, ao velho tronco do PCI, representa nas
difíceis e inéditas condições do século XXI – quando a questão em
jogo é a construção de uma identidade europeia além dos velhos
Estados nacionais – uma resposta positiva ao quadro aberto com
a dizimação, há pouco mais de vinte anos, dos velhos partidos
hegemônicos por conta dos magistrados das “Mãos Limpas”.
Lá, no entanto, a investigação judicial teve como alvo um
sistema que girava em torno de democratas-cristãos e socialistas
(dos tempos de Bettino Craxi), ao passo que, no núcleo duro da
esquerda, havia um agrupamento que, não sem limites e contradições, elaborou o lema (atualíssimo!) da “democracia (política)
Mãos limpas à brasileira?
63
como valor universal”. Aqui, desgraçadamente, pode-se conjeturar
que o eixo central girou, ou gira, em torno do principal partido de
esquerda, como a confirmar que tentações autoritárias desconhecem cor ideológica. Faltando freios legais, a sedução do poder
é fatal: não há quem dela se esquive, ainda que com doce constrangimento e dose maciça de sofismas.
64
Luiz Sérgio Henriques
Democracia, entendimento
e o fator Temer
Paulo Fábio Dantas Neto
O
que esperar de uma elite política, após a irrupção indignada de numerosos cidadãos nas ruas? Que reveja seus
roteiros de ação para reverter essa indignação. Numa
democracia que mereça esse nome, isso não esvaziará as ruas
permanentemente nem restringirá a política a um mero jogo de
bastidores, entre elites e partidos. Ao mesmo tempo, nenhuma
democracia se manterá como tal se dispensar elites e partidos.
Uma democracia que flui como um processo crescentemente
inclusivo permite mudanças no papel dos vários atores, dentro e
fora da sociedade política, bem como o acesso de novos atores às
decisões ali tomadas. Para não perder pontes com os interesses e
os valores dos representados, a representação política depende,
numa parte, da dinâmica social e, em outra boa parte, da flexibilidade da elite dirigente, que se revela através da forma como ela
revê suas estratégias.
O que esperar de partidos e lideranças políticas quando, em
momentos de insatisfação social ou de dificuldades econômicas, o
jogo democrático apresenta-se truncado pelos impasses habituais
das táticas do varejo político, ou quando as crises até resultam,
em parte, desse próprio varejo? Espera-se que os partidos atuem
como instituições (corpo organizado de regras) e os líderes como
estrategistas do atacado, para restabelecerem a fluência do jogo.
Às vezes, a perturbação é tão grave que é preciso mudar as regras.
Mas, na maioria dos casos, um bom pacto ajuda mais do que uma
custosa cirurgia institucional.
Um equívoco da percepção moralista da política no atual
contexto brasileiro é a demonização generalizada da nossa classe
política e da sua vocação histórica para estabelecer pactos.
É comum vê-los sempre como conchavos contra o povo, quando
muitas vezes são apenas acordos para que o jogo democrático não
trinque e outras vezes são até soluções mais amplas, que permitem
que o jogo se abra à participação de novos atores. Se políticos são
sempre um problema (em nossa terra e além-mar), nunca deixaram
de ser, também, parte importante de soluções coletivas que o
65
Brasil pôde encontrar, ao longo de sua história, para seus
problemas, entre os quais o da garantia das liberdades.
Está aí, como emblema maior, a Constituição de 1988, obra da
chamada classe política brasileira. Obra socialmente condicionada
e não pura dedução doutrinária ou fruto de vontades arbitrárias.
Liderada por Ulysses Guimarães, a Constituinte engendrou a Carta
em boa parte sob o impulso das ruas e sob um roteiro forjado pela
militância ativa da sociedade civil. Mas ela também coroou a estratégia de uma oposição institucional que, durante quase duas
décadas (do contexto da edição do AI-5 à vitória de Tancredo Neves
no Colégio Eleitoral), construiu – sem nem sempre ter consciência
plena de que o fazia —, a partir do Parlamento e da organização do
MDB, a frente democrática que, em sintonia gradual e crescente
com a sociedade civil, isolou e afinal derrotou a ditadura. Desse
modo, o 15 de março de 1985 foi, em vários sentidos, um contraponto histórico ao 31 de março de 1964.
O êxito da transição democrática deveu-se à combinação de
luta e conciliação. Combinação que faltou em 64, quando, à direita
e à esquerda, a luta exacerbou-se além do ponto conveniente e
possível numa democracia. A conciliação foi rejeitada não só por
radicalismos, como os de Lacerda e Brizola, como também pela
complacência que encontraram em áreas não radicais, mas
movidas por uma lógica imediatista. A conjunção de radicalismo,
demagogia e imediatismo eleitoral tornou inaudíveis vozes democráticas lúcidas, como as de Tancredo Neves, Celso Furtado e San
Tiago Dantas. Isso truncou o jogo da democracia e facilitou a ação
dos golpistas. Houve conspiração? Claro, mas seu êxito não se
explica pelo simples fato de ter havido.
É auspicioso que, no transcurso dos trinta anos do que seria a
posse de Tancredo Neves, o 1985 tenha sido celebrado nas ruas,
tendo o protesto e a luta como pontos de partida. Mas é preciso não
perder de vista que daqui até o ponto de chegada não se terá uma
linha reta. O “fora Dilma” tem a mesma índole primária do “fora
FHC” do final dos 90: reflete menos uma solução política racional e
mais a realidade de uma insatisfação difusa, instintiva, contra
“tudo o que está aí”, estimulada, naturalmente, pela oposição da
vez. Esse ponto de partida tornou-se visível, mesmo que a banda
recalcitrante do petismo siga virando as costas à análise política
realista e se escudando, contra todas as evidências, numa sociologia partidária das manifestações, enxergando nelas uma conspiração perpetrada por uma “elite branca e golpista”, que se pode, no
entanto, contar aos milhões. Esse discurso perde fôlego todo dia,
66
Paulo Fábio Dantas Neto
mas ainda encontra eco institucional em setores do governo e em
falas do próprio presidente do PT.
Ao contrário do ponto de partida, o de chegada é, de fato, invisível aos atores do presente. No entanto, se seu destino é atuar,
eles não têm escolha: precisam fazê-lo, apesar das densas nuvens.
Sem o script conciliador de 1985, que foi também (não se esqueçam
os gregos e os troianos) tanto o do Plano Real, em 1993, como o da
carta de Lula aos brasileiros em 2002, não chegaremos a um lugar
melhor, enquanto a deriva pode nos levar a um não-lugar, do
ponto de vista da democracia.
Esse receio não provém da presença de fardas e quepes no
horizonte político. São, contudo, várias as roupagens que pode
assumir um retrocesso institucional. Assim o receio se justifica,
pois a avaliação realista de que a conciliação é o caminho, o
método (embora não necessariamente o desfecho), não revoga a
percepção, também realista, de que tem predominado, também
nos ambientes políticos, o conflito entre o senso comum moralista
e a lógica corporativa de um partido político. Seja por pragmatismo eleitoral ou por interesse patrimonialista, a elite política
nacional (ao menos algumas de suas mais relevantes facções)
flerta perigosamente com a silhueta de uma vala comum, onde a
conjunção de crises ameaça jogá-la por inteiro.
Por outro lado, crises podem ter o papel pedagógico de atiçar o
instinto coletivo de sobrevivência, próprio de elites políticas experientes no governo da sociedade, caso da brasileira. Talvez por
isso o agravamento das crises esteja dando, mais recentemente,
visibilidade a atores cuja estratégia mobiliza o entendimento como
método. No começo dessa crise se ouviam, aqui e ali, suas vozes
quase sussurrantes, perdidas num mar de desafios e bravatas.
Agora cada vez mais frequentemente eles se dirigem ao centro da
cena política e ocupam mais espaço no noticiário. Um desses
atores tem se destacado, justificando, a meu ver, uma observação
cuidadosa de seus movimentos. Trata-se do vice-presidente da
República e também presidente do PMDB, Michel Temer, a quem
não tanto a virtù, mas a fortuna transforma em peça importante
para a viabilização de um cenário em que o idioma do entendimento pode levar a um desfecho em que a crise é espantada por
uma conciliação. Refiro-me a uma solução provisória do contencioso político, envolvendo um arco de partidos, do governo e das
oposições, para permitir controle da economia e pavimentar um
caminho institucional comum até as eleições de 2018. Tudo sem
prejuízo da plena aplicação de soluções punitivas que os bemDemocracia, entendimento e o fator Temer
67
vindos processos judiciais em curso encontrem para coibir a
corrupção que apuram.
Cenários: Temer como um elo em si, ou para si
Erra sobre o PMDB quem lhe atribui lugar e papéis fixos na
política brasileira. Hoje ele não se resume a ser o símbolo de um
sistema supostamente moribundo (o presidencialismo de coalizão,
que uma “reforma política” arquivaria) e de uma democracia dita
“de fachada”, a ser superada a partir de agora por uma “verdadeira” democracia centrada nas ruas. E também não é simplesmente uma usina conspiratória profissional e astuta, que empareda o Governo e dificulta o ajuste fiscal para ser beneficiado pelo
fracasso do primeiro e seu possível desdobramento: o impeachment da presidente.
Michel Temer, o presidente do PMDB, não atua no momento
com o mesmo script de Eduardo Cunha e Renan Calheiros, principais lideranças do partido no Congresso. O script de Temer é um
obstáculo aos caminhos dos outros dois líderes, que jogam para
enfraquecê-lo. Já Cunha e Renan atuam com o mesmo script, mas
não chegam a formar uma dupla. Jogam paralelamente e autocentradamente. Não há liga política nem real cooperação entre
eles. Esse “ultraindividualismo” – exacerbado, na atual conjuntura, pela necessidade de escaparem da operação Lava Jato – é o
limite da liderança de ambos. Esse limite abre uma brecha através
da qual pode surgir uma saída para o conjunto da elite política,
ameaçada pela conjunção das crises econômica, política e moral
que caracteriza o momento atual.
Não sei se será o governo ou a oposição (tucanos + PSB, PPS etc.)
quem entenderá primeiro que essa saída passa necessariamente
pela atuação (e não pelo descarte) do PMDB “institucional”, entendimento que aconselha o fortalecimento de Temer e o esvaziamento do
poder de Cunha e Renan, que não é sinônimo, vale dizer, de enfraquecimento do Congresso. Ao contrário, promove seu fortalecimento
enquanto casa vocacionada à negociação e não à retaliação. Há
sinais, embora ambíguos, nos dois campos políticos principais, de
que algo começa a se mover na direção dessa compreensão.
O Governo pode vir a fazer (ou será que já faz?) de Michel
Temer o canal de atendimento de algumas demandas das bases
congressuais dos dois rivais do vice na luta interna peemedebista,
como também “terceirizar”, através dele, um diálogo com a
68
Paulo Fábio Dantas Neto
oposição. Ambos os passos seriam voltados à aprovação do ajuste
fiscal, negociação que nem a presidente, nem seu ministro da
Fazenda, nem Lula, muito menos o PT, estão conseguindo fazer
avançar na velocidade requerida pela crise. Certo é que, se a aprovação da sua proposta de ajuste (mesmo com modificações)
resultar dessa sua iniciativa política, o governo tem a ganhar, no
mínimo, uma chance de recomeço e, a depender dos resultados
econômicos de médio prazo, de recuperação da sua credibilidade
e consequente produção de um discurso político novo para 2018,
já que aquele inaugurado em 2002 chegou à exaustão. Chance
para o governo, risco para a oposição. Segue o jogo.
Já o PSDB, no vácuo da inação do governo, ao lado de aprofundar sua articulação com o PSB e as forças sem partido que
fizeram a campanha de Marina Silva, pode encontrar em Temer
um emissário junto ao próprio governo para negociar condições de
aprovação das medidas de ajuste na economia, ademais um
desdobramento lógico do próprio programa eleitoral tucano de
2014. E também um emissário, junto a Cunha e Renan, para criar
condições ao surgimento, no âmbito do Congresso, de uma
proposta alternativa de ajuste que pode ser viabilizada por essas
forças, no caso de fracasso de um entendimento bancado pelo
Governo. Enfim, por “bem” ou por “mal”, ter protagonismo numa
solução para a crise será um modo de a oposição mudar o disco:
em vez de apenas replicar na cena política a agenda do Judiciário
e do Ministério Público, construir uma agenda mais ampla, resgatando o discurso da campanha de Aécio Neves, que se pôs como
candidato não só do PSDB, mas de um conjunto de forças que
querem mudanças na orientação de governo, dentro dos marcos
de uma institucionalidade democrática. A oposição tem a ganhar,
no mínimo, o fortalecimento de uma frente eleitoral para 2018 e,
no limite, uma conexão, hoje precária, ou inexistente, com as
forças sociais que se movem nas ruas. Chance para a oposição,
risco para o governo. E segue o jogo.
Em ambos os lados já há quem se disponha a correr os respectivos riscos e se mova para o diálogo, evitando assim o truncamento do jogo. A oposição tem, a princípio, mais facilidade e tempo
para ir nessa direção, se quiser. O Governo está mais enredado
com vetos e outros problemas na sua cozinha e também na defensiva, pelo receio de que o impeachment entre na agenda política,
por agravamento da crise econômica, por desdobramentos da
Lava Jato ou pelos dois fatores juntos. Além disso, o tempo é
adversário de todos os que querem entendimento, mas especialDemocracia, entendimento e o fator Temer
69
mente do Governo. Sem soluções politicamente encaminhadas, a
presidente terá dificuldades de enfrentar uma nova rodada de
manifestações de rua, já agendada para 12 de abril. Depois dessa
rodada as balizas do entendimento podem mudar, especialmente
se as manifestações incorporarem mais fortemente, ao lado da
corrupção, do “Fora Dilma” e do “Fora PT”, alguns temas derivados da situação econômica, capazes de criar pontes entre a
classe média e os trabalhadores em geral.
Em ambos os lados há também quem jogue contra o diálogo e
nesse caso não estão apenas Cunha e Renan, talvez os mais ousados
atiradores. Várias lideranças importantes do PSDB – malgrado a
pregação em contrário de FHC – cedem à tentação de um imediatismo curioso, que vê na corrupção petista o mote que lhe traria
dividendos eleitorais mesmo sem eleições no horizonte imediato.
E no PT, discursos de resistência ao ajuste fiscal e de “refundação”
da democracia calçam a alternância de encenações meramente retóricas com operações políticas desastradas, no intuito de assegurar
votos no futuro e postos no governo no varejo político de agora,
mesmo que ao custo da inviabilização do governo no atacado.
Entre os dois campos Michel Temer se move mais do que todos,
mas sem propor nada que pareça um jogo pessoal ou mesmo
partidário. Ou melhor, todos sabem que ele joga, mas não se pode
dispensar o sotaque institucional da sua fala nesse momento em
que o centro político se esvaziou. Realista, ele tende a contribuir
para um pacto incluindo governo e oposição, fortalecendo-se como
mediador (não é razoável, aliás, supor que entrará em pacto com
a oposição sem combinar isso com Dilma e/ou Lula). A não ser
que a conciliação fracasse por recusa de um dos polos do contencioso em aceitar pactos a partir do Governo ou do Congresso.
Na ausência de conciliação a instabilidade aumenta exponencialmente, até porque o desdobramento da crise e da Operação
Lava Jato poderá terminar afetando a todos, mesmo que em
graus diferentes.
Se a recusa ao pacto partir do PT e do Governo, não está escrito
nas estrelas que no fim da linha de um pacto alternativo entre
PMDB e a oposição estará o impeachment de Dilma e ascensão de
Temer, embora isso possa ocorrer, se a crise econômica se agravar
e um fato jurídico surgir. Mas também pode se prolongar o atual
protagonismo do Congresso em convívio com um Executivo fraco.
Até quando, não se pode prever.
70
Paulo Fábio Dantas Neto
Por outro lado, se a oposição ficar fora de um pacto bem-sucedido entre PT e PMDB, não se pode afirmar que esse pacto vá além
do ajuste fiscal e sustente o governo por quatro anos. A volubilidade da relação pode alternar períodos de “sangramento” com
operações de estancamento provisório, durante as quais o varejo
político tende a correr ainda mais solto. O impeachment estará
fora do script, mas nunca fora de cogitação.
De todos os cenários, porém, o que parece pior é o da ausência
de pactos entre as facções da elite política e sua consequente
inação, à espera da conclusão da Lava Jato, ao som de slogans e
panelas. Seria o sangramento contínuo que o senador Aloysio
Nunes Ferreira evocou como praga ao governo e ao PT. Além de
poder jorrar sangue, nesse cenário basta surgir uma mínima base
jurídica para que paire uma névoa sobre o mandato presidencial
e/ou o calendário eleitoral. E mesmo na hipótese de ambos serem
respeitados, não se pode prever se algum partido chegará a 2018
em condição de se contrapor a uma solução outsider justiceira,
tecnocrática ou midiática. Num cenário desses, e se a ele sobreviver o sotaque institucional de Michel Temer, o impeachment ou
a renúncia da presidente podem surgir como alternativas preferíveis à inação. Temer não terá lutado por isso, mas, no jogo jogado,
cavalo que passa selado é para ser montado.
Democracia, entendimento e o fator Temer
71
IV. Questões do Estado
e da Cidadania
Autores
Lúcio Flávio Pinto
Editor do Jornal Pessoal, de Belém, e autor, entre outros, de O jornalismo na
linha de tiro, Contra o poder. 20 anos de Jornal Pessoal: uma paixão amazônica,
Memória do cotidiano e A agressão (imprensa e violência na Amazônia).
Luís-Sérgio Santos
Jornalista, autor do livro Rui Facó (Uma biografia) – O homem e sua missão.
Luiz Antônio Cunha
Sociólogo, mestre e doutor em Educação, professor titular de Educação Brasileira da
Universidade Federal do Rio de Janeiro, coordenador do Observatório da Laicidade
na Educação (www.edulaica.net.br).
A intenção, a meta e a imprecisão
Luís-Sérgio Santos
U
m gestor público pode cometer erros recorrentes em suas
boas intenções ou no arrojo do fazer obras complexas. Mas
não pode contribuir, em uma retórica claudicante e equivocada, para consolidar ainda mais a política como o último refúgio da prática cotidiana da desfaçatez. Mesmo se aplicarmos o
fator ignorância a seu favor, ainda assim fica em xeque o conceito
de gestor necessário ao chefe de Estado e ao seu primeiro escalão.
Na prática, a política de alianças tem radicalizado na pauperização da virtude do discernimento.
Descartando-se aqui a opção má-fé vamos nos ater ao fator
ignorância associado à má-formação e ao desconhecimento para
comentar a confusão no uso da palavra “meta” nos discursos de
posses do dia primeiro de janeiro. Tanto no plano federal quanto
no plano estadual, usou-se palavra “meta” de um modo abusivo
quando, em seu lugar, deveria ter sido usado algum outro léxico
que traduzisse a ideia de “intenção”.
Na verdade, o que vimos foi um desfile de intenções – promessas
de vir a ser, algumas das quais já nossas velhas conhecidas.
O dicionário Aurélio explica que intenção é o “que está planejado
ou se pretende alcançar”. A meta vai muito além da intenção
quando agrega variáveis de quantidade e tempo. No senso comum,
meta pode ser mesmo confundida com intenção. Mas ouvir da
suprema mandatária do Executivo brasileiro essa confusão gera
em mim, e acredito em milhões de cidadãos, um enorme descon-
75
forto, num país onde a imprecisão de orçamentos de obras públicas
sempre pede aditivos que triplicam o valor inicial.
Em seu discurso de posse, no segundo mandato de quatro
anos, a presidente Dilma Rousseff assegurou: “Mesmo em meio a
um ambiente internacional de extrema instabilidade e incerteza
econômica, o respeito a esses fundamentos econômicos nos
permitiu colher resultados positivos. Em todos os anos do meu
primeiro mandato, a inflação permaneceu abaixo do teto da meta
e assim vai continuar”. Intenção à beira da ficção como vimos já
nos primeiros meses de 2015.
Camilo Santana, jovem governador do Ceará, também do PT
como a presidente, em seu discurso de posse assegurou ter “como
uma das minhas principais metas, reduzir os índices de violência
em nosso estado. Vou trazer esta questão para mim, coordenando
diretamente as ações para combater a criminalidade e, principalmente, gerar oportunidades para que as pessoas, em especial os
mais jovens, não sejam seduzidas pelo crime.” Passados os
primeiros meses de gestão, nem temos o programa de combate à
violência, nem o cronograma para o cumprimento das “metas”,
muito menos uma estratégia para tal. E a violência contabilizada
no número de homicídios continua assustadora. A Secretaria de
Segurança Pública e Defesa Social do Ceará registrou 76 “crimes
violentos letais intencionais (CVLI)” no Carnaval de 2015. “CVLI”
é uma construção burocrático-retórica para a expressão “homicídio doloso” quando uma pessoa mata outra intencionalmente.
Esta nova forma de medição expurga da contagem os casos de
homicídio culposo quando sem a intenção de fazê-lo, em decorrência de negligência, imprudência ou imperícia. Mesmo com o
expurgo, o número de homicídios, no período do Carnaval deste
ano foi 7% a mais que em 2014.
O governador cearense asseverou ainda ter “como meta,
também, garantir segurança hídrica para nossa população, principalmente do interior. Vou acompanhar diariamente o andamento das obras da Transposição do Rio São Francisco e do
Cinturão das Águas e vou trabalhar para que, mesmo com a seca
que nos afeta há três anos, nenhum cearense deixe de ter água
para seu consumo”. Como se sabe, o cronograma dessas obras
está totalmente atrasado e as mesmas já serviram de moeda de
troca eleitoral em inúmeras eleições presidenciais. As obras de
transposição se arrastam há anos, e o Ministério da Integração
Nacional, por elas responsável, assegura, uma vez mais, que a
conclusão será ao final deste ano. Acreditar, quem há de?
76
Luís-Sérgio Santos
Como se vê, meta é muito diferente de intenção e por isso a
retórica desses políticos é disléxica. Todo bom gestor público sabe
que meta é aquilo que traz em seu bojo as variáveis planejamento,
projeto, orçamento e, principalmente, um cronograma – sem
medida de tempo, não há meta. Meta tem prazo preciso, exato,
para ser atingida. Se não tem prazo nem orçamento não é meta, é
intenção. Como os prazos raramente são cumpridos, o planejamento original vai para o espaço e o custo das obras, idem. Meta
está no plano de negócios; intenção está na esfera do ideal ou do
utópico. Ambos cumprem papéis importantes, mas um não pode
ser confundido com o outro em uma alta esfera de poder. A gestão
pública orientada para resultados é um grande plano de metas.
Hipótese da confusão de sentidos como política deliberada de
alienação e desinformação só encontra competidor no ruído
semântico, caracterizado pelo ruído que se estabelece principalmente junto à audiência na faixa do analfabetismo funcional.
O país que não se preocupa com detalhes semânticos é o
mesmo país que nunca teve um Prêmio Nobel, é o mesmo país que
amarga os piores indicadores no Programme for International
Student Assessment, em português Programa Internacional de
Avaliação de Estudantes (Pisa). No último ranking do Pisa, referente a 2012, o Brasil aparece na 58ª posição em Matemática, 55ª
posição em Leitura e na 59ª posição em Ciências. China, Japão,
Singapura e Finlândia lideram o ranking. O Brasil não aparece
entre os 35 melhores em nenhuma categoria.
Outro problema grave é o excesso retórico. Certa de que acabou
com a miséria no Brasil, a presidente Dilma aboliu o slogan, mero
slogan, “país rico é país sem pobreza” que enfeitou toda sua propaganda durante seus primeiros quatro anos de gestão. Sabemos
que os programas assistencialistas não são emancipadores, ao
contrário, são mantenedores de uma situação de dependência
social que o governo federal vem usando como moeda de troca
eleitoral. Sabemos também que a pobreza e a miséria continuam
grassando no país.
Mas, superando, em seu imaginário lúdico, a fase da pobreza
(e da miséria) dos brasileiros, a presidente, ao tomar posse para
um segundo mandato, anunciou o lema do seu novo governo: “Ao
bradarmos ‘Brasil, Pátria Educadora’ estamos dizendo que a
educação será a prioridade das prioridades, mas também que
devemos buscar, em todas as ações do governo, um sentido
formador, uma prática cidadã, um compromisso de ética e sentiA intenção, a meta e a imprecisão
77
mento republicano”. Uma semana depois, no dia 8 de janeiro, ela
anunciou o choque fiscal que subtraiu do orçamento do Ministério
da Educação R$ 7,042 bilhões, uma enorme oposição ao ato meramente retórico de “pátria educadora”.
A carência em educação e a ausência de políticas públicas
agressivas nesse setor decisivo para o presente e o futuro do país,
sem falar na falta de uma estratégia educacional inovadora, estão
na base de todo o problema. Esta carência é tão maior quanto a
avalanche de políticos populistas sem nenhum compromisso com
a realidade e com a verdade.
78
Luís-Sérgio Santos
O Brasil descobre a água
Lúcio Flávio Pinto
F
oi preciso que São Paulo, uma das maiores cidades do mundo, fosse ameaçada pelo colapso no fornecimento de água
para que o Brasil descobrisse que esse recurso vital precisa
ser tratado adequadamente. A Amazônia, com a maior bacia hidrográfica, precisa aprender essa lição.
O brasileiro descobriu a água pela pior lição: a da sua falta. Foi
preciso que as duas maiores cidades do país, São Paulo e Rio de
Janeiro, ficassem sob a ameaça de colapso no fornecimento para
que a grave realidade se impusesse à negligência e incompetência
do governo, e à insensibilidade da população.
Em ritmo de crise, como nunca antes, para lançar mão da
frase célebre de Lula, o país toma conhecimento da extensão do
problema e sua complexidade. Normalmente autossuficiente,
beirando a arrogância, o paulistano passou a se interessar pela
Amazônia não mais como um tema exótico e distante, mas como
um elo da cadeia das suas dificuldades e temores.
De forma cada vez mais constante, o boletim do tempo nas
emissoras de televisão incorpora informações sobre o fluxo de
nuvens carregadas que saem da Amazônia na direção sul.
Rios voadores passou a ser expressão do dia a dia dos moradores de São Paulo, literalmente despejados diante de uma
circunstância única dentre as grandes cidades do mundo: o racionamento drástico de água. Essa conjuntura tem, como uma das
suas principais causas, a rigorosa estiagem sobre as áreas dos
reservatórios da capital paulista, provocando uma seca recorde.
Mas a diminuição das chuvas não é um fenômeno recente.
A tendência para a redução se apresentou em 1999, mantendose contínua a partir de então. Mas a vida continuou normal,
indiferente a esse aviso da natureza. Por comodismo ou oportunismo, que se acentua em temporada de caça aos votos, as administrações públicas confiaram numa providência divina aleatória. Sem ela, a corrida agora é contra o tempo para evitar que
se consume a ameaça inédita de privar de água milhões de
pessoas por dias seguidos.
79
Nesse ponto, os paulistanos passaram a se interessar por um
fenômeno muito bem mostrado por meio de um documentário
(Dança da Chuva), realizado pela Fapesp, a fundação de pesquisa
de São Paulo. O filme explica um enigma: como é que uma área
situada no centro-sul do continente, mesmo estando nessa faixa
do planeta, não tem características semelhantes às dos grandes
desertos, localizados na mesma posição.
Nesse quadrilátero, que tem São Paulo como o seu centro,
destinado naturalmente a ser uma área desértica, se concentram
70% do PIB da América do Sul, com a região sul-sudeste do Brasil
e a Argentina. É onde se produz mais energia, estão as maiores
indústrias e a principal agropecuária. A região é pulverizada de
água abundante por nuvens trazidas pelos ventos da Amazônia.
São os rios voadores, expressão que passou a figurar no cotidiano
das áreas ameaçadas pela falta de água.
São 17 bilhões de toneladas de aerossóis atmosféricos
desviados na direção sul, um volume de água comparável à do rio
Amazonas, o maior de todos, com seus 20 bilhões de toneladas
despejados no Oceano Atlântico. Esse incrível deslocamento de
massa de vapor em suspensão causa chuvas torrenciais e eventualmente tragédias, mas não tem conseguido estancar a progressiva estiagem em alguns pontos da região.
Seria o efeito do desmatamento na Amazônia. As grandes
árvores amazônicas são que retêm o vapor vindo dos oceanos, que
são a maior fonte de chuvas na Terra, além de lançar água ao ar
pela evapotranspiração, funcionando como bombas de captação e
lançamento através das suas copas e raízes. Sem as árvores, esse
processo se desfaz.
A derrubada da floresta nativa da Amazônia já se aproxima de
800 mil quilômetros quadrados, o equivalente a três vezes a
extensão de São Paulo. O tamanho dessa alteração teria que modificar os processos da natureza. Alguns fazem essa afirmativa de
maneira categórica. Outros a suscitam ainda como hipótese,
carente de uma plena confirmação científica. Outros negam a
relação causal.
Ninguém pode negar o fenômeno, qualquer que seja a explicação para a interferência humana nele. Mônica Porto, gerente de
água da Escola Politécnica de São Paulo, uma das entrevistadas
do documentário da Fapesp, argumenta que o desmatamento
altera o volume de água em circulação entre o verão e o inverno,
mas em função da própria natureza, não da participação humana.
80
Lúcio Flávio Pinto
Ela diz que a água que escoa pelas raízes das árvores pode ser
barrada quando as drenagens para as quais ela se dirige estão
cheias, mas é liberada quando o nível dos cursos d’água baixa.
Mas haverá sempre água circulando. A diferença estará no seu
aparecimento superficial.
O esquema ignora que a supressão da cobertura vegetal acarreta o aquecimento do solo, que reduz a umidade e interrompe o
ciclo da água, além de desencadear outros processos, como a
compactação do solo e a erosão.
Ainda que o efeito dessa ação humana sobre a natureza não
esteja cientificamente demonstrado em todas as suas etapas, ele
se evidencia na própria região. É perceptível empiricamente a
mudança de microclimas e até além deles nas áreas que perderam
a sua vegetação original.
À parte essas complexidades, observadas há muito mais tempo
do que podem sugerir os estudiosos de hoje, diferenciados dos
mais antigos por sua parafernália tecnológica contra a percepção
a olho nu (e inteligência ultra-aguçada), o conhecimento autoriza
o pesquisador Antonio Nobre, do Inpe (Instituto Nacional de
Pesquisas Espaciais), de São Paulo, a dizer que a Amazônia é uma
“usina de serviço ambiental”.
Não quer dizer que a região deva cobrar uma taxa por seus rios
voadores, seguindo a cômoda prática dos governos estaduais de
reduzir as questões à cobrança de tributos e derivados. Esse é um
serviço prestado pela natureza.
Mas há um ingrediente humano nessa história: é a destruição
do bem mais nobre da região, e que a define como tal: a floresta.
Se é útil ao quadrilátero mais rico do continente que a água
continue a seguir sua rota natural de norte para o sul, o pagamento pode ser feito pelo apoio às pesquisas capazes de esclarecer esse processo e por medidas que não só inibam o desmatamento como disseminem uma nova cultura em seu lugar, a do
uso da floresta.
Por sua nobreza, esse bem deve ser destinado a mais do que
madeira sólida ou ser substituído por plantios de soja e pastagem
de gado. Deve ser o fundamento do precioso serviço ambiental que
a Amazônia presta à parte mais rica do Brasil e da América do Sul.
Se as águas circulam numa direção pelo ar, por terra pode e deve
ser feita a contrapartida de recursos materiais para sustentar
esse ciclo e reduzir as desigualdades econômicas e sociais.
O Brasil descobre a água
81
Para que esse enunciado não se torne uma utopia boba, as
autoridades responsáveis pela questão devem utilizar sua competência e seu dever de ofício para conferir a autonomia que a
questão da água merece e exige. Ou então a incrível crise hídrica
que a região mais rica do país está vivendo (e sofrendo) não deixará
as lições necessárias.
A água é um bem vital. Isso todos aprendem nos primeiros
manuais escolares, mas poucos o transportam para suas vidas.
Esse desligamento deixou de existir. Deve-se aproveitar o interesse, os sacrifícios e o sofrimento de centenas de milhares de
pessoas para dar um sentido prático a esse saber essencial.
Não se pode mais continuar a maltratar a água no Brasil. Ela
é a companhia diária de todos, nas suas muitas serventias.
A principal delas deriva da sua potabilidade. Captar, tratar e
distribuir água devia ter a prioridade que não lhe é dada no Brasil.
Um novaiorquino abre a sua torneira e bebe uma das melhores
águas do mundo.
Mas paga todos os anos para que os mananciais, em sua forma
natural, sejam mantidos em condições de uso a uma distância de
até 200 quilômetros da cidade. Por ser justo, é um pagamento que
atrai os donos das terras onde estão essas fontes hídricas. Em
muitos casos, preservar a água se tornou a principal fonte de
faturamento desses proprietários rurais.
O suprimento de água potável no Brasil é uma calamidade
pública. Talvez o impacto atual, especialmente em São Paulo,
consiga mudar esse panorama. A conta do descalabro será cobrada
de qualquer maneira e agora os maus administradores públicos já
não contarão com o alheamento (em alguns casos, ignorância)
da sociedade.
Gestão de água deverá ser a nova qualificação profissional
requerida pelo mercado. Não uma gestão fracionada, esgotada em
cada especialidade. Uma gestão multidisciplinar. A sociedade
precisa estar bem informada (e formada) para não deixar mais que
um assunto de tal gravidade seja conduzido apenas pelo governo.
O chamado controle social é indispensável. Na Amazônia, que
abriga a maior bacia hidrográfica do planeta, essa deve ser uma
função de Estado.
Não são apenas os rios voadores que migram do norte para o
sul: é também a energia, extraída dos cursos d’água e conduzida
por longas e caras linhas de transmissão. A Amazônia tem sido
82
Lúcio Flávio Pinto
apenas a base física desse processo. As decisões sobre onde, como
e para quem destinar essa energia são tomadas fora da região e
ignorando-a. Aos nativos cabe apenas as rusgas da resistência,
exercidas através de manifestações de protesto que paralisam
ocasionalmente as obras e retardam o seu cronograma físico e
financeiro. Mas não as inviabilizam. Nem, eventualmente, modificam o seu perfil.
A Amazônia é província colonial para todos os usos da água.
Mas não inevitavelmente tem que ser assim. Essa função é uma
exigência de entidades mais poderosas, dentro e fora do país, que
precisam de muita energia para sua produção. Tal premissa elide
qualquer consideração que ameace essa demanda. Mas a posição
amazônica podia estar melhor exercida se pudesse se consolidar
com os conhecimentos e as informações adequadas.
A hidrelétrica de Belo Monte exemplifica essa tensão. Ela foi
concebida originalmente como uma réplica de Tucuruí, projetada,
construída e posta para funcionar no período do regime militar
(sua inauguração ocorreu em 1984). Com a democracia, a hidrelétrica do Xingu foi submetida a questionamentos e contestações. O
desenho original foi modificado para atender a principal crítica: a
inundação de uma área extensa para a formação do reservatório.
O lago artificial foi reduzido a um terço da sua previsão inicial,
que era de 1,6 mil quilômetros quadrados. Dos 503 km2 que
restaram, 228 km2 correspondem à própria calha do rio Amazonas
e seu transbordamento durante o período de cheias. Assim, a
submersão de área nova será de 275 km2.
É água que dá apenas para acionar as seis turbinas bulbo que
serão instaladas no vertedouro principal e manter a vazão mínima
do rio Xingu na Volta Grande, que fica abaixo (a jusante) do barramento, em 700 metros cúbicos de água por segundo, acima da
mínima normal, de 400 m3. Se mantido esse compromisso, poderá
haver menos água na cheia nesse trecho, porém mais na seca.
Ainda assim, as populações ribeirinhas de índios e caboclos
temem prejuízos da nova situação do rio.
Apesar de aí, no sítio Pimental, estar o principal vertedouro do
complexo hidrelétrico, sua estrutura abrigará apenas as turbinas
de baixa potência, que funcionam com desnível de quatro metros,
produzindo 2% da energia total do sistema. Daí se dizer, com certa
impropriedade, que se trata de usina a fio d’água, capaz de
produzir com vazão corrente, sem precisar de retenção da água.
O Brasil descobre a água
83
As 18 grandes turbinas, que serão responsáveis por 98% dos
mais de 11 mil megawatts de potência instalada, estarão a 140
quilômetros de distância. Sua grande vantagem (como do sítio
escolhido pelos engenheiros para o aproveitamento energético) é o
desnível de 90 metros nessa curta distância, que garante a velocidade da água, suficiente para acionar as imensas turbinas, que
exigem quase 800 mil litros por segundo.
Parte substancial da vazão do Xingu será desviada do seu
curso normal por canais de derivação para um reservatório
complementar, que ficará fora da calha do rio. Esse lago, que
aproveitará drenagens naturais e também áreas novas que serão
inundadas, terá suas margens garantidas por diques de concreto.
Eles terão múltiplas funções: reter água, manter a vazão controlada, drenar o excesso de água de volta ao rio e proteger
os igarapés.
Ninguém jamais concebeu um esquema desses para uma
hidrelétrica no Brasil (e, talvez, no mundo).
A movimentação de terra para a construção do canal de derivação, que terá 20 quilômetros de extensão, 200 metros de largura
e até 20 metros de profundidade, será bem maior do que a da
construção do canal do Panamá (126 milhões e 95 milhões de
metros cúbicos, respectivamente). Esses números dão uma ideia
da grandiosidade da obra. E também da sua complexidade, sobretudo porque nada igual foi construído antes.
Tudo isso para eliminar o aspecto mais vulnerável de uma
grande hidrelétrica na bacia de rios de baixa declividade natural e
muita diferença entre o máximo e o mínimo de vazão durante o
ano: o alagamento de extensas áreas, inclusive as cobertas por
densa vegetação.
Mesmo com a compensação representada pelo reservatório
complementar e o canal de derivação, não haverá água suficiente
para acionar todas as 18 turbinas principais de Belo Monte
durante três ou quatro meses do ano, quando a usina ficará
parada. Por isso, sua potência efetiva o ano inteiro terá apenas
40% da capacidade nominal, de mais de 11 mil MW, que a coloca
como a terceira maior hidrelétrica do mundo.
Vale a pena gastar tanto dinheiro e expor a natureza e a população local aos riscos dessa intensa intervenção humana para ter
uma usina de geração firme tão inferior à da sua potência de
projeto? Os engenheiros não hesitam em responder afirmativa84
Lúcio Flávio Pinto
mente, mas seus cálculos não estão ao alcance da sociedade para
avalizá-los agora. E estavam ainda menos acessíveis quando a
decisão de construir Belo Monte foi tomada.
Espera-se que isso nunca mais se repita para que os custos da
atual crise hídrica do Brasil rico sirvam de lição para todo o país.
Em especial, sua maioria pobre.
O Brasil descobre a água
85
Laicidade enganosa
Luiz Antônio Cunha
D
ifícil definir o Estado laico, mais fácil dizer o que ele não
é. Como a democracia, aliás. Isso porque a laicidade do
Estado é um processo. Os Estados não nasceram laicos.
Aproximativamente, podemos dizer que um Estado torna-se laico
quando prescinde da religião para sua legitimidade, quando suas
políticas se baseiam exclusivamente na soberania popular.
O Estado laico respeita todas as crenças religiosas, desde que
não atentem contra a ordem pública, assim como respeita a não
crença religiosa. Ele não apoia nem dificulta a difusão das ideias
religiosas nem das ideias contrárias a essa ou àquela religião, ou
mesmo a todas elas.
O segundo resultado da laicidade do Estado é que a moral coletiva, particularmente a que é sancionada pelas leis, deixa de ser
tutelada pelas instituições religiosas, passando a ser definida no
âmbito da soberania popular. Isso quer dizer que as leis, inclusive
as que têm implicações morais, são elaboradas com a participação
de todos – dos crentes e dos não crentes, enquanto cidadãos.
O Estado laico não pode admitir imposições de instituições
religiosas, para que tal ou qual lei seja aprovada, nem que alguma
política pública seja mudada por causa dos valores religiosos.
Mas, ao mesmo tempo, o Estado laico não pode desconhecer que
os religiosos de todas as crenças têm o direito de influenciar a
ordem política, fazendo valer, tanto quanto os não crentes, sua
própria versão sobre o que é melhor para toda a sociedade, de
acordo com critérios universais.
Em consequência, o Estado laico não é confessional nem mesmo
com os prefixos com que se pretende dissimular essa situação:
inter, multi, supra ou pluriconfessional. O Estado laico tampouco
se confunde com o Estado ateu. Este é o que proclama toda e qualquer religião como alienada e alienante, em termos sociais e individuais. Para combater a alienação, o Estado ateu constrange, então,
toda e qualquer religião. Se não consegue proibi-la completamente,
dificulta ao máximo suas práticas, inibe sua difusão e desenvolve
contínua e sistemática propaganda antirreligiosa.
86
Entender bem a diferença entre a laicidade e o ateísmo é de
grande importância, porque os partidários da (con)fusão política
-religião sempre proclamam, em tom de ameaça: “Estado laico não
é Estado ateu”. Esta é uma afirmação óbvia, mas que traz implícita a ideia de que a oposição é entre o Estado ateu, de um lado, e
o Estado confessional, de outro.
Há quem até diga aceitar a laicidade do Estado, desde que ela
seja “autêntica” ou “positiva” – adjetivam para desqualificar o
substantivo.
Como a democracia, a laicidade do Estado parece ser defendida por todos ou quase todos, da esquerda à direita. Mas o que
prevalece é uma laicidade enganosa, do faz de conta, como tanta
coisa, aliás, na nossa política.
A escola pública é onde a laicidade enganosa é mais ostensiva.
Quando indagados a respeito, diretores e professores são unânimes
em dizer que a escola pública é laica. No entanto, as paredes estão
cheias de cartazes com trechos bíblicos, imagens de santos
ocupam nichos e crucifixos montam guarda nas salas de aula e
nas secretarias. As lições começam com preces e as atividades
escolares estão permeadas de práticas e prédicas confessionais,
mesmo quando a disciplina ensino religioso não é oferecida. Se
essa disciplina é ministrada, ela é apresentada aos pais e aos
alunos como obrigatória. Quando não a querem – direito garantido expressamente pela Constituição – as maiores dificuldades
lhes são impingidas.
Outro aspecto dessa enganosa laicidade na escola pública
aparece na fala dissimuladora de diretores e professores, que
dizem não fazer proselitismo, pois apenas levam aos alunos o que
as religiões têm de comum, isto é, a base de toda a moral.
E perguntam: “quem pode ser contra isso?”.
Ora, as aulas sobre “valores”, que negam da boca para fora
sua genealogia religiosa, não passam de expressões confessionais
de regras de conduta conservadoras ou reacionárias – uma espécie
de educação moral e cívica, de triste memória. A obsessão com o
controle sexual povoa essas aulas, tanto quanto os preconceitos
discriminadores.
Está mais do que na hora de os políticos de hoje se inspirarem
nos seus colegas do século XIX: em Rui Barbosa, Joaquim Nabuco,
Saldanha Marinho e tantos outros que defenderam a laicidade do
Estado, antes mesmo que esse nome existisse.
Laicidade enganosa
87
Já passa da hora de substituirmos o oportunismo eleitoreiro
atual pela coragem daqueles na separação entre Estado e Igreja(s), hoje confundidos no Executivo, no Legislativo e no Judiciário. E é justamente o vácuo gerado pela omissão de nossos
governantes, parlamentares e juízes, que alimenta a simbiose
Estado-Igreja(s), empecilho material e ideológico para a construção da democracia em nosso país.
(Publicada originalmente na Revista de Debates, da Fundação
Verde Herbert Daniel)
88
Luiz Antônio Cunha
V. O Social e o Político
Autores
Cassilda Teixeira de Carvalho
Engenheira sanitária, presidente do Prêmio Nacional de Qualidade no Saneamento
e integrante do conselho diretor da Associação Brasileira de Engenharia Sanitária e
Ambiental (Abes).
Luciana Lunardi Campos
Professora do Instituto de Biociências, Departamento de Educação, da Universidade
Estadual Paulista (Unesp), campus de Botucatu-SP.
Renata Cabrera
Professora do Instituto de Biociências da Universidade Federal de Mato Grosso
(UFMT – campus de Cuiabá-MT).
O nó do saneamento
Cassilda Teixeira de Carvalho
M
uito se fala sobre a necessidade de universalizar os serviços básicos no país. Com muita frequência, citam-se a
educação e a saúde como serviços essenciais que deveriam estar ao alcance de todos. Porém, poucos listam o saneamento entre as prioridades. Ao longo das últimas décadas, evoluímos
no aumento da oferta de serviços de água e esgoto (incluindo-se o
seu tratamento) e disposição adequada dos resíduos sólidos. Mas
ainda estamos distantes do ideal. Permanecemos longe de nossos
vizinhos, como o Uruguai, Argentina, Colômbia e Chile, apenas
para citar alguns. Se subirmos um pouco no mapa da América
Latina, até o Panamá está melhor que o Brasil nesse quesito. Nossos indicadores são piores, também, que os de países do Leste
Europeu e grande parte da Ásia.
O Brasil é um país cuja economia é muito maior que a de todos
esses países. Por que razão, então, estamos tão atrasados na
universalização do saneamento? Para entender as razões disso, é
preciso voltar um pouco no tempo, mais precisamente ao fim dos
anos 1980, quando foi extinto o Plano Nacional de Saneamento
(Planasa). O programa foi criado no fim dos anos 1960 justamente
para aumentar a oferta dos serviços de água e esgoto à população.
Realmente, isso aconteceu. Tanto que o percentual da população
urbana ligada à rede de água passou de 30% para 70% durante os
15 anos de existência do Planasa. É bom que se ressalte também
que esse incremento ocorreu justamente no período de maior
êxodo rural da história do nosso país.
91
Direcionamento
O modelo do Planasa previa que todos os estados deveriam ter
sua companhia de saneamento. Por meio dela é que os recursos
seriam canalizados para investimento no setor e a economia de
escala possibilitaria a otimização dos recursos. Também é dessa
época o subsídio cruzado, um modelo de financiamento interno que
existe até hoje, no qual a receita gerada nos municípios superavitários é transferida para garantir a operação dos sistemas deficitários. A despeito de tudo isso, havia, porém, o questionamento
quanto ao fato de aproximadamente um quarto da população brasileira ter ficado de fora do Planasa, pois era atendida por sistemas
municipais de saneamento. No fim dos anos 1980, quando da redemocratização do país, o modelo foi questionado justamente por
causa disso. Em consequência, o Planasa foi extinto.
Veio aí um período de duas décadas em que ocorreu um vácuo
no ordenamento jurídico do sistema nacional de saneamento.
O resultado prático disso é que o aumento da oferta dos serviços
passou a se dar muito lentamente. A própria entrada da iniciativa
privada no saneamento foi extremamente tímida, diferentemente
do que ocorreu em outros países, como o Chile, Argentina, Bolívia,
etc. Hoje, apenas pouco mais de 5% da população urbana brasileira é atendida por sistemas privados. O restante desse contingente é atendido, em sua grande maioria (cerca de 75%), pelas
empresas estaduais. O que não está com a iniciativa privada nem
com as empresas estaduais é operado pelos municípios.
O vácuo que havia no ordenamento jurídico do saneamento
brasileiro foi superado somente em 2007, quando entrou em vigor
a Lei 11.445, que instituiu a Política Nacional de Saneamento.
A partir daí, o país passou a ter definidas em Lei as responsabilidades de cada um dos entes federativos. Porém, só o ordenamento
jurídico não seria suficiente. Sem recursos, não se consegue
implantar sistemas de tratamento e distribuição de água, nem de
coleta e tratamento de esgoto.
Na última década, o governo federal passou a destinar um
volume maior de recursos para investimento em saneamento.
Acreditava-se que os investimentos trariam uma grande aceleração na cobertura dos serviços. Mas aí ficou muito claro outro
gargalo: a deficiência na gestão dos sistemas.
Esse problema – o da gestão – se agrava devido a dois fatores.
O primeiro é o caráter de monopólio natural dos serviços de saneamento. O caráter monopolista deriva do fato de não se ter, em
92
Cassilda Teixeira de Carvalho
nenhum lugar do mundo, concorrência na oferta de água e coleta
de esgotos. Na mesma rua, não passam duas redes de água, de tal
forma que o cidadão pode escolher se quer a água da companhia
“A” ou da companhia “B”. Ele é ligado à rede da empresa que
opera o serviço no município onde mora. Com a telefonia isso
passou a ser possível há vários anos, da mesma forma que na área
elétrica a quebra do monopólio começou a ocorrer. A outra questão
é o fato de esses serviços serem predominantemente locais.
A junção desses dois fatores – monopólio natural e serviço
local – dificulta a implantação de programas de modernização da
gestão das empresas e sistemas de saneamento. Porém, não se
trata de um obstáculo intransponível. A partir dos anos 1990,
sobretudo, ocorreram mudanças importantes na gestão das
empresas e sistemas municipais de saneamento. O Prêmio
Nacional da Qualidade em Saneamento (PNGS) há 18 anos ajuda
no avanço e melhoria do sistema de gestão, que tem como resultado a redução das perdas de água e a melhoria do atendimento.
Mas é preciso continuar avançando, investindo na modernização,
atualização da gestão e adoção de inovações tecnológicas,
passando-se a trabalhar, cada vez mais, com resultados. Por isso,
o grande desafio do saneamento brasileiro é a gestão.
A boa gestão evitaria, apenas para citar um exemplo, problemas
como a crise da água, que tem colocado milhões de pessoas à
mercê de um possível colapso no abastecimento este ano.
O comportamento da natureza é muito conhecido. Aumento ou
redução do volume de chuvas pode ocorrer de um ano – ou de um
conjunto de anos – para outro. Porém, tais situações podem ser
administradas se a empresa tem um bom sistema de gestão de
sua matéria-prima – no caso, a água.
Apesar de todas essas adversidades, sou otimista. Acho que a
população está, a cada dia, mais consciente da importância do
saneamento para sua vida cotidiana, da mesma forma que a
indústria e a agricultura. Lamentavelmente, a crise hídrica tem
dado uma forte contribuição nesse sentido, mas essa ajuda é
apenas pontual. Vejo que o país como um todo está em um
processo de amadurecimento e, consequentemente, de cobrança
pela universalização do saneamento. Prova disso é que, das 27
unidades da federação, 17 já possuem sua agência estadual de
saneamento, instituição de grande importância para a melhoria
da gestão das companhias estaduais e sistemas municipais de
água e esgoto.
O nó do saneamento
93
Uniformização
Além de ser o principal garantidor da descontinuidade dos
aportes financeiros necessários ao atingimento dessa meta, o
governo federal tem um papel muito importante como ente capaz
de promover uma uniformização das práticas, de tal forma que
experiências exitosas praticadas, por exemplo, pelas companhias
com um sistema de gestão mais desenvolvido possam ser transferidas para aqueles sistemas que estão em estágio menos avançado de gestão. Ganharíamos tempo e evitaríamos a repetição de
erros. E quem pode prover isso é o ente federal. Nesse aspecto,
acho que a União tem tido uma atuação tímida. Poderia fazer mais
sem que se corra o risco de quebra do pacto federativo.
A despeito de todos os empecilhos, sou otimista. Há muito a
ser feito. Mas, no saneamento, não há barreiras intransponíveis.
O que há são desafios a serem vencidos. Se os recursos forem
mantidos e aprofundarmos a melhoria da gestão, em cerca de 10
anos – até 2025 – teremos conseguido atingir a universalização do
saneamento no país.
94
Cassilda Teixeira de Carvalho
Políticas educacionais e
formação de professores
Renata Cabrera / Luciana Lunardi Campos
O
presente texto tem como objetivo contribuir para a reflexão acerca do desenvolvimento de políticas educacionais e
as relações estabelecidas com a formação de professores.
Partimos da premissa de que inserir efetivamente as discussões sobre as políticas públicas nos cursos de licenciatura faz-se
necessário uma vez que a escola e o trabalho docente não são
entes isolados da sociedade e, como tal, recebem influências e
também influenciam.
O futuro professor, bem como o docente no exercício da sua
profissão, quando é parte integrante da formulação e implementação das normatizações, regulamentações, das diretrizes que
norteiam o desenvolvimento do seu ofício, ganha maior compreensão
da totalidade que envolve o conjunto do seu trabalho. Dessa
maneira, este profissional também interage com o processo e não
se porta como mero executor das propostas dos gestores do Estado.
Nesse aspecto, há que se primar pela garantia da sua participação
na formulação das políticas educacionais, por meio de metodologias adequadas para que se possa captar sua efetiva contribuição.
André (2009, 2011) evidenciou que a temática das políticas
educacionais ainda é escassa nas pesquisas sobre formação de
professores. No estudo comparativo das dissertações defendidas
entre 1990 a 2003, uma das autoras (2009) apontou que a dimensão
política na formação do professor é quase silenciada nesses trabalhos e que as poucas investigações a respeito das políticas educacionais centram-se na análise das políticas de formação.
Brzezinski e Garrido (2006) identificaram ligeiro aumento no
interesse sobre o tema das políticas educacionais nas pesquisas,
a partir do ano de 2001, no estudo que realizaram sobre a formação
de profissionais da educação no período entre 1997 a 2002. Essas
autoras levantaram que houve um incremento de pesquisas
enquadradas na categoria Políticas e Propostas de Formação de
Professores, no período investigado. No entanto, no universo de
742 dissertações e teses analisadas, apenas 64 trabalhos (8,5%)
corresponderam à categoria aqui mencionada, o que evidencia
95
que continuam tímidos os trabalhos que focam as relações das
políticas educacionais e formação de professores e que a lacuna
existente sobre essa temática ainda persistia.
Dados mais recentes, na área da pesquisa sobre o ensino de
Ciências e Biologia, também evidenciam que a temática a respeito
das políticas educacionais representa universo restrito entre as
investigações nesse campo, conforme pode ser observado nas atas
do Encontro Nacional de Pesquisa em Educação para a Ciência
(Enpec). Na nona edição desse evento (2011), dentre os 1.235
trabalhos apresentados, 28 se referem à temática das políticas
educacionais, o que corresponde a um percentual de 2,26% do
total de trabalhos (ABRAPEC, 2012).
As pesquisas, analisadas por Brzezinski e Garrido (2006),
evidenciaram que a maior parte dos estudos sobre as políticas
educacionais centra-se na discussão das reformulações pelas
quais as licenciaturas são submetidas. No rol das escassas
pesquisas sobre a temática, mais parcos são os estudos que
versam a respeito da maneira como a discussão sobre a formulação e implementação das políticas educacionais vem se dando
nos cursos de formação de professores.
De certa maneira, este espaço em aberto pode ter relação com
a rejeição existente ao tema da política, vista, muitas vezes, como
algo impuro, sujo, discussão essa que foi abordada pelo filósofo
Jean Paul Sartre na sua clássica novela As mãos sujas, ao narrar
as tramas do Partido Comunista Francês agindo na clandestinidade na luta pela expulsão dos nazistas que ocuparam a França,
na segunda guerra mundial. Em uma das discussões, a respeito
do puritanismo, um dos líderes do partido usa a expressão: “quem
não tem coragem de sujar as mãos não pode fazer política”
(SARTRE, 1977)
A lacuna existente em torno da discussão sobre a política e a
educação no pensamento pedagógico brasileiro foi objeto da tese
de doutoramento de Antonio Carlos Maximo (1997), publicada em
dois livros: Os intelectuais e a educação das massas: o retrato de
uma tormenta (2000) e Os intelectuais da educação e a política
partidária: entrevistas inéditas com Dermeval Saviani, Paulo
Freire, Carlos R. Jamil Cury, José Carlos Libâneo, Moacir Gadotti,
Mário Sérgio Cortella e Selma Garrido Pimenta (2010).
Ao indagar esses intelectuais sobre o tema da política e
educação na formação do professorado brasileiro, Maximo (2000)
colheu depoimentos importantes que contribuem com a discussão
96
Renata Cabrera / Luciana Lunardi Campos
aqui proposta, a respeito das relações estabelecidas entre desenvolvimento de políticas educacionais e formação de professores.
O encaminhamento que o autor desenvolveu junto aos seus
investigados converge para a discussão da política no seu sentido
mais amplo até a sua expressão enquanto instrumento de poder,
ou seja, na manifestação da política pela via das organizações
partidárias. Ele está convicto de que é por via da política que os
projetos de poder postos na sociedade podem ser disputados e
viabilizados ou não, e que a educação participa no processo da
luta pela hegemonia que é travada entre os projetos opostos.
Coadunamos com esse entendimento de que é por via da ação
política prática, inclusive a via partidária, como lócus privilegiado
na busca do poder no Estado democrático, que os projetos para a
sociedade, dentre eles os que se referem à parte educacional,
podem ser concretizados. Também concordamos que a rejeição e
o preconceito existentes em torno da política partidária contribuem para o distanciamento do professor em relação às políticas
educacionais, o que acaba por refletir na escassez de trabalhos
sobre essa temática, constatada por André (2009, 2011).
Foram selecionados alguns trechos dos depoimentos dos intelectuais entrevistados por Maximo (2010), a título de evidenciar
algumas de suas reflexões sobre as possíveis causas desse vazio
existente no pensamento pedagógico brasileiro a respeito do tema
da política e educação:
Ele (pensamento pedagógico brasileiro) omite a questão por
conta dessa velha distinção entre o político e o político partidário,
com todos os preconceitos ou conceitos que se tem em relação aos
partidos políticos, de um modo geral, no Brasil (...) (Entrevista
concedida por Carlos R. Jamil Cury in MAXIMO, 2010, p. 132)
(...) Eu acho que interessa às classes dominantes mostrar que
fazer política é coisa suja para deixar que a grande maioria não
participe. Fica o espaço somente para eles fazerem política. Isso
reforça, realmente, essa ideia. Esse preconceito afasta o professorado da política. Mas não é só por isso que afasta. No caso do
professorado, também, ele se afasta muito em função das análises
da própria noção política. (...) (Entrevista concedida por Moacir
Gadotti in MAXIMO, 2010, p. 168)
(...) Não é só um problema de convicção docente, mas também
uma questão de oportunidades, de importância do partido político. Você vai ter educadores militando diretamente em partidos
Políticas educacionais e formação de professores
97
políticos de 1960 a 1964, e, depois de 1985 em diante. No total,
não chegam há quinze anos. Num país de quinhentos anos, ou
mesmo considerando apenas os últimos cem anos, ainda é um
limite forte. Ademais temos que lembrar que numa sociedade
patriarcal e machista como a nossa quase sempre se excluem as
mulheres da política. E em educação, 91% dos profissionais são
mulheres. Esse é um dado que pesa. (...) (Entrevista concedida
por Mário Sérgio Cortella Cury in MAXIMO, 2010, p. 107)
Estes depoimentos apontam alguns aspectos que estão na
base do distanciamento do(a) professor(a) em relação ao tema da
política, dentre eles o preconceito existente em relação a este
termo, o interesse das classes hegemônicas e as interferências
oriundas de uma sociedade calcada no patriarcado e no machismo.
Evidenciar estes aspectos, que contribuem com a lacuna do
tema das políticas educacionais na formação do professor, é
importante para a compreensão desse fenômeno e para a busca
da sua superação.
No pequeno universo das pesquisas que retratam a realidade
das políticas educacionais, poucos são os estudos que tratam da
inserção do tema no domínio dos cursos de formação de professores, como indicado no estudo já citado de Brzezinski e Garrido
(2006). Qual é a importância de tal inserção? Qual o papel do
professor no desenvolvimento dessas políticas? E o papel do
Estado gestor e das suas instâncias formadoras?
De maneira geral, percebemos que muitas análises que
ensaiam responder questões como estas tendem a polarizar o
tema das políticas educacionais nos extremos: Estado, de um
lado, e o professor, de outro, na ponta do sistema e, em meio a
ambos, as instituições formadoras. Entendemos que cada um
desses elementos compõe uma totalidade na qual se constitui a
formação do profissional docente. Nesse aspecto, advogamos a
favor de que a discussão das políticas educacionais seja tomada
na esfera das conexões que existem entre essas partes: Estado,
suas respectivas instituições formadoras e o professor. Ou seja,
ao evidenciar o papel atribuído a cada um desses componentes,
por meio da decomposição e recomposição analítica dessa totalidade que constitui a formação docente, abre-se espaço para o
entendimento das relações que podem ser estabelecidas entre os
segmentos aqui citados e o todo que os compõem.
98
Renata Cabrera / Luciana Lunardi Campos
Estado, instituições formadoras e professores no
desenvolvimento de políticas educacionais
Compete às instituições formadoras, como parte das instâncias do Estado, no caso das públicas, ou por ele regulamentada,
no caso das privadas, o papel de divulgadoras das políticas em
andamento. É imperioso que essa divulgação seja feita pelo viés
da crítica e avaliação contínua dos programas e projetos colocados
em andamento nas diversas instâncias sociais, incluindo-se aí o
campo da educação.
Das relações entre o Estado, as instituições formadoras e os
professores espera-se que se desenvolvam no nível da horizontalidade, com via de mão dupla, no qual os agentes envolvidos possam
participar de forma efetiva nos processos de formulação e implementação das políticas almejadas, não apenas como executores
ou divulgadores, mas também como formuladores.
Isso não significa desconsiderar que existem níveis distintos
entre um governo eleito e as demais instâncias da sociedade civil,
na qual se inserem os professores e instituições responsáveis por
sua formação. No entanto, prima-se pela instauração de relações
no campo das formas democráticas, no qual se busca garantir que
um projeto de governo eleito possa ser desenvolvido com a participação das diversas instâncias que compõem a sociedade. Uma
dessas formas é a conexão entre estes agentes e instâncias, de
maneira a garantir o amplo debate sobre os temas que são de interesse da coletividade.
Sob essa ótica, ao Estado gestor compete garantir que o senso
de realidade que emana da prática e reflexão do professor, que
está na base no sistema educacional e às vezes é expresso de
modo não sistematizado, esteja contemplado nas políticas formuladas, por meio de diversos canais de diálogo, via a participação
dos professores nos espaços de representatividade da sociedade
civil, pelo estabelecimento de sintonia do Legislativo com o “núcleo
sadio do senso comum”, termo esse cunhado pelo autor italiano
Antonio Gramsci ao abordar as contribuições dos saberes populares na formação de determinada visão de mundo, da filosofia.
Este autor argumenta (1999, p. 98):
Qual é a ideia que o povo faz da filosofia? Pode-se reconstruí-la
através das expressões da linguagem comum. Uma das mais
difundidas é a de “tomar as coisas com filosofia”, a qual, analisada, não tem por que ser inteiramente afastada. É verdade que
nela se contém um convite implícito à resignação e à paciência,
Políticas educacionais e formação de professores
99
mas parece que o ponto mais importante seja, ao contrário, o
convite à reflexão, à tomada de consciência de que aquilo que
acontece é, no fundo, racional, e que assim deve ser enfrentado,
concentrando as próprias forças racionais e não se deixando
levar pelos impulsos instintivos e violentos. Essas expressões
populares poderiam ser agrupadas com as expressões similares
dos escritores de caráter popular (recolhidas dos grandes dicionários) nas quais entrem os termos “filosofia” e “filosoficamente”; e assim se poderá perceber que tais expressões têm um
significado muito preciso, a saber, o da superação das paixões
bestiais e elementares numa concepção da necessidade que
fornece à própria ação uma direção consciente. Este é o núcleo
sadio do senso comum, que poderia precisamente ser chamado
de bom senso e que merece ser desenvolvido e transformado em
algo unitário e coerente (destaque entre “aspas” – do autor; em
negrito – grifo nosso).
Os professores estão diretamente ligados ao todo social que
constitui o universo educacional, no qual eles propagam, se apropriam e compartilham opiniões que circulam no senso comum
inerente a esse meio. Da prática social que constitui a ação desse
profissional emergem elementos caracterizados como os núcleos
sadios do senso comum do estrato social a que pertencem, o bom
senso na acepção gramsciana.
Desta maneira, no processo de formulação das políticas
públicas, em especial das políticas educacionais, é desejável que
haja uma associação orgânica, no sentido de buscar uma sintonia
fina entre o Estado gestor e os núcleos sadios que emanam dos
sujeitos, entre eles o professor, que vivenciam o universo educacional em sua prática social.
No senso comum, nem tudo é bom senso. Há nele os núcleos
sadios, mas há também diversas representações que circulam
que, por vezes, são confusas, desagregadas e incoerentes. Gramsci
(1999, p. 115) aponta que “os elementos principais do senso
comum são fornecidos pelas religiões e, consequentemente, a
relação entre senso comum e religião é muito mais íntima do que
a relação entre o senso comum e os sistemas filosóficos dos intelectuais.” Neste sentido, nem tudo que emana do senso comum do
estrato social na qual estão inseridos os professores, bem como de
outros estratos sociais, é constituído só de bom senso. Há em
meio a ele preconceitos, o peso da tradição e a carga ideológica de
determinada época e período que influenciam no modo de agir e
pensar dos indivíduos.
100
Renata Cabrera / Luciana Lunardi Campos
Assim, defendemos que é imprescindível a participação efetiva
do professor no processo de formulação das políticas educacionais. Porém, não deixamos de reconhecer que são necessárias
metodologias adequadas para captar o “núcleo sadio” que circula
no universo do senso comum do qual são parte. Dentre estas
metodologias podemos citar a que permite a discussão com a
base, a sistematização das suas ideias e o retorno para debate
com o grupo que as originou, de modo a possibilitar que o que foi
abstraído possa ser analisado e, se preciso, reformulado. Este
processo pressupõe o trabalho articulado entre o Estado gestor,
suas instâncias formadoras e professores.
A essas instâncias formadoras compete o trabalho com o
futuro profissional, bem como com os que estão no exercício da
profissão, de maneira a lhe propiciar inserção e atuação crítica na
sociedade da qual são integrantes. Como uma instância social que
faz parte da estrutura que compõe o Estado, as instituições formadoras se constituem como um elo entre o governo e o futuro profissional que será absorvido pela sociedade.
Assim, o estabelecimento de diálogo entre estes entes abre
caminho para a efetivação de uma sintonia fina na qual um determinado governo, ao mesmo tempo em que apresenta e discute o
seu projeto para a sociedade, se apropria das discussões oriundas
da produção do conhecimento que partem dessas instituições.
Neste caso, há uma confluência de esforços por parte desses
agentes, Estado e instituições formadoras, que se tornam imbuídos
de um objetivo comum, e associado, que é o de retornar à sociedade os melhores serviços que são pagos à custa da contribuição
tributária de cada cidadão.
Esta situação talvez possa ser considerada um tanto utópica e
muito distante da realidade existente no âmbito das relações entre
o Estado gestor e as instituições formadoras que dele fazem parte.
No entanto, é importante que ela não saia do foco dos educadores
que são comprometidos com a transformação da escola e com a
justiça social.
Algumas considerações
A educação aqui é tomada como ato político, conforme defendido por importantes intelectuais do pensamento pedagógico
brasileiro, entre eles Paulo Freire e Dermeval Saviani. Neste
sentido, estamos convictas de que a discussão sobre o desenvolvimento de políticas educacionais está intrinsecamente relacionada
à formação do professor.
Políticas educacionais e formação de professores
101
A implementação das políticas públicas guarda relação com a
formação dos futuros profissionais que serão incorporados pela
sociedade, sobretudo pelo sistema público de serviços.
No sistema educacional, os egressos das instituições de ensino
superior, bem como os professores que já estão em exercício da
sua profissão, formam juntamente com o Estado gestor e suas
instâncias formadoras, um círculo que se fecha em torno do
desenvolvimento das políticas educacionais.
Neste círculo está contido o peso de uma tradição que ocasionou
separar os entes aqui citados em extremos opostos e com funções
bem definidas: Estado-formulador; instituições formadoras-divulgadoras; e professor-executor dessas políticas.
Desta forma, urge repensar os papeis destas partes que, tradicionalmente, compõem a totalidade no desenvolvimento das políticas voltadas à educação.
A dedicação às pesquisas que foquem as relações estabelecidas
entre as políticas educacionais, o desenvolvimento do trabalho
docente e a formação do futuro profissional constituem investimento importante para o entendimento da situação no qual está
inserida boa parte das políticas educacionais em andamento.
Se tivermos a convicção de que existe um círculo vicioso nas
relações estabelecidas entre o Estado gestor, suas instâncias
formadoras e professores, no que se refere ao desenvolvimento
das políticas educacionais, o seu enfrentamento passa pela participação efetiva destes sujeitos no âmbito do Estado, o que inclui a
discussão, desde a base, nos cursos de formação de professores.
Assim, para além de importante, o debate sobre o desenvolvimento de políticas educacionais e formação de professores é
necessário para a efetivação de uma educação realmente comprometida com a transformação social.
Referências
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perspectivas do campo. In: FONTOURA, H. A.; SILVA, M. da (Orgs.)
Formação de professores, culturas: desafios à pós-graduação em
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Nacional, 2011, p. 24-36. Disponível em: <http://www.fe.ufrj.br/
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102
Renata Cabrera / Luciana Lunardi Campos
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estudo comparativo das dissertações e teses defendidas nos anos
de 1900 e 2000. Revista Brasileira de Pesquisa sobre Formação
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BRZEZINSKI, Iria; GARRIDO, Elsa (Orgs.) Formação de
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CONTRERAS, José. A autonomia de professores. São Paulo:
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GRAMSCI, Antonio (1891-1937). Cadernos do Cárcere, V. 1.
Edição e tradução de Carlos Nelson Coutinho; coedição, Luiz
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GIROUX, Henry A. Los profesores como intelectuales. Hacia uma
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MAXIMO, Antonio Carlos. Os intelectuais e a educação das
massas: o retrato de uma tormenta. Campinas, SP: Autores
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______. Intelectuais da educação e política partidária – entrevistas
inéditas com Carlos R. Jamil Cury, Dermeval Saviani, José Carlos
Libâneo, Moacir Gadotti, Mário Sérgio Cortella, Paulo Freire,
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SARTRE, Jean Paul. As mãos sujas. Portugal: Europa-América,
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SAVIANI, Dermeval. Educação: do senso comum à consciência
filosófica. 13. ed. Campinas, SP: Autores Associados, 2000.
Políticas educacionais e formação de professores
103
VI. Batalha das Ideias
Autores
Leandro Gavião
Doutorando em História pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ).
Paulo Elpídio de Menezes Neto
Cientista político, ex-reitor da Universidade Federal do Ceará, membro da Academia
Brasileira de Educação e do Instituto Histórico do Ceará; ensaísta e escritor, foi
secretário de Educação do Ceará e professor visitante da Universidade de Colônia,
Alemanha.
Reflexões provisórias sobre o poder,
a democracia e a tentação totalitária
Paulo Elpídio de Menezes Neto
Se um sistema político não se caracteriza por um sistema de
valores, permitindo um pacífico “jogo” de poder – ou seja, a
aderência por parte dos que estão fora das decisões tomadas
por aqueles que estão dentro, juntamente com o reconhecimento pelos que estão dentro dos direitos dos que estão fora
– não pode haver democracia estável.
Seymour Martin Lipset1
N
ão existe um modelo único que sirva de regra ou explique
como se instala um Estado autoritário. Mas, por pura especulação caprichosa: qual seria a receita ideal para uma
ditadura forte e duradoura, ideal de todos os salvadores? O itinerário a percorrer não é, como demonstram os fatos, muito diferente nas etapas sucessivas que conduzem à conquista do poder,
ao controle dos mecanismos do governo do Estado e à submissão
dos cidadãos.
A crônica das ambições humanas, capitulada no livro da
História, traz os registros da escalada desses movimentos “salvacionistas”, nascidos da insatisfação de muitos ou de alguns, do
clamor das ruas ou da conveniência de grupos, da força dos movimentos sociais, enfim, das necessidades e circunstâncias “interpretadas” por lideranças hábeis, movidas ao doce embalo de revelações aliciadoras, em momento decisivo e oportuno.
1LIPSET, Seymour Martin. O Homem Político, Rio de Janeiro: Zahar, 1967.
107
As ditaduras europeias do século XX, surgidas no leste continental com a revolução de 1917 e as que se constituíram na
Península Ibérica, na antevéspera do advento do nazifascismo,
reproduziram fórmula semelhante do uso da força e do aparato
militar, na conquista do poder. Esses espasmos de quebra do
equilíbrio democrático já eram conhecidos desde o aparecimento
do Estado, em sua versão mais remota. Em outras partes do
mundo, como neste fantástico Macondo em que vivemos, a
exceção são os governos democráticos, e a regra, a prática autoritária exercitada pelas elites oligárquicas, de direita ou esquerda,
que se equivalem na sua patriótica porfia pelo poder. Os ideais
democráticos e os instrumentos jurídicos do Estado constitucional nunca foram capazes de frustrar a tentação totalitária que
anima a índole dos homens.
As primeiras arremetidas de assalto ao poder passam, em geral,
despercebidas pelos cidadãos confiantes, os incautos dominados
pela ilusão das bondades anunciadas e os crédulos em geral, que
um dos artífices da revolução bolchevique chamava de “companheiros de viagem”. Inicia-se, assim, a ocupação do espaço das
liberdades, a redução dos mecanismos constitucionais, ao simples
aceno das promessas das novas mudanças. A censura aos meios de
comunicação é uma decorrência dessa progressão “institucionalizadora”. Ninguém pronuncia essa palavra comprometedora. Dá-selhe o nome gentil e sedutor de “controle social”, instância inconsútil
da qual o Estado, pelas mãos hábeis do governo, exerce o seu
imenso poder prestidigitador. O cerco às ideias heterodoxas que
possam ameaçar a segurança dos novos atores em cena, a vigilância sobre os intelectuais, velhos espantalhos afeitos ao hábito de
discutir as certezas assentes, tudo concorre para a montagem do
aparelho de Estado, com a ocupação dos espaços do governo pelas
criaturas da mesma grei, e o aprisionamento do poder de decidir e
impor decisões em mãos salvadoras.
No grande capítulo das manipulações lógicas, surgem no palco
dessa comédia de falsas ilusões os malabaristas da democracia,
os seus intérpretes. O que espanta e surpreende nesse processo
de arregimentação das forças de pré é a miopia, senão a ingenuidade, de lideranças e partidos políticos que entram alegremente
nessa engrenagem de olho nos dividendos miúdos porém rentáveis de cargos e vantagens.
No fundo, desconfiam, como o peru em véspera de Natal, que
a festa anunciada começará sem eles. É história conhecida, vem
de tempos imemoriais; mesmo assim não serve de lição aos novos
108
Paulo Elpídio de Menezes Neto
viajantes. O otimista incorrigível enxerga a casca da banana, pisa
nela – e reclama por ter caído... É de sua índole.
Democracia: manual do usuário
Ao longo de um grande percurso histórico, do qual somos as
testemunhas mais recentes, engajadas ou distantes, a democracia
ocupou, mobilizou e preocupou muitas mentes -– e pôs em estado
de alerta as forças do poder instalado e instituído na engrenagem
do Estado. Neste árduo itinerário, a democracia foi quase sempre
desejada pelos pobres, embora vista de esguelha pelos ricos.
É possível que a democracia só se torne viável quando os ricos não
se sentirem ameaçados por ela. Por ricos, entenda-se não apenas
os detentores da fortuna, mas também os que controlam o poder,
influenciam os seus atores e usam os seus recursos políticos, no
sentido real que se lhe atribui, para a realização de sua vontade e
imposição dos seus interesses.
Como compreender o significado de “democracia”, de forma
clara, linear, sem torneios eruditos, de modo que possamos fazer
uso adequado dessa palavra? Regime político ou forma de Estado
no qual existem direitos civis assegurados, liberdade de expressão
e associação, e sufrágio universal. A questão está, entretanto, em
como as nações alcançam esse patamar civilizatório e neles se
mantêm, segundo os valores ocidentais consagrados. Poucas questões na Ciência Política foram tão estudadas e discutidas quanto
a relação entre desenvolvimento socioeconômico e democracia
política. Seymour Martin Lipset,2 sociólogo americano, filho de
judeus-russos, professor da Universidade de Stanford, construiu a
teoria sobre Requisitos Sociais da Democracia, na década de 1950.
Parece evidente que, a seus olhos, esse binômio não representasse
uma simples relação empírica de causa e efeito. Outras condições
associadas à mudança social, numerosas e complexas, atuavam
nesse sentido. Os pré-requisitos anunciados por Lipset, favoráveis
a uma “cultura democrática”, contemplavam, naturalmente, outros
mecanismos, tais como o fortalecimento do capital humano, com
apoio na educação, a importância da classe média, a garantia dos
direitos políticos e econômicos dos trabalhadores e a modernização
social e econômica, com base na qual crescesse a receptividade aos
valores e às normas, à negociação de conflitos e à rejeição a toda
forma de autoritarismo e manifestações extremistas. A democracia
2 Alguns requisitos sociais da democracia, Primeiros Estudos, n. 2, p. 198-250,
2012.
Reflexões provisórias sobre o poder, a democracia e a tentação totalitária
109
é um estado de equilíbrio que se realiza com a conjugação de forças
transformadoras: industrialização, urbanização, saúde e educação.
Como forma de Estado, consolida-se em um sistema aberto de
classes, com uma classe média ampla, capaz de assegurar transição e estabilidade democráticas.
Estas desculpáveis digressões de um democrata militante,
conquanto desprovido de certezas que a muitos anima, vêm a
propósito do que Alain Touraine chama de novos “champs d’historicité”, nos quais se organizam as novas identidades coletivas,
organizadas em torno de conflitos sociais inéditos. As manifestações desarrazoadas à direita e à esquerda sobre o novo ativismo
social e político no mundo contemporâneo fortalecem reações
perigosas de intemperança política, bem conhecidas no passado
das nossas desesperanças. Demonstram os novos “gauleiters” da
intolerância o desconhecimento da função propriamente democrática desses novos movimentos sociais. Ignoram como uma
sociedade democrática, no sentido real do termo, pode valer-se
desses mecanismos dinâmicos, sem incorrer no risco de uma
maximização do Estado e de seus feitores, em ações preventivas
contra a tentação totalitária.
A fabricação da contrarrealidade
Nos Estados modernos, como, de um certo modo, nos embriões
de Estado que já existiam na Idade Clássica Ocidental e em nações
do Oriente desconhecido, os agentes do governo recorriam a expedientes que, hoje, constituem uma sofisticada ciência disseminada pelos serviços de inteligência. E de tal modo ganharam
complexidade e força essas formas auxiliares da arte de governar
que a poucos parecem compreensíveis, já que estão resguardadas
por um sistema inexpugnável de proteção, as razões de Estado.
O passo mais audacioso para o controle do poder no Estado e a
sua proteção contra o assédio dos súditos confinados nos limites
legais monopolizados por ele e de uma legitimidade consagrada,
embora suspeita, foi a criação dos instrumentos da “desinteligência” e da contrarrealidade. E de tal modo pareceu conveniente
esse achado lógico às pessoas astuciosas, que essa licença
incorporou-se a uma providencial retórica da esperteza, empregada de forma corrente na linguagem da política.
As técnicas de convencimento dos ímpios, isto é daqueles que,
por infelicidade e teimosia, discordam de nós, das nossas certezas
e de nossa incontestável boa fé, ganharam um aparelhamento
110
Paulo Elpídio de Menezes Neto
eficiente com essa forma de indução da verdade. As artes dos
serviços de “inteligência” repousam, como se sabe, em um processo
delicado de descobrir o que os outros pensam, entendem ou se
propõem fazer. Com antecedência, naturalmente, que o tempo
conta decisivamente nesses casos de bisbilhotagem preventiva. Já
a “desinteligência” é uma arte mais sofisticada que consiste em
fazer o outro acreditar naquilo em que não acreditamos. É uma
encenação dramatizada da construção de uma “contrarrealidade”
que os agentes do Estado passaram a exercer com aplicação e
zelo. No mundo da política, no qual os militantes se dividem entre
grupos, separados por sistemas de crenças mais ou menos arraigadas em interesses contingentes, a realidade é variável, mutante,
na medida exata das próprias ambições.
No Brasil, modelamos um sistema político de fazer inveja aos
pais-fundadores da moderna democracia. Condimentamô-lo com
algumas pitadas da sabedoria peninsular, bebida no saber jurídico das sebentas de Coimbra, e matizamos certo pendor cordial
pela negociação, pela composição de interesses, impulso cívico e
patriótico que desencorajaria qualquer pensamento de oposição
entre nós. Os que entram em dissidência o fazem provisoriamente
à espera do momento da adesão, convencidos antecipadamente
dos argumentos que o levarão ao caminho da governabilidade e do
erário. Os recalcitrantes são envolvidos pela lógica da racionalidade do poder e submetidos ao fogo cruzado das evidências pelas
quais sempre esperaram ser convencidos. Entra aí o esforço
patriótico da “desinteligência”, espécie de “in hoc signo vinces”
constantina, escrita na contabilidade dos favores a serem recebidos e amealhados, no recolhimento das antessalas palacianas,
muito distantes da ponte de Mílvio, sobre o Tibre. Assim se constrói a “contrarrealidade”, engenharia delicada de relojoeiro,
segundo a qual o real não é necessariamente o que se vê, mas o
que não aparece aos olhos das pessoas desavisadas.
Exercícios de democracia
“La démocratie jusqu´au bout”, gritava Jean-Jaurès ao povo.
A democracia levada às últimas consequências. Foram ouvidas,
há algumas semanas atrás, queixas do ex-presidente Lula para
quem “há muita gente incomodada com a democracia”, e “se
alguns quiserem brincar com a democracia”, “ninguém sabe
colocar mais gente na rua do que eu”. O desapontamento presidencial soou como uma ameaça. Lembramo-nos, ainda, de quando
Reflexões provisórias sobre o poder, a democracia e a tentação totalitária
111
o último dos generais-presidente prometeu “chamar o Pires”, o
seu ministro do exército linha dura. A expressão intimidatória de
que se servia indicava que a tolerância com os excessos da democracia chegara ao limite. Chamar o Pires, colocar o povo e os movimentos populares nas ruas, encomendar plebiscitos, multiplicar
as emendas constitucionais por instância legislativa derivada,
abusar das medidas provisórias, propor constituintes ad hoc,
auto-habilitantes, propor restrições à ação da imprensa, às
vésperas dos pleitos eleitorais, barganhar maioria no Congresso
para a construção de uma “base aliada” à custa de emendas orçamentárias – eis o que se poderia apontar como um “menu” totalitário que apeteceria a muitos democratas republicanos, confessos,
que chegam ao poder. A expressão ganhou adeptos e intérpretes
destemidos. Tempos atrás, que não estão tão distantes, “chamavase” o ginete arreado para impor o poder de suas patas. Há pouco,
no correr dos últimos acontecimentos, houve quem pretendesse
“chamar” militantes para “virem às ruas”, expressão que carrega
consigo graves propósitos de ordem, coerção e convencimento...
Alguns mais inventivos, graduados em semântica política,
sopraram a ideia de uma “intervenção militar constitucional”.
O “vir às ruas” materializa o fortalecimento do poder ameaçado,
muitas vezes pelo povo essa construção simpática que só se
expressa legitimamente quando recebe a inspiração dos seus
condutores. Ganharam foros de democratização instrumentos e
corretivos que abririam a caixa fechada do regime republicano: o
controle social, por exemplo, que se exerceria por via de aparelhos
designados e recheados em nome do povo...
Não é difícil identificar alguns arquétipos do totalitarismo:
objetivo de envolvimento da totalidade da população e do desejo
de manipulá-la com a ajuda de um partido e organizações de
massa a ele submetidas. Estado de partido único com monopólio
decisório e elite política; polícia política; monopólio da imprensa e
a manipulação da mídia; ideologia de dominação social de amplo
alcance; culto à personalidade; criação do inimigo a combater e do
amigo a apoiar; exclusão, discriminação ou eliminação de minorias; consolidação do poder em monopólio ilimitado; a fabricação
do consentimento. O populismo, na sua feição latino-americana,
é uma variante desarmada, filho dileto do viés autoritário, lobo em
pele de cordeiro.
A América Latina e o Brasil, cada país a seu modo e segundo a
sua cultura política, tão rarefeita na região, sofrem de intermitências totalitárias, e cumprem ciclos relativamente curtos de demo112
Paulo Elpídio de Menezes Neto
cracia. A literatura latino-americana reflete com vigor a crônica
anunciada dos libertadores da hora. Provêm de sedições militares
e do enfado da “elite”; mas, também, tem cheiro de povo e da
burguesia. As revoltas que levam os ditadores e os tiranos ao
poder, por estes lados desolados, aquém e além Cordilheira,
miram a democracia “maculada”, pretendem apresentar-se como
movimentos libertadores – e alvejam, com tiro certeiro, a democracia. Em nome da democracia, temo-nos empenhado em acabar
com ela, zelosamente, desde o primeiro dos libertadores aos
recém-chegados salvadores. Feitos católicos pela colonização e
alimentados no bornal jurídico da tradição ibérica, com os atavios
gauleses, os países latino-americanos nunca perderam uma
natural inclinação pela tentação irresistível do Estado totalitário.
Com a benção da Igreja e a proteção do saber jurídico, foram edificadas aqui as ditaduras mais duradouras de que se tem notícia
no mundo – todas vestidas de legalidade, embrulhadas no manto
jurídico que lhes cortavam os juristas a serviço do poder. Alcançamos a perfeição nesses aviamentos: inventamos a ditadura
constitucional. Os novos líderes levados ao poder pelo voto
almejam o êxito da democracia, falam com veemência de fórmulas
republicanas, evocam os fundadores, exalam o nacionalismo de
três décadas passadas, prometem uma nova saída, a do socialismo do século XXI, melindram-se com o assédio da imprensa,
denunciam as “elites” e condenam a “classe-média”. A exaltação
do Estado forte enfraquece as reservas morais e éticas dos parlamentos, minando-lhes a legitimidade do mandato. O judiciário é
submetido à visão primária das suas soluções e sínteses. Tudo,
naturalmente, concebido e obrado em defesa do povo e da democracia. Desta democracia renovada que dispensa as instituições
republicanas e as troca pelo exercício de consultas diretas,
baseada no contato, sem intermediação, entre o poder e o povo.
Cada um a seu jeito, guardando, entretanto, o gestual comum
do pretendente ao poder ilimitado, vai fabricando o consentimento
das massas mediante expedientes que valorizam a pobreza e a
miséria, perpetuando-as, segundo as conveniências, como moeda
de troca de uma benemerência infinita praticada pelo governo, em
nome do Estado.
Reflexões provisórias sobre o poder, a democracia e a tentação totalitária
113
Considerações sobre o liberalismo
econômico e a democracia
Leandro Gavião
O
liberalismo econômico alicerça suas premissas num sistema de valores que reivindica o legado intelectual de um
conjunto específico de autores, perpassando John Locke,
Ludwig von Mises, Ayn Rand, dentre outros. Resguardadas suas
idiossincrasias, estes pensadores são combinados com o intuito
de legitimar uma determinada concepção contemporânea sobre o
papel do Estado e uma tendência econômica específica, a saber:
o Estado mínimo – restrito à tríplice função de assegurar a vida,
a liberdade e a propriedade – e o livre mercado, respectivamente.
À semelhança dos demais fatos humanos, a ascensão do
discurso liberal é um fenômeno inscrito num contexto histórico
específico. Os governos de Ronald Reagan e de Margaret Thatcher
imprimiram à década de 1980 a marca do resgate da teoria e da
práxis liberal, após um longo período de intervenção estatal
instrumentalizada para solucionar os efeitos deletérios da Crise
de 1929. Iniciaram-se, assim, as primeiras experiências de
desmonte do Estado e de sacralização do mercado, sendo este
último convertido em ícone da eficiência racional derivada do
egoísmo individual humano.
Na década de 1990, nos marcos da implosão do bloco soviético
e do fim do comunismo real, a retórica liberal ganhou fôlego extra.
O cientista político norte-americano Francis Fukuyama adiantouse, inclusive, em proclamar o “fim da História” (FUKUYAMA,
1992). Na esteira do otimismo pós-Guerra Fria, o receituário liberalizante fora apresentado como panaceia para as mazelas socioeconômicas mundiais, sendo amplamente disseminado, mormente
na América Latina
Todavia, é sabido que a redução do papel social do Estado
acarreta num sistema com acentuadas diferenças de classes,
ocorridas, por exemplo, mediante a carência de um agente
mediador com força suficiente para corrigir desequilíbrios, solucionar as tensões entre o capital e o trabalho, sustentar níveis de
emprego e suprimir mazelas que venham a surgir de um aprofundamento das desigualdades.
114
Em resumo, o Estado é fulcral para garantir a coesão da comunidade. Por esta razão, inúmeros intelectuais têm se posicionado
contra as premissas do liberalismo, apresentando, de acordo com
suas peculiaridades teóricas, tonalidades de argumentos que vão
desde exortações morais até convincentes sustentações empíricas, de modo a exprimir as muitas discordâncias quanto ao
dogma liberal.
Cabe salientarmos que a crítica ao liberalismo aqui externada
se relaciona à sua faceta econômica, não abarcando as instituições democráticas originárias do liberalismo político, a saber: o
sufrágio universal, o regime parlamentar, as eleições livres, o
reconhecimento dos direitos civis, a liberdade de pensamento e de
imprensa, o princípio da participação da maioria na vida pública
e a proteção das minorias. Em síntese, tudo aquilo que dimana
dos três valores primordiais disseminados pela Revolução Francesa: liberté, égalité, fraternité.
Isto posto, devemos estar conscientes tanto da separação entre
os dois paradigmas liberais supracitados quanto da necessidade
de valorizarmos os elementos mencionados no parágrafo anterior,
sobretudo por se constituírem desdobramentos de demandas
pretéritas perpetradas pelo Terceiro Estado e, posteriormente,
pelos trabalhadores que, por meio de revoltas, greves e outras
formas de manifestação, auferiram direitos outrora considerados
utópicos, convergindo para a igualdade. É oportuno lembrar que
esta última caracteriza-se como desígnio basilar das esquerdas,
segundo o cientista político italiano Norberto Bobbio (2001).
Do mesmo modo que os direitos raciais, de gênero e trabalhistas foram conquistados por meio de reivindicações de movimentos coletivos, a democracia deve ser considerada um triunfo
das massas, e não do capitalismo. Basta para tanto observar que,
ao longo do século XIX, as elites burguesas apoiavam a agenda
liberal, não obstante rejeitassem o sufrágio universal (RÉMOND,
1997), componente indispensável para o real funcionamento da
democracia, proporcionando participação política no sentido lato.
Mas não sejamos ingênuos: o caráter perpetuamente inconcluso
da democracia exige empenho diuturno direcionado para o seu
aperfeiçoamento e manutenção (RANCIÈRE, 2014).
O filósofo francês Jacques Rancière afirma que, a princípio, a
democracia representativa consistia num regime de funcionamento
do Estado de base parlamentar-constitucional, fundamentado
primordialmente no privilégio das elites. Somente após uma
Considerações sobre o liberalismo econômico e a democracia
115
sequência de exigências e lutas, a democracia passa a ser expandida para outros segmentos sociais. A história sangrenta da reforma
eleitoral na Inglaterra é apenas um dos exemplos capazes de denunciar o idílio de uma tradição liberal-democrata e de expor a hipocrisia por trás do conceito de igualdade para as elites econômicas.
No artigo intitulado “A utopia liberal”, o filósofo esloveno Slavoj
Žižek (2008) traça um diagnóstico interessante sobre o neoliberalismo, apresentando-o como modelo econômico inconciliável com
a democracia. Partindo de seu argumento, poderíamos dizer que
as massas, no que concerne ao sistema capitalista, tendem naturalmente a se posicionar contra o desmonte do welfare State ou a
se associar visando edificar um regime de bem-estar, gerando
assim uma incompatibilidade intrínseca com o liberalismo.
Considerando o posicionamento combativo das organizações
laborais e sua histórica busca por direitos, fica evidente que a
única forma de governo com uma plataforma econômica liberal
conseguir enxugar as conquistas sociais para executar seu receituário é recorrendo ao emprego de métodos repressivos ou de teor
autoritário, à revelia do diálogo com os sindicatos e com os movimentos sociais. Não é mera coincidência que as lideranças de
governos liberais tendam a apresentar baixos índices de popularidade ou assumir características ditatoriais.
Tais questões são muito bem trabalhadas pelo antropólogo
venezuelano Fernando Coronil, que elenca sete consequências
resultantes da expansão do neoliberalismo, dentre as quais se
destaca a violência legítima de um poder ilegítimo, explicada a
partir da eliminação das funções de assistência social por parte do
Estado, reduzindo-o à mera agência ilegal de proteção ao serviço
das megaempresas e agente de repressão instruído a calar os
focos de insatisfação (CORONIL, 2000).
Em outras palavras, o grande capital – poder ilegítimo – se
torna capaz de mobilizar contra seus adversários a máquina
repressiva do Estado que, em termos weberianos, é o agente que
detém o monopólio da violência legítima dentro de um determinado território (WEBER, [1919] 1985), daí o jogo de palavras na
ideia de violência legítima de um poder ilegítimo.
O receituário liberal traz em seu bojo o embrião da instabilidade, desdobramento da acentuação das desigualdades socioeconômicas e do sentimento de insegurança quanto à renda e ao
emprego, coroados com a carência de uma rede pública de assistência. Por conseguinte, compreende-se que a função do Estado
116
Leandro Gavião
mínimo é assegurar o paraíso dos ricos, dado que preza pela
defesa da propriedade, da vida, da dinâmica do mercado e do corte
de impostos e de direitos trabalhistas, enquanto desdenha de
demandas oriundas de outras camadas sociais que, muitas vezes,
dependem dos serviços públicos para sobreviver com um mínimo
de dignidade.
Se lançarmos mão do enfoque de longa duração proposto por
Thomas Marshall para a compreensão da formação da cidadania,
perceberemos que esta ocorre no sentido de uma progressiva
demanda por direitos. Na sua classificação, há uma hierarquia de
elementos correspondentes a três períodos: (i) o elemento civil,
relacionado aos atributos básicos para garantir as liberdades
individuais; (ii) o elemento político, manifesto na possibilidade de
participação do exercício do poder e; (iii) o elemento social, a busca
do livre acesso à proteção social.
A despeito de seu caráter esquemático, da sua dinâmica eurocêntrica e de algumas exceções notáveis – como o caso da
Alemanha, onde o Estado de Bem-estar Social precede a universalização dos direitos civis – o modelo de Marshall contribui para
uma apreciação da edificação da cidadania nos marcos de um
continuum, apresentando paralelismos com a análise de Jacques
Rancière sobre a democracia. A tabela a seguir visa sintetizar os
três períodos contemplados pelo autor.
Deste modo, a exigência de desconstrução do Estado social
representa nada mais que uma tentativa de fazer regredir a atual
configuração da cidadania para uma dimensão outrora superada.
Isto é, o programa liberal exige que a proteção social seja desconsiderada como um direito civil, restando aos cidadãos gozarem
apenas das conquistas anteriormente consolidadas, como as
liberdades individuais (século XVIII) e o direito universal de participação política (século XIX).
Daí resultaria, então, toda a sorte de tensões, tendo em vista
que os movimentos populares, os sindicatos e os trabalhadores
jamais aceitarão tamanho retrocesso. As imposições do liberalismo econômico provocariam tantas consequências deletérias
que seu estabelecimento seria permeado por inquietações e
conflitos sociais diversos, originados da remoção de direitos considerados pétreos pelo povo.
Considerações sobre o liberalismo econômico e a democracia
117
A concepção de cidadania de Thomas Marshall
CIVIL
PERÍODO
INSTITUIÇÃO
Século XVIII
POLÍTICO
SOCIAL
Século XIX
Século XX
Sufrágio universal
Estado de
bem-estar social
Liberdade da pessoa
Elegibilidade
Liberdade de
expressão
Direito de voto
Bem-estar
econômico
Estado de Direito
Proteção social
Liberdade de
pensamento
DIREITOS
Liberdade de crença
Direito de
propriedade
Direito de fazer
contratos
Acesso a uma Justiça
igualitária
Fonte: Adaptado de DÉLOYE, 1999, p. 87
Hodiernamente, os países mais vulneráveis da Europa vivenciam um momento particularmente turbulento, caracterizado por
passeatas que reúnem milhares de pessoas indignadas, greves
gerais e pela emergência de partidos radicais. Estes fenômenos
são desdobramentos da conjuntura de arruinamento das esperanças decorrentes da austeridade fiscal imposta pela Troika e da
impotência de governos pouco comprometidos com o povo.
Vale aproveitarmos o espaço que nos resta para apresentarmos
uma última incongruência intrínseca à sociedade liberal: o princípio da meritocracia. Tal como explicado, com precisão, pelo
sociólogo britânico Anthony Giddens, as metas de isenção fiscal
sobre as grandes fortunas e sobre a transmissão de heranças
conduziriam a uma natural acumulação de capital nas famílias
mais ricas, fazendo com que os indivíduos privilegiados pudessem
não só desfrutar deste benefício material sem qualquer ônus, mas
transmiti-lo para seus filhos, gerando um processo que se retroalimentaria, colocando-os em uma situação de vantagem perante
os demais, o que por fim desfigura a própria meritocracia
(GIDDENS, 1999).
118
Leandro Gavião
Considerações finais
A narrativa liberal promete um futuro promissor no qual indivíduos gozam da sua liberdade e habitam um mundo próspero
desvencilhado da opressão do Estado e das ideologias, regido por
normas racionais oriundas do onipotente e onisciente Mercado.
Na prática, o liberalismo impulsiona a concentração de renda, a
desigualdade e promove uma involução no significado da cidadania. Em suma, engendra instabilidade social e insegurança
generalizada. “O mercado prospera na incerteza”, já alertava
Zygmunt Bauman (2000, p. 38).
Urge desmascarar a falaciosa correlação, atualmente em moda,
que tenta posicionar o liberalismo político como espécie de correspondente superestrutural do seu homólogo econômico. Na realidade, conforme tentamos elucidar ao longo deste artigo, a democracia é um projeto ainda inconcluso e de longa duração, somente
materializado a partir de movimentos reivindicatórios que
remontam ao século XVIII. A democracia não é um donativo do
capitalismo, mas uma conquista das massas.
Referências
BAUMAN, Zygmunt. Em busca da política. 1. ed. Rio de Janeiro:
Jorge Zahar, 2000.
BOBBIO, Norberto (1994). Direita e Esquerda: razões e
significados de uma distinção política. 2. ed. São Paulo: Unesp,
2001.
CORONIL, Fernando. Naturaleza del poscolonialismo: del
eurocentrismo al globocentrismo. In: Edgardo Lander. La
colonialidad del saber: eurocentrismo y ciências sociales –
Perspectivas latino-americanas. Buenos Aires: Clacso, 2000. p.
53-67.
DÉLOYE, Yves. Sociologia histórica do politico. 1. ed. Bauru:
Sagrado Coração (Edusc), 1999.
FUKUYAMA, Francis. O fim da história e o último homem. 1. ed.
Rio de Janeiro: Rocco, 1992.
GIDDENS, Anthony. A terceira via. 1. ed. Brasília: Instituto
Teotônio Vilela, 1999.
RANCIÈRE, Jacques. O ódio à democracia. 1. ed. São Paulo:
Boitempo, 2014.
Considerações sobre o liberalismo econômico e a democracia
119
RÉMOND, René. O século XIX: 1815-1914. 12. ed. São Paulo:
Cultrix, 1997.
WEBER, Max (1919). A política como vocação. 1. ed. São Paulo:
Cultrix, 1985.
ŽIŽEK, Slavoj. A utopia liberal. Margem esquerda. São Paulo:
Boitempo, n. 12, 2008.
120
Leandro Gavião
VII. Economia e
Desenvolvimento
Autores
Antonio Machado
Economista e comentarista econômico de jornais e revistas. [email protected].
Miriam Leitão
Jornalista, economista, comentarista de TV e Rádio.
O ano que já acabou
Míriam Leitão
A
ninguém é estranho que a economia parou em 2014, apesar
da Copa do Mundo, das eleições que normalmente aumentam o gasto público e incentivam a atividade econômica, e
a despeito da melhoria da economia mundial. Na divulgação dos
dados, na segunda quinzena de março de 2015, ficou provado que
o número ruim foi resultado da política econômica errada: o país
teve um resultado de 0,1% no PIB e uma inflação no teto da meta.
Não há esperanças de melhora a curto prazo. A queda de 4,4%
do investimento, por si só, já indica que 2015 não será um ano
fácil. Para quem tinha alguma dúvida, ela acabou com a declaração do ministro da Fazenda, Joaquim Levy, de que o país está
vivendo neste começo de ano uma “forte desacelerada”. Está
preparando, talvez, a opinião pública para os números que virão
a cada trimestre de 2015. O que Levy espera é que a alta do dólar
acabe produzindo o efeito de empurrar as exportações, e isso
ajude a economia neste ano que já se sabe será de recessão.
O PIB não saiu do lugar, mas muita coisa mudou na forma de
cálculo pelo IBGE. Os dados foram revisados de 1996 até agora,
mudando ligeiramente alguns anos, mas com alterações mais
fortes no governo Dilma. Em 2011, o crescimento saiu de 2,7%
para 3,9%. O de 2012 saiu de 1% para 1,8%. O de 2013 saiu de
2,5% para 2,7%. Com o 0,1% de 2014, o país teria, se os números
não fossem alterados, uma média de crescimento anual de 1,5%
no primeiro governo Dilma.
123
As mudanças levaram o crescimento médio a ser de 2,1%.
Mesmo assim, é a pior taxa desde a implantação do real.
Estas alterações da forma de calcular são aperfeiçoamentos
naturais do indicador e, em alguns casos, seguem orientações
internacionais, mas mesmo com revisões e mudanças, o fundamental permanece igual. De 2011 para 2012, o Brasil desacelerou
durante o governo Dilma. Melhorou um pouco em 2013, para
parar completamente em 2014. Agora se prepara para um PIB
negativo em 2015. Um período sem brilho algum, apesar dos fortes
subsídios dados aos setores industriais, principalmente, e do
incentivo ao endividamento.
O governo usou a desculpa durante todo o ano passado de que a
crise internacional explicava o resultado ruim da economia, mas os
Estados Unidos tiveram 2,2% de crescimento em 2014, o que significa que vêm retomando o crescimento, assim como a Europa cresceu
mais que o Brasil, a Alemanha terminou o ano em 1,6%. A China
desacelerou, mas ficou acima de 7%. A Índia acelerou para 7%.
A Colômbia cresceu 4,6%. Em relação à América Latina, o Brasil só
está melhor do que a Venezuela, que enfrenta forte recessão.
Com todos os números na mão, não há dúvida: não crescemos
porque o Brasil errou na condução da política econômica. E ainda
teremos que passar por mais turbulências para colocar a casa
em ordem.
A culpa pela crise
Os jornais estão cheios de notícias sobre demissões que ocorrem
em meio aos desdobramentos da Operação Lava Jato. Muitos vão
culpar a investigação em si, quando ela é a melhor chance que o
país tem de mudar o ambiente de negócios no Brasil. Foram
tomadas decisões temerárias na economia. Bancos, empresas e o
governo assumiram riscos que não deveriam ter assumido.
Várias das empresas que estão com problemas já estavam com
desequilíbrios entre ativos e passivos, como a OAS. Ou cresceram
dependentes da abundância do dinheiro que saía do BNDES.
Os negócios estavam sendo feitos assim no Brasil. O Tesouro
se endividava e repassava o dinheiro a custo subsidiado ao
BNDES. O Banco financiava tudo o que era considerado prioritário para o governo, sem fazer análises do risco como devia.
Chegou a admitir, certa vez, ter liberado R$ 10 bilhões à refinaria
124
Míriam Leitão
Abreu e Lima sem que houvesse o estudo de viabilidade econômico-financeira do empreendimento. Os fundos de pensão de
estatais entravam para garantir qualquer projeto. O Comperj
tinha vários erros originais, inclusive de localização. Tudo estava
sendo feito com um grau de risco elevadíssimo, passando por
cima, muitas vezes, de alertas dos técnicos de órgãos envolvidos.
Agora os riscos se materializam e todo o discurso que começa
a ser preparado é de culpar a Operação Lava Jato pelo desemprego e dificuldades financeiras das empresas. É preciso separar
os casos. Há situações em que a empresa só sobreviveria na
dependência dos contratos ilícitos, dinheiro barato e risco jogado
sobre os fundos das estatais. Algumas das empresas jamais
fizeram uma diluição do seu risco, jamais fizeram um planejamento estratégico olhando possíveis cenários negativos. E há
casos de empresas boas, capitalizadas, mas que agora têm que
enfrentar os rigores da investigação sobre supostas propinas
pagas para conseguir fazer negócios com empresas estatais.
Mesmo sendo boas, empresas assumiram o risco de fazer negócios
ilícitos e precisam pagar por isso.
A investigação do crime não pode ser responsabilizada pelos
efeitos econômicos decorrentes dos fatos revelados. O oposto seria
manter tudo irregular, conviver com os crimes, porque o combate
a eles provoca distúrbios econômicos. Esta visão é inaceitável.
O governo precisa estudar profundamente os desdobramentos
econômicos da Operação Lava Jato, que serão muitos, para saber
o que fazer diante de cada problema. Os casos são diferentes, a
situação das empresas, também. O perigo é o desemprego ser
usado como fonte de pressão para que o governo salve empresas
que não podem ser salvas ou tente encobrir o que tem que ser
revelado. É preciso critério e informação acurada sobre a situação
de cada uma das companhias afetadas, direta ou indiretamente,
pelos desdobramentos da investigação.
O ano que já exauriu
Que ano é este? Estamos chegando ao fim do primeiro trimestre
como se tivéssemos vivido 12 meses em três. A inflação deu um
salto, a presidente teve a mais rápida queda de popularidade da
história, o Supremo recebeu denúncia contra os chefes da Câmara
e do Senado, o governo e sua base brigam, novas denúncias
surgem, a Petrobras foi rebaixada e o dólar não para quieto.
O ano que já acabou
125
Não houve dia de sossego neste 2015 e dá vontade de inverter
a ideia criada pelo genial Zuenir Ventura. É o ano que já acabou,
logo depois que começou. As previsões pessimistas feitas sobre ele
vão sendo superadas pelos fatos. O temor era de uma inflação que
estourasse o teto da meta, agora a preliminar do IPCA de março já
levou o país a quase 8% de inflação em 12 meses.
A presidente Dilma tenta falar mais, para mudar a comunicação, mas parece exasperada em cada entrevista improvisada
que tem dado ultimamente. Fala em diálogo e ataca os que quer
atrair para o diálogo. É criticada pelos seus e pelos outros. Notícias de brigas entre criatura e criador ocupam as páginas dos
jornais, claramente vazadas pelo criador, que assim se distancia
de tão atrapalhada criatura.
Um documento apócrifo circulou pelas mais poderosas mesas do
Palácio do Planalto propondo mudar a comunicação e partir para a
guerrilha política, com o uso de robôs, e soldados de fora do governo,
mas com munição de dentro. Enquanto isso, o vice-presidente
Michel Temer se reúne discretamente com pessoas da oposição.
Partidos que fazem parte da base política criticam as medidas econômicas ou os modos políticos da presidente. O lema do novo mandato
é “pátria educadora” e o ministro da Educação aponta o dedo para
os aliados, chama-os de achacadores, é demitido, e a presidente
Dilma tem que escolher seu quinto ministro da área.
O país todo está pedindo água a esta altura, tamanho o sufoco
hídrico. A água ou não vem socorrer reservatórios e mananciais
secos ou despenca com fúria alagando cidades. A natureza não
está sozinha nas suas oscilações tempestuosas. Estão voláteis o
dólar, as expectativas, o humor da presidente, a bolsa de valores,
a taxa de juros e as convicções econômicas da chefe de governo.
Os indicadores que saem são sempre os piores em muitos anos.
O povo ocupou as praças, as ruas, pontes, carregando bandeira
verde e amarela e cantou o hino nacional na maior das manifestações já feitas desde a campanha das Diretas. Consultado em
pesquisas, o brasileiro também foi claro: está pessimista na
economia, sabe o que é operação Lava Jato e rejeita a presidente
em 62%.
Ninguém acredita, nem mesmo o governo, que o ano será bom.
Há duas visões: a benigna é que teremos um bom 2016. Este ano
será de recessão, inflação alta e correção dos erros e problemas
que a presidente negou existirem quando era candidata a mais
um mandato.
126
Míriam Leitão
Não será rápido
Os ministros Joaquim Levy e Nelson Barbosa têm dito que os
ajustes na economia farão o Brasil voltar a crescer rapidamente.
Usam a estratégia para tentar convencer o PT e os partidos da
base, que são contra os cortes de gastos. Além disso, estão começando a ceder partes do ajuste na negociação. Ou os ministros
expõem a gravidade do quadro ou a arrumação da economia ficará
pelo meio do caminho.
Claro que nesta conjuntura política é preciso continuar conversando com o Congresso, mas não deveriam dourar a pílula. Não
serão apenas alguns meses. Vai levar tempo para consertar o país,
e isso exige cortes de gastos, suspensão de subsídios, juros altos
por longo tempo. Os dois apertos – fiscal e monetário – vão
comprimir ainda mais a economia já estagnada. Ao mesmo tempo,
a inflação continuará alta pelos reajustes dos preços da energia e
do aumento do dólar. Isso é remédio contra os erros do primeiro
mandato, mas o PT está pronto para pôr a culpa na atual equipe
econômica. Os ministros Joaquim Levy e Nelson Barbosa devem
apontar o futuro de recuperação, mas precisam avisar que será
um caminho longo.
O quadro externo é desfavorável, com a expectativa de alta dos
juros pelo Banco Central americano. Não há, portanto, saída fácil
e no curto prazo. O único caminho é o governo expor a gravidade
da situação atual. Isso talvez ajude a conseguir mais apoio para
as medidas de ajuste, que parece cada dia mais fraco.
(Publicado originalmente no jornal O Globo)
O ano que já acabou
127
Desenvolvimento só com reformas
Antonio Machado
O
bochicho político se tornou irrefreável, acirrado por um
governo cujo partido venceu a eleição presidencial de raspão, mas continuou desdenhando os seus aliados no Congresso, desatento ao fato de que a descoberta do bilionário ninho
de corrupção na Petrobras desfez a magia do PT para unir “lé com
cré”. Apesar do crescente sentimento de mal-estar na sociedade,
no entanto, este não é o problema central.
Mais graves são as evidências de que os nutrientes que
alimentam o desenvolvimento perderam a fertilidade de antes. E,
sem revolver o solo em que germina a riqueza nacional, o prognóstico, ao menos até o fim da década, é que não haverá o que distribuir sem estagnar ainda mais a economia. Este tende a ser o viés,
apesar do que Pero Vaz de Caminha escreveu na carta em que
anunciou a descoberta do Brasil ao rei de Portugal: “Nesta terra,
em se plantando, tudo dá”.
Dava. E só voltará a dar, se se atentar que essa terra “cansou”
de tanto extrativismo e tão pouco investimento, além de quase
nenhuma atenção com a produtividade e a modernidade da
produção, incluindo os meios para garantir seu escoamento aqui
e lá fora. A verdade é que não há desenvolvimento sem equilíbrio
entre deveres e direitos, além de suor, lucros reaplicados na atividade, inovação e justiça.
O governo reeleito de Dilma Rousseff imaginou poder
reinventar-se com uma espanada no gasto público e com fermento
na arrecadação dos impostos, inclusive com o gordo naco extraído
do realismo tarifário – algo que, por si, equivale a um salto da
carga tributária, já que desbasta, de modo duradouro, parte
importante da renda disponível.
A renda do consumidor também perde poder de compra com a
inflação elevada e os juros obscenos, além de ser roída pela desvalorização cambial. Tudo se passa como se carecêssemos de uma
dura dieta para nos mantermos saudáveis. É vero, mas não pode
ser apenas isso.
128
Desastres inevitáveis
O resgate da credibilidade fiscal penhorada pelos erros toscos
do primeiro governo Dilma, como diria o ministro da Fazenda,
deverá levar a um resultado, se o crescimento econômico pífio for
passageiro, e a outro, se resultar de causas estruturais antigas,
como a decadência da indústria, que vem de longe, e o fim do
boom das commodities. Os sinais são de que, nesse rol de entraves,
nenhum seja transitório.
Se nada se fizer para repor a economia na linha de frente entre
os países mais promissores do bloco dos emergentes, como parecia
estar até 2010, alguns desastres poderão tornar-se inevitáveis.
E é nesse cenário que pretende atuar o ajuste fiscal de Dilma II,
concebido para sustar, de modo perene, o viés expansionista do
gasto público.
Estado sugou o dinamismo
Não há como bancar as políticas públicas e o custeio da
máquina do Estado sem crescimento econômico sustentado. Mas
é, precisamente, o aumento contínuo desses ônus para as
empresas e pessoas (que avança ao ritmo anual de dois dígitos,
contra 2% da receita) o que sugou o dinamismo econômico. Sem
crescimento, o ativismo das transferências de renda se torna
precário, como alerta o ministro Joaquim Levy.
Além de programas sociais, os subsídios a empresas também
estão na linha de tiro, ambos não por serem ruins, mas pelo
excesso e falta de critérios em sua aplicação. Embora de
compreensão difícil, o que reclama por mudanças não é bem a
economia, mas a governança que a fez perder força ao longo de
ondas sucessivas: primeiro, a inflação endêmica; depois, o saneamento do Tesouro; enfim, a questão social.
Em cada um desses ciclos, pouca atenção foi dada à infraestrutura, à indústria e à exportação. Ao contrário, como destaca o
economista Jorge Arbache, a cena externa favorável até 2007 e o
laxismo fiscal – além da mudança demográfica e a valorização
cambial –, criaram a “sensação de enriquecimento e fartura”,
causas do “entorpecimento” frente às políticas populistas e da
procrastinação das reformas.
Desenvolvimento só com reformas
129
Só um acordo é solução
Se as reformas eram imperiosas com Lula, hoje elas são inadiáveis, depois de o governo Dilma dobrar sua aposta no estatismo,
colhendo mais inflação, maiores deficits e desalento empresarial.
Fato é que o dinamismo econômico vergou com o laxismo fiscal, e
não há o que o mantenha, apesar da má vontade do Congresso.
É só questão de tempo.
Como não há jeito de acomodar o governo numa economia
esgotada por anos de desaforo com a eficiência e o bom senso, já
está em curso o ajuste na marra, com dólar acima de R$ 3, juro
básico de 12,75%, inflação anual tendendo a 8%, desemprego em
alta, novos empregos em baixa, e endividados com a língua de
fora. Neste cenário, Dilma não conseguirá governar isolada. E o
PT pode quase nada com sua bancada de 13% da Câmara.
Ou pouco mais de 20%, somada aos aliados fiéis.
A demanda empresarial é por um governo de coalisão, ainda
que como casamento de conveniência e limitado a poucas questões, antes que a crise com o Congresso desande de vez. Recessão
brava é a opção.
Quem passa e quem ladra
O país assiste à agonia de um ciclo de prosperidade que
começou a perder força antes da grande crise de 2008 e não mais
se recuperou. Foi exaurido pela série de políticas muito ruins para
o crescimento e pelo excesso de burocratização das relações
econômicas e sociais.
O ajuste fiscal é só o início do processo de mudanças necessárias.
É ilusório falar em desenvolvimento sem reformas de fôlego, como as
do sistema tributário, da legislação trabalhista e da previdência.
No entanto, há mais. As ações públicas precisam ter resultados aferidos. A gestão pública deve modernizar-se, começando
pela revisão de alto a baixo dos processos. E, sobretudo, passa da
hora o fim dos entraves ao empreendedorismo, sobretudo a cultura
da autorização – matriz do vício das propinas. Isso não existe nos
EUA, vai acabar na China em 2016 e está em discussão na Índia,
as economias dominantes ou em ascensão. E nós? Ainda entretidos com os mercadores de facilidades.
130
Antonio Machado
VIII. Mundo
Autores
Joan Alcazar
Professor de História Contemporânea na Universidade de Valencia/Espanha,
ex-diretor do Centro Internacional de Gandia, atuou como professor visitante em
várias universidades estrangeiras, entre elas a Universidade de São Paulo e a
Universidade Estadual Paulista, e é autor de vários e importantes livros de ensaios.
Rudá Ricci
Sociólogo, doutor em Ciências Sociais, é diretor geral do Instituto Cultiva.
A Europa inova na forma-partido
Rudá Ricci
O
s partidos políticos nasceram no século XVIII. A literatura
especializada os denomina de “partidos de notáveis”, dado
que se pareciam mais com clubes de apoio à candidatura
de um notável que os representasse que uma organização permanente. Após o escolhido tomar posse, o “clube” ou articulação de
apoiadores se desfazia. No século seguinte, surgiram os partidos
modernos, inicialmente configurados como operários, que adotaram programas globais, militância de base, direção administrativa
e política e programa permanente. A provisoriedade tinha se dissipado. Em seu lugar, surgiram organizações totais, com vocação
para conquistar o Estado. Totais porque todos seus espaços internos eram ocupados e conectados: de suas lideranças carismáticas
à sua direção, da direção à burocracia interna, da burocracia à
militância, todos articulados a partir de um comando único, formulado democraticamente ou não. Esta é a estrutura que ainda
hoje define um partido político.
Ocorre que já no final do século XX, a dinâmica e configuração
social parecia se alterar aceleradamente. Fragmentação passou a
ser a palavra que resumia a realidade. As formas de inserção no
mercado se tornaram mais complexas, do trabalho part-time à
malha de pequenos negócios, do velho assalariamento ao pagamento por produção ou inovação (onde o salário móvel se tornou
mais significativo que o salário fixo), das associações produtivas
(cooperativismo, consórcio produtivo ou associação de um pequeno
produtor à um conglomerado industrial) às empresas virtuais.
A formação de identidade de classe ficou mais fluida, embora
133
persistisse. As cidades se fragmentaram pela “gentrificação”, pela
ocupação desordenada, pelos processos migratórios que redefiniram o lugar de culturas específicas, pela malha viária, pela
recomposição social e familiar.
Os jovens são o exemplo acabado da fragmentação social e da
pulverização dos interesses e demandas grupais. Dos anos 1980
aos dias de hoje, a família nuclear, composta por pai, mãe e
filhos, entrou em decadência e no Brasil diminuíram sua representação no período de 75% para 50%. A família que avançou no
campo aberto pela família nuclear foi a monoparental, onde
somente um dos pais reside com os filhos (no caso brasileiro, ao
redor de 20% das famílias, sendo que em 90% delas, são as mães
que residem com os filhos). Em grande parte dos casos, a mãe da
família monoparental trabalha numa extensa jornada e não tem
apoio familiar ou de contratados que a ajude na educação e
guarda dos filhos. A resultante foi a multiplicação de “pares de
idade”, a expressão inglesa para denominar as tribos juvenis que
se protegem e se formam. Pesquisas recentes indicam que o
vestuário, a linguagem e os valores são formados nestes agrupamentos ou comunidades fechadas de autoajuda. Nos últimos
anos, os agrupamentos juvenis se plasmaram nas redes sociais.
Encontraram o ambiente adequado.
Vejamos de perto este novo tipo de organização social, referência para a cultura e a relação juvenis.
A base deste relacionamento segue a lógica comunitária da
identidade afetiva e da adesão. Um amigo se relaciona com dois
outros que não se comunicam entre si. Forma-se, ao contrário dos
partidos políticos, uma lacuna neste tripé. A relação se dá por afeto
ou interesse comum, mas não se estabelece uma linha social
comum. Ao contrário, forma-se uma relação profundamente personalizada, nominal, onde se estabelece uma relação de confiança
alimentada pelo contato cotidiano ou frequente, não numa confiança
abstrata e racional. Troca de experiências e identidade de avaliação
e visão de mundo formam a base deste relacionamento.
Numa escala maior, o que se desenha em termos de uma
nova sociabilidade é a existência de vários núcleos semi-independentes em que parte se conecta a outro núcleo e parte não.
São rizomas já percebidos por Gilles Deleuze e Félix Guattari na
década de 1980, formando múltiplas ramificações e “bulbos” que
aparecem em qualquer parte desta longa extensão de relacionamentos entre comunidades.
134
Rudá Ricci
Mais recentemente, estudos sobre a dinâmica desta nova forma
de sociabilidade (como os produzidos pelo catalão Javier Toret ou o
capixaba Fábio Malini) indicam uma lógica de comunicação que se
fia por “autoridades” e principalmente “hubs”. Autoridades é a
denominação dos expoentes mais conhecidos publicamente, personalidades e experts que chamam a atenção de várias comunidades.
Contudo, ao contrário do que ocorria no século XX (o século das
multidões), não são eles que definem a ação e valores da longa
cadeia de comunidades. São os “hubs”, quase anônimos, que num
trabalho incansável de disseminação e provocação do diálogo no
interior das redes, multiplicam informações, geram comoção e articulam reações em cadeia. Os “hubs”, ao contrário das autoridades,
não criticam nem defendem claramente posições e impressões.
Apenas disseminam fotos, postagens de terceiros, informações.
Muitas vezes, perguntam sobre a avaliação ou impressão que os
membros de várias comunidades têm sobre dada informação ou
opinião e, assim, motivam uma cadeia de diálogos entre membros
de diversas comunidades, formando os extensos rizomas.
Os partidos políticos, com um pé no século passado, não
conseguem se inserir nesta lógica fluida, provisória, dinâmica, em
formação e recomposição permanente. Verticalizados, os dirigentes e comunicólogos partidários atacam os adversários e
defendem suas posições. Não sabem lidar com lacunas organizativas, com interação e formação processual de opinião. Mesmo
porque, a opinião foi formada em outra localidade, a comunidade
partidária, mais fechada que as juvenis.
A questão que fica é: partidos totais e estruturas verticais
conseguirão acompanhar sociedades tão dinâmicas, fluidas e
provisórias?
Para promover a reflexão sobre as respostas possíveis, indico
na tabela a seguir as diferenças mais agudas das duas formas de
organização, as do século passado e as juvenis, deste século:
Os protestos urbanos do século XXI, das Assembleias Populares argentinas de 2001 ao Occupy, passando pela Primavera
Árabe, a Revolução das Panelas (da Islândia, 2008), o M15 espanhol (2011 e 2012) e nossos junho de 2013 e março de 2015,
todos assumiram a lógica da organização social em rede descrita
na segunda coluna da tabela a seguir. Uma organização em cadeia,
altamente emocional, provisória, dinâmica.
A Europa inova na forma-partido
135
ORGANIZAÇÃO SOCIAL BUROCRÁTICA
ORGANIZAÇÃO SOCIAL EM REDE
Predomínio da ação coletiva unificada
em "ordem unida", baseada na disciplina,
autocontrole, senso de grupo e autoestima.
Predomínio da adesão pessoal e preservação da
individualidade dos componentes.
Ativistas seguem orientação da organização.
Ativistas aderem à organização ou mobilização
por convicção pessoal e por identidade afetiva
momentânea.
Ações coletivas objetivam atingir uma meta
ou efetivar um programa definido em eventos
deliberativos específicos ou pela direção da
organização.
Ações coletivas se vinculam a um sentimento
comum de indignação, injustiça e revolta.
Coletivo é representado por dirigentes e portavozes previamente conhecidos.
Coletivo pode ser representado por portavozes rotativos, escolhidos coletivamente
num momento específico, com curto tempo de
mandato.
O que parecia contradizer a lógica partidária acabou dando
lugar a uma nova forma-partido. A expressão mais acabada surgiu
na Europa. Em alguns casos, como na Grécia e Portugal, de
maneira ainda transitória. Algo com maior ruptura conceitual e
organizacional foi esboçado na Itália. Porém a mais surpreendente
novidade veio da Espanha, com o Podemos.
Quando a rede social se encontra com a ironia e o cinismo de
comunicólogos
Javier Toret, em sua análise sobre os gigantescos protestos
espanhóis ocorridos em 2011 e 2012 e sua caminhada para a
crítica ao campo institucional da ação política nos anos seguintes
(até desaguar no surgimento do Podemos, em 2014), sugere que a
passagem da rua para a política formal se deu na conjunção de
três camadas.
A primeira camada foi às ruas. Mas as ruas, segundo sua
análise, ganharam projeção nacional a partir das redes sociais.
Aliás, o cerco da grande imprensa, que não noticiava a escalada
de protestos urbanos que envolvia as principais cidades da
Espanha, foi quebrada pelas informações multiplicadas nas redes
sociais que acabaram por atingir a imprensa estrangeira.
136
Rudá Ricci
Ruas e redes sociais compuseram o alimento explosivo da
indignação urbana. Mas Toret sugere uma terceira camada organizativa que não se percebia até então: a televisão, na verdade,
um programa de debates organizado por jovens professores
universitários que ganhou o título de La Tuerka (cf. http://www.
latuerka.net/). Tal programa foi apresentado originalmente na
internet e seguiu a trajetória da Porta dos Fundos. Além do visual
juvenil dos apresentadores e seu forte tom irônico, os participantes, em especial o cientista político Pablo Iglesias, convidavam
jornalistas e personalidades de todas ideologias e os tratava com
muito respeito, embora sem nenhuma facilidade no questionamento que faziam. Assim, ampliavam seus seguidores, dos universitários aos seguidores dos convidados (mesmo os de ideologia
contrária, já que a entrevista era inteligente e respeitosa, promovendo o convidado e os entrevistadores), e se tornavam cada vez
mais assistidos até se tornarem um fenômeno nas redes sociais.
Ao mesmo tempo, era divulgado pelas cadeias da Asociación de
Televisiones Locales de la Comunidad de Madrid. Criado em 2010,
a primeira temporada começou em novembro daquele ano.
O fenômeno de La Tuerka repercutiu nas redes sociais e se
colou ás manifestações de 2011.
Mas houve uma inflexão nos protestos urbanos que facilitou a
convergência entre a crítica política e os protestos: o abraço no
Congresso Nacional, em 2012. Naquele ano, 50 mil manifestantes
abraçaram o parlamento espanhol e gritaram palavras de ordem
questionando a representatividade dos deputados e sugerindo
uma revolução política “desde os debaixo” em curso.
As três camadas (protestos de rua, redes sociais e televisão)
criaram uma dinâmica de comoção, comunicação social e reflexão
(neste último caso, tendo como motivador a televisão) que propiciaram a passagem da crítica à novidade institucional plasmada
no Podemos.
Em janeiro de 2013, surgiu uma primeira iniciativa política
que foi o Partido X (também conhecido como Partido del Futuro ou
Red Ciudadana Partido X). A experiência não foi tão exitosa, como
ocorreu com o Podemos, por vários motivos. Um deles foi justamente a ausência de um meio de reflexão. As redes sociais
emocionam e mobilizam, mas não geram organização. A televisão,
por ser um meio sem interação, exige um momento de maior
introspecção. Outros analistas, contudo, sugerem que o Podemos
teve maior abertura e envolvimento de movimentos sociais e orgaA Europa inova na forma-partido
137
nizações tradicionais, fazendo um link que o Partido X não
promovia. O Podemos atraiu rapidamente lideranças da esquerda
espanhola, como militantes da Esquerda Unida e trotskistas
mandelistas, além de autonomistas e ativistas de organizações
urbanas e redes sociais.
Em 2014, no início do ano, uma ação planejada lança o
Podemos, de maneira meteórica. O manifesto intitulado “Mover
ficha: convertir la indignación em cambio político” foi transformado num viral pela publicação digital Público, que era assinado
por 30 intelectuais, personalidades da cultura, do jornalismo e do
ativismo social e político, muitos sindicalistas e professores
universitários. De cara, o manifesto afirmava a intenção de participar das eleições europeias que ocorreriam quatro meses adiante,
em maio. Tal movimento se confundia (ou adotava como suporte)
o partido Izquierda Anticapitalista. O programa exigia o caráter
público da educação e da saúde, aumento dos salários e reindustrialização da Espanha, criação de habitações sociais e oposição à
restrição à lei do aborto, além de defesa da migração estrangeira e
saída da Espanha da OTAN. Também defendia a autonomia da
Catalunha para decidir sobre sua independência. A crítica radical
à política de austeridade e o perfil ousado e jovial de suas lideranças ganharam as ruas e redes sociais. Nas eleições de maio
para o Parlamento Europeu, o Podemos se insurgiu como quarta
força espanhola, elegendo cinco deputados e conquistando 7,98%
dos votos.
Dois meses depois, em julho, o Centro de Investigaciones
Sociológicas (CIS) divulgava pesquisa em que o Podemos aparecia
como segunda força política em intenção de voto popular, superando o PSOE e ficando 0,9% atrás do PP. PSOE e PP polarizam
ideologicamente a política espanhola numa situação similar à que
ocorre com PT e PSDB no Brasil.
Em outubro de 2014, a Metrocospia informava que Podemos já
havia superado o PP, aparecendo como primeira força em intenção
de votos na Espanha. Um mês depois, este partido-fenômeno já se
insurgia com 22% das intenções de voto para as eleições de maio
de 2014 (PSOE aparecia com 13% e PP com 10%).
Qual a peculiaridade desta nova forma-partido?
Há, sem dúvida, uma questão geracional que motiva a
passagem da rua para o partido, no caso espanhol. Também é
138
Rudá Ricci
relevante a profunda crise econômica que afeta milhares de famílias de classe média que perderam suas moradias (em virtude do
desemprego que atinge quase 50% dos jovens até 30 anos de
idade) e bens familiares. É comum ouvir analistas espanhóis afirmarem que a rebeldia crescente se deve a uma jovem família de
classe média ter que pedir guarida para seus vizinhos ou parentes
nem sempre próximos para poder garantir um teto.
Mas há um discurso e práticas novas.
O “núcleo duro” do Podemos é composto por jovens comunicólogos e professores universitários. Vários deles prestaram consultoria ao eixo dos países bolivarianos, como Equador, Bolívia e
Venezuela. Não são neófitos em política. Atraíram a Esquerda
Unida, fundada em 1986 e que fundiu o Partido Comunista Espanhol, a Esquerda Republicana, a Juventude Comunista e os Ecossocialistas, entre outros.
Também não se deve subestimar a força da somatória das
manifestações com intervenções nas redes sociais e o sucesso
excepcional do La Tuerka.
Mas há ainda mais.
Os dirigentes do Podemos sabem trabalhar com a ironia e o
cinismo, o que dá um tom jovial e também quase descompromissado, criando uma linha de identificação dos “de baixo” contra as
“castas” econômicas e políticas, termo muito popularizado na
Espanha, Grécia e Portugal, desde 2010.
No lançamento do esboço do Programa Econômico do Podemos,
no final de 2014, o PSOE acusou-o de subtrair seu programa de
2010. No dia seguinte, com um largo sorriso irônico no rosto,
como que deixando claro que se tratava de uma armadilha midiática que os experientes dirigentes socialistas se deixaram envolver,
Pablo Iglesias afirmava que não tinham culpa se os socialdemocratas não tinham cumprido as promessas de 2010.
No seu penúltimo livro, Disputar la Democracia, publicado em
2014 e tendo o agora primeiro ministro grego, Alexis Tsipras, como
prefaciador, Iglesias discorre sobre três temas dentre tantos da
ciência política. Pergunta se a política é um jogo de xadrez ou
boxe, aprofunda o conceito de realpolitik e disserta sobre o conceito
de hegemonia. Pela análise, percebe-se que a utopia das ruas se
plasma no Podemos como ironia e desconfiança cínica. O que cria
uma identidade com o manifestante e cidadão que não crê mais
nas promessas dos partidos hegemônicos.
A Europa inova na forma-partido
139
Iglesias é taxativo. À página 34, afirma: “a política do boxe
aparece em toda sua crueza nas relações internacionais. Os exemplos são incontáveis. (...) A política do boxe [é]: ganha o mais forte.”
Sobre a realpolitik invoca o filme A Batalha de Argel. Analisa a
passagem em que o chefe da Frente de Libertação Nacional é
capturado e questionado sobre os motivos do uso de cestas-bomba
contra a população civil. A resposta é uma oferta de troca de
armamento, afirmando que o Exército de Libertação se sentiria
encantado em bombardear a França com aviões. E, arremata: “a
ética da responsabilidade [em Weber] que move qualquer comportamento político, a saber, a defesa do próprio projeto independentemente de seu fundamento ideológico [sugere que] a diferença
entre um terrorista e um patriota é muitas vezes a diferença entre
a vitória e a derrota” (p. 44 e 45).
Finalmente, sobre o conceito de hegemonia destaca: “Gramsci
compreendeu que o poder das classes dominantes não só se exerce
mediante instrumentos coercitivos ou relações econômicas derivadas do processo produtivo, mas também através do controle do
sistema educativo, da religião e dos meios de comunicação e que,
portanto, a cultura é um terreno crucial da luta política. (...) Isto
quer dizer que a política não só está no Estado. Às vezes, está
tanto dentro, quanto fora dele (...).” (p. 47)
Talvez, por este motivo, os líderes do Podemos não falam em
esquerda ou direita. Falam em “os debaixo” e das “castas” (econômicas e políticas).
Talvez, esta seja a explicação para entendermos porque o
Podemos se lança às eleições europeias sem direção e sem filiados
(tinha, afinal, quatro meses de existência).
Este, talvez, seja o motivo para compreendermos porque a
organização de base sejam Círculos de ativistas (algo próximo dos
círculos de cultura criados por Paulo Freire) e porque suas lideranças decidiram não competir com o nome do partido (mas com
nomes alinhados ao Podemos) nas eleições municipais deste ano
(alguns dirigentes afirmam que não teriam controle sobre os
candidatos, dada a filiação em massa dos últimos meses).
Talvez, pelo mesmo motivo, esteja aí a explicação de Iglesias
publicar um segundo livro, em 2014, tendo como mote a análise
de Game of Thrones. A coletânea soma cientistas políticos, feministas, ambientalistas, educadores, juristas, entre outros, que
140
Rudá Ricci
analisam a série muito comentada entre jovens e redes sociais a
partir de seu ângulo de leitura profissional ou militante.
Na capa, Pablo Iglesias aparece sentado no Trono do Príncipe,
nos trajes que o tornaram conhecido a partir do La Tuerka: camisa
com mangas arregaçadas e gravata solta no pescoço, com a barba
pouco aparada e o indefectível rabo de cavalo.
Não se trata de um jogo político ingênuo e basista. Trata-se
de um jogo midiático que a velha forma partido não sabe ainda
como jogar.
Podemos é um partido fluido, carismático, que atua sob forte
pressão, articulado às ruas e redes sociais, irônico e cínico nas
relações com lideranças tradicionais de seu país.
E assim, se articula com o Syriza grego, o Bloco de Esquerda
português e tantas outras alianças regionais. Uma frente política
de outro tipo. Com uma outra geração.
A Europa inova na forma-partido
141
Podemos, o fim de uma época
do sistema partidário espanhol
Joan Alcazar
N
os dias 24 e 25 de fevereiro, ocorreu no Parlamento espanhol, em Madri, um debate sobre a situação nacional. Na
primeira parte da sessão, evidenciou-se que não havia, por
parte do governo, a menor intenção de debater com a oposição: o
primeiro ministro Mariano Rajoy, em sua intervenção inaugural,
limitou-se a um discurso que colocava a Espanha como o “país
das maravilhas”, uma Alemanha do Sul. Nem mais, nem menos.
Um discurso somente para aqueles já convencidos, desligado do
que foi o último ano político do país. O então líder da oposição, o
socialista Pedro Sánchez, o respondeu com dureza, sintetizando
o que, a seu juízo, havia sido o ano em exercício do governo que
se avaliava: “Precariedade, impostos e Bárcenas” (em alusão ao
ex-tesoureiro do PP e vértice da corrupção que atinge todo o partido). No debate, Rajoy chegou a perder as formalidades da cortesia
parlamentar, o que indicava o quanto sua irritação corria em paralelo com a debilidade de seu discurso.
Outro dado a se levar em consideração é que o debate apresentou um déficit importante, porém inevitável, uma vez que não
participaram os líderes dos partidos emergentes: Pablo Iglesias y
Albert Rivera. Este handicap, claro, se superará quando houver
novas eleições legislativas, dado que agora nenhum deles é deputado em Madri. Tudo isso evidencia a distância que há entre o
atual Parlamento espanhol e a realidade partidária do país e,
ainda, o quanto é delicada a situação nacional. Com efeito, no
mesmo dia 25, o líder do Podemos realizou um encontro multitudinário, profusamente difundido por todos os meios de comunicação, no qual ele se reivindicou como o autêntico líder da
“oposição real” e replicou o discurso que Rajoy havia proferido
no Parlamento.
Independentemente da opinião que se tenha sobre a nova
formação política e sobre seu líder, é indiscutível que a sombra do
Podemos está, nesse momento, muito alargada. Convém recordar
que é um novo partido político que passou, em menos de 12 meses,
da não existência para uma alternativa de governo nos distintos
níveis: local, regional e nacional.
142
Boa parte dos cidadãos está vivendo este tempo de mudanças
com uma sensação de crescente vertigem: realmente não se sabe
se uma parte importante do velho realmente irá morrer e algo
efetivamente novo irá realmente nascer. Esta síndrome é reforçada pelo modo como está sendo gerenciada a crise da União
Europeia e, nesse cenário, o que ocorre e o que ocorrerá na Grécia
incidem com muita intensidade na conjuntura espanhola.1
Centremo-nos, não obstante, no que está se passando na
Espanha e, especialmente no que significa e pode significar a
irrupção desta nova força partidária que se chama Podemos.
Façamos uma brevíssima retrospectiva.
No dia 26 de dezembro, foi celebrado o último Conselho de
Ministros de 2014. Após seu término, Mariano Rajoy compareceu
perante os meios de comunicação. Seu discurso foi o esperado: um
otimismo impermeável à realidade das ruas, um abuso da estatística em matéria econômica e das evasivas habituais diante das
perguntas mais delicadas dos jornalistas. Algumas horas antes, no
dia 24, à noite, o rei Felipe VI havia aparecido na televisão pública
para dirigir-se aos espanhóis, como é tradicional. Sua intervenção
se baseou em três eixos: a crise, a corrupção e a situação catalã.
Como se sabe, o rei fala em certa consonância com o Executivo, já
que reina, mas não governa. Portanto, seu discurso foi parecido ao
anterior de Rajoy, talvez com um pouco mais de afeto; um sentimento que o presidente é incapaz de transmitir.
Após a aparição de Rajoy, na coletiva de imprensa, no dia 26,
Pedro Sánchez, secretário-geral do Partido Socialista, fez o mesmo:
abordou os mesmos três pontos do rei e do presidente, rechaçando com energia o infundado otimismo deste, exigindo que não
falasse da recuperação econômica em vão, tendo ainda assegurado que, em nenhuma hipótese, haverá na Espanha um governo
de coalização Partido Popular-Partido Socialista Operário Espanhol (PP-PSOE), nas próximas eleições – uma ideia recorrente no
mundo político, nos últimos meses, que Rajoy voltou a deixar
transparecer em sua intervenção â imprensa.
No dia 27, na página oficial do Podemos, podia-se ler o seguinte:
“O bipartidarismo afunda e nenhum pacto entre os partidos da
casta poderá salvá-lo e trazê-lo à tona novamente. Instabilidade é
aplicar políticas de austeridade que empobrecem a maioria da
população, ao passo que uma minoria enriquece à custa de todos.
1 Sobre esse tema, consulte nosso texto: <http://elcronistaperiferico.blogspot.
com.es/2015/02/el-harakiri-de-los-estupidos-segun.html>.
Podemos, o fim de uma época do sistema partidário espanhol
143
As velhas receitas políticas já não funcionam e, pela primeira vez
em décadas, abre-se a oportunidade de recuperar o país pelas e
para as pessoas”.
Contrariamente ao que foi dito por Rajoy ou por Sánchez,
argumentos de que se pode desconfiar facilmente, o escrito na
página do Facebook do Podemos, poderia ser subscrito por milhões
de espanhóis. Isso demonstra que, neste momento político, o
maior problema dos grandes partidos é a credibilidade. Somente
aqueles ligados a interesses determinados e os que têm uma fé
ideológica à prova de fogo são capazes de conceder-lhes a confiança
que perderam abundantemente, sobretudo desde que começaram
os primeiros efeitos da crise, há sete anos. O PSOE primeiramente
negou a existência da crise, depois a aceitou rangendo os dentes
e, finalmente, pactuou com o PP uma reforma constitucional expedita, bem como a aplicação das primeiras medidas austeras que
lhe exigiram Berlim e Bruxelas. Não sabemos se a história absolverá a Rodríguez Zapatero, porém é improvável.
Atualmente, a lembrança do ocorrido em maio de 2010 é um
pesado fardo. Trata-se de uma data fatídica para o socialismo
espanhol. O governo de Zapatero rompeu seu programa e seu
compromisso com os cidadãos, porém não considerou sua própria
demissão. Talvez se o tivesse feito, as coisas teriam sido muito
distintas, porém não o fez. Continuou dançando ao som que lhe
marcava a Troika (Comissão Europeia, Banco Central Europeu e
Fundo Monetário Internacional), aparentemente insensível
perante os estragos provocados pelas medidas de ajuste. A reforma
expressa da Constituição (do art. 135, sobre a estabilidade orçamentária), sacrossanto documento convertido em algo como as
Tábuas de Moisés para ambos os partidos (ao menos na época,
porque o PSOE de hoje está em outra lógica), cuja modificação se
pactuara por telefone em uma conversa entre Zapatero e Rajoy, foi
o tiro de misericórdia do bipartidarismo na Espanha.
Naquele então, PSOE e PP contavam com 90% dos deputados
e senadores no parlamento espanhol, e somente as minorias
nacionalistas, basca e catalã, tinham um peso relativo a considerar nas Câmaras. Nas últimas pesquisas de intenção de voto,
PP e PSOE estão abaixo de 50% dos sufrágios, o que não é senão
a certificação do que está escrito na página do Facebook do
Podemos: o bipartidarismo está falido na Espanha.
A corrupção se tornou insuportável para os cidadãos golpeados
pela crise, com os fortíssimos cortes nos gastos públicos, com o
144
Joan Alcazar
desemprego em cifras impossíveis de aceitar e com milhares de
jovens bem formados recorrendo à imigração para qualquer lugar
do mundo em que encontrem trabalho.
As cifras da corrupção na Espanha mostram que há mais de
1.900 pessoas imputadas em causas abertas e ao menos 170
foram condenadas por este tipo de delito na última legislatura.
Não obstante, a maioria destes condenados não está presa, seja
porque não lhes impuseram uma pena de prisão, seja porque
somente foram cassados ou multados ou porque ainda possuem
recursos pendentes. Entre os imputados está a própria irmã do rei
Felipe VI (a princesa Cristina) e ainda há ex-ministros, ex-presidentes, prefeitos, empresários, altos cargos partidários e até
algum sindicalista. Entre os atualmente encarcerados, excetuando a Família Real (no momento, tudo pode acontecer), encontramos membros dos mesmos coletivos.
É preciso colocar essa corrupção em contato com a dureza da
crise, a que Rajoy disse que havia passado. Mente. Contrariamente ao que afirmou, na coletiva de imprensa, a pobreza
aumentou, as rendas familiares diminuíram, assim como a população ativa e as taxas de proteção social.
Foi nesse cenário que surgiu uma nova organização partidária.
Possivelmente por isso, não são poucas as vezes que acusam o
Podemos de ser, precisamente, uma proposta populista.2
Os vínculos políticos e profissionais que alguns de seus líderes
mantiveram por anos com a Venezuela, de Hugo Chávez, e o explícito reconhecimento de seu trabalho político, abonam a tese. Ainda
mais que o afastamento que se inicia em relação ao regime de
Nicolás Maduro é, todavia, muito insuficiente e demasiado ambíguo.
Ademais, a cobrança de uns suculentos e pouco claros honorários
como assessor do Banco da ALBA por parte de um dos dirigentes
fundacionais, Juan Carlos Monedero, gerou toda uma campanha
de acusação e derrubada da organização por parte da direita política e midiática e, também, por parte de uma esquerda danificada
pela irrupção dos simpatizantes e apoiadores de Pablo Iglesias.
Mesmo assim, o novo partido tem apenas alguns meses de
vida, somente alguns rostos conhecidos e carece de experiência de
governo: atualmente, pode-se dizer que está quase imaculado.
A partir das análises acadêmicas, sabemos que a organização se
2 Sobre este tema, consultar nosso texto em <http://elcronistaperiferico.blogspot.
com.es/2014/10/pueblos-y-populismos.html>.
Podemos, o fim de uma época do sistema partidário espanhol
145
encaixa bastante bem nos perfis reconhecidos com o que
chamamos de organizações populistas: uma liderança carismática clara, uma composição policlassista e heterogênea, um
confesso interesse pela movimentação das ruas, uma ideologia
eclética, que exalta os setores médios e baixos (no Podemos geralmente não se fala de “povo”, e sim das “gentes”, antítese da
“casta”), que é explicitamente antielitista e/ou antiestablishment,
e, finalmente, um projeto econômico redistributivo em benefício
dos setores mais desfavorecidos.
Pode-se discutir se o Podemos se encaixa ou não no molde.
Porém, o certo é que este debate, na fase que atravessamos, não
importa em absolutamente nada à imensa maioria dos cidadãos.
Seus líderes serem mais ou menos amigos do Bolivarianismo ou
terem recebido dinheiro de Hugo Chávez em troca de assessoria
política não os preocupa em (quase) nada. E mais: quanto mais
aqueles que têm pouca ou nenhuma credibilidade lhes atacam por
essa via, quanto mais os denigrem e os acusam de ser isto ou
aquilo, mais o Podemos cresce nas pesquisas3.
Boa parte dos cidadãos pode ainda pensar que não deixa de
ser engraçado que justamente aqueles que não cumprem seus
programas, enganam os eleitores, culpam os outros por sua ineficácia e que governam ao sabor das pesquisas, acusem o novo
partido de populista.
Mas o que a maioria dos cidadãos percebe é que estamos em
um cenário de fim de um ciclo. Ademais, esses mesmos cidadãos
observam com clareza outra coisa que a muitos causa regozijo e é
inclusive estimulante: Podemos espalhou pânico entre os partidos
e os políticos tradicionais e entre os grandes empresários e os
banqueiros acostumados ao negócio fácil, à convivência ilícita.
Aquele que era o plácido reservatório político espanhol, tranquilo
como um cemitério bipartidário, registra nesses momentos ondas
de mais de vinte metros e ventos que sopram como furacões.
A esquerda tradicional, mais ou menos vinculada ao histórico
Partido Comunista da Espanha, vive sob um ataque de nervos.
Podemos está comendo literalmente um terreno que lhe considerava próprio, por mais escasso que tenha sido em termos de representação política (por um sistema eleitoral muito injusto, há que
ser dito). A Esquerda Unida, seu referente eleitoral, está se debatendo entre rejeitar o Podemos ou aliar-se com ele, o que tem gerado
3 Sobre este assunto, consultar nosso texto em <http://elcronistaperiferico.blogspot.com.es/2014/11/podemos-y-los-efectos-de-la-revolucion.html>.
146
Rudá Ricci
uma fortíssima discussão interna que, como ocorreu em Madri, fez
que com que conhecidos dirigentes abandonassem a organização.
O que sobra das formações regionais à esquerda, particularmente os independentistas bascos e catalães, levam as mãos à
cabeça. O Euskobarômetro acaba de situar o Podemos como a
segunda força no país Basco, com escassa distância do tradicional
Partido Nacionalista Basco e, por consequência, dos independentistas de Bildu. E isso com PSE-PSOE e PP bastante combalidos.
Na Catalunha, após o desembarque dos de Pablo Iglesias, as
pesquisas situam o Podem (a filial autóctone) com uma expectativa de voto que disputa a primazia com a própria Convregència i
Unió (os nacionalistas tradicionalmente moderados, que hoje
passaram ao independentismo), à frente da Esquerda Republicana de Catalunha, os soberanistas tradicionais que sensivelmente não sabem o que está se passando. Enquanto isso, os
socialistas catalães e o PP regional aparecem igualmente combalidos. A palavra terremoto ainda seria suave para descrever o que
esses resultados podem significar, caso se materializem.
Se os partidos bascos, especialmente os abertzales, se apressaram em negar a validade do Euskobarômetro, os catalões soberanistas qualificaram Pablo Iglesias como Cavalo de Troia do Estado
e lerrouxista – um insulto político contundente, em alusão a um
político republicano (Alejandro Lerroux) do primeiro terço do século
passado, que combinava radicalismo verbal, boa oratória, demagogia, corrupção e espanholismo inequívoco. Para muitos soberanistas, Podemos seria pouco mais que o velho “regeneracionismo”
espanhol e espanholista atualizado por uma operação de lifting.
O que está acontecendo, então, depois da emergência do
Podemos? Apontaremos duas hipóteses que se pretendem explicativas e que precisam ser validadas mais adiante, fundamentalmente
quando o discurso do Podemos se plasmar em programas eleitorais
(as eleições municipais e autônomas serão em maio próximo),
quando conheceremos o nome e a cara dos candidatos, e quando os
cidadãos decidirão qual papeleta irão colocar na urna.
Primeira hipótese. É tão grande o repúdio, a aversão e a raiva
acumulada contra os partidos majoritários (denominados pelo
Podemos de forma desdenhosa e injusta, por sua generalização,
como A Casta), que constituem uma legião aqueles que querem
dar um bom soco no sistema que eles representam, esclerosado,
insensível e incapaz, além de corrupto. A boa sanidade cívica do
Podemos, hoje, colocou o sistema vigente de pernas para o ar; deu
Podemos, o fim de uma época do sistema partidário espanhol
147
um murro no tabuleiro e nada, nada voltará a ser como antes de
sua irrupção. Atualmente, Podemos é muitas coisas. Poderíamos
nos atrever a dizer que, para cada possível eleitor, é o que cada
um deles quiser que seja. Pode ser visto como um partido regenerador, saneador, vingador, justiceiro, renovador da elite política,
modernizador da ideia de Espanha ou agente de uma mudança
profunda das regras do jogo, uma espécie de parteiro de uma nova
época. Podemos é, para muita gente, a ilusão política de que a
realidade atual é reversível. Podemos tem feito muitos acreditarem
que é possível governar de outra forma, sem esquecer-se das
gentes e contando com elas, sem depreciá-las, sentindo o que
estas gentes sentem e, especialmente, o que estas gentes sofrem.
E, ademais, essa nova forma de governar pode ser feita sem roubos
e sem a corrupção dos representantes políticos. No futuro, esta
hipótese se validará ou não, porém os entrevistados que apostam
no Podemos acreditam nela.
Segunda hipótese. Digam o que disserem os nacionalistas
periféricos, e sem negar-lhes nem um centímetro da carga do
nacionalismo banal (o cotidiano, na forma de Michel Billing) e,
inclusive, do nacionalismo espanholista explícito que o Podemos
sustenta, talvez não tenham entendido que uma parte não menor
de seus apoios nos últimos tempos (desde que a crise se fez insuportável), não é tanto no seu sentido estrito, mas uma expressão
de repúdio à nefasta política imposta por Madri. O Podemos
sustenta que a Catalunha e os catalães têm sido ofendidos e
maltratados pelos governos da Casta, que o sistema de 78 (em
alusão à Constituição) está obsoleto, e – além disso, importantíssimo – que sim, que as gentes têm o direito a decidir se a Catalunha deve ser ou não um Estado independente, mas que também
têm que decidir que tipo de política social exigem e que papel
jogará o Estado em suas vidas. Crer que todo o apoio às impressionantes mobilizações impulsionadas pelos soberanistas era
independentismo nato pode ter sido um importante erro de
cálculo. Os partidários de um divórcio – que seria muito traumático para todos – pode ser que sejam bem menores que os partidários de compatibilizar os direitos e singularidades indiscutíveis da
nação catalã dentro de um Estado plurinacional. Talvez uma
reforma constitucional que estabeleça um marco federal deva ser
a alternativa que poderia contar com mais apoios.
(Tradução de Marcus Vinícius Furtado da Silva Oliveira)
148
Rudá Ricci
IX. Ensaio
Autores
Fausto Matto Grosso
Engenheiro civil, professor da Universidade Federal do Mato Grosso do Sul.
Michel Zaidan
Professor do Departamento de História da Universidade Federal de Pernambuco.
O fenômeno das redes
Fausto Matto Grosso
A
palavra rede tem origem no latim rete-retis, associada à
ideia de um entrelaçamento de fios, cordas, cordéis, arames
etc.; com aberturas regulares, fixadas por malhas, formando uma espécie de tecido. Nos diversos ramos do conhecimento,
a palavra tem sido usada como “metáfora” para representar sistemas complexos e flexíveis, compostos de polos (nós) e de relações
entre eles. Biólogos frequentemente empregam o termo quando
se referem às teias alimentares e aos ciclos de vida. “Sempre que
olhamos para a vida, olhamos para as redes” (CAPRA, 1996).
Atualmente, o conceito de rede tem sido amplamente utilizado
nas ciências sociais e nas teorias das organizações, e a forma-rede
tem sido usada de maneira inovadora na estruturação de processos
de interação social.
Como mecanismo de interação social, as redes sempre existiram, desde os tempos em que surgiu a convivência entre os
homens em sociedade, principalmente naqueles campos onde
predominava a cooperação.
O impulso atual na utilização do termo rede tem como pano de
fundo o processo de profundas transformações originadas pela
revolução científico-tecnológica e pela globalização, trazendo
consigo a redefinição do papel do Estado-nação.
No plano científico-tecnológico, como assinala Franco (2006),
a fibra ótica, o laser, a telefonia digital, a microeletrônica e os
satélites de órbita estacionária estão possibilitando a conexão em
151
tempo real (sem distância) entre o local e o global e, assim,
tornando mais visíveis as redes sociais e os processos associados
a elas, ao mesmo tempo em que estão acelerando e potencializando seus efeitos.
Este avanço da base tecnológica, a partir da segunda metade
do século XX, tem mudado rapidamente paradigmas da sociedade
e tem merecido, de diversos autores, caracterizações como “sociedade pós-industrial” (LYOTARD, 1998), “sociedade da informática” (SCHAFF, 1995), “sociedade do conhecimento” (TOFFLER,
1990), “sociedade tecnizada” (MACHADO, 1993) ou “sociedade em
rede” (CASTELLS, 1999).
A globalização – impulsionada pela combinação da revolução
científico-tecnológica com a crise do Socialismo Real e com o esgotamento do Estado do Bem-Estar Social – trouxe consigo a
exigência de novas formas de organização da economia, das
empresas, e do Estado-nação. Este processo foi percebido com
diferentes visões. De um lado, o neoliberalismo apontava a necessidade do “Estado-mínimo”; do outro, importantes setores do
pensamento democrático apontavam as potencialidades emancipatórias do novo contexto, com a possibilidade de criação de uma
sociedade civil mundial como forma da afirmação da sociedade
perante os Estados.
Este mesmo período é também marcado por uma profunda
crise nos instrumentos de representação surgidos nos marcos dos
antigos paradigmas da sociedade industrial, como os partidos, os
sindicatos e outras formas tradicionais de articulação de interesses e reivindicações. É nesse contexto que se expande a ideia
de redefinição das funções entre o setor governamental, o mercado
e o setor associativo, este último passando a ser chamado de
“terceiro setor”.
O conceito de terceiro setor nasceu, portanto, reforçado por
uma dupla convergência ideológica, como se referem Bernardi e
Malvasi (2006), “estratégia complementar ao neoliberalismo” ou
“estratégia emancipatória em relação ao capitalismo”. O terceiro
setor é aquele onde “indivíduos de uma dada sociedade se agrupam
espontaneamente em torno de organizações autogestionadas de
fins públicos ou coletivos, sejam elas formais ou não, e se articulam em redes para atender aos mais variados interesses sociais”
(BROWN, 2005).
As redes passam a representar, assim, novas formas organizativas surgidas nesse novo contexto civilizatório de aceleração dos
152
Fausto Matto Grosso
processos de mudanças. Sua superioridade como instrumento de
organização do terceiro setor se encontra, exatamente, na extrema
elasticidade que possuem de se adaptar à realidade em um
ambiente de transformações continuadas das sociedades contemporâneas, sob o paradigma informacional.
Conceitos de redes
Na literatura sobre o assunto, muitas e diferenciadas formulações podem ser encontradas para caracterizar as redes.
Para Castells (1999), “rede é um conjunto de nós interconectados” e avança: “redes são estruturas abertas capazes de expandir
de forma ilimitada, integrando novos nós desde que consigam
comunicar-se dentro da rede, ou seja, desde que compartilhem os
mesmos códigos de comunicação (por exemplo, valores ou objetivos de desempenho). Uma estrutura social com base em redes é
um sistema aberto altamente dinâmico, suscetível de inovação,
sem ameaças ao seu equilíbrio”.
Para Bernardi e Malvasi (2006), “redes são sistemas organizacionais capazes de reunir indivíduos e instituições, de forma
democrática e participativa. As redes se sustentam pela vontade e
afinidade de seus integrantes, caracterizando-se como um significativo recurso organizacional, tanto para relações pessoais quanto
para a estruturação social”.
Martinho (2003) faz um conjunto de caracterizações em que
destaca o caráter dinâmico das redes e a importância das relações
de rede para o coesionamento do sistema. Assim, afirma que rede
é um “objeto fluido e impermanente...”, “de caráter relacional,
portanto, a rede está, nunca é...,” “a ordem, na rede, se faz e se
desfaz no movimento das relações”, “a matéria-prima principal da
rede... é a relação”, “... uma emergência, não uma entidade...
arranjo orgânico de devires”. Buscando distinguir as redes das
formas tradicionais de organização, o mesmo autor afirma que
“esse modelo se opõe à noção tradicional de organização identificada com a estabilidade, a reprodutibilidade, a padronização, a
linearidade e o controle”, “não um organismo, mas vários”. Realçando as potencialidades desse tipo de organização, diz que “redes
são fábricas de possibilidades, porque as relações nada mais são
do que possibilidades em latência..., relacionamentos são caminhos por onde trafegam as oportunidades”.
O fenômeno das redes
153
Segundo Whitaker (1993), “rede é um sistema de nós e elos
capaz de organizar pessoas e instituições, de forma igualitária e
democrática, em torno de um objetivo comum”. Os elos representam a troca de informações e a comunicação entre os atores
sociais que formam um grupo, conjunto de pessoas e organizações conectadas pela intencionalidade de planejar ações conjuntas
para o atendimento às necessidades de uma localidade. Os nós
representam o momento da composição, do comprometimento em
torno da causa comum, que formam subgrupo(s) condensado(s)
em propostas para a implementação de ações planejadas.
Nesta concepção, as redes são uma forma de organização que
implica em conteúdo de natureza emancipatória e não outro.
Redes são a tradução, na forma de desenho organizacional, de
uma política de emancipação. Não pode haver distinção entre os
fins dessa política e os meios de empreendê-la.
Outro aspecto de interesse é a observação de que duas perspectivas podem ser encontradas no tratamento das redes: a “utilização
estática” e a “utilização dinâmica” (LEROY-PINEAU, 1994, apud
MARTELETO, 2001). A primeira é a forma de análise da Sociologia
e outras ciências, que exploram a “rede estrutura” – nós e ramificações – para poder entender a dinâmica da organização social. Para
os pesquisadores, trata-se de uma nova metodologia.
Já os grupos sociais fazem da “utilização dinâmica” uma estratégia de ação no nível pessoal ou grupal, para gerar instrumentos
de mobilização de recursos. Para os grupos trata-se de explorar
novas possibilidades de articulações.
Tipologia de redes
Inúmeros são os contextos em que o termo “rede” é empregado, desde as redes de relacionamentos pessoais, as redes corporativas, as redes de marketing, as redes de máquinas e as redes
sociais, esta última de interesse mais direto nesta análise.
A internet pode ser encarada como híbrida, pois interligando
máquinas, conecta pessoas em práticas de cooperação, de sorte
que, estudando-a, pode-se compreender a diversidade das conexões ocultas que existem nas redes sociais. Mas isso não significa
que seja a mesma coisa.
154
Fausto Matto Grosso
Por outro lado, as redes se constituem em estruturas
complexas, em processos de constantes modificações e desdobramentos, que apresentam graus variados de especializações.
Segundo a classificação apresentada no site da Rede de Informações para o Terceiro Setor (RITS) podemos ter:
• Redes temáticas – se organizam em torno de um tema,
segmento ou área de atuação das entidades e indivíduos
participantes, podendo ser genéricas (ex.: meio ambiente,
infância etc.) ou específicas (ex.: reciclagem, desnutrição
infantil).
• Redes regionais – têm em uma determinada região ou
sub-região o ponto comum de aglutinação dos parceiros:
um estado, um conjunto de municípios, um bioma, uma
cidade, um conjunto de bairros etc.
• Redes organizacionais: vinculadas a uma entidade suprainstitucional – isto é, que congrega instituições autônomas
filiadas (federações, confederações, associações de entidades, fóruns etc.) ou compostas, por exemplo, de várias
unidades autônomas e/ou dispersas territorialmente.
Convivendo com as formas “puras” dessa tipologia, existem
inúmeras situações híbridas formadas pela adaptação das formas
organizativas aos problemas e questões concretas em torno das
quais se agregam ações dos atores sociais e organizações.
As redes podem assumir diversas configurações relativas ao
seu objetivo, constância, padrão de formação etc.
Segundo Martinho (2003), a maioria das redes da sociedade
civil brasileira são redes de trocas de informação, mas essa
função é apenas uma entre tantas atividades que realizam. Este
tipo de rede também desenvolve pesquisas e estudos; estabelece
e conduz processos de interlocuções e negociações políticas;
realiza o acompanhamento de políticas públicas; promove
processos de formação e capacitação; faz campanhas publicas de
sensibilização, esclarecimento e mobilização; atua na defesa de
direitos sociais e causas coletivas; capta e distribui recursos;
presta serviços; e, em alguns casos, como o das redes de socioeconomia solidária, realiza mesmo atividades de produção, circulação e até de regulação econômica.
O fenômeno das redes
155
Fundamentos e paradigmas de redes
As redes têm como elementos coesionadores a vontade e a
convergência de propósitos de seus integrantes. Por isso, articular
uma rede significa buscar parceiros que se comprometam com
valores e declaração dos propósitos do coletivo (missão – para que
a rede existe?).
Há alguns parâmetros que norteiam a interação e se constituem uma espécie de código de conduta para a atuação em rede.
Segundo Rits (2008), os elementos que articulam e garantem
unidade de uma rede são:
• Pactos e padrões de rede: pressupõe identidades e padrões
a ser acordados pelo coletivo responsável. É a própria rede
que vai gerar os padrões a partir dos quais os envolvidos
deverão conviver.
• Valores e objetivos compartilhados: o que une os diferentes membros de uma rede é o conjunto de valores e
objetivos que estabelecem como comuns, interconectando
ações e projetos.
• Participação: uma rede só existe quando em movimento.
Sem participação, deixa de existir. Ninguém é obrigado a
entrar ou permanecer numa rede. O alicerce da rede é a
vontade de seus integrantes.
• Colaboração: entre os integrantes deve ser uma premissa
do trabalho. A participação deve ser colaborativa.
• Multiliderança e horizontalidade: uma rede não possui
hierarquia nem chefe. A liderança provém de muitas fontes.
As decisões também são compartilhadas.
• Conectividade: só quando estão ligados uns aos outros e
interagindo é que indivíduos e organizações mantêm uma
rede.
• Realimentação: a informação circula livremente, emitida de
pontos diversos, sendo encaminhada de maneira não linear
a uma infinidade de outros pontos, que também são emissores de informação.
• Descentralização e capilarização: uma rede não tem centro,
ou melhor, cada ponto da rede é um centro em potencial.
Uma rede pode se desdobrar em múltiplos níveis ou
segmentos autônomos – “filhotes” da rede –, capazes de
156
Fausto Matto Grosso
operar independentemente do restante da rede, de forma
temporária ou permanente, conforme a demanda ou a
circunstância. Sub-redes têm o mesmo “valor de rede” que
a estrutura maior à qual se vinculam.
• Dinamismo: uma rede é uma estrutura elástica, dinâmica,
cujo movimento ultrapassa fronteiras físicas ou geográficas. Cada “retrato” da rede, tirado em momentos diferentes, revelará uma face nova.
Estrutura e funcionamento de redes
Conforme Bernardi e Malvasi (2006), os modelos de hierarquia
e de gestão do terceiro setor diferem daqueles derivados da lógica
do mercado e do Estado, demandando mecanismos de
maior participação.
De maneira geral, o terceiro setor se organiza de forma a
permitir maior participação dos atores envolvidos, estrutura policêntrica e parcerias entre os três setores da sociedade. A efetivação desses princípios requer um novo modelo: as redes.
A estruturação das redes necessita de definições claras de sua
Carta de Princípios, para que sejam estabelecidos os pactos relacionais entre os seus membros. Assim, as redes se estruturam a
partir da definição de seus objetivos, das áreas da atuação, dos
beneficiários, dos interesses a ser representados. Essas definições
preliminares servem para formatação do campo de potenciais
integrantes da rede.
O desenho organizacional das redes costuma partir da definição das atividades, produtos e serviços que serão realizados,
dos resultados esperados, da definição das regras de relacionamento, do processo de tomada de decisão. A esse conteúdo deve
se ajustar a estrutura a ser concebida.
As estruturas das redes costumam ter arquiteturas não hierárquicas, flexíveis e menos estáveis do que as das empresas e órgãos
públicos, tendo sempre presente uma lógica de provisoriedade
que lhe permita uma possibilidade permanente de adaptação a
contextos sempre dinâmicos.
Como assinalam Bernardi e Malvasi (2006), os centros de
poder são instâncias e não pessoas ou cargos. Predominam nos
organogramas a Assembleia Geral, da qual todos devem participar. Nas estruturas intermediárias da gestão cotidiana, na qual
O fenômeno das redes
157
não se decide, apenas se agilizam processos, podem existir diretoria, coordenação, conselho de gestão, entre outros. Na divisão
de áreas de trabalho, não costumam existir departamentos e sim
grupos de trabalho, comitês ou comissões. Nas redes mais
complexas, existem estruturas operacionais fixas, secretarias
executivas, sem função de comando ou regulatória.
Apesar da grande variabilidade da tipologia das redes, as
características antes descritas costumam prevalecer.
Sustentabilidade de redes
Segundo Teixeira (2002), as redes são vistas como solução
adequada para administrar políticas e projetos nos quais os recursos
são escassos, os problemas complexos, existem muitos atores envolvidos, interagem agentes públicos e privados, centrais e locais, há
uma crescente demanda por benefícios e participação cidadã.
Nesse contexto, as estruturas de sustentação das redes podem
adquirir as mais variadas formas, de acordo com a sua composição, finalidades e grau de maturação.
No geral, o que as sustentam é a determinação para a realização da ideia-força que a gerou. Os recursos estão nelas
mesmas, nas pessoas e nas organizações que lhes disponibilizam
recursos materiais.
Nas redes sociais, não deve haver diretorias, chefias, remuneração de funcionários, despesas com impostos e sedes, estrutura organizacional para captação de recursos, suportes administrativos etc.
Esta estrutura simplificada, no seu desenvolvimento, passa a
adquirir uma forma mais complexa e surge a questão da formalização para viabilizar parcerias com financiadores e o poder
público. Esta sustentação financeira normalmente vem por meio
de projetos, que não são executados diretamente pelas redes, mas
sim por ONGs, Oscips etc. (membros da rede). Alguma instituição
recebe o recurso em nome delas ou destina algum recurso à rede,
para manutenção de uma estrutura de coordenação mínima. Em
alguns casos, cria-se uma nova organização social juridicamente
constituída, com a finalidade de receber os recursos.
158
Fausto Matto Grosso
Estratégias de formação de redes
A descoberta de parceiros e propósitos comuns são dois
elementos fundamentais para o início da criação de uma rede.
Existem alguns princípios que devem ser observados, para maximizar os resultados de uma articulação de rede:
• pessoas e organizações só entram em parceria quando não
podem solucionar os problemas sozinhos; caso contrário,
não despenderiam recursos nem assumiriam riscos estabelecendo relações desta natureza;
• as diferentes partes envolvidas nas relações de parceria
precisam ter níveis de poder relativamente iguais. Quando
há grandes diferenças de poder, é comum que os mais
“fracos” estabeleçam alianças com outros atores, com o
objetivo de equilibrar as forças;
• todos os participantes precisam estar envolvidos desde o
início, sob o risco de que os ausentes descontinuem ou
prejudiquem a parceria no futuro. Ainda que a participação
possa significar mais tempo e custos investidos no processo,
em longo prazo tende a trazer melhores resultados;
• os diferentes grupos podem ter pressupostos e visões
distintas sobre os fatos, empregando inclusive linguagens
diferentes, o que pode levar à incompreensão ou mesmo
inviabilizar um acordo. Em uma parceria, é fundamental
que os participantes se esforcem ao máximo para
compreender o pensamento e a linguagem dos demais;
• um grupo que esteja com dificuldades para dialogar com
outros grupos ou setores pode adotar a estratégia de estabelecer inicialmente alianças com lideranças menos resistentes que, em seguida, podem facilitar o diálogo com os
seus pares;
• relações informais e anteriores à parceria podem ter um
papel importante ao possibilitar o cruzamento de fronteiras
sociais e a criação de cadeias de confiança que extrapolam
as posições formais de cada um dos atores;
• os mais afetados pelos problemas são as pessoas mais interessadas em solucioná-los, que deveriam, sempre, participar dos processos de discussão e das parcerias que se
propõem a solucionar seus problemas.
O fenômeno das redes
159
No entender de Corrêa e Casarotto Filho (1999 apud OLAVE;
AMATO NETO, 2001), o nascimento, a sobrevivência e consolidação das redes dependem da discussão e equacionamento de
três aspectos fundamentais:
• Cultura da Confiança: relaciona-se aos aspectos ligados à
cooperação entre os atores, envolvendo aspectos culturais
e de interesse de pessoas e de organismos, tendo a ética o
papel fundamental nessas relações. Conforme Corrêa (1999
apud OLAVE; AMATO NETO, 2001), o fortalecimento da
confiança entre os parceiros é fundamental para todo o
desempenho das redes.
• Cultura da Competência: refere-se às questões ligadas às
competências essenciais de cada parceiro. Contempla
desde aspectos materiais como as instalações e equipamentos, até aqueles imateriais como os processos, o saber
como fazer os processos (know how).
• Cultura da Tecnologia da Informação: a agilização do fluxo
de informação é de vital importância para a implementação
e o desenvolvimento de redes flexíveis.
Potencialidades das redes
As redes se constituem instrumentos poderosos para a articulação de atores sociais do terceiro setor. Esta forma de organização tem sido crescentemente utilizada por corresponder às
necessidades de uma realidade em rápido processo de mudanças.
Entre as suas potencialidades podemos apontar:
• o pluralismo, normalmente presente na sua composição,
permite um maior nível de aprofundamento na análise dos
problemas, pois incorpora diferentes perspectivas
situacionais;
• permite a integração de experiências de atores locais com
experiências globais de outros atores, permitindo a
confluência de saberes empíricos e teóricos;
• facilita a criação de padrões flexíveis de relação entre
governo e entidades civis, facilitando a construção de um
campo de interesse público não estatal, portanto mais
próximo do cidadão;
160
Fausto Matto Grosso
• permite maior agilidade de adaptação da forma organizativa às demandas sempre dinâmicas dos processos em
mudança do mundo contemporâneo;
• facilita a elaboração democrática dos objetivos, metas e
planos comuns dos atores sociais, além de criar cumplicidade ampla, sustentabilidade e governabilidade dos
projetos compartilhados.
Conclusão
Se, de um lado, as redes são portadoras de imensas potencialidades organizativas para os desafios contemporâneos, por outro
lado, não podem ser entendidas como receita universal para a
interação eficaz entre os atores sociais.
Esse instrumento de organização também carrega problemas
que devem ser considerados, paralelamente às suas virtudes.
Entre esses fatores podem ser apontados, o baixo grau de previsibilidade resultante do engajamento voluntário que nem sempre
se manifesta de maneira continuada, a inexistência de mecanismos de responsabilização decorrente da informalidade das
relações, o risco da ineficácia na execução de projetos gerado
pela inexistência de centro coesionador, bem como a maior morosidade no processo de tomada de decisões em contexto de processamento democrático.
A experiência tem mostrado, também, que apenas uma minoria
das relações de colaboração em redes alcança o estágio integrativo
e aproxima-se da “parceria ideal”. Estas relações são difíceis de
ser mantidas e exigem grande empenho por parte dos envolvidos.
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162
Fausto Matto Grosso
A formação do primeiro grupo
dirigente do Partido Comunista
Brasileiro (1919-1930)
Michel Zaidan
D
esde os primeiros artigos e ensaios, escritos e publicados,
sobre a história dos comunistas brasileiros (1979, 1980,
1982), ainda quando era mestrando na Universidade Estadual de Campinas, procurei chamar a atenção para a especificidade do processo de formação ideológica do primeiro “grupo dirigente” do Partido Comunista Brasileiro (PCB). Nestes primeiros
escritos da década de 80 afirmava que havia certa homogeneidade
cultural e política desses primeiros militantes (Astrojildo Pereira,
Cristiano Cordeiro, Otávio Brandão, Heitor Ferreira Lima), produto da transformação ideológica do final do século XIX no Brasil
.Um misto de republicanismo, evolucionismo e positivismo formava o horizonte ideológico dessa geração saída do movimento
abolicionista e republicano e contaminada pelas influências socialistas, anarquistas e comunistas vindas de fora.
Foi nessa ocasião que aventei a hipótese de que a tão falada
herança anarquista ou anarcossindicalista dos comunistas brasileiros precisava ser revista, em função da própria especificidade
dos anarquistas brasileiros. Pois os nossos primeiros anarquistas
deviam a sua formação a um verdadeiro “porre ideológico” (a
expressão é do saudoso professor Evaristo de Moraes Filho) e não
às influências europeias, trazidas na bagagem dos emigrantes
italianos, espanhóis ou portugueses. A nossa cultura libertária
nunca foi muito ortodoxa, sendo ela própria fruto de um enorme
ecletismo ideológico; a ponto de o historiador Michael Hall (A classe
operária no Brasil) falar em sindicalismo revolucionário ou anarcossindicalismo, ao invés de anarquismo. Os chamados anarquistas
puros mantinham uma razoável distância do movimento sindical (e
das massas operárias), desenvolvendo uma atividade pedagógica
por meio do teatro, da literatura e da escola. E os sindicatos que
reivindicavam a influência anarquista eram organizados a partir de
“declarações de princípios” anarquistas, o que os afastava muito da
luta de massas e das demais correntes políticas.
163
Por tudo isso, justifica-se a ideia da busca de caracterização dos
principais traços dessa “mentalidade” protocomunista, nos anos
20. Desde logo, é possível encontrar sinais da herança jacobinista
do abolicionismo e do republicanismo do século XIX no Brasil.
Herança jacobina (nacional-popular) responsável pela constante
aproximação desses primeiros militantes em relação à pequena
-burguesia urbana, por meio da Maçonaria. Lembrar que a questão
maçônica foi ponto de pauta do 5° Congresso da Internacional
Comunista (IC) e que o PCB teve o seu reconhecimento rejeitado
por conta da dupla filiação de vários militantes comunistas. No
nosso entendimento, a sobrevivência da dupla filiação dos comunistas brasileiros é um forte indício da herança jacobina (nacional
-popular) nos integrantes do primeiro grupo dirigente do PCB.
Outro aspecto a ressaltar é a visão evolucionista, linear e positivista
da História, defendida por esses militantes em suas análises da
sociedade brasileira. Mais do que marxista-leninista, é de inspiração novecentista (spenceriana e comteana), assimilada das
influências político-culturais comuns da época.
Esses “pais fundadores” do marxismo brasileiro integram uma
geração romântica que atuou em condições de relativo isolamento
em relação às táticas e estratégias do movimento comunista internacional (IC) e por isso mesmo foi capaz de elaborar uma formulação “nacional” (não nacionalista) sobre os caminhos da revolução brasileira (Revolução Democrática Pequeno-burguesa, como
disse Otávio Brandão), nem democrático-burguesa, como querem
alguns, nem democático-antiimperialista, como proclamava a IC,
no seu VI Congresso.
A teoria da Revolução Democrática Pequeno-Burguesa (justificativa em detalhe da política de aliança com a pequena-burguesia
revoltosa da Primeira República) como a demonstração cabal da
originalidade e especificidade do primeiro grupo dirigente do PCB é
nossa tese fundamental. Uma hermenêutica histórico-revolucionária
totalmente em desacordo com a política anti-trotskista vigente nesse
período, na ex-União Soviética, já sob o controle de Stalin. Este desacordo ficará mais patente nas seções do comitê latino do VI Congresso
da IC e, mais ainda, no encontro dos Partidos Comunistas latino-americanos, em 1929, em Buenos Aires, onde Otávio Brandão – o
principal teórico do PCB – foi obrigado a se retratar e a se enquadrar
na estratégia revolucionaria da IC para os países latino-americanos.
De toda maneira, embora não seja esse o foco principal deste
trabalho, valeria a pena destacar a originalidade desse pensamento
político, no âmbito da cultura marxista-leninista da época.
164
Michel Zaidan
O foco aqui é a constituição desse primeiro núcleo dirigente
do PCB, formado pelas figuras de Astrojildo Pereira, Cristiano
Cordeiro, Otávio Brandão e Heitor Ferreira Lima. Alguns desses
personagens, tive o prazer de conhecê-los ainda em vida. Outros
foram objetos de coletâneas e ensaios. Tive a oportunidade de
resgatar para a história das ideias políticas no Brasil a obra de
Otávio Brandão, subestimada ou subvalorizada pela ensaística
brasileira, particularmente pelo trabalho de Leandro Konder, com
quem troquei cartas amistosas sobre o assunto. É meu objetivo
fazer um relato biográfico de cada um desses militantes, analisar
o seu pensamento e relacioná-los, procurando o que há de comum
entre eles e o seu ambiente sócio-cultural. Para isso, devo revisitar as obras escritas e publicadas, resoluções, artigos, cartas e
outros manuscritos, bem como os relatos disponíveis sobre a
história de vida de cada um.
Entre as coletâneas organizadas e publicadas por mim estão:
Construindo o PCB (1922-1924) e Memória e História 2: Escritos
políticos de Cristiano Cordeiro, editadas pela antiga Livraria e
Editora de Ciências Humanas, de São Paulo, LECH (3) Também
publiquei opúsculos e cartas desses militantes em: Na busca das
origens de um marxismo nacional (1985) e O PCB e a Internacional
Comunista (1988). Quanto à historiografia do Partido Comunista,
os autores mais importantes são Edgard Carone, Leandro Konder,
Paulo Sérgio Pinheiro, Marco Del Royo, Martim Cesar Feijó,
Antonio Segatto, John Foster Dulles e Augusto Buonocore. Os
conceitos-chaves de “grupo dirigente” e “cultura política nacional
-popular” foram tomados de empréstimo da ensaística italiana. No
caso do primeiro, a procedência é da magistral obra de Paolo
Cipriano, sobre La formacion del grupo dirigente do PCI. Roma,
Riuniti, 1972, vol. l. No caso do segundo, a autoria é de Antônio
Gramsci, Literatura e vida nacional. Il Rissorgimento.
A origem ideológica do primeiro grupo
dirigente comunista brasileiro
Conforme o depoimento colhido por Gilberto Freyre, para a
redação do livro Ordem e Progresso, o futuro fundador de PCB,
Astrojildo Pereira, teria participado (quando jovem) da campanha
abolicionista e republicanista, no final do século XIX. O interesse
da revelação contida nesse testemunho nos leva a crer que o militante social compartilhasse profundamente do horizonte intelectual da geração, envolvida nos embates jacobinos do final do século.
A formação do primeiro grupo dirigente do Partido Comunista Brasileiro
165
Esse horizonte já foi caracterizado, de outra feita, como um misto
de positivismo, evolucionismo e monismo, segundo as doutrinas
filosóficas predominantes nas academias de Direito, e no âmbito do
próprio movimento socialista europeu. A recorrente confusão que
reinava nessa época entre a doutrina positivista e evolucionista de
Auguste Comte com o pensamento socialista, na segunda metade
de século XIX, que fazia, aliás, do pensamento de Marx um discurso
positivo do método das Ciências Sociais, e do próprio Materialismo
Histórico uma Ciência positiva da História e das lutas sociais,
certeza ajudou muito a marcar a recepção das ideias socialistas
como uma variante do pensamento jacobino mais exaltado. Quando
Leandro Konder, em sua conhecida tese de doutorado (A recepção
das ideias de Marx no Brasil), afirma que tal recepção foi subsumida pelo positivismo, esquece que esta subsunção se dá, antes,
na própria Europa com os Partidos Socialdemocratas, sob a supervisão de Engels, Kautski, Bernstein etc. A sua chegada à América
do Sul embalada por aquelas doutrinas é uma mera consequência
do processo de transformação da herança da filosofia clássica
alemã, sob o influxo das novas ideias de Darwin, Spencer e Auguste
Comte. O que ocorreu é que, nas circunstâncias brasileiras, a
herança sofreu o contágio do jacobinismo republicano e foi desaguar nos primeiros núcleos socialistas, anarquistas e trabalhistas.
Há fortes indícios desse ecletismo ideológico no movimento social
desse período (veja-se opúsculo escrito por esse antigo militante
operário: Augusto Azevedo. Fragmentos da história operária. Rio de
Janeiro: Imprensa Nacional)
Acredito que a reiterada tentativa dos nossos militantes sociais
(anarquistas, socialistas e comunistas) em buscarem alianças com
a pequena-burguesia urbana no Brasil (mais do que com o campesinato) pode ser razoavelmente explicada pela herança jacobina,
nacional-popular, desses militantes. Em vários momentos da
historia, é possível surpreender essa busca de aproximação ora dos
comunistas em relação aos tenentes, ora dos anarquistas com os
tenentes e assim por diante. Talvez o documento político mais relevante, neste sentido, seja o opúsculo de Octávio Brandão: Agrarismo e Industrialismo. A guerra de classes no Brasil e a revolta de
São Paulo. Buenos Aires, 1926, que se torna a base mais importante do documento do PCB: As tarefas da revolução democrático
-pequeno-burguesa (Autocrítica) e vai influenciar as teses do II
Congresso Nacional do PCB (La Correspondencia Sudamericana).
Curiosa é também a dupla filiação dos nossos primeiros comunistas: ao partido e à maçonaria. Lembrar que esta questão foi ponto
166
Michel Zaidan
de pauta do IV Congresso da IC, em março de 1922. E que o reconhecimento e a adesão do PCB ao Movimento Comunista Internacional
foi rejeitada sob a alegação de que havia membros do partido brasileiro que eram maçons (Everardo Dias, Cristiano Cordeiro, Maurício
de Lacerda). Na verdade, a Maçonaria tornou-se um canal informal
de articulações políticas entre comunistas, socialistas e tenentes.
Deve haver, sem dúvida, alguma relação entre a ideologia maçônica
e a cultura política desses primeiros comunistas, na direção da
“nacionalização” do socialismo brasileiro.
É de se reconhecer que a primeira geração dos militantes de
onde se originou o grupo dirigente do PCB nos anos vinte (Astrojildo Pereira, Octávio Brandão, Cristiano Cordeiro, Heitor Ferreira
Lima) tinha nascido no fim do século XIX. Possuía instrução
formal e habilidades profissionais ou burocráticas. O último era
alfaiate. Cordeiro era funcionário público. Astrojildo, crítico literário. E Octávio Brandão, um pequeno farmacêutico.
Questões de método
Segundo Antonio Candido, em sua conhecida obra Formação
da Literatura Brasileira – Momentos decisivos. São Paulo: Edusp,
1975, dois princípios regem a vida cultural dos povos: o cosmopolitismo e o nacionalismo. Os autores que conseguem “nacionalizar” a hermenêutica de suas sociedades, fugindo da abstração e
mera repetição das formulações gerais são aqueles que criam uma
espécie de teoria social original. Já os autores cosmopolitas se
limitam a aplicar às suas sociedades esquemas e teorias universais mecanicamente, sem levar na devida conta a especificidade
dos processos sociais de seu meio. No caso latino-americano,
destacam-se pela originalidade de suas formulações: Mariategui,
Marti, Sarmiento, Ibarruri etc. No caso do Brasil, o primeiro
ensaísta enquadrado nessa categoria seria – para alguns – Caio
Prado Junior.
Para nós a obra do historiador paulistano não pode ser considerada pioneira nesse esforço hermenêutico marxista original. Nem
na obra teórica (A Dialética do Conhecimento) nem nos ensaios de
interpretação da realidade brasileira (Formação do Brasil Contemporâneo). Os seus trabalhos acompanham a reflexão teórica da
escola “circulacionista”, encabeçada por André Gunder Frank que
define o modo de produção colonial pela acumulação processada
na esfera da circulação, e não pelos processos produtivos internos
(a economia do açúcar, o ciclo do ouro, o café etc), sem levar em
A formação do primeiro grupo dirigente do Partido Comunista Brasileiro
167
consideração as relações de produção vigentes na economia colonial. Para Caio Prado, o Brasil era capitalista pela sua mera inserção
no sistema colonial. O que levaria o ensaísta paulistano a dessentir
da linha oficial do Partido Comunista, cuja interpretação da
economia brasileira apontava para a permanência de restos feudais
ou pré-capitalistas na agricultura do país.
A primeira obra marxista-leninista, escrita no Brasil, que
tematiza as contradições da nossa sociedade e aponta os caminhos da revolução brasileira, em consonância com a nossa
história, nossos atores e a nossa tradição é de Otávio Brandão,
Agrarismo e Industrialismo. A revolta de São Paulo e a guerra de
classes no Brasil. Este é um texto que, malgrado todas as suas
vicissitudes teórico-metodológicas devidas ao autodidatismo do
autor, contém as sementes de uma análise original da luta social
no Brasil, à luz das manifestações de revolta da pequena-burguesia civil e militar da Primeira Republica. A importância desse
trabalho se evidencia pelo fato de ser ele a base para o programa
político do PCB e a fonte das teses do II e III Congressos do Partido;
sendo violentamente rechaçado no final dos anos vinte com a
mudança de política da Internacional Comunista para a América
Latina e a subordinação dos comunistas brasileiros ao Movimento
Comunista Internacional (IC).
Muito haveria que dizer sobre esta tese a propósito da controvérsia que ela provocou na historiografia do comunismo brasileiro, haja vista os trabalhos de Kazumi Munakata (Cenas brasileiras), Paulo Sérgio Pinheiro (As estratégias da ilusão), Edgard
Salvadori De Decca (O silêncio dos vencidos) e Marco Aurélio
Garcia (Apresentação, do meu livro: O PCB e a Internacional Comunista). Estes autores foram analisados criticamente na Introdução
do livro Os comunistas em céu aberto, que estuda a campanha do
Bloco Operário e a política de alianças do PCB na década de 20.
Aqui, preferimos dialogar com o ensaísta carioca Leandro
Konder, cuja tese (A derrota da dialética. A recepção das ideias de
Marx no Brasil) trata exaustivamente desse período da formação
do marxismo brasileiro e expõe um ponto de vista contrário ao que
é aqui defendido.
Já criticamos, em trabalho anterior, o risco do anacronismo
teórico-metodológico de analisar a obra de autores brasileiros, dos
anos vinte, pelas lentes (presumivelmente mais preparadas) da
nossa época, com o objetivo de desqualificação política ou ideológica dessa obra. Não se pode cobrar de um revolucionário autodi168
Michel Zaidan
data do início do século a mesma coerência e rigor exigidos de
uma tese acadêmica. E, no entanto, o trabalho de Brandão é muito
mais original e interessante do que a tese do Leandro (que se julga
um dialético melhor) que se limita a dizer que a derrota da dialética no Brasil é fruto da sua subsunção ao stalinismo. Aí está um
exemplo de uma análise cosmopolita (e abstrata) do fechamento
teórico e ideológico provocado pelo stalinismo no âmbito do
marxismo internacional. Cedeu à tentação de aplicar esquemas
gerais e recorrentes no Movimento Comunista Internacional, sem
se importar com os processos (e a elaboração) internos em cada
partido-membro da IC.
Ora, o que se sabe é o relativo isolamento em que se deu a
elaboração desse pensamento. Até meados de 1926, era absolutamente precária a relação orgânica e ideológica da Internacional
Comunista com a América Latina, apesar da criação do seu Birô
Sulamericano, em Buenos Aires, e da publicação da revista La
Correspondencia Sudamericana, destinada a orientar a estratégia
dos partidos comunistas latino-americanos. Ainda em 1928, o
secretário-geral do PCB, Astrojildo Pereira, reclamava da deficiente comunicação de Moscou para com as demais seções nacionais da IC. Por tudo isso, é injusto e incorreto imputar os erros ou
as deficiências teóricas e políticas do PCB à sua subordinação ao
marxismo-leninismo, como querem alguns.
Em verdade, há dois aspectos intimamente entrelaçados nessa
discussão historiográfica. Um é um paradigma hegemônico da
chamada Revolução Burguesa (e suas variantes: anti-imperialista, terceira revolta, revolução permanente) no Movimento
Comunista Internacional. O outro é da completa e total submissão
de suas seções nacionais ao Komintern (IC). Os autores que subestimam ou ignoram a especificidade da elaboração teórico-política
do PCB, nesta época, no geral comungam de ambas as teses. É o
caso de Marco Aurélio Garcia, Kazumi Munakata, Edgard Salvadore De Decca e Paulo Sérgio Pinheiro. Estes ensaístas fazem uma
crítica dogmática e descontextualizada, partindo dos estereótipos
e clichês mais comuns produzidos pela historiografia da 3ª Internacional Comunista e sua relação com os partidos comunistas
dos chamados “países semicoloniais” e “dependentes”, conforme a
tipologia do VI Congresso da IC.
Da minha parte, desde os anos 80, venho procurando chamar
a atenção para a situação de relativa autonomia da atuação desses
partidos, numa época em que a América Latina ainda não tinha
despertado o interesse estratégico (para a Revolução Mundial) da
A formação do primeiro grupo dirigente do Partido Comunista Brasileiro
169
Internacional Comunista. O que certamente concorreu para
formulações políticas mais coladas à circunstância históricosocial dessa região. Nessa linha de investigação, estão José
Antonio Segatto, Marco Del Roio, Ricardo Antunes, Dario Canale
e, de certa forma, Leandro Konder.
Corrigir o erro de interpretação daqueles que acentuam a heteronomia política do PCB, a partir da sua subordinação à IC e ao
paradigma dominante da Revolução Democrático-Burguesa não
tem sido fácil, sobretudo numa cultura política saturada por um
“anticomunismo de esquerda”. É mais fácil e sedutor atribuir os
equívocos e insuficiências teóricas ao stalinismo ou ao centralismo burocrático da IC, do que fazer a pesquisa empírica do
processo de formação ideológica desses primeiros dirigentes
comunistas. Mas é isso o que estamos propomos.
A formação ideológica deste primeiro
grupo dirigente comunista
Os estudos sobre a história política ou dos movimentos sociais
ganharam uma valiosa contribuição com o auxílio da antropologia
política ou com a chamada história das mentalidades. O emprego
do conceito de “cultura política”, na análise da formação ideológica dos militantes sociais, esta espécie de etnografia política, a
partir da “mentalidade” específica de um grupo ou categoria social,
nos levou à obra renovadora do marxista italiano Antonio Gramsci
e ao seu conceito de “cultura nacional-popular”, baseado numa
comparação entre o papel dos jacobinos na Revolução Francesa e
o papel protagonizado pelo Partido da Ação, no processo da unificação nacional italiana (Il Rissorgimiento).
A cultura “nacional-popular” seria o cimento ideológico que
permitiu a união entre “cidade” e “campo” na França, a aliança
entre os jacobinos de Paris e os camponeses franceses. Dessa
forma, podemos caracterizar esta mentalidade de antiliberal e republicana, nacional e popular (ou democrática), devendo ser usada
como contraponto ao liberalismo oligárquico dominante, sobretudo
em países de capitalismo tardio, como é o caso do Brasil.
Quem seriam os jacobinos brasileiros? – A nosso ver, a geração
de políticos, publicistas e militantes sociais que se envolveu na
causa da Abolição e do Republicanismo no fim do século dezenove, tão bem discutida e apresentada por Gilberto Freyre em
Ordem e Progresso. Avulta nos depoimentos colhidos por Freyre a
170
Michel Zaidan
matriz antiliberal, antioligárquica, muito influenciada pelas
doutrinas filosóficas da época (monismo, evolucionismo, positivismo). Esta matriz seria a porta de entrada do pensamento social
brasileiro, em contato com a bagagem ideológica dos imigrantes
italianos, espanhóis e portugueses.
Nunca será demais insistir que, no Brasil, a relação entre
socialismo-anarquismo-marxismo foi precedida de uma atmosfera
intelectual – em parte fruto da II Internacional – onde se entrelaçavam confusamente traços de Positivismo, Evolucionismo e
Monismo. E que, sem dúvida, as forças sociais que proclamaram
a república brasileira em 1889 se alimentaram fartamente desse
“porre ideológico”. Como movimentos pequeno-burgueses por
excelência, o Abolicionismo e o Republicanismo encontraram
nesse ecletismo doutrinário o conteúdo possível da manifestação
do seu jacobinismo político. Daí ter sido a República o berço dos
primeiros grupos e partidos socialistas do Brasil. Acrescente-se a
isso a circunstância mesma de ter sido o legado da II Internacional uma obra de inegável sabor evolucionista que, onde se fez
conhecida, foi responsável pela criação de partidos socialistas
reformistas e pequeno-burgueses, confundindo-se, nos episódios
da luta política, com o jacobinismo mais exaltado. Vem dessa
confusão, com certeza, a associação já no século XIX entre Republicanismo e Socialismo no Brasil. Era o segundo o modo de ser
do primeiro.
Por sua vez, essa atmosfera intelectual se transferiu da cena
política republicana para as cátedras das Faculdades de Direito
como um sopro renovador do liberalismo jurídico então predominante. Onde houve renovação, um misto de Positivismo, Evolucionismo e Monismo esteve presente, num meio fortemente dominado pelo liberalismo ou o catolicismo social. Disso se alimentaram,
sem dúvida, os reformistas e revolucionários sociais da Primeira
República brasileira: Cristiano Cordeiro, Joaquim Pimenta,
Maurício de Lacerda, Astrojildo Pereira, Evaristo de Moraes e
outros. Assim, antes de terem sido anarquistas, anarcossindicalistas, socialistas “legalitários” ou “possibilistas” e comunistas,
uns e outros foram vítimas desse ecletismo ideológico, tendo suas
ações por ele influenciadas até o fim de suas carreiras de militantes políticos e sociais.
Mas este trabalho pretende reconhecer na trajetória individual
de cada um dos dirigentes comunistas as influências políticoculturais dessa época. Em primeiro lugar na formação de Astrojildo Pereira, fundador de PCB e seu virtual primeiro secretárioA formação do primeiro grupo dirigente do Partido Comunista Brasileiro
171
geral. Ele nasceu em 1890, na cidade de Rio Bonito, no estado do
Rio de Janeiro. Segundo seus biógrafos e contemporâneos, na
juventude frequentou cafés e centros culturais dominados pelo
jacobinismo radical de um Silva Jardim, um Lopes Trovão etc.
Sua família teria apoiado a proclamação republicana e se beneficiado do novo regime. Seu pai, um pequeno produtor rural e
comerciante, teria se tornado um chefe político da região. Astrojildo, desde cedo, se desgarraria da influência política familiar e
buscaria outros caminhos, até descobrir as primeiras leituras
anarquistas. Há o episódio do apoio, na juventude, à campanha
civilista encabeçada por Rui Barbosa contra o marechal Hermes
da Fonseca. O que faria alguns atribuir a Astrojildo a pecha de
“liberal” em oposição ao “militarismo” da Primeira República. Mas
este episódio seria muito curto, não só em função da derrota de
Rui Barbosa nas eleições presidenciais, mas, sobretudo em face
de sua desilusão com o regime político republicano, com a triste
sorte que tiveram os marinheiros rebelados, na conhecida Revolta
da Chibata. A isso, vir-se-ia acrescentar o fuzilamento do educador
espanhol Vicente Ferrer, na Europa, iniciando-se, a partir de
então, a sua militância no movimento anarquista até os inícios da
década de vinte. Pode-se, então, com segurança, afirmar que a
formação ideológica de Astrojildo Pereira é devedora do contexto
positivista e republicano e da sua aproximação com a campanha
jacobina do republicano radical Lopes Trovão.
A controvertida (e rápida) conversão de Pereira ao credo liberal,
por influência da retórica política de Rui Barbosa, como querem
alguns, parece não ser muito consistente. Já sua adesão às
doutrinas anarquistas e anarcosindicalistas parece ser fruto dessa
iniciação republicana e jacobina. Fenômeno que ocorreria com
outros militantes sociais na Primeira República.
A outra história de militância exemplar, a este título, seria a do
pernambucano Cristiano Cordeiro, que deve a sua formação à
Faculdade de Direito do Recife, mas acima de tudo à pregação
socialista do professor Joaquim Pimenta, grande doutrinador das
ideias monistas, evolucionistas e positivistas da época. (conferir
sua autobiografia Retalhos do Passado, bem como sua publicística nos jornais e revistas desse período). Cristiano, que se
declarou inicialmente anarquista e viu no Cristianismo os primórdios dos movimentos socialistas, deve a sua conversão ideológica,
primeiro, à sua indignação moral ante a escravidão negra nos
engenhos de cana de açúcar, depois, à convivência com operários
e líderes sindicais no início da República, particularmente, no
172
Michel Zaidan
período chamado de “salvacionismo”, ou seja, a queda da oligarquia política de Rosa e Silva, em Pernambuco. Este período, que
coincide com a campanha civilista dos setores médios urbanos,
assinala a emergência do povo e da classe operária na cena política republicana, com o decidido apoio das massas urbanas à
candidatura do general Dantas Barreto. Apoio, aliás, recompensado com a indicação de dois líderes operários à Assembleia Estadual. A partir daí, inicia-se a militância socialista e anarquista de
Cristiano Cordeiro, através de sua assessoria à Federação das
Classes Trabalhadoras de Pernambuco, juntamente com o seu
mentor intelectual, o professor Joaquim Pimenta.
O terceiro personagem de importância na formação do núcleo
dirigente do PCB é o alagoano Octávio Brandão, originário de
Viçosa. Certamente, o mais polêmico, controverso e complexo dos
três. Embora, tenha sido farmacêutico por profissão, Brandão,
desde muito cedo, manifestou um interesse invulgar pelas ciências da natureza, particularmente, geologia e botânica. Foi um
pioneiro na prospecção e descoberta de petróleo nos canais e
lagoas de seu estado. O que mais chama atenção é a mixórdia de
conhecimentos e informações científicas que ajudou à construção
de sua visão de mundo, rodeada de um forte misticismo ou romantismo revolucionário. Do núcleo dirigente original, é o elaborador
mais idiossincrático e prolífero (publicou em vida inúmeras
brochuras sobre assuntos variados). A sua autobiografia foi muito
prejudicada pelo excesso de vaidade e narcisismo, mas permite
reconhecer os traços de sua construção ideológica. Como outros
de sua geração, ele se opôs à oligarquia alagoana e seu liberalismo
de fachada e participou ativamente das manifestações sociais da
época, juntamente com o anarquista Abelardo Canellas, autor de
um folheto que descrevia uma experiência pedagógica libertária
francesa, chamada “A colmeia” (La ruche). Em consequência, teve
de exilar-se em Pernambuco e, depois, no Rio de Janeiro. Na
capital do país, entrou em contato com o meio anarquista e passou
a colaborar frequentemente com as colunas dos jornais operários
e a produzir farta matéria doutrinária, sempre recheada com uma
boa dose de misticismo religioso. Dos militantes sociais, foi com
certeza o mais heterodoxo de todos. Pois além da mistura muito
comum, na época, de ideias filosóficas distintas de matriz antiliberal, seu pensamento apresenta uma visão romântica e lírica da
vida e da sociedade. (A propósito, leia-se “Veda do novo mundo”)
Não se sabe ao certo, como uma personalidade tão excêntrica e
multifacetada foi resultar num ideólogo do comunismo brasileiro,
escrevendo a primeira análise marxista-leninista da sociedade
A formação do primeiro grupo dirigente do Partido Comunista Brasileiro
173
brasileira – Agrarismo e industrialismo. A guerra de classes no
Brasil e a revolta de São Paulo.
A tese principal deste trabalho é que o primeiro grupo dirigente do PCB foi composto, originalmente, desses militantes
sociais. Curiosamente, nenhum de São Paulo, onde a hegemonia
das ideias anarquistas e anarcossindicalistas estrangeiras era
muito forte. Pode-se, também, aventar a hipótese de que “o civilismo das camadas médias paulistas” afastou de princípio toda e
qualquer hipótese sobre a existência de uma pequena-burguesia
jacobina – vinda do movimento abolicionista e republicano – que
ofertasse esse tipo de militante social, apesar do apoio que os
anarquistas deram aos revoltosos de 1924 em São Paulo (sobre
isto, veja-se: Anarquistas e Comunistas no Brasil, a quarta parte).
A ideia é que, em se tratando de regiões periféricas ao desenvolvimento do capitalismo no Brasil, o Rio de Janeiro, Pernambuco,
Alagoas e outras unidades da federação terminaram sendo a
origem de uma cultura política nacional popular (e jacobina) totalmente estranha à sociedade paulistana. A esse respeito, é muito
interessante o trabalho da historiadora carioca Maria Alice
Rezende, A fábrica e a política, sugerindo que o modo de vida fabril
é uma matriz ressocializadora distinta da do mercado político. Daí
a peculiaridade do movimento anarquista em São Paulo, comparado às manifestações operárias e socialistas ocorridas noutros
estados brasileiro.
A este núcleo inicial agregaram-se outros militantes, como
Heitor Ferreira Lima, oriundo de Mato Grosso e alfaiate de profissão,
que viria a ter um papel importante na transição desse núcleo dirigente para outro já controlado ideologicamente pelo movimento
comunista internacional. Heitor, que passara quatro anos na
Escola Leninista, de Moscou, seria o secretário-geral que conduziria a transição para um novo grupo dirigente e uma nova fase da
vida do PCB, conhecida por “obreirismo” ou “proletarização”.
174
Michel Zaidan
X. Homenagem
Autores
Marco Aurélio Nogueira
Cientista político e professor da Universidade Estadual Paulista/Unesp.
Severino Francisco
Jornalista e escritor.
Comunista que soube valorizar
a vida e a democracia
Marco Aurélio Nogueira
C
om a morte de Armênio Guedes, em 12 de março, foi-se
uma parte importante da história da política democrática,
da esquerda e das lutas sociais no Brasil.
As gerações mais jovens podem não saber de quem se trata.
Armênio morreu aos 96 anos. Viveu, portanto, uma vida longa e
plena, conheceu o fundamental do século XX e as primeiras
décadas do capitalismo globalizado e informatizado em que nos
encontramos. Como comunista militante, experimentou de tudo:
conviveu de perto com Luiz Carlos Prestes, um de seus maiores
antagonistas, integrou inúmeras formações do Comitê Central do
Partido Comunista Brasileiro, o PCB, amargou o exílio, frequentou
importantes círculos intelectuais, escreveu muito, dirigiu jornais
e revistas na clandestinidade e à luz do dia.
Mas não foi um comunista típico, sempre viveu longe dos estereótipos que costumam cercar os comunistas: nunca foi dogmático, não se afirmava pela autoridade, não tinha paciência para
rituais, reuniões protocolares e rapapés, não vestia a “capa preta”
que o folclore comunista atribuía aos dirigentes supremos do
partido, não quis ser herói, jamais achou que a revolução pudesse
derivar da ação voluntariosa de quem quer que fosse. Negou tudo
isso em palavras e atitudes. Nunca deixou a política em segundo
plano, mas nunca fez dela, e de suas ideologias, o critério para
hierarquizar ou julgar pessoas. A máxima “ou você está comigo ou
está contra mim” jamais frequentou seu dicionário.
177
Armênio foi comunista a vida inteira, mas foi acima de tudo
um democrata que amava a liberdade, o pluralismo, uma boa
conversa e um jazz de qualidade. Talvez por isso tenha conquistado uma legião de amigos e admiradores. Despertou, claro,
ciúmes e invejas, fez alguns adversários e inimigos. Mas serenamente combateu o bom combate.
Sempre o tive como uma espécie de figura mítica, no sentido
que Gramsci atribuiu ao Príncipe de Maquiavel: um personagem
ativo, no qual a ideologia política e a ciência política se apresentam
não como fria utopia nem como raciocínio doutrinário, mas como
uma criação da fantasia concreta que atua sobre a vida para
despertar e organizar vontades coletivas.
Mito, também, porque Armênio era aparentemente frágil, discretíssimo, quase não falava em público, não se expunha e nem se
exibia, não protagonizava grandes embates e apesar disso – ou
precisamente por isso – conseguia irradiar enorme confiança e
demarcar um território próprio, coisa que, em política e em
ambientes partidários, jamais é fácil. Era um desses gigantes cuja
estatura não se consegue dimensionar num primeiro relance, que
se revela aos poucos, como se seu magnetismo estivesse oculto. Foi
um marxista gramsciano, sem que jamais tenha precisado bater no
peito para assim se proclamar, um intelectual refratário à verborragia doutrinária, flexível, para quem era mais importante construir consensos e evitar confrontos desnecessários. Opôs-se firmemente, por exemplo, tanto aos stalinistas dogmáticos que queriam
incutir uma “linha política justa” que não interagia com a vida real,
quanto aos que, nos anos 1960, imaginaram derrotar a ditadura
militar pela via armada. Ajudou a redigir a “Declaração de Março de
1958”, célebre documento que assinalou a primeira tentativa de
renovação anti-stalinista do PCB e que iria, nas décadas seguintes,
servir de base para o envolvimento dos comunistas com a luta pela
democracia e o combate político ao regime de 1964.
Quando o regime militar começava a se extenuar e a anistia
política despontava no horizonte, em 1979, Armênio deu uma
entrevista ao Jornal do Brasil, ao lado de alguns outros companheiros. O JB fez um caderno especial com o material, editado por
seu correspondente na Europa, Araújo Neto. O estrondo que
aquele caderno provocou nos ambientes comunistas e de esquerda
foi proporcional à erupção de um vulcão. Nunca mais os comunistas seriam os mesmos. A iniciativa impulsionou uma extraordinária tentativa de renovação do velho Partidão, em cujo centro
estaria a luta pela democracia como princípio, meio e fim: como
178
Marco Aurélio Nogueira
valor universal, do qual não se poderia transigir. Nas palavras
dele: “Houve um tempo em que nós identificávamos liberdades
democráticas com o poder da burguesia. Mas a verdade é que,
pouco a pouco, a vida foi-nos mostrando que a democracia é algo
importante, permanente, para o avanço da sociedade”.
A renovação do partido não deu certo e anos depois o PCB saiu
de cena. Mas a democracia avançou e se consolidou no país.
O comunismo democrático, tão bem encarnado por Armênio, não
somente deu sua contribuição, como permaneceu fornecendo
parâmetros para a ação política, a unidade dos democratas, a
construção de consensos, acordos programáticos e entendimentos
superiores, a recuperação do valor da política.
Armênio permaneceu ativo depois que o PCB desapareceu.
Não chegaria mais a mergulhar em novas epopeias partidárias.
Persistiu como um farol de orientação, crítica e agregação, um
analista cuidadoso da política, um disseminador de cultura democrática, fiel a seu próprio legado.
Armênio Guedes fez da política uma atividade que fluía fácil,
que dispensava posições de força ou de poder, argumentos de
autoridade e palavras duras. Para ele, “unidade na diversidade”
não era um chavão dialético, mas um lema de toda política democrática com intenção reformadora, a alavanca do novo pelo qual
ele e tantos outros se batiam. Hoje como ontem: um valor universal.
Algo indispensável nestes tempos complicados em que estamos.
Armênio teve uma vida plena, tornou-se uma lenda da esquerda
comunista. As teses democráticas com as quais se identificou e a
que ajudou a dar forma foram essenciais para que o melhor do
Brasil viesse à luz. Germinaram no PCB, mas ganharam força fora
dele, funcionando como uma espécie de pedagogia reformadora.
Hoje, deveriam ser plenamente recuperadas; nos ajudariam a
seguir em frente de cabeça erguida e olhos bem abertos.
Armênio Guedes morreu, mas seu exemplo, seu estilo sereno e
suas ideias estão aí. Ao nosso alcance.
Comunista que soube valorizar a vida e a democracia
179
Brinde ao cangaceiro do cinema
Severino Francisco
V
ladimir Carvalho é um cangaceiro das artes; em vez de um
fuzil, ele empunha uma câmera ou uma máquina de escrever da marca Remington. É capaz de mover montanhas
de empecilhos, animado pela fé invencível nas luzes do cinema.
Ele completa hoje 80 anos de idade e merece todas as honras,
pois, como disse o compositor Cartola, quem gosta de homenagem
depois de morto é estátua. Dos 80 anos de Vladimir, 40 foram
dedicados à criação e à consolidação do cinema brasiliense, na
condição de cineasta, de professor e de articulador (conceitual e
político) do curso de cinema da Universidade de Brasília, matriz
de várias gerações de cineastas.
Glauber Rocha escreveu que Vladimir era o Vertov das
caatingas; mas ele se transformou no Vertov do Cerrado, depois
de 40 anos no Planalto. Trouxe para Brasília o espírito de inquietação de uma das nascentes do Cinema Novo, pois participou
como assistente de Aruanda, documentário de Linduarte Noronha,
em que, pela primeira vez, a luz crua do sertão estouraria na tela
sem o filtro das lentes cinematográficas. A experiência inspiraria
Glauber Rocha na fotografia de Deus e O Diabo na Terra do Sol e
na formulação de uma estética da fome. Também como assistente,
Vladimir viveria uma aventura dramática com o documentário
Cabra marcado para morrer, de Eduardo Coutinho, interrompido
no meio das filmagens, pelo golpe militar e a caçada à equipe do
filme no sertão de Pernambuco. Todos tiveram de fugir, dissimulados em disfarces e perucas, para escapar ao cerco dos agentes
da repressão.
No Rio de Janeiro, Vladimir se enturmou com o pessoal do
Cinema Novo. Antes, conversou com Glauber Rocha e, no seu tom
tipicamente conspiratório, o cineasta baiano olhou para os lados
desconfiado, pôs a mão no ombro do amigo e ordenou: “Pode vir
porque nós te daremos cobertura”. E, de fato, no Rio, teve a oportunidade de participar de uma experiência crucial: a assistência
de direção do documentário Pindorama, de Arnaldo Jabor: “Posso
dizer que, com Jabor, vivi o choque benfazejo do cinema-verdade”,
conta Vladimir no livro Pedras na lua e pelejas no planalto.
180
Antes da passagem pelo Rio, Vladimir morou dois anos na efervescente Salvador do período pré-tropicalista para fazer o curso de
filosofia na Universidade Federal da Bahia, onde teve, na condição
de colegas e amigos, o compositor Caetano Veloso e o ensaísta
Carlos Nelson Coutinho. Assistiu aos primeiros shows de Caetano,
Tom Zé, Maria Bethânia e Raul Seixas. Até os dias de hoje, sempre
que vem fazer show em Brasília, Caetano se encontra com o paraibano. “Caetano não se preocupava com esse negócio de estudar.
Tinha o caderno cheio de letras de música. Ele é um gênio. Quem
tinha que se angustiar com isso era eu, um migrante paraibano que
precisava do canudo para encontrar um rumo na vida.”
Todas as vezes que ouve o fraseado e a letra de Feira de mangaio,
Vladimir Carvalho se transporta, imediatamente, para o cenário e
para a atmosfera da cidade de Itabaiana, no interior da Paraíba,
onde nasceu. Revê o menino sanfoneiro Sivuca, o autor da música
citada, passar na janela da casa, acompanhado de sua família de
artesãos de couro, a caminho do mercado. Sivuca tocava na banda
organizada pelo pai de Vladimir. O cineasta revive, também, a
imagem das boiadas levantando nuvens de pó e percorre as barracas
com frutas, bois de barro, carrinhos de lataria e alpercatas.
Se nasceu em Itabaiana, renasceu em Brasília, para onde se
mudou no início da década de 1970, depois de participar do Festival
de Brasília do Cinema Brasileiro com o curta-metragem A bolandeira. A primeira impressão foi de estranheza, a cidade lhe parecia
uma paisagem surrealista de Giorgio de Chirico, com suas linhas
de fuga cheias de solidão e silêncio. Mas, logo, ele enveredou pelas
cidades da periferia e reencontrou o Nordeste vivo no Planalto.
O amor de Vladimir por Brasília não exclui uma contundente
visão crítica. Em seus filmes, ele revela o outro lado do cartão
-postal e vai na contramão da história oficial. Em Brasília segundo
Feldman, reconstituiu o clima dos tempos pioneiros da construção
da cidade, envolvida nas nuvens de poeira e na música de martelos,
guindastes, serrotes, vigas de aço atritadas e gritos do trabalho
dos que erguiam a capital modernista no meio do ermo.
Se o tema é insinuado em Brasília segundo Feldman, no filme
seguinte, Conterrâneos Velhos de Guerra, aprofunda, desdobra e
explora novas facetas da aventura dos candangos expulsos para a
periferia da capital modernista. Barra 68 envereda por uma outra
vertente da Brasília inconformista: a repressão violenta ao movimento de resistência dos estudantes da Universidade de Brasília,
na virada dos anos 1960, depois da eclosão do regime militar. É
Brinde ao cangaceiro do cinema
181
câmara na mão, na marra, revelando uma Brasília rebelde, pouco
conhecida do restante do país.
Quando correu a notícia de que Vladimir estava fazendo um
filme sobre o rock de Brasília dos anos 1980, muitos levaram um
susto: por que o cineasta paraibano se metia com a música eletrificada dos jovens? No entanto, para Vladimir, o rock, nada mais era
do que um desdobramento de suas preocupações com a política:
“Vladimir deixou evidente que qualquer filme sobre o rock alimenta
a mistificação dos rebeldes sem causa”, comenta Sérgio Moriconi.
“Ele chutou o balde da indústria cultural e deixou o conteúdo político nu e cru daquela geração brasiliense que se expressou pelo
rock. Sacou um discurso político nas bandas de rock que tinha
tudo a ver com Barra 68 e Conterrâneos velhos de Guerra”.
Além de ser o fundador da tradição do documentário sociológico e antropológico no Brasil, Vladimir é, também, um inovador
no gênero, ressalta Moriconi. E cita como momentos antológicos:
a utilização da música de Jota Lins para marcar a batida das
pedras em Pedra da riqueza, o fotógrafo Walter Carvalho destelhando uma casa para filmar em Quilombro, a recriação do assassinato de uma criança em O engenho de Zé Lins: “Ele não faz pose
de cineasta experimental, não é hedonista, você precisa ter olhos
atentos para perceber as inovações.”
No início dos anos 1960, o crítico Paulo Emílio Salles Gomes e
o cineasta Nelson Pereira dos Santos criaram, na UnB, o primeiro
curso de cinema em uma universidade brasileira. A experiência foi
implodida com o golpe militar, a invasão do câmpus e a demissão
de mais de 200 professores. E, para Sérgio Moriconi, foi Vladimir
quem fez o curso de cinema, efetivamente, funcionar, ao retomá-lo
no início dos anos 1970, em uma Brasília sitiada pelo regime
militar: “Graças à habilidade política de Vladimir, que concebeu
os currículos, conseguiu recursos para comprar equipamentos e
mobilizou os alunos para produzir filmes. O peso dele é importantíssimo no sentido de obter condições culturais, técnicas e políticas para se fazer cinema na cidade”.
Na cruzada em favor de uma cinema candango, Vladimir
defendeu, em certo momento, a ideia de que Brasília teria vocação
para o documentário. Não é uma cidade dotada de indústrias; os
possíveis patrocínios viriam da área institucional para filmes didáticos a serem exibidos nas redes de escolas e universidades, calculava Vladimir, no seu estilo veemente e épico: “Esteticamente, as
novas gerações fizeram um cinema de ficção, que se contrapôs
182
Severino Francisco
completamente à proposta de Vladimir”, comenta Moriconi. “A
dinâmica da cidade, com a criação dos instrumentos para fazer
cinema, com os editais e as novas formas de produção, mudou os
valores. Essa geração cresce com Renato Russo, não tem mais nada
a ver com a nossa geração politizada e utópica dos anos 1960 a
1970. Renato Russo condensa muito bem o ethos das novas gerações. O cerceamento político arrefeceu e elas são marcadas pela
angústia existencial e não pela política. O José Belmonte é um
exemplo. O René Sampaio também. O Adirley Queiroz estaria mais
próximo do Vladimir pelo gosto documental, mas é um franco
atirador. Se quisermos usar uma imagem, ele seria um Vladimir
alucinado e anárquico, pois parte do documentário para a ficção”.
Filho de um Dom Quixote sertanejo comunista e de uma mãe
católica fervorosa que levava comida para os pobres e os presos, ele
herdou o idealismo social e a compaixão humana militantes. Aos
80 anos, ele continua entusiasmado com o projeto de um documentário sobre o pintor pernambucano Cícero Dias e a exercer uma
solidariedade franciscana, pungente, democrática e absoluta.
Depoimentos
“Lembro-me de Vladimir Carvalho, o Rosselini do sertão, Vertov das
caatingas, Flaherty de Euclides da Cunha”. / Glauber Rocha, cineasta,
em Revolução do Cinema Novo (reproduzido no Correio Braziliense,
31/01/2015).
“Sempre tive muita admiração pelo trabalho dele. É muito original,
muito autêntico. Ele dialoga com o documentário antropológico, com
Jean Rouch, e dialoga com o documentário brasileiro, investigativo e
social (...) A obra do Vladmir é como os bons vinhos, vai melhorando com
o tempo. Coisa de mestre”. / Renato Barbieri, documentarista, diretor de
Atlântico Negro – Na rota dos orixás (1998) e Bianchetti (2010).
“Conheci o Vladimir vendo Conterrâneos velhos de guerra, (...) Tenho
uma admiração muito grande por ele. Às vezes, quando bate um desânimo, uma vontade de desistir das coisas tão difíceis, eu me lembro do
Vladimir e me animo novamente”. / Iberê Carvalho, cineasta, diretor de O
último Cine Drive-In e Para pedir perdão.
“Vladimir representa a figura emblemática de uma luta política que
permitiu o surgimento de uma produção local para muitos, como
professor, realizador e pensador de cinema”. / José Eduardo Belmonte,
cineasta, diretor de Alemão e Se nada mais der certo.
Brinde ao cangaceiro do cinema
183
XI. Resenha
Autores
Adelson Vidal Alves
Historiador, pós-graduado em História Contemporânea e professor de História.
Luiz Eduardo Soares
Antropólogo, professor de Sociologia da Universidade do Estado do Rio de Janeiro e
ex-secretário nacional de Segurança Pública.
O golpe, as armas e a política
Adelson Vidal Alves
A
rememoração do Golpe de 64, que completou 50 anos no
último ano, produziu intensa movimentação editorial no
país. O livro aqui examinado é um destes esforços bibliográficos. O trabalho, essencialmente, reúne o olhar das forças
democráticas sobre o golpe e também sobre todo o percurso do
regime que sentenciou o Brasil a 21 anos de restrições às liberdades civis e políticas. Os mais de 30 artigos abordam, com relativa
desigualdade, o comportamento das esquerdas e das forças oposicionistas durante o regime, assim como a antessala da chegada
dos generais ao poder. Mais que isso, também apresentam a reflexão da atuação e articulação de vários atores sociais e políticos
que compuseram a arena política do período ditatorial brasileiro.
Reflexão essa que nos faz compreender o desenvolvimento teórico
destes atores e sua aplicação, correta ou equivocada, no desenho
do destino final do governo dos generais.
A obra, ainda, nos obriga ao registro de um elogio especial
destinado à Fundação Astrojildo Pereira por seu esforço persistente em manter de pé ações que honram a luta, histórica ou
atual, das forças progressistas comprometidas com a democracia
e suas instituições. Deve-se registrar, porém, que não foi possível
resenhar o livro em sua totalidade de artigos. Houve a opção de
escolher 8 dos 31 trabalhos, que entendi como a essência da
mensagem, sem, no entanto, mostrar qualquer desprezo pelos
outros trabalhos, que podem e devem receber atenção em outros
artigos ou resenhas.
187
Iniciemos, então, pelo texto de Roberto Freire, deputado e
presidente nacional do PPS. Freire, homem de convicções democráticas, nos traz uma bela narrativa de sua trajetória pessoal, o
que enriquece seu artigo com detalhes preciosos de sua memória.
O levante de 1935 e outras opções do PCB são trazidos à tona
como erros históricos, no julgamento do autor. Ele registra a renovação do partidão a partir de 1956/1958, sobretudo com a famosa
Declaração de Março, que colocou o partido nos rumos de uma
política ampla e democrática, na certeza da necessidade de afirmar
o caminho pacífico até o socialismo. Nem mesmo a supervalorização do PCB na derrota da ditadura foi capaz de arranhar o
brilho do artigo.
Seguindo, temos o trabalho de Luiz Sérgio Henriques, editor
do site Gramsci e o Brasil e organizador das obras do comunista
italiano em português. Com sua costumeira escrita refinada, Luiz
Sérgio aborda a problemática de frente democrática. Inicia
tratando do caráter da ditadura brasileira. A despeito de avaliações simplistas, que dão a ela a roupagem reacionária e até
fascista, Henriques recupera a lúcida compreensão de que, por
aqui, não se repetiram as experiências de alguns golpes que triunfaram na América Latina. Prevaleceu o processo de modernização,
ainda que pelo alto e com congelamento das atividades políticas
da sociedade civil. Vem ainda o alerta para aqueles que se propõem
compreender os caminhos do PCB sem perceber os momentos
tensos de ilegalidade. O autor também traz a avaliação quanto a
“passagem de bastão” entre as esquerdas (PCB-PT), no que diz
respeito ao protagonismo nacional, sem, no entanto, deixar de
fazer críticas aos governos petistas, que, aproveitando-se das
conquistas da democratização, não foram capazes de assimilar a
importância das vitórias que trouxeram a institucionalidade inaugurada com a Carta de 1988.
O sociólogo José Antonio Segatto dá atenção especial aos
acontecimentos que antecederam o fatídico 31 de março de 1964.
Elogia os tempos de Jango, tratados pelo autor como auge da
experiência democrática, na qual foi possível a emergência de
vários setores das classes subalternas como força organizada no
cenário político. Destaque para os camponeses e seus sindicatos
rurais, que foram capazes de conquistar o Estatuto da Terra,
depois de serem deixados de lados no processo de revolução
passiva em 1930, quando o Brasil muda seu eixo agrário-exportador e ingressa na industrialização.
188
Adelson Vidal Alves
A abordagem de Segatto também faz menção aos momentos
históricos brasileiros em que a democracia fora ameaçada por
golpes: 1954 contra Getúlio; 1955 contra Juscelino Kubitschek;
e 1961, quando se tentou impedir a posse de João Goulart. São
lembranças que nos ajudam a compreender a marca do golpismo
presente em nossas elites, mas que também alcançou as
esquerdas. Lembra bem o autor as várias tentativas de promoção
das reformas de base de cima para baixo, inclusive com fechamento do Congresso, como defendeu Leonel Brizola, o mais afoito
das lideranças esquerdistas.
Finalizando seu artigo, o professor da Unesp traz à tona outro
emblemático episódio: o Plano Trienal. O plano foi construído por
Celso Furtado e San Tiago Dantas, numa tentativa de reorganizar
a economia nacional. Com os ânimos acirrados, a direita acusou
o plano de nacionalista e estatista e a esquerda acusou o governo
de sacrificar os trabalhadores. Com o clima tenso e o presidente
no meio de várias pressões, ficou difícil sustentar a democracia.
O jornalista Luiz Carlos Azedo faz, em seu curto artigo, uma
colocação incômoda para muitos da esquerda. Isto porque, como
lembra o autor, os tempos atuais, com Comissões de Verdade e
mandatos presidenciais sucessivos de dois resistentes da ditadura (sendo um deles guerrilheira), costumam dar glamour à luta
armada no regime militar. A posição de Azedo ressalta a hegemonia dos liberais no processo de redemocratização, tendo Ulisses
Guimarães, o MDB e o PMDB como principais protagonistas.
A transição para a democracia contou com o olhar moderado e
equilibrado das forças liberais e de centro, enquanto a esquerda
persistia em seu sectarismo. Difícil não lembrar que as esquerdas
torceram o nariz para a candidatura de Tancredo Neves no Colégio
eleitoral. O PT chegou a expulsar quatro parlamentares que
votaram no habilidoso político mineiro. O Partido dos Trabalhadores voltaria a repetir seu sectarismo na construção da nova
Constituição quando votou contra da tribuna, chamando a nova
Carta de “vagabunda”.
A discussão quanto à velha questão sobre o que de fato aconteceu em 1964 (golpe ou revolução?) ganhou a atenção de Ivan
Alves Filho. O autor alerta para o caráter deste tipo de debate,
sempre exposto a visões subjetivas e apaixonadas, haja vista a
proximidade do objeto histórico em questão. Mesmo assim, Ivan
Alves delimitou a diferença entre golpe e revolução, lembrando
que o primeiro é tão somente a usurpação do poder por um grupo
O golpe, as armas e a política
189
que geralmente mantém intacta as estruturas sociais, enquanto
uma revolução promove mudanças profundas com distribuição de
renda. 1964 seria, ainda, segundo o autor, o resultado de conflitos
entre atores sociais de cima e de baixo, mas também uma cisão
nas classes dominantes.
Com Luiz Werneck Vianna, um dos grandes intérpretes do
Brasil, o golpe recebe comparações com um outro tempo brasileiro: o Estado Novo. Para o autor, trata-se de dois momentos
modernizantes e autoritários do país, que lançaram bases de
nossa ida à modernidade, sufocando, porém, a atuação livre dos
atores sociais. O sociólogo elenca semelhanças, mas também diferenças, sobretudo ao identificar 1937 com o estilo europeu, particularmente italiano, e 1964 com o modelo americano. Finaliza
identificando as consequências sociais do regime, promotor de
desigualdades e exclusão, e chamando a responsabilidade para a
recuperação da democracia política.
Por fim, chegamos aos dois últimos artigos propostos nesta
resenha, escritos pelo cientista político Marco Aurélio Nogueira e
pelo historiador Alberto Aggio.
Nogueira traz a reflexão necessária sobre a história e seus
desdobramentos: a relação entre passado, presente e futuro. Isto
porque nada começa do zero, o que aconteceu ontem influencia
hoje e nos dá elementos para construir o amanhã. Olhando por
esta perspectiva, Marco Aurélio nos propõe, mais que simplesmente entender 1964, tirar dele lições que nos vacinem contra
novos golpes que possam interromper a caminhada cívica e democrática na qual sonham trilhar todos os cidadãos de bem. Para
isso, faz-se necessária uma reflexão cientifica, entendendo
motivos, significados e legados que os 21 anos de ditadura militar
deixaram para o Brasil.
O sociólogo ainda faz críticas duras a partidos e políticos de
hoje, que ainda não conseguiram compreender verdadeiramente a
necessidade de analisar o tempo dos generais e agir para que as
novas gerações vejam nele um exemplo do que não pode ser nosso
país. Como afirma Nogueira, o golpe não foi inevitável, mas fruto
de ações dos homens, com seus erros e cegueiras. Conseguiu
apoio até mesmo entre as massas, não sendo assim um simples
golpe das elites reacionárias. Repensar 1964 seria a forma pedagógica permanente para seguirmos convencidos da necessidade
de consolidar a democracia.
190
Adelson Vidal Alves
Alberto Aggio, historiador e especialista em América Latina, nos
apresenta uma competente comparação entre o golpe brasileiro e o
golpe chileno, o golpe que destituiu João Goulart e o que destituiu
Salvador Allende. O artigo é cheio de detalhes dos dois acontecimentos, seja para mostrar semelhanças, como a presença dos EUA
e a redemocratização pactuada, seja para acentuar as diferenças,
como a ênfase neoliberal da ditadura chilena, que praticamente foi
precursora dos neoliberalismos de Tatcher e Reagan.
A ditadura chilena trouxe sequelas mais longas, devido à
repressão e à violência de Pinochet, o ditador que foi a personalização dos anos de chumbo de nosso vizinho sul-americano. Foram
golpes que não aconteceram simultaneamente, motivo pelo qual
Aggio mostra com habilidade a particularidade de cada um, apresentando ao leitor uma abordagem rara de acontecimentos
distintos, mas que nos soam tão próximos.
O livro não chega a fazer uma revolução historiográfica, mas
traz detalhes e olhares minuciosos sobre aspectos que podem
passar despercebidos em outras abordagens. Visto do ângulo
das forças democráticas, vai além de uma simples coleção de
artigos de combate aos males da ditadura, constituindo reflexões
maduras de pesquisadores sérios e comprometidos com os
valores democráticos.
Não foi possível, como dito anteriormente, abordar todos os
textos. Ficaram de fora escritos preciosos como o de Armênio
Guedes. Porém, acredito ter sido possível um primeiro conhecimento da obra, que ainda traz documentos e artigos históricos
do PCB e alguns de seus militantes mais destacados. Mesmo
guardando certa semelhança nas teses centrais sobre o objeto
histórico, trata-se, sem dúvida, de uma contribuição preciosa
para quem quer conhecer os anos de chumbo sem os heroísmos
e fatalismos que a moda acadêmica e jornalística pode apresentar em nossos dias.
Sobre a obra: 1964: as armas da política e a ilusão armada.
Caetano Pereira de Araújo (Org.). Brasília: Fundação Astrojildo
Pereira, 2014. 505p.
O golpe, as armas e a política
191
Bravura cívica
Luiz Eduardo Soares
C
ada um de nós tem suas admirações particulares. Roberto Saviano é um dos meus herois, desde que li Gomorra e
soube de sua saga pessoal. Agora, em ZeroZeroZero, seu
livro mais recente, ele foi ainda mais longe. Saviano atua em um
gênero que pinça o nervo de nosso tempo: convencionou-se denominá-lo jornalismo literário. Para os céticos, esse título significa
nem literatura, nem jornalismo. Uma espécie de dupla traição: à
autonomia estética do discurso literário e à objetividade neutra
do jornalismo, supostamente desapaixonado, livre da força poética das palavras e refratário à imaginação. Prefiro virar esses
argumentos pelo avesso: sem o encantamento da linguagem, que
requer ourivesaria estética, os relatos, por mais comprometidos
que fossem com a descrição fiel da experiência, perderiam a voz,
consumidos numa aridez opaca. Sem o toque da imaginação, o
que seria das narrativas? Sem fantasia, o que seria do realismo?
Sem a arquitetura formal que dá à literatura a dignidade da arte,
o que seria da verossimilhança documental? Sem afeto, sedução,
empatia e compaixão, como celebrar o pacto da objetividade com
o leitor? E sem o cascalho do cotidiano, e seus odores, o que seria da ficção? Além disso, Saviano é um desses exemplos raros e
comoventes de bravura cívica que o cinismo militante da opinião
pública costuma recusar-se a reconhecer, depois de uma salva
de palmas protocolar n’alguma premiação para apaziguar nossa
consciência. Afinal, reconhecer suas opções, sua trajetória e os
riscos que alguém assim aceita correr em nome do que um dia
chamamos “bem comum” nos envolveria a todos, nos mobilizaria, nos obrigaria moralmente a dar-lhe as mãos, chamá-lo irmão,
abrir-lhe nossas casas, engajando-nos na mesma cruzada cidadã.
Melhor tocar a vida. Já são muitos os nossos problemas privados.
Vamos então à obra.
ZeroZeroZero, de Roberto Saviano, é um grande livro cuja
leitura será indispensável para quem tiver coragem de olhar nos
olhos a barbárie contemporânea e de repensar o que supomos
saber sobre nosso tempo – e talvez sobre nós mesmos. Parece
exagero? Explico meu entusiasmo. Os grandes livros, em minha
opinião, são os que nos transformam, incidindo sobre a visão de
192
mundo e os sentimentos dos leitores. Iria mais longe: são aqueles
que também transformaram seus autores.
Impacto dessa magnitude existe quando se lê Gomorra, a obra
sobre máfias italianas que tornou seu autor mundialmente conhecido e respeitado – menos pelos criminosos, que reagiram fazendo
de sua vida um inferno, obrigando-o a exilar-se e a cercar-se de
escolta, dia e noite. Esse mesmo efeito transformador, em voltagem
ainda mais intensa, é provocado por seu livro mais recente, que a
Companhia das Letras acaba de lançar no Brasil, em excelente
tradução. Entre os dois, Roberto Saviano explorou o universo literário, dialogando de outra forma com seus fantasmas. Em Zerozerozero, apelido da cocaína pura, Saviano deixa a ficção de lado,
mergulha no osso do real, e retoma o fio da meada maldita,
seguindo o rastro de sangue e pólvora mundo afora, identificando
os vestígios da crueldade mais assombrosa e desnudando o
processo econômico e político que fez da cocaína o segundo negócio
mais lucrativo do planeta, abaixo apenas do petróleo.
“Ah! Eu sei, eu sei, mais um livro sobre drogas e violência,
dinheiro sujo, corrupção, essas coisas...”, talvez você resmungue,
atribuindo à obra de Saviano a redundância que há tempos o
afastaram das tediosas páginas policiais dos jornais, que lhe
servem a ração diária de miséria humana. Mas antes que você
desista desta resenha e do livro, pergunto-lhe o seguinte: você
estaria disposto a suspender sua crença de que as práticas comerciais ilegais de substâncias ilícitas constituem apenas o lado B da
economia global, uma espécie de margem ou sombra da qual não
há como livrar-se inteiramente, mas que não participa das decisões que defninem nosso destino coletivo? E se eu lhe disser que
não é assim que as coisas funcionam, que o lado B já se fundiu ao
lado A, e que o poder que a margem mobiliza anula essa topografia antiquada e ingênua? E se eu lhe afirmar que suas noções
de Estado, soberania, justiça, legitimidade democrática, monopólio do uso da força, instituições da ordem e valores republicanos talvez precisem de um banho de realidade, um mergulho no
ácido da evidência que as deformará?
Pronto, agora que conquistei sua atenção e suspendi sua
expectativa a respeito do que provavelmente seria um livro sobre
cocaína e suas tramas transnacionais, compartilho com você
alguns dados que abalam qualquer pessoa sensata e inteligente.
Em 2009, como sabemos, o mundo entrou em colapso. As dívidas
eram negociadas em fluxo contínuo e a moeda eram outras dívidas,
numa cadeia infinita, cuja confiabilidade residia no suposto poder
Bravura cívica
193
inabalável das instituições financeiras. Pois a hora da verdade
chegou: não havia terra firme sob as vaporosas expectativas de
pagamento. A bolha revelou-se o que era, e desmanchou no ar. Ou
o governo americano (e logo os demais) emitia moeda e traía o
dogma do livre mercado, ou outras torres tombariam: os bancos
quebrariam, drenando para o ralo a economia global. O buraco
inicial representava algo em torno de U$ 1 trilhão. Naquele
momento, só um setor da economia continuava a girar sem
problema de liquidez: o tráfico de cocaína, que lavou de imediato
352 bilhões de dólares, injetando-os nas instituições financeiras
desidratadas. Cerca de um terço da liquidez mundial era dinheiro
sujo de sangue. A crise demonstrou a pujança da cocaína e a
vulnerabilidade do capitalismo financeiro desregulado.
São produzidas, anualmente, entre 788 e 1060 toneladas de
cocaína, segundo dados do World Drug Report, de 2012. A maior
fonte de exportação continua sendo a Colômbia, responsável por
cerca de 60% da coca que circula no mundo, a despeito do desmantelamento dos cartéis de Medellin e Cali, e também das Farc, que
se tornaram agentes do narcotráfico. A política de erradicação das
plantações aplicada por sucessivos governos colombianos, em
aliança com os EUA, solapou as bases tradicionais da economia
camponesa e devastou o meio ambiente, o que promoveu a
dispersão de comunidades rurais e o fracionamento da produção,
tornando os pequenos produtores mais vulneráveis aos barões da
droga, os quais intensificaram a exploração, investiram nas intermediacões e elevaram a margem de lucro. O resultado tem sido o
êxito de centenas de micro-cartéis e o fortalecimento de um deles,
o Norte del Vale. A crise colombiana não eliminou a produção,
mas deslocou as disputas por mediações comerciais para o México,
onde mais de 70 mil pessoas já foram assassinadas na guerra
interna ao narcotráfico. Aproximadamente 20 milhões de cidadãos cruzam todo ano os três mil quilômetros de fronteiras que
separam o país dos Estados Unidos, principal consumidor. Impossível conter os fluxos que se adaptam a todas as circunstâncias e
driblam as tentativas de controle.
A situação do México é particularmente dramática, porque a
proliferação de grupos criminosos ampliou e agravou a disputa por
domínio territorial, que corresponde ao poder sobre canais de
exportação para o formidável mercado norteamericano. A partir de
determinado ponto, o dinheiro não é mais contado, mas pesado, e
se desloca com tanta rapidez e facilidade que as narcomáfias mexicanas não têm tido dificuldade em recrutar mercenários e cooptar
194
Luiz Eduardo Soares
militares, policiais e políticos, ou em armar-se com tecnologia sofisticada e equipamentos de última geração. Essa, aliás, é a marca
que se generaliza no universo da cocaína: grana e armas, poder
para corromper, chantagear e matar. Em meados dos anos 1980,
Pablo Escobar, líder do cartel de Medellin, lucrava meio milhão de
dólares por dia. O capo foi morto, seu cartel liquidado, mas os
negócios só prosperaram, em escala global, envolvendo empreendedores das mais distintas nacionalidades e organizações criminosas
de todos os continentes.
Entre 2005 e 2007, a Marinha colombiana apreendeu 18
submarinos, identificou 30 e estimou que outros 100 estivessem
em operação, transportando a droga pela costa do Pacífico até a
California. O narcotráfico transnacional já acumulou capacidade
técnica, acesso a componentes e capital suficientes para produzir
seus próprios submarinos, muitos dos quais em fibra de vidro.
Seu arsenal inclui helicópteros M18, do exército soviético, aeronaves mais novas, aviões de todas as dimensões, inclusive boeings,
e embarcações dos mais variados tipos.
Falamos em armas e guerras com a superficialidade dos que
não as vivenciam, diretamente, ainda que no Rio de Janeiro esta
seja uma experiência diária para muita gente. A narrativa forte de
Saviano não admite a indiferença e o tom blasé. O autor nos leva
pela mão aos mais variados cenários da tortura perpetrada por
narcotraficantes em todo o mundo, ao longo do livro. Faz questão
de nos conduzir aos escombros da modernidade, o outro lado da
moeda, a face perversa da economia civilizadora: a crueldade
extrema. O leitor talvez tente virar os olhos, como eu fiz tantas
vezes, mas há ali, em cada capítulo, uma espécie de imperativo
ético que nos impele a não abandonar a vítima, a acompanhar o
relato com os olhos bem abertos. As cenas se prolongam além da
leitura, eu lhe asseguro. A crueldade não é regida pelo cálculo
utilitário ou pelas paixões ordinárias. Há algo mais, ou menos, um
excesso, ou uma falta. Não se trata de atavismo animal ou apego
à natureza selvagem. Os animais matam para sobreviver.
O universo selvagem busca a vida, e por isso elimina o concorrente que ameaça. Não se compraz com a dor alheia. A crueldade
é código exclusivamente humano.
Saviano nesse ponto nos dá uma lição preciosa: não procurem
na natureza humana essa brutalidade assombrosa. Ela se ensina e
se aprende. Por isso, o crime organizado em todo o mundo, das
máfias ao terrorismo, quando adota a violência como linguagem,
inventa assinaturas em seus assassinatos, disputa com grupos
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rivais a intensidade dos tormentos a que submete suas vítimas e se
mede pela habilidade em transformar seu poder em dor, medo e
humilhação. Na verdade, os grupos imitam-se uns aos outros para
diferenciar-se e quão mais se esforçam por distinguir-se e afirmar
suas marcas singulares, mais se constituem em espelhos de seus
inimigos. Esta a lógica mimética e paradoxal que rege a cultura da
violência. A intensificação da brutalidade é o reconhecimento
prático da própria impotência: gira-se em falso e a energia depositase no mesmo, por isso só resta elevar a voltagem até o limite da
própria força, atestando sua subordinação à órbita do outro – do
qual procurava afastar-se e distinguir-se para o suplantar.
E o Brasil com isso? Nosso país é o segundo maior consumidor
mundial, atrás apenas dos Estados Unidos. Passam por aqui,
anualmente, entre 80 e 110 toneladas de pó. Metade cheira-se
aqui mesmo – estima-se em 2,8 milhões o número de consumidores brasileiros. O resto segue para a Europa e outros destinos.
O aumento do consumo de cocaína verificado na sociedade brasileira tem as mesmas causas do crescimento das vendas de automóveis, cosméticos, pacotes turísticos, cerveja, carne, smartphones e viagra: a elevação da renda média. O mercado europeu
também tem crescido bastante, ainda que por lá, de um modo
geral, a situação econômica não favoreça a elevação do consumo.
Este o paradoxal milagre dessa mercadoria única: ela dá lucro
quando tudo vai bem, porque, afinal, tudo vai bem, e há mais
dinheiro para saciar os desejos individuais. E ela vai bem quando
tudo vai mal, porque ninguém é de ferro e é preciso turbinar o
ânimo para compensar o baixo-astral ambiente e enfrentar mais
horas de trabalho ou mais tempo ocioso – e angustiante, deprimente. Observe que não se paga um papelote de cocaína a prazo,
com cheque ou cartão de crédito. Essa economia gira velozmente
porque seu combustível é a liquidez imediata e sempre disponível.
Se a demanda aumenta, nenhum problema: a oferta é elástica.
Um quilo pode facilmente converter-se em dois ou três ou quatro.
A mágica está na mistura.
Cheira-se pouquíssima cocaína no pó que se inala em Londres,
Nova York, Paris, Moscou, Roma, Rio ou São Paulo. Salvo nos
salões abastados, que recebem o petróleo branco em condições
especiais, e pagam por isso. A pureza média da cocaína na Europa
varia entre 25% e 43%. Em minha pesquisa pessoal, da qual
resultou o livro, Tudo ou nada: a história do brasileiro preso em
Londres por associação ao tráfico de duas toneladas de cocaína
(Nova Fronteira, 2012), constatei que a coca sai da Amazônia
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colombiana com 85% de pureza (não pode ser 100% porque é
necessária a adição de produtos químicos para proteger a coca da
umidade e dos efeitos de algumas condições extremas) e é vendida
no varejo, na Inglaterra, com apenas 15% de pureza. Ou seja, o
ganho é de 600%, considerando-se o preço da mercadoria no
atacado, adquirida na matriz. Claro que há os custos do transporte, da corrupção de agentes, a taxa média de perda etc. Ainda
assim, a margem de lucro é considerável. Registre-se que a saúde
dos consumidores abusivos é afetada muito mais pelos componentes misturados à coca do que pela própria substância que dá
nome à mercadoria.
Em todo lugar, o consumo de cocaína democratizou-se.
Enquanto as Américas ficam com 450 toneladas a cada ano, a
Europa consome 300 toneladas, anualmente. 13 milhões de europeus já usaram a droga, 7,5 milhões entre 15 e 34 anos. No Reino
Unido, o número de usuários quadruplicou, na última década. Na
França, dobrou, entre 2002 e 2006. Estima-se que entre 20% e
30% da produção de cocaína pura destinam-se ao mercado europeu.
As multinacionais da cocaína ramificaram-se por todas as
regiões, aproveitando cada oportunidade para explorar a demanda
potencial e imiscuir-se nas redes políticas, sociais e econômicas
institucionalizadas. A promiscuidade com o mundo legal é seu
método de autoproteção, torna-se tática de reprodução e fortalecimento, até converter-se em sua própria natureza, porque, a partir
de determinado ponto, não é mais possível distinguir os elos legais
dos ilegais, as dinâmicas lícitas das criminosas. Os narcoempresários cercam-se de PhDs, gestores tarimbados que trabalham com
metas e esquemas meritocráticos, operadores financeiros de
primeira qualidade, sócios bem situados na arena transnacional,
conselheiros econômicos e políticos refinados, com trânsito irrestrito no universo empresarial, jurídico-político e na grande mídia.
O capital errante lava-se na aquisição de hotéis, restaurantes,
redes de supermercados e shopping centers, revendedoras de automóveis, instituições financeiras e indústrias, ou associando-se a
empreiteiras e megaempreendimentos, inclusive nas áreas de
energia, em especial petróleo e gás.
No passado, o pó corria atrás do dinheiro, dos circuitos do
capital para parasitá-lo e fertilizar a fortuna dos cartéis, ainda
insulados e territorialmente circunscritos, falando sobretudo espanhol. Hoje, são os mercados que buscam atrair a fortuna dos cartéis
e acercar-se dos narconegócios, falando todas as línguas da babel
capitalista. Agora, é o dinheiro que gravita em torno do pó. Décadas
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atrás, o narcotráfico precisava de paraísos fiscais para lavar seus
lucros milionários. Hoje, Nova York e Londres, Wall Street e a City
são as grandes lavanderias globais, e os lucros são bilionários.
O sistema bancário na matriz do capitalismo já deu mostras de que
não tem grande interesse em investigar a origem de depósitos,
transferências, trocas de papéis e títulos, dívidas e créditos em
fluxos financeiros das mais diversas modalidades. Mesmo quando
essa identificação, digamos, arqueológica é viável, hipótese cada
vez menos provável. A análise de Saviano é penetrante e conclusiva. Não autoriza ilusões.
O exemplo russo talvez seja o mais eloquente e dramático.
Enquanto a União Soviética agonizava, máfias preparavam-se
para o dia seguinte. Grupos criminosos durante muito tempo
abasteceram a dispensa dos membros da Nomenklatura com o
contrabando de todo tipo de produto e saciaram o apetite generalizado na população por mercadorias ocidentais inacessíveis.
Essa prática duradoura lhes permitiu acumular contatos estratégicos na alta hierarquia do partido comunista e informações
confidenciais comprometedoras sobre funcionários poderosos.
Contatos e informações, naqueles tempos sombrios, valiam mais
que rublos decadentes.
Quando o muro finalmente ruiu e a União Soviética
desmembrou-se, os empreendedores mafiosos estavam prontos
para agir. A riqueza estatal foi rapidamente apropriada por lobos
vorazes que monopolizavam o conhecimento relativo a processos
decisórios, modos de operação, quais atores estariam dispostos a
assumir iniciativa e que regras do jogo seriam aplicadas. Assim,
agentes empreendedores da Nomenklatura em aliança com máfias
locais herdaram parte expressiva do patrimônio estatal soviético e
legaram à etapa capitalista que se instalava um padrão violento e
despudoradamente refratário aos princípios supostamente equitativos do mercado. O negócio da cocaína, que já era próspero no
período anterior, mostrou-se extraordinariamente promissor. Não
por acaso articulou-se com empreendimentos bilionários nas
áreas de petróleo e gás. Tal promiscuidade chegou a constituir-se
no eixo de conflitos entre Rússia, Ucrânia e Europa, relativos à
distribuição de gás, cuja importância é vital para os países europeus. Tampouco é arbitrário o fato de que um agente chave nessa
rede estratégica, o mega mafioso Mogilevich, antes de ser desmascarado tenha assumido o controle de um banco russo de prestígio
internacional, o Inkombank, entre 1994 e 1998. Sua rede de
contas envolvia o Bank of New York, o Bank of China, o suiço UBS
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Luiz Eduardo Soares
e o Deutsche Bank. Outras histórias estão em curso, furando
bloqueios e contando com parcerias insuspeitadas.
Reitero o ponto: dadas a magnitude, a escala e a complexidade
dos fluxos financeiros provenientes do narcotráfico, tornou-se
impossível separar o joio do trigo, mesmo quando há interesse em
fazê-lo por parte de agentes financeiros, policiais, jurídicos e políticos. A dinâmica do capitalismo financeiro globalizado e a agilidade dos narconegócios, turbinados pela instantânea liquidez de
suas operações, gestaram um novelo inextricável. Quão mais
desenvolver-se a economia, mais se potencializará o narcotráfico,
seja na ponta do consumo, seja por sua articulação orgânica com a
economia legal. Na escala multibilionária dos mercados globais, a
diferença legal-ilegal foi condenada à obsolescência, o que nos deixa
diante de um dilema do tamanho do planeta: ou legalizamos as
drogas e purgamos o veneno letal que infecciona e intoxica governos,
instituições e sociedades, ou vamos continuar pavimentando o
caminho para a destruição de governos, instituições e sociedades,
crescentemente destroçados pela corrupção e a violência.
Sobre a obra: ZeroZeroZero, de Roberto Saviano. Tradução de
Frederico Carotti, Marcello Lino e Maurício Santana Dias, Companhia das Letras, 2014. 408p.
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