Em defesa da democracia, pelas reformas e contra todas as formas

Transcrição

Em defesa da democracia, pelas reformas e contra todas as formas
DEBATES Nº 19
Janeiro de 2015
Apresentação
Página 3
“Em defesa da Democracia e do
Estado Constitucional Democrático de Direito”
Discurso do Grande Expediente de Villa em 10 de dezembro de 2014
Página 4
Em defesa da
democracia,
pelas reformas e
contra todas as
formas de intolerância
Perigo que ronda a democracia*
Artigo do deputado Adão Villaverde
Página 15
Urnas: a democracia venceu a intolerância
Artigo do deputado Adão Villaverde
Página 16
A revolta dos punhos de renda
Artigo do sociólogo e coordenador da ULD Gerson Almeida
Página 19
Moralidade Seletiva
Artigo do advogado Antonio Escosteguy Castro
Página 22
Isolando dois extremos: o xenofobismo e o medo. Mais de 4 milhões nas ruas
ADÃO VILLAVERDE
ANTONIO ESCOSTEGUY CASTRO
GERSON ALMEIDA
MOISÉS MENDES
GENNARO CAROTENUTO
SANDRO ARI ANDRADE DE MIRANDA
Artigo do deputado Adão Villaverde
Página 24
Oportunistas
Artigo do jornalista Moisés Mendes
Página 25
Fascismos
Artigo do Correspondente do semanário “Brecha” em Roma Gennaro Carotenuto
Página 26
PUBLICAÇÃO DO GABINETE DO DEPUTADO ESTADUAL ADÃO VILLAVERDE (PT-RS)
Terrorismo e oportunismo de direita: a resposta inadequada
da sociedade francesa às origens do atentado de Paris
Artigo do Advogado, mestre em ciências sociais Sandro Ari Andrade de Miranda
Página 29
Debates nº 19
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Apresentação
“Em defesa da Democracia
e do Estado Constitucional
Democrático de Direito” *
A
defesa da democracia como valor universal é um exercício obrigatório, cotidiano
e permanente de todos os humanistas. Mas, especialmente em espaços públicos
como o Parlamento gaúcho, legitimado pela pluralidade política e social que detém,
ela deve ser praticada com dimensão ampliada da representação que nos é delegada
pelos habitantes do solo rio-grandense.
Em nossos mandatos, temos, recorrentemente, subido à tribuna do Plenário Legislativo e ecoado alertas contra ameaças de retrocesso, como um dever parlamentar e
prática cidadã pela consolidação do Estado Constitucional Democrático de Direito, que
regra as relações em sociedade em nosso país depois que a ditadura, após 21 anos
de terror, foi espantada pela resistência e coragem de brasileiros e brasileiras que
sonhavam com um Brasil melhor, mais justo e igualitário para todos, muitos perdendo a
vida por este ideal.
A própria presidenta Dilma é um símbolo desta resiliência que não se abateu na
tortura e, sobretudo, emblema da vitória da democracia, fortalecida nas urnas com a
expressão explícita da vontade da maioria da população.
Tratamos disto nos artigos que seguem, elaborados na incandescência dos acontecimentos, mas com o rigor que a reflexão política exige de todos nós.
Como fazem, em análises preciosas, o sociólogo Gerson Almeida e o
advogado
Antônio Escosteguy Castro apontam o confronto basilar entre a acumulação capitalista
selvagem e o crescimento com distribuição de renda, opondo a pregação neoliberal
aos avanços democráticos.
Manifestam igualmente a necessidade de reformas política, tributária e da mídia
para que a democracia se estabeleça definitivamente de modo substantivo, como
requer o primado da igualdade absoluta entre todos.
De igual forma e com veemência abordamos o ataque ao semanário francês Charlie
Hebdo no qual assino o artigo “Isolando dois extremos: O xenofobismo e o medo. Mais
de 4 milhões nas ruas” e compartilho excelentes artigos que trazem à luz a discussão
do terrorismo, intolerância e resgate histórico da islamofobia e do fascismo crescente
na Europa: “Fascismos”, por Gennaro Carotenuto; “Oportunistas”, por Moisés Mendes
e “Terrorismo e oportunismo de direita”, por Sandro Ari Andrade de Miranda.
Como sempre, os textos selecionados para este Caderno de Debates, carregam,
nesta edição nº 19, a preocupação prioritária de contribuir para a discussão de temas
imprescindíveis para tentarmos entender a contemporaneidade.
Villa
Janeiro de 2015
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Debates nº 19
I
nicialmente elaborei um discurso assentado da defesa da democracia e do
estado constitucional democrático de direito, à luz também da data que se
celebra neste 10 de dezembro, do Dia Internacional dos Direitos Humanos e que
ainda marcou pela manhã, em Brasília, a entrega do relatório final da Comissão
Nacional da Verdade à presidenta Dilma.
Entretanto, a agressão pública, inaceitável, desrespeitosa, vil e de conteúdo
tipificado como criminoso do deputado Bolsonaro contra a nossa colega parlamentar e sempre ministra dos Direitos Humanos, a deputada gaúcha Maria do
Rosário, me obriga a mudar a abertura deste grande expediente.
Manifesto minha integral solidariedade a Maria do Rosário que dedica sua
vida para a construção de um mundo melhor e mais igualitário para todos os
brasileiros.
Com a mesma intensidade e veemência, repúdio a ofensa inqualificável do
deputado e ex-militar e defensor da ditadura, que acoberta-se na imunidade
parlamentar para cometer atos imorais que ultrapassam limites de relações
humanas e sociais em um inicio de século XXI, que tem se caracterizado por
recorrentes pregações de barbárie e violência deste nível, que ofende toda a
sociedade e especialmente as mulheres do Brasil e do mundo.
E exatamente porque entendo que nenhum deputado será digno de seu
cargo se ficar calado, peço que esta casa solicite imediatamente a Câmara
Federal e ao Congresso as providências e medidas cabíveis a esta atitude desrespeitosa e criminosa, tipificada no art. 213 do Código Penal Brasileiro e envie
esta minha manifestação como registro histórico objetivo de tal solicitação.
Tomo a liberdade de recorrer a um texto emblemático de autoria do meu
amigo e historiador Voltaire Schiling para iniciar esta manifestação em defesa
da Democracia e do Estado Constitucional Democrático de Direito, tema central
deste Grande Expediente:
*Pronunciamento do Villa no Grande Expediente “Em defesa da Democracia e
Estado Constitucional Democrático de Direito” - 10 de dezembro de 2014
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“Getúlio Vargas pressentia de que esta sua segunda ascensão ao poder, desta
vez pelo voto popular, e não por uma revolução política, como ocorreu em 1930,
faria com que a resistência ao seu governo fosse muito maior do que em qualquer
outro tempo. A coligação de interesses atingidos pelas duas bandeiras da sua
plataforma era muito ampla a ponto dele profetizar dificuldades terríveis. Numa
entrevista a “Folha da Noite” de São Paulo, em junho de 1950, disse: “Conheço
meu povo e tenho confiança nele. Tenho plena certeza de que serei eleito, mas sei
também que, pela segunda vez, não chegarei ao fim do meu governo. Terei que
lutar. Até onde resistirei? Se não me matarem até que ponto meus nervos poderão
agüentar? Uma coisa lhes digo: não poderei tolerar humilhações. Possivelmente era
a resposta de Vargas a seu mais acérrimo inimigo, o jornalista Carlos Lacerda, que
havia dito: “O Sr. Getúlio Vargas, senador, não deve ser candidato à presidência.
Candidato, não deve ser eleito. Eleito não deve tomar posse. Empossado, devemos
recorrer à revolução para impedi-lo de governar. Como primeiro resultado da
vitória de Vargas, o partido da oposição, a UDN (União Democrática Nacional),
defendeu junto ao TSE (Tribunal Supremo Eleitoral) a tese de que Vargas deveria
ter a maioria absoluta e não a relativa. Como a constituição não afirmava esta
necessidade o TSE declarou Getúlio Vargas e seu vice, Café Filho, como legalmente
eleitos, em 18 de janeiro de 1951, tomando posse no dia 31 daquele mesmo mês
em meio a uma verdadeira festa popular”.
Me socorri da sabedoria e ao conhecimento histórico do professor e escritor Voltaire Schiling, sobre a eleição democrática de Getúlio em 1950, para
chamar a atenção para o que me parece traçar algumas semelhanças notáveis
com o que acontece hoje, no nosso país, após as eleições presidenciais.
Carlos Lacerda, um pré neoliberal de polainas, sapato bicolor e brilhantina
no cabelo, lembra personagens ressuscitados agora, 64 anos depois daquele pleito que consagrou Getúlio, incorporando o estereótipo do representante
político máximo das classes dominantes privilegiadas, da elite inconformada
com a derrota nas urnas.
Lacerda atuava em uma época de comunicação de massa sem a televisão,
sem a internet, sem as redes sociais, sem as plataformas digitais, sem os telefones celulares, que hoje compõe a “sociedade em rede” como cunhou o sociólogo espanhol Manuel Castells para contextualizar o universo globalizado e
interligado digitalmente deste início de século XXI.
Mesmo assim, através de seu jornal Tribuna da Imprensa, amplificado por
outros veículos de comunicação especialmente radiofônicos, Lacerda exercia
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Debates nº 19
uma devastadora pressão oposicionista, amparada e sustentado pelo poder
econômico nacional (insatisfeito com as reformas trabalhistas prometidas na
campanha getulista) e pelo capital internacional desgostoso a ideia da nacionalização da exploração do petróleo (também erguida como bandeira no
programa de Getúlio).
Em 1961, o golpe foi derrotado, como define o escritor e jornalista Flávio
Tavares, aludindo à vitória do movimento épico da Legalidade liderado pelo governador gaúcho Leonel Brizola em defesa do Estado Constitucional Democrático
de Direito para garantir a posse do vice-presidente eleito João Goulart quando
da renúncia de Jânio Quadros. Em 1964, como bem sabemos, a democracia é
que foi derrotada, com a queda de Jango, deposto em 1º de abril daquele ano,
por causa dos mesmos interesses contrariados das classes dominantes, dos empresários brasileiros tão assustados como os norte-americanos com as “reformas
de base”, projetadas pelo presidente Goulart.
Os constantes ataques e mentiras da mídia associados as recorrentes manifestações golpistas e de intolerância que temos assistido no último período parecem querer repetir na forma de tragédia o que já ocorreu no Brasil de 1950 a
1954 e de 1961 a 1964, onde de forma descarada era pregado um moralismo
hipócrita que levou Vargas ao suicídio e depois derrubou Goulart, que levou o
país a ser pisoteado e esmagado pelos coturnos da ditadura.
Padecemos, desde então, por 21 anos de terror, censura, perseguições,
prisões, exílios, medo, torturas, danos psicológicos, dramas familiares, suicídios e
mortes que jamais esqueceremos.
Mas também ultrapassamos este período dos ditos anos de chumbo que
registrou uma resistência incansável, embora desigual, de muitos democratas
frente ao férreo regime de arbítrio que escondeu seus próprios desvios de conduta, de recursos públicos e a corrupção nas obras megalomaníacas.
A caricatura mais adequada da política econômica adotada pelos governos
dos senhores de punhos de renda e coturnos envernizados foi “fazer primeiro
crescer o bolo e só depois repartir as fatias, que não passaram de migalhas”.
Hoje, são estas mesmas oposições aliançadas com o capital especulativo e
financeiro globalizado, que se manifestam através de canais de comunicação
mais retumbantes que o jornal e o rádio de Lacerda, que formam um gigantesco
poder multiplicado, que é fortalecido, preocupadamente, com a mídia desregulada, da qual a revista Veja é o modelo mais típico.
O que, agora, apavora tanto as classes dominantes, as elites, como Getúlio
Debates nº 19
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aterrorizava Lacerda e seus abastados acumpliciados com a questão nacional
e a reforma social e trabalhista? Mais uma vez, a razão é simples e repetitiva:
o temor da predominância da democracia legitimada pela maioria, pelo povo,
pelos mais vulneráveis, pelos mais pobres, pelos de baixo, como dizia o professor Florestan Fernandes.
Pelos que mais necessitam de apoio de políticas públicas financiadas pela
redistribuição da renda ameaçando os privilegiados que podem ter que pagar
com alguns anéis a menos.
A democracia da igualdade ou a igualdade da democracia atemoriza os
que ocupam o andar de cima, os que se sentem mais iguais.
Mas falo, mais especificamente, dos maiores afortunados brasileiros e também dos que são donos dos grupos de comunicação do país formatando conglomerados monopólicos de mídia que estendem tentáculos em outros negócios,
com o único objetivo essencial do capitalismo: vender e lucrar cada vez mais
mantendo crescente seus ganhos financeiros.
Para a visão de tais empresas, já não há mais leitores de notícias, entendida
como jornalismo produzido para esclarecer e voltado ao interesse público, mas
consumidores e clientes dos produtos informacionais, de prestação de serviços e
de entretenimento que os conglomerados colocam no mercado.
Exemplo são os jornais de domingo que, em geral, só trazem informações
desatualizadas, da manhã de sábado, que atendem exclusivamente interesses
comerciais de anunciantes e não dos leitores.
Entre as maiores fortunas do Brasil estão os herdeiros de Roberto Marinho,
da rede global de TV, jornais, revistas, plataformas digitais, e os Civita, da editora Abril da Veja, outras 42 revistas e da TV.
Os Marinho têm uma fortuna estimada em R$ 28,9 bilhões. Os Civita, R$
3,3bilhões.
Segundo a revista norte-americana Forbes, juntas, as fortunas de 15 famílias
mais ricas do Brasil somam cerca de US$ 122 bilhões, o equivalente a 5% do
Produto Interno Bruto (PIB) do país!
Dos 65 brasileiros que aparecem na lista de bilionários da Forbes, 25 são
parentes, o que aglutina ainda mais a riqueza nos mesmos cofres ou contas
bancárias.
Quando os estudiosos da comunicação dizem que “os significados se
constroem nas mentes, se propagando pelo imaginário coletivo através da mídia” é fácil de entender a imensa dimensão e alcance deste processo para
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Debates nº 19
ameaçar a democracia, com um único exemplo: a capa da revista Veja. Duvido
que as pessoas tenham lido as páginas internas das reportagens sensacionalistas desta revista, que eram pífias e não traziam comprovações fidedignas para
as afirmações do que a pesquisadora de Tecnologias da Comunicação e professora de Pós-Graduação da Universidade Federal do Rio de Janeiro, Ivana
Bentes, conceituou como “ódio jornalismo”.
No entanto, a simples capa da publicação dos Civita com uma afirmativa
pinçada de algum delator ou criminoso preso pela Polícia Federal foi transformada em grandes imagens de outdoor espalhados pelas ruas, a rede dos
irmãos Marinho repercutiu em todo o Brasil, suas afiliadas retransmitiram e outros
veículos reproduziram o que eu chamo de conteúdo filtrado e selecionado, que
não contribui em nada para o esclarecimento da opinião pública mas, sim, para
a criminalização da política, para o descrédito das instituições, para a desconfiança com o Estado e com os poderes constituídos, que geram os discursos de
intolerância, preconceitos e microfascismos que temos visto. Como a inaceitável
atitude de Bolsonaro ontem, que frente ao qual nenhum deputado ou deputada
deste país será digno do seu cargo, se ficar calado diante de tamanha intolerância, preconceito, desfaçatez e incitação a violência e a criminalidade.
É evidente que as classes dominantes, os afortunados, as elites e a mídia
construíram os seus instrumentos de instituição e poder, de cunho econômico,
paralelo aos poderes constituídos, também cúmplices dos setores dominantes.
Não se trata mais do quarto poder nem de uma instituição isolada e independente.
É, talvez, o primeiro poder, autorizado por conglomerações financeiras internacionais, por fusões, associações e propriedades cruzadas de um sistema
capitalista globalizado e conectado em rede digital mundial.
Quando se fala em defender a democracia e democratizar a mídia, portanto, não podemos ignorar esta nova configuração contextual que é muito
mais ampla e complexa do que uma simples refrega pontual de divergência
ideológica local, que não pode ser simplorizada.
Quando se menciona a democratização da mídia, corre-se o risco imediato
de provocar interpretações levianas e mal-intencionadas, que só pretendem
confundir a opinião pública aludindo a uma suposta censura à imprensa, ao
cerceamento da liberdade de expressão e outras falsidades do mesmo nível
rebaixado.
Trata-se exatamente do contrário.
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A democratização que se almeja, regrando empresas, propriedades e concessionárias dos chamados meios de comunicação de massa (como ocorre nos
Estados Unidos ou na Inglaterra, para citar potências capitalistas, sem simpatias socialistas), só beneficiará os jornalistas verdadeiros, comprometidos com a
tarefa responsável, ética e imprescindível de informar o cidadão, de perseguir
o contraditório, de cotejar versões divergentes, e sobretudo de praticar a democracia em uma dimensão radicalizada e superlativa, na qual todos os cidadãos
têm os mesmos direitos e deveres.
Quanto mais substantiva for a democracia na mídia, mais os jornalistas
poderão exercer o papel crítico e fiscalizador do poder público e da iniciativa
privada que se espera deles como profissionais preparados para a reflexão
e formados em estudos em ciências humanas, voltadas para a produção do
conhecimento para compartilhar com a humanidade.
Considerando-se o gigantesco alcance da comunicação na nossa sociedade
em rede global, de crescentes avanços tecnológicos que eliminam as fronteiras
físicas, como se pode imaginar censurar os jornalistas?
Sem vivermos mais no regime de força do tacão autoritário, como acreditar nesta falácia infantil? Diante deste contexto tão complexo e tão dinâmico
de inovação veloz das parafernálias de ferramentas e meios digitais. Como
Softwares, hardware, tablets, computadores, internet, facebooks, twitters, celulares ... que envolvem e desnudam praticamente toda a sociedade mundial
contemporânea na imensurável rede mundial do cyberespaço!
Assim, a democratização da mídia permitindo o acesso à informação aos
excluídos e a veiculação da opinião de todos os segmentos sociais é necessária
para a se estabelecer a verdadeira igualdade dos cidadãos.
Também são necessárias e fundamentais para o fortalecimento da democracia e do decorrente combate às desigualdades, outras reformas como a tributária e a política.
A desigualdade é o contrário da democracia. E no desnível tributário pode
ser mais cruel ainda pela voracidade financeira que sempre concentra.
O autor do revolucionário livro “O Capital no Século XXI”, Thomas Piketty,
professor da Universidade de Paris e estudioso do aprofundamento da concentração de renda garante que a parcela mais rica da população concentrou
ainda mais renda nas últimas décadas. Há um predomínio ainda maior do 1%
muito rico da humanidade.
Para Piketty, “deveriam existir impostos mais progressivos entre renda e
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capital. Maior taxação na renda e menos taxação no consumo e nos salários. Se
os mais ricos estão ganhando mais por ano, eles pagam mais naquele ano. Se
no seguinte eles ganharem menos, paguem menos”, simplificou.
Desde o início do governo Lula em 2002, o Brasil se orgulha de ser um dos
países que mais teve sucesso no combate à pobreza e à concentração de renda.
De acordo com a Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (PNAD), a riqueza concentrada na mão dos 10% mais ricos no país caiu de 50% para 45%
entre 2007 e 2013. De acordo com o índice de Gini, do mês de setembro e que
mede a desigualdade de renda, ela se manteve estável entre 2012 e 2013.
Piketty destaca o que foi feito no Brasil nos últimos anos, como a valorização real
do salário mínimo e o Bolsa Família como positivo, mas analisa que a diminuição da
pobreza não significa automaticamente que a renda está menos desigual.
As soluções que o professor preconiza para o Brasil não são diferentes do
que para o resto do mundo.
A taxação de renda na França, por exemplo, pode chegar a 75% para
quem recebe mais de 1 milhão de euros por ano. No Brasil, a maior faixa do
IR cobra 27,5%. Isso significaria que o país poderia aumentar a arrecadação
mesmo reduzindo impostos dos mais pobres, se criasse faixas superiores de
cobrança. O problema da progressividade nos impostos também está na taxa
cobrada sobre as heranças, segundo Piketty. “A maior alíquota do Imposto de
Renda no Brasil está em um patamar considerado baixo para os padrões mundiais, muito próxima da menor nos Estados Unidos. Precisa se criar uma faixa
para quem ganha R$ 500 mil, R$ 600 mil, R$ 1 milhão por ano. Também tem
o imposto sobre herança no Brasil, que é ridiculamente baixo. Na Alemanha,
cobra-se 40%; nos Estados Unidos, cobra-se 40% e aqui, não passa de 4%. É
preciso se discutir isso urgentemente”.
É evidente que a política pública pode intervir acionando uma recomposição
tributária para corrigir esta situação de aumento da desigualdade. Pois como
diz ele, “uma estrutura de taxação progressiva - especialmente a tributação da
riqueza e das heranças – pode se tornar uma força poderosa de limitação da
desigualdade”.
Já a reforma política é tão essencial e indispensável como as outras – a da
comunicação e a tributária – para garantir a plena vigência da democracia no
Brasil.
Mas depende da mudança da correlação de forças políticas e econômicas
que só ativos defensores da democracia podem promover, já que o Congresso
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eleito em outubro tem perfil conservador mais acentuado que o atual – no qual
quase metade dos parlamentares, 271, são proprietários, sócios ou diretores de
veículos de comunicação.
Por isso, é vital a participação da sociedade no processo de mudança do
sistema eleitoral brasileiro através de um plebiscito e convocação de Constituinte Exclusiva ou mesmo no apoio a proposta da OAB.
Somente a pressão social levará a uma reforma política mais profunda.
A reforma política pressupõe a ampliação da participação popular, voto
em lista, fortalecimento dos partidos políticos, mais representação feminina no
Poder Legislativo e fim do financiamento privado nas campanhas eleitorais.
O financiamento privado potencializa o peso do poder econômico nas
eleições, desequilibrando as candidaturas. A discussão sobre esta reforma é
importante, também, para recuperar o valor da política, desfazer a descrença
em relação ao Parlamento.
Para revalidar e reconstituir o papel da delegação de representação.
Esta minha manifestação impõe-se como um imperativo de reconhecimento e constatação, o debate e o ambiente criado em torno dele hoje no país,
transcendeu o campo político, principalmente quando golpistas e até neonazistas cruzam despudoradamente as linhas da razoabilidade e passam a atentar
publicamente contra a democracia e contra as instituições do Estado Democrático Constitucional de Direito. E o fazem infelizmente, sob o aplauso de alguns
setores irresponsáveis da oposição. E repito, como o fez Bolsonaro ontem.
Sem deixar de registrar que a judicialização da política parece querer
suceder as urnas, de modo muito preocupante. Ora pedidos de auditoria de
urnas eletrônicas, ora rigor sobre prestação de contas de campanha, não de
forma isonômicas para todas as candidaturas. Há um tratamento diferenciado
para as contas da presidenta Dilma, não há o mesmo para os demais. Cuidado,
num regime de exceção hoje poderemos ser nós, amanhã qualquer um outro
partido.
Após estas poucas décadas desde a interrupção da noite de terror de 21
anos, precisamos aqui, reavivar memórias entorpecidas que parecem ter esquecido as tragédias do arbítrio, a asfixia da censura, as dores da tortura, as
perdas dos desaparecidos e sobretudo as mortes de brasileiros que sonharam
com um país melhor, mais justo para todos.
Infelizmente precisamos, recorrente e permanentemente, revisitar as tristes
lembranças e informar às gerações mais novas o cenário aterrador dos anos de
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chumbo no Brasil desde o golpe civil, militar e midiático de 1º de abril de 1964
e até o ano de 1985. Período de escuridão que escondia os assassinos e a forte
corrupção nas trevas do cerceamento à imprensa.
Recebemos desta etapa da trajetória do país uma imensa dívida imaterial
que só agora começa a ser quitada com o fim da política do esquecimento, por
meio do trabalho das comissões da verdade.
Por especial coincidência, no dia de hoje, quando se comemora o Dia Internacional dos Direitos Humanos, a presidenta Dilma Rousseff recebe o relatório
da Comissão Nacional da Verdade que ajudará a reconstruir a memória e a
verdade da trajetória recente do Brasil. Como aconteceu na semana passada
com o documento semelhante da nossa Comissão Estadual da Verdade entregue
ao governador Tarso Genro. Estamos dando mais um passo para desbloquear a
política de esquecimento que vivemos, mesmo depois da ditadura ter se “encerrado” oficialmente em 1985.
Hoje em Brasília, o coordenador da Comissão Nacional da Verdade, o advogado
Pedro Dallari entrega o relatório final, dividido em 3 volumes, após 29 meses
de atividade, contabilizando 421 mortos ou desaparecidos por razões políticas
durante a ditadura. São 59 nomes além dos que já existem na lista oficial da
Comissão de Mortos e Desaparecidos.
O relatório pede a punição para cerca de 100 militares vivos e aponta também a responsabilidade de cinco ex-presidentes durante o governo militar.
Imprescindível para a construção do futuro da nossa nação democrática, a
caminhada para resgatar e expor os desatinos do arbítrio, porém, ainda não
termina neste evento de Brasília.
Para Dallari, caberá ao Congresso e ao Judiciário a revisão da Lei da Anistia que igualou torturados e torturadores.
Na defesa do íntegro estado constitucional democrático de direito ainda
temos uma luta política e um desafio cultural para enfrentar, sobretudo para
eliminar a impunidade gerada pelo tempo pretérito que cobre os dias vindouros
com um manto de desconfiança ameaçando a democracia.
Como lembra o sociólogo Gerson Almeida, em artigo recente, a disputa
que está sendo travada em todos os campos é entre acumulação selvagem ou
crescimento com distribuição.
É este o centro da disputa que opõe neoliberalismo e os avanços da democracia.
Diz Almeida, acertadamente, que a concentração de riqueza é o mote da
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ação das oligarquias econômicas, enquanto a luta pela inclusão social e acesso
aos bens e serviços motiva os setores populares e democráticos. Nesta brecha,
fica evidente que o avanço das liberdades e direitos precisa contar com o que
Boaventura Santos define como a democratização da democracia, elemento
fundamental para reverter o sequestro da política pelo neoliberalismo e sua
lógica meramente mercantil das relações sociais.
“É preciso afastar os cidadãos da política, ou até mesmo passar a tirar cidadania dos setores populares para que o processo democrático seja capturado
pelos interesses do sistema financeiro e seus aliados. É, assim, funcional para
esses interesses disseminar a ideia de que “todos são corruptos”, “os políticos
são todos iguais”, “nenhum partido nos representa”, etc. A nova direita é uma
genuína expressão da negação da política como mediadora dos diferentes interesses em disputa na sociedade, pois isto pode significar entraves para o seu
processo de acumulação e privilégios.
Sua intolerância, seu ódio não é contra recursos supostamente “mal aplicados”, mas contra investir recursos para proteção social dos setores vulneráveis.
Algo similar à postura daqueles liberais que diziam ser contra a escravidão, mas
consideravam prematuro libertar os negros e torná-los cidadãos, pois eles não
saberiam o que fazer com a liberdade.
Nos últimos dias, entidades, economistas, intelectuais e artistas têm produzido
manifestos e marchas nas ruas em defesa da legitimidade eleitoral da presidenta Dilma e, sobretudo, da democracia. A democracia é condição imprescindível
das relações civilizatórias da sociedade do século XXI que persegue a paz e
rejeita a barbárie.
Cabe a nós, nesta trincheira parlamentar de constante e vigorosa atuação
institucional de defesa da Democracia e do Estado Constitucional Democrático
de Direito, reforçar a convocação ao exercício da cidadania dos brasileiros,
para refletir sobre o Brasil que queremos, como um Estado-Nação desenvolvido,
justo e igualitário para todos e para cada um dos nossos cidadãos e cidadãs.
E para encerrar, queríamos aqui propor ao eminente ministro Gilmar Mendes, que tão logo se desocupe do “pente-fino” das contas da presidenta Dilma,
devolva a Ação Direta de Inconstitucionalidade nº4.650, impetrada pela OAB,
ao Plenário do Supremo, para que seja concluída sua votação.
Sua Excelência, no exercício de suas prerrogativas, pediu vistas deste processo, que pretende impedir a cooptação do poder político pelo poder econômico,
em abril, completando agora oito meses. E não sinaliza quando devolverá apre13
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ciação para seus pares, cujo placar aliás está 6 a 1, em favor da tese do fim do
financiamento de campanha por empresas.
É disso que necessitamos: ações concretas para afirmar e reafirmar a democracia e seguir fazendo as reais e necessárias mudanças e transformações
que tanto nosso país precisa e o povo brasileiro espera do segundo governo da
presidenta Dilma.
*Pronunciamento do Villa no Grande Expediente “Em defesa da Democracia e
Estado Constitucional Democrático de Direito” - 10 de dezembro de 2014
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Perigo que ronda a democracia*
Urnas: a democracia venceu a intolerância
Adão Villaverde**
Adão Villaverde**
D
efinido o resultado das urnas da mais potente disputa eleitoral desde a
redemocratização, mesmo que tenhamos passado por enormes transformações nos últimos anos e ainda haja muito por fazer, algo tenta se naturalizar na
nossa ainda tênue democracia: a ideia recorrente de terceiro turno, alimentada
por alguns analistas políticos e parte da oposição e das elites contrariadas com
os avanços sociais.
Não faltam caracterizações como país dividido, vitória de curral eleitoral,
instabilidade política, fuga de investimentos e impeachment da presidenta. E
até o neossaudosismo golpista da volta à ditadura, evidenciado inclusive em
isoladas manifestações de rua.
A contestação ao valor democrático universal de a cada cidadão um voto ameaça
a estabilidade do governo e a própria democracia. Promotores de tal lógica póseleitoral não compreendem que uma decorrência do que defendem é a supressão das
condições para que tais manifestações ocorram. É o perigo que sempre ronda a democracia: é fácil pedir ditadura na democracia para quem não valorizou a conquista
da redemocratização em plena ditadura. Apesar das lições da história próxima de
nós, como o fim da Era Vargas, o Movimento da Legalidade e o golpe de 64.
A criação de uma atmosfera terceiroturnista, golpista ou mesmo de ruptura
institucional, deve ser refutada em todos níveis. Na luta política, defendendo a
democracia como princípio universal e o Estado de Direito Constitucional como
arcabouço de seu regramento; e na gestão, aprofundando as transformações
sociais, com as mudanças estruturais que tanto o país necessita, para crescer de
forma inclusiva com políticas e serviços qualificados e justos ao alcance de todos.
Sem renunciar nunca aos fundamentos éticos morais que devem conformar a conduta de quem está na gestão pública, consolidando- os constantemente na cultura
do povo. Fortalecendo, sobretudo, instrumentos de correções só produzidos pelo
regime democrático, para reorientar suas imperfeições e ampliar a participação e
o controle da sociedade sobre o Estado, de maneira permanente e sistemática.
*Artigo publicado no jornal Zero Hora em 10 de novembro de 2014
**Professor, engenheiro e deputado estadual (PT-RS)
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Debates nº 19
E
m um país com o déficit social dimensionado por uma herança histórica
devastadora, o Brasil ainda precisa avançar muito no rumo da igualdade
social. Mas é inegável que nos últimos 12 anos com os governos de Lula e Dilma,
houve transformações bastante expressivas na conformação sócio econômica
do país que se apresenta com um novo perfil, desenhado por dois extremos de
diferentes complexidades e de grande abrangência simbólica.
O Brasil já deixou o humilhante mapa mundial da fome traçado pela ONU
e a tutela financista internacional do Fundo Monetário Internacional (FMI) a que
estava subordinado na era neoliberal. Ou seja, a busca da soberania da nação
corresponde à conquista da cidadania pelos excluídos da miséria absoluta.
Vale lembrar, sempre, que mais de 30 milhões de brasileiros deixaram as
classes C e D para incorporar-se à classe média que produz, consome e movimenta a economia. E que, se há ainda muita vulnerabilidade, a pobreza diminui
permanentemente e a confiança do brasileiro no país também cresce, como
atesta a mais recente pesquisa da FGV. Com todas estas transformações já
ocorridas, destacadas pelo Prêmio Nobel da Paz, o indiano Kailash Satyarthi,
para quem programas de inclusão social e distribuição de renda, como o Bolsa
Família, devem servir de modelo ao mundo, não se explica facilmente o agressivo clima eleitoral que permeou a campanha à presidência nos dois turnos,
gerando a propagação de ódio, intolerância e preconceito aos mais desfavorecidos. E ainda prossegue na agenda recorrente de boa parte das elites
dominantes, da oposição e dos analistas políticos contrariados com o recado
das urnas, que ainda se retroalimentam dos resquícios de uma espécie de golpe
cinza, que conta com a ajuda inestimável da chamada mídia marrom, pronta
a repercutir e ampliar as senhas da reação inconformada, com liderança de
pouca estatura estadista que recusa-se a descer do palanque eleitoral.
As denúncias vazias e irresponsáveis da revista Veja, que chegou até a
antecipar a data da sua circulação semanal para tentar influenciar a opinião
publica às vésperas do pleito e alcançar repercussão nos meios informativos de
maior amplitude e propagação, como as redes de TVs e rádio, emblematizam
*Artigo publicado no jornal eletrônico Sul21 em 13 de novembro de 2014
**Professor, engenheiro e deputado estadual (PT-RS)
Debates nº 19
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as manobras de calúnia e difamação contra a candidata do PT, de criminalização
da contenda eleitoral e da intenção de contaminar o imaginário coletivo processado pela comunicação de massa a que estamos todos sujeitos cada vez mais, nos
dias de hoje, na sociedade conectada que construímos cotidianamente.
Após a manifestação inequívoca da vontade popular majoritária da mais
potente disputa político-eleitoral desde a redemocratização não faltam
caracterizações do tipo ‘país dividido’, ‘vitória de curral eleitoral’, ‘instabilidade política’, ‘fuga de investimentos’, ‘recontagem dos votos’ e ‘impeachment
da presidenta’. E até o neossaudosismo golpista da volta ao regime arbitrário,
evidenciado inclusive em recentes e isoladas manifestações de rua.
Este tipo da contestação, rebaixada na forma e no conteúdo, de um dos
maiores méritos da sociedade democrática e seu Estado de Direito Constitucional, o valor universal de a cada cidadão um voto, ameaça a estabilidade do
governo e põe em risco o país e nossa própria democracia. Muitos dos que promovem tal lógica pós-eleitoral não têm a menor compreensão de que uma das
primeiras decorrências das medidas que defendem é a supressão das condições
para que tais manifestações possam ocorrer.
Este é sempre o perigo que ronda as democracias: é fácil pedir ditadura
na democracia para quem não valorizou a conquista da redemocratização em
plena ditadura. E sequer é capaz de tirar lições da própria história, com exemplos próximos de nós, gaúchos, como o fim da Era Vargas, o Movimento da Legalidade e o golpe civil militar de 1964. É obrigatório combater este golpismo
em todos os níveis. Da luta política à gestão.
Naquela, defendendo a democracia como princípio universal e o Estado
de Direito Constitucional como arcabouço de seu regramento, e nesta, realizando um governo capaz de aprofundar as transformações sociais pelas quais
o país passa, com as mudanças estruturais que tanto nossa democracia necessita, crescendo de forma inclusiva com políticas e serviços qualificados e justos
ao alcance de todos. Sem renunciar nunca os fundamentos éticos morais que
devem conformar a conduta de quem está na gestão pública, contribuindo para
consolidá-los constantemente na cultura do povo. Fortalecendo, sobretudo, instrumentos de correções que só o regime democrático é capaz de produzir, para
reorientar suas próprias imperfeições e ampliar as formas de participação e
controle da sociedade sobre o Estado de maneira permanente e sistemática.
Ainda que pretendam estabelecer uma atmosfera terceiroturnista, golpista ou
mesmo de ruptura institucional, certamente não terão êxito em suas aspirações
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Debates nº 19
porque, embora tênue, a democracia consolidada no Brasil é forte o suficiente
para refutar estes golpismos de ocasião. As urnas deixaram isto bem claro. E com
os próximos quatro anos de gestão completando o maior período de vivência
democrática e permanência de um projeto de desenvolvimento com distribuição
de renda na história republicana do Brasil, solidificam-se as condições basilares
para empreender novas alterações estruturais no território nacional. Que é o
sonho viável de todos os verdadeiros democratas, que almejam o melhor para
os brasileiros, e não mais somente para a minoria poderosa e privilegiada de
sempre.
*Artigo publicado no jornal eletrônico Sul21 em 13 de novembro de 2014
**Professor, engenheiro e deputado estadual (PT-RS)
Debates nº 19
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A revolta dos punhos de renda*
Gerson Almeida**
E
m artigo de opinião publicado na ZH de 27/11, Maria Celeste Leitzke apresenta de forma pateticamente cristalina o ressurgimento no senso comum de
direita de uma noção hierarquizada de cidadão. Para esta direita cada vez
mais desinibida, “só poderão ser considerados cidadãos comuns com direitos
e deveres...as pessoas que comprovem estar procurando emprego”. O alvo da
crítica são os setores mais vulneráveis da população que passaram a contar com
políticas públicas de proteção social no Brasil e que, segundo ela, não deveriam votar, exceto se comprovassem “que estão procurando insistentemente uma
atividade”. De outro modo, conforme a sua noção medieval de cidadania, essas
pessoas “semianalfabetas” e incapazes de compreender o que é “crescimento
e desenvolvimento sustentável etc, etc, etc” votariam apenas “para não arriscar
a sua vida inútil e sem obrigações”. Se acreditarmos em reencarnação, talvez a
psicopedagoga que esposa estas ideias tenha sido outrora um feitor em permanente monitoramente e avaliação da produtividade dos negros escravos para
evitar que vivessem de forma inútil e sem obrigações.
A noção de democracia conquistada ao longo de lutas permanentes e encarniçadas caminha numa direção totalmente oposta às ideias censitárias, nas
quais o voto era uma concessão usufruída apenas aos proprietários. No Brasil colonial, por exemplo, só podiam votar (e ser votados) nobres, burocratas,
militares, comerciantes ricos, senhores de engenho e homens de posses, mesmo
analfabetos.
A luta social e civilizatória não aceita mais que a democracia seja assentada
em qualquer tipo de segregação que estabeleça distinção entre cidadãoes de
primeira e de segunda classe e o voto não é mais concessão, mas direito universal. É amplamente aceito que a cidadania é uma combinação dinâmica, conforme sistematizou T. H. Marshall, entre os direitos civis, conquistados no século
18 – direitos inerentes à liberdade individual, liberdade de expressão e de
pensamento, etc -; direitos políticos, conquistados no século 19 - direito de participação no exercício do poder político, como eleito ou eleitor, no conjunto das
*Artigo publicado no jornal eletrônico Sul21 em 2 de dezembro de 2014
**Sociólogo e coordenador da ULD-RS
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Debates nº 19
instituições de autoridade pública, etc; e os direitos sociais – conjunto de direitos
relativos ao bem-estar econômico e social, desde a segurança até ao direito de
partilhar do nível de vida, segundo os padrões prevalecentes na sociedade. Ou
seja, democracia é o regime da cidadania e esta só é plena quando além dos
direitos civis e políticos incorpora também as conquistas sociais, conquistadas no
início do século 20.
Ao propor a retirada do direito de voto para os setores vulneráveis, a direita
transforma a sua aflição acarretada pelo reposicionamento entre as classes sociais
em razão das políticas de redistribuição de renda em clara militância regressiva,
seu desejo é voltar ao Brasil campeão das desigualdades. É a mais genuína luta
sobre onde devem ser aplicados os fundos públicos.
Desde o primeiro governo do presidente Lula, o salário médio real dos trabalhadores cresceu acima dos ganhos de produtividade. Entre 2003 e 2010,
por exemplo, o aumento acumulado da produtividade foi de 13,2% ante a expansão de 20,8% do salário médio real. Para cada aumento de 1% na produtividade, o salário médio real aumentava 1,6%. Este é apenas um exemplo do
ciclo virtuoso que passamos a viver no país, pois enquanto os níveis de desigualdade estão aumentando em todos os países de alta renda do G20 (exceto
Coréia do Sul), no Brasil, México e Argentina a desigualdade está diminuindo,
conforme relatório apresentado no Fórum Econômico Social, em Davos.
Ou seja, a disputa que está sendo travada em todos os campos é entre acumulação selvagem ou crescimento com distribuição. É este o centro da disputa
que opõe neoliberalismo e os avanços da democracia. A concentração de riqueza é o mote da ação das oligarquias econômicas, enquanto a luta pela inclusão
social e acesso aos bens e serviços motiva os setores populares e democráticos.
Nesta brecha, fica evidente que o avanço das liberdades e direitos precisa
contar com o que Boaventura Santos define como a democratização da democracia, elemento fundamental para reverter o sequestro da política pelo neoliberalismo e sua lógica meramente mercantil das relações sociais.
Para que o processo democrático seja capturado pelos interesses do sistema
financeiro e seus aliados, é preciso afastar os cidadãos da política, ou até
mesmo passar a tirar cidadania dos setores populares. É, assim, funcional para
esses interesses disseminar a ideia de que “todos são corruptos”, “os políticos
são todos iguais”, “nenhum partido nos representa”, etc. A nova direita é uma
genuína expressão da negação da política como mediadora dos diferentes interesses em disputa na sociedade, pois isto pode significar entraves para o seu
Debates nº 19
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processo de acumulação e privilégios.
Esta revolta regressiva dos punhos de renda acontece no momento em que
o próprio Banco Mundial reconhece a falência do discurso dominante e passou a admitir que mesmo o crescimento econômico, por si, é insuficiente para a
redução da pobreza do planeta[1]. Paul Krugman, por sua vez, ao comentar
o livro de Thomas Piketty, afirma que o seu verdadeiro mérito é o de demolir
o mais querido dos mitos dos conservadores, a insistência de que vivemos em
uma meritocracia, na qual a riqueza é conquistada e merecida. São muitas as
evidências de que a maioria das fortunas é fruto de heranças ou vantagens
desfrutadas por famílias já favorecidas. Ou seja, o Banco Mundial e o Prêmio
Nobel de economia, insuspeitos de professar convicções petistas reconhecem
que as desigualdades são fatores que precisam de políticas públicas adequadas para o seu enfrentamento e que a lógica própria do mercado apenas as
faz crescer.
Enquanto a direita dissemina uma ira contra as políticas de proteção social,
que permitiu ao Brasil sair do Mapa da Fome, nenhuma palavra é dita em
relação aos juros subsidiados para o setor empresarial. O Reintegra, por exemplo, garante a devolução de até 3% dos impostos recolhidos pelo governo aos
exportadores e o Refis, a liberação de financiamentos às empresas que devem
impostos ao governo federal. A desoneração da folha de pagamento passou a
ser permanente e as isenções do IPI beneficiou 56 setores da economia, como
a construção civil, o setor automotivo e o setor têxtil, abrindo mão de recursos
vultuosos que poderiam garantir investimentos sociais em áreas como saúde,
educação e moradia, etc.
Em resumo, ao manifestar sua ira contra as políticas de proteção social, além
de retrágrada a direita se mostra preguiçosa, já que não se dá ao trabalho
de cotejar os recursos aplicados em proteção social com o volume aplicado em
estímulos e fomento aos empresários e produtores rurais e o infinito perdão das
suas dívidas para com o Estado. O ódio não é contra recursos supostamente
“mal aplicados”, mas contra aplicar recursos para proteção social dos setores
vulneráveis. Algo como os liberais que diziam ser contra a escravidão, mas consideravam prematuro libertar os negros e torná-los cidadãos, pois eles não
saberiam o que fazer com a liberdade. Para ver como a democracia é um permanente campo de batalha no qual as forças do retrocesso nunca descansam
em paz.
*Artigo publicado no jornal eletrônico Sul21 em 2 de dezembro de 2014
**Sociólogo e coordenador da ULD-RS
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Debates nº 19
Moralidade Seletiva*
Antônio Escosteguy Castro*
O
escândalo dos desvios na Petrobrás teve a grande qualidade de trazer
uma nova dimensão ao debate sobre a corrupção no Brasil . Devido à
Lei 12.846/13 , sancionada por Dilma e de iniciativa de Lula, em 2010, (aliás,
projeto fortemente combatido na Câmara pelo Deputado Eduardo Cunha, atual
queridinho da mídia anti-PT) pela primeira vez os corruptores, grandes empresários, são alvos reais de uma investigação.
Já há muitos anos o combate à corrupção no Brasil está inserido numa campanha anti-política da grande mídia, destinada a fragilizar os partidos e os
políticos, transferindo os centros reais de poder exatamente para o grande
empresariado. Por isso, o Brasil era o único país do mundo onde havia corrupção, mas não havia corruptores. Recentemente, um colunista-estrela da Zero
Hora chegou a escrever que “ os únicos que ganham com a corrupção são os
corruptos”, absolvendo , por consequência, aos corruptores , certamente pobres
vítimas injustiçadas destes políticos ladrões.
O gigantesco esquema da Petrobras, que Paulo Francis já denunciava em
1997, no auge do Governo FHC, mostra que a origem deste festival de propinas é a ganância de um empresariado preguiçoso pelo lucro garantido e fácil,
algo que normalmente a mídia saúda como “empreendedorismo” e ao qual
concede prêmios anuais. De agora em diante não será mais assim tão fácil condenar só um lado do balcão, como se fez durante décadas.
Mas nossa grande mídia demorará, ainda, para perder o hábito de defender só o lado que lhe agrada. A Assembleia Legislativa gaúcha aprovou dia
25 passado um projeto completamente imoral e absurdo, concedendo aposentadoria integral aos parlamentares , com recebimento proporcional a partir de
ridículos 8 anos de mandato. Não há defesa possível para este projeto. Desde
a Emenda Constitucional 41, de 2003, que o aposentadoria integral é uma exceção no país, que só se justifica em casos especiais, como as Forças Armadas.
Para deputado? Parlamentar sequer é profissão , e sim função. Assim, não há
sentido num regime especial para si. Ademais, conceder proporcionalidade,
a partir de dois mandatos, chega a ser um escárnio para o povo trabalhador
deste país.
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A reação dos jornalões gaúchos, porém, foi tímida, chegando a considerar “ exageradas” as críticas ao projeto. A explicação é simples. A base de apoio do novo Governador
Sartori votou maciçamente o projeto, inclusive sua esposa. Como compatibilizar a crítica
à “ herança financeira maldita de Tarso Genro”, que tem sido a linha do novo governo e
da imprensa, com a aprovação de um projeto gastador e imoral? A solução é silenciar e
tergiversar. Blindar Sartori é mais importante que qualquer coerência moral.
Seria este um caso isolado, uma exceção? Infelizmente, não. Nesta semana que
passou, também, vimos uma chantagem descarada do cartel das empresas de ônibus de Porto Alegre com a população da capital, ao recusar-se , pela segunda vez,
a apresentar-se numa licitação destinada a regular e moralizar o transporte coletivo
local. Do ponto de vista do interesse público, da moralidade e da decência, a única
reação possível seria uma onda de indignação. A grande mídia, porém, silenciou.
Mais uma vez a explicação é simples. O caminho que tal indignação abriria para a
Prefeitura seria intervir no sistema, afastar os empresários e assumir sua gerência
provisoriamente e se não aparecessem propostas numa nova licitação rápida, assumir para o Poder Público o transporte da cidade. Em outras palavras, realizar o
programa do PT para o setor de transportes e dar razão, após décadas de críticas
ácidas, a Olívio Dutra e sua intervenção de 1989.
O Prefeito Fortunati, entretanto, anunciou uma nova licitação por linhas, fatiando o
sistema. Um retrocesso absurdo. Quando a tendência universal nos transportes é integrar
e harmonizar , vamos recuar do sistema de “bacias” que temos hoje para um sistema
fragmentado por linhas. Mas para nossa elite e para a grande mídia, é preferível
submeter-se à chantagem de um cartel e prejudicar o povo trabalhador da cidade que
usa ônibus do que correr o risco de dar razão ao PT e reforçá-lo para 2016.
O verdadeiro escândalo brasileiro não é a corrupção em si, até porque esta,
infelizmente , é universal. Atualmente , nos EUA se investiga os desvios no financiamento da guerra do Afeganistão, na França cresce o “escândalo Dassault” e
na Espanha, até uma Princesa Real tornou-se ré, só para dar alguns exemplos
recentes. O verdadeiro escândalo brasileiro é que a corrupção e os malfeitos
públicos e privados só são condenados dependendo de quem estiver envolvido
ou acusado. No Brasil, devido a nossa grande mídia, a moralidade é seletiva.
*Artigo publicado no jornal eletrônico Sul21 em 27 de novembro de 2014
**Advogado
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Isolando dois extremos: o xenofobismo
e o medo. Mais de 4 milhões nas ruas
Adão Villaverde*
M
ais de 1,5 milhões de pessoas saem da Place de La Republic e vão em direção à Boulevard Voltaire(filósofo) recuperando o melhor sentido iluminista, passando pela Place
Leon Blun (gde líder do governo da Frente Popular em 36) e indo até à Place La Nation.
Contando as ruas na volta, periódicos franceses dizem ter tido mais de 2,5 milhões de pessoas.
Numa linha de condução progressista e não conservadora, contra o terrorismo, mas em
favor das liberdades e da democracia. Isolando dois extremos: xenofobismo e o medo.
Numa conjuntura e atmosfera favorável a direita e os xenófobos, governo,
organizações progressistas, partidos de esquerda e democratas, sociedade civil
e partidos de centro, hegemonizam processo. Mantendo o repúdio ao terrorismo,
reafirmando os ideais da revolução francesa, mas isolando os xenófobos.
O maior exemplo disto é que não havia terminado a manifestação e o Front Nacional e
seus principais dirigentes estavam reunidos avaliando porque ficaram fora deste processo?
Holande que já há algum tempo, encontra-se com enorme dificuldades, propôs a
união nacional, colocou um forte e profissional aparato policial profissional em busca dos
assassinos e conquistou apoio externo, e chega no fim de semana com as rédeas do processo sob controle. Os Le Pen’s isolados e Sarkozy e a UMP apoiando seus movimentos.
A sua forma ofensiva e forte fechou qualquer espaço para o medo e a passividade de um lado, e de outro, para o fascismo e o xenofobismo do Front Populaire.
É sempre bom dizer ou relembrar que entre e os Chargistas mortos, com expressões nacional e internacional, estavam colaboradores dos jornais L’Humanite
(PC francês) e Libération(esquerda).
Por fim, é evidente que uma tragédia com estas proporções e dimensões trará
enormes consequências para a França, a europa e o mundo no próximo período.
Entretanto, esta é a hora de unidade em torno do repúdio ao ato bárbaro,
da penalização de todos os responsáveis e da defesa do melhor das tradições e
da cultura do iluminismo que são: a liberdade, a igualdade e a fraternidade.
“Hay que resistir, pero sin perder la ternura jamas!”, já dizia o comandante.
*Professor, engenheiro e deputado estadual (PT-RS)
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Fascismos*
Oportunistas*
Gennaro Carotenuto**
Moisés Mendes**
V
ocê se lembra daquele conhecido que apareceu de repente ao seu lado nas
passeatas do inverno de 2013. O que aquele cara fazia ali?
Muita gente não sabe o que determinadas pessoas faziam nas ruas em 2013. Reacionários
de naipes variados tiraram proveito das passeatas. Fascistas desceram a João Pessoa ao seu
lado, nas noites daquele inverno, para afrontar a imprensa e jornalistas considerados inimigos.
Agora, no fim de semana, as passeatas em Paris foram pelas liberdades e
contra o extremismo que mata. Os cartunistas da Charlie Hebdo incorporaram a
resistência genuína contra terror. Os franceses morreram pelo humor sem limites.
Todo mundo é Charlie. Sua namorada é Charlie, seu colega é Charlie, sua tia
será Charlie e ai de quem não queira ser Charlie.
Eu mesmo fui acusado, por causa de textos que publiquei em ZH, na sexta e no
domingo, de não ser Charlie. Ser Charlie seria o que mesmo?
Seria engajar-se de forma incondicional a tudo o que os cartunistas faziam?
Não há como. Se houvesse, a Charlie Hebdo não seria uma revista com apenas 50
mil exemplares. E todos atacariam todos, sem freios. Jesus, Maomé, Nossa Senhora,
ateus, prostitutas, ex-comunistas, africanos, gays seriam apedrejados sem parar.
O mundo seria insuportável se todos fossem Charlie em casa, na firma, na
repartição, na escola ou no jornalismo.
Assim como seria improvável que, nos anos 70, todos fossem Pasquim. Seria uma farsa grotesca se, em novembro de 1970, depois da prisão de quase toda a Redação do
jornal pela ditadura, os cariocas tivessem saído às ruas com cartazes: Eu sou Pasquim.
Sei, você pode dizer que a indignação agora envolve terror e morte. Sei, porque
também concordo (mesmo que não deva ficar dizendo o óbvio) que tudo isso é condenável. Vivo da liberdade de expressão.
Mas não dá pra aguentar tantos Charlies. Velhos reacionários brasileiros
agora são libertários à francesa.
Como disseram Willem e Luz, dois cartunistas sobreviventes, os oportunistas
deveriam recolher suas pombas da paz, porque pombas da paz não têm nada a
ver com Charlie Hebdo. Mas vá você dizer a um farsante que ele não é Charlie.
* Artigo publicado em Zero Hora em 12 de janeiro de 2015
** Jornalista
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Debates nº 19
A
hmed era el nombre del policía al que le dieron el tiro de gracia en la calle
los asesinos que asaltaron, en nombre del profeta Mahoma, el semanario
Charlie Hebdo este miércoles en París. Ahmed era musulmán, como sus asesinos,
como la mayoría de las víctimas en Siria y en Irak y como las partisanas kurdas
que resisten en Kobani a la ofensiva del Estado Islámico. “Charb”, Stephane
Charbonnier, el director del semanario, asesinado en París, lo escribió hace poco
en una nota: “los kurdos nos defienden a todos”. Su muerte comprueba que ya
no alcanza con los kurdos para defender a París, Roma, Londres. Es necesario
enfrentar al fascismo islámico no por el petróleo o los intereses corporativos, sino
por las mismas razones por las cuales era necesario defender a la España republicana del fascismo en el siglo pasado. También entonces los intereses, la duplicidad e ignominia de las clases dirigentes europeas desempeñaron un papel
decisivo para abandonar a la II República y allanar el camino hacia la Segunda
Guerra Mundial. Entonces como ahora, con cinismo despiadado, se deja que el
enemigo –y el fascismo islámico al igual que cualquier otro fanatismo religioso
es el enemigo– resulte útil electoralmente para conservar el modelo económico
sin enfrentarlo realmente. La responsabilidad de las clases dirigentes occidentales, que lucran con el complejo militar-industrial, es tan grave ya, que hoy en
París se combate realmente parte de esa tercera guerra mundial evocada por
Jorge Bergoglio después de que en Kobani, en Siria, se abandonara a su suerte
a las partisanas kurdas.
El acto terrorista del miércoles representa muchas cosas, entre ellas un fragmento de una larga guerra civil en el Oriente Medio que salpica a París, capital
de un país donde ya viven casi 6 millones de musulmanes. Estamos así en un contexto muy distinto al del 11 de setiembre de 2001. El odio, la haine de la gran
película de Mathieu Kassovitz del ya lejano 1995, escapa hoy de los suburbios,
de las cités, al centro de París, y testimonia otra guerra civil incipiente, esta vez
intraeuropea. Un proletariado local, histórico y nuevo, lumpenizado por la agobiante crisis del modelo neoliberal, combate contra los inmigrantes, a menudo
* Texto publicado no semanário “Brecha” em 9 de janeiro de 2015
** Correspondente do semanário “Brecha” em Roma
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ya ciudadanos. Acá nacieron o acá llegaron, y se volvieron “indeseables”, o
sujetos de políticas de integración que siempre se quedaron cortas y que atestiguan ya no un pasado colonial sino un presente y un futuro que la extrema
derecha parafascista quiere volver a declinar en un “sangre y suelo” constitutivo
de la ideología nazi. Es la extrema derecha que en Francia toma forma en el
Frente Nacional, proviene del colonialismo y de los torturadores de Argelia y
que hoy día, con Marine Le Pen, hija y heredera política de Jean Marie, aspira
a gobernar el país usando el miedo y el desprecio a los foráneos, aunque se
trate de nacidos en suelo francés. De ahí, de esos conflictos, surgen y embarran
la cancha los presuntos autores de la horrible masacre del distrito XI de París, a
pocos metros de la Plaza de la Bastilla, esa que simboliza la entrada del mundo
en la contemporaneidad. Nacieron en Francia, en Europa, de familias de origen
norafricano, acá se formaron y –probablemente, sin por ello justificarlos– acá se
sintieron excluidos y encontraron en el yihadismo una ideología. A veces esta reacción es presentada como una respuesta anticolonial. Pero la masacre de Charlie Hebdo no puede ser encarada de esta forma, porque este periódico, como
testimonia su aislamiento y las críticas hasta el insulto que recibió el miércoles
del Financial Times –entre otros–, que lo trató de imbécil, no era parte del coro
que defiende la superioridad de Occidente sino el bufón o el niño que revela
que el rey está desnudo. La masacre manifiesta así otra forma de fascismo que
se explicita en el odio a la laicidad, al pensamiento crítico, a la libertad de expresión, valores que también en Europa fueron postergados durante los últimos
40 años de neoliberalismo.
Y lo peor es que esta forma de fascismo es útil a la extrema derecha, para
la cual todo musulmán es un potencial terrorista. Los terroristas de París forman
parte de fuerzas especiales, equipadas, entrenadas, veteranos experimentados
probablemente en Irak o Siria.
No se le escapa a nadie que es el sistema democrático el objeto de los
ataques en Europa. Pero tampoco se le escapa a nadie que el enemigo islamista
favorece un proyecto autoritario que –frente al quiebre económico y ético del
modelo neoliberal– utiliza la islamofobia y el racismo para recortar libertades
y derechos en un continuo estado de emergencia. El terrorismo es la cara odiosa
y visible de la guerra de supervivencia que se combate en las periferias. El
migrante, musulmán y no, es el enemigo al que las clases dirigentes apuntan en
el momento de la tala sistemática de los derechos y los servicios sociales necesarios tanto para los locales como para la plena integración de los migrantes.
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Debates nº 19
Las clases dominantes, que no quieren volver a pagar, como hicieron en la posguerra frente a una izquierda sólida, se valen del odio xenófobo para reducir
o negar la atención en salud, educación, derechos ciudadanos, que costó casi
dos siglos de luchas al movimiento obrero y que se están evaporando en unos
pocos años. Y se valen de los medios de comunicación para culpar y demonizar
a los inmigrantes, en particular a los musulmanes, señalándolos como un enemigo
externo.
Sin embargo, Europa, entendida como civilización y no como una entidad
económica, sólo tiene sentido si es capaz de garantizar las libertades y los
derechos de todos aquellos que la han elegido como su casa, sean de la religión
que fueren. Hoy a Francia se la somete a una falsa elección entre el emir Al
Baghdadi y la dureza racista de Marine Le Pen, como dos caras de un mismo
extremismo que la induzcan a seguir soportando el modelo. Una opción alternativa existe, y es continuar apostando a la integración, a los derechos para
todos y todas, con respeto, con laicismo y progreso, y al mismo tiempo repudiar
el modelo económico que, pisoteando los derechos de todos, contribuye a crear
monstruos.
* Texto publicado no semanário “Brecha” em 9 de janeiro de 2015
** Correspondente do semanário “Brecha” em Roma
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Terrorismo e oportunismo de direita:
A resposta inadequada da sociedade
francesa às origens do atentado de Paris*
A
Sandro Ari Andrade de Miranda**
luta política da esquerda sempre foi pautada por valores superiores, coletivos e transgeracionais, como a defesa dos direitos fundamentais, a proteção do trabalho, a defesa da natureza, a solidariedade internacional, a democracia absoluta (político-social), entre outros.
É exatamente por isso que a militância de esquerda se organiza em partidos,
em sindicatos, em associações e outras entidades que permitam a construção de
uma agenda política capaz de transformar a sociedade e garantir uma vida
com mais justiça, equidade e qualidade.
Portanto, a verdadeira luta dos militantes de esquerda sempre foi contrária
ao terrorismo, dado o caráter individualista deste tipo de ação, e pela capacidade de desvirtuar as pautas coletivas.
León Trotsky, num brilhante ensaio publicado em novembro 1911 no mensário austríaco Der Kampf, intitulado “Por que os Marxistas de Opõem ao Terrorismo” afirmou:
“Para nós o terror individual é inadmissível precisamente porque apequena
o papel das massas em sua própria consciência, as faz aceitar sua impotência e
volta seus olhos e esperanças para o grande vingador e libertador que algum
dia virá cumprir sua missão”.
E é exatamente isto que ocorre com as ações terroristas: apequenam a pauta
política, por mais justa que seja; emparedam os movimentos contra hegemônicos; e abrem espaço para todo o tipo de oportunismo da direita. Assim foi em
11 de setembro, agora está acontecendo o mesmo na França.
No momento em que a esquerda começa a se afirmar em toda a Europa, reforçando a importância da luta democrática, com a ascensão de Alexis Tsipras,
do Syriza, ao comando do Governo Grego, e com o favoritismo do “Podemos”
* Artigo publicado no blog Sustentabilidade e Democracia
** Advogado, mestre em ciências sociais
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Debates nº 19
na Espanha, um atentado contra os cartunistas da revista francesa Charlie Hebdo
criou um palco para os apagados e fracassados conservadores europeus, e
para o renascimento da “islamofobia”.
As experiências de 11 de setembro e do nazismo mostraram como é ruim
abrir uma janela de oportunidades para a ultradireita, e esse risco pode ser a
maior consequência dos atentados de Paris.
Por outro lado, mesmo entendendo que não há nenhuma justificativa para
qualquer tipo de ato terrorista, nem sob o ponto de vista político, muito menos
sob a ótica humana, é necessário compreender o contexto dos fatos ocorridos
da França, e buscar afastar interpretações oportunistas e racistas que explodem em toda a mídia, inclusive na mídia oligopolista brasileira.
A França é hoje a maior comunidade islâmica da Europa Ocidental, com
mais de 10% da população professando a religião, o que corresponde a cerca
de 7 milhões de pessoas. Apesar desse massivo crescimento, os muçulmanos são
objeto de exclusão social, de racismo, xenofobia e da perseguição policial do
estado.
A maior parte da população islâmica é formada por descendentes de imigrantes de antigas colônias francesas, como Argélia, Costa do Marfim, Tunísia, e
vivem nas periferias da grande Paris e das grandes cidades do sul da França.
Mesmo representando uma parcela significativa da população, cada vez
mais os muçulmanos tem sido alvo de atentados contra as suas crenças e a sua
cultura pelo crescente ultradireitismo europeu, como a Frente Nacional Francesa,
dirigida por Jean Marie Le Pen.
Como acontece na Alemanha, na Áustria e outros países da Europa, o impacto econômico da crise do euro fez com que os partidos de direta buscassem
inimigos. Como não podiam atacar a sua base no mercado financeiro, preferiram eleger como primeiro alvo os imigrantes de países muçulmanos.
Além disso, existem resquícios das chamadas “campanhas contra o terror”,
derivados dos atentados de 11 de setembro e do atentado ao metrô de Londres, que reforçaram a “islamofobia” em todo o território da União Europeia,
deixando raízes que ainda não foram extirpadas.
A situação é tão grave que o astro do futebol francês, Karim Benzema, de
origem argelina, foi alvo de polêmica por se negar a cantar o hino francês
durante a Copa do Mundo de 2014. De acordo com o jogador, trata-se de um
protesto contra a moderna leitura da expressão “sangue impuro” que consta
nos versos da Marselhesa [“Às armas, cidadãos / formai vossos batalhões /
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marchemos, marchemos! / Que um sangue impuro / banhe o nosso solo“].
O verso foi utilizado para exaltar o orgulho francês em 1792 contra a ocupação dos exércitos estrangeiros. Hoje, a direita francesa utiliza o verso para
atacar os imigrantes e seus filhos, e para fomentar a xenofobia. Como exemplo,
apesar de Benzema ter conduzido a seleção francesa com brilhantismo durante
a Copa, dada a ausência de Frank Ribery (também muçulmano), o jogador tem
sido vítimas constantes do grupo liderado por Le Pen, que pede a sua exclusão
da seleção.
Não esqueçamos dos conflitos dos subúrbios de Paris em 2005, que tiveram
origem na perseguição policial a três jovens descendentes de Africanos, dos
quais dois morreram eletrocutados nas cercas de proteção de um prédio abandonado durante a fuga.
Na época o jornal Britânico The Guardian afirmou que os distúrbios colocaram abaixo a cortina que separa a parte rica das cidades e os subúrbios, que
abrigam a maioria dos imigrados na África, “e que nunca puderam se integrar
à sociedade francesa, e se transformaram em uma subclasse acostumada com
discriminação e falta de esperanças“. As denúncias de racismo e discriminação
nestas regiões são constantes, e gozam de total invisibilidade nas mídias francesa, da Europa, e dos EUA.
No caso do Charles Hebdo, não ingressando na discussão sobre liberdade
de expressão, a cultura muçulmana tem sido objeto de constantes ataques das
charges da referida revista, sempre com a alusão a condutas terroristas. Logo,
a escolha do alvo do atentado não ocorreu por acaso.
Portanto, é neste contexto de conflito, sobre um barril de pólvora, que aconteceu o atentado de Paris. Resta saber qual será a resposta do governo e da
sociedade daquele país, se abrirá os olhos contra a discriminação social, e
promoverá a integração das camadas excluídas, ou se manterá a doutrina de
ódio. Por enquanto, com a queima de mesquitas e a propagação do reforço à
discriminação contra os muçulmanos, a resposta tem sido a pior possível.
* Artigo publicado no blog Sustentabilidade e Democracia
** Advogado, mestre em ciências sociais
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