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INTERPRETAÇÃO DOS CONCEITOS DE DIREITO PRIVADO NA FORMAÇÃO DA OBRIGAÇÃO TRIBUTÁRIA: RELAÇÕES ENTRE NORMAS DO SISTEMA JURÍDICO. UMA VISITA À JURISPRUDÊNCIA DO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL É DERSON G ARIN P ORTO * Sumário: Notas iniciais; 1 – A evolução da relação entre direito público e direito privado; 2 – A fronteira entre o direito tributário e o direito privado. Da autonomia didática à apropriação conceitual; 3 – A utilização de conceitos de direito privado no direito tributário. Alcance dos artigos 109 e 110 do Código Tributário Nacional; 4 – A posição adotada pelo Supremo Tribunal Federal sobre apropriação de conceitos do direito privado para formação da obrigação tributária; 5 – Proposta de aplicação do princípio do Estado de Direito como norma orientadora na definição da competência tributária e interpretação dos conceitos de direito privado. Conclusões. Referências bibliográficas. N OTAS INICIAIS A relação estabelecida entre o Direito Tributário e os demais ramos do Direito jamais foi unívoca. Por vezes, a relação oscilou entre a subordinação e dependência do Direito Tributário em determinados momentos, passando, em outros tempos, a reivindicar a sua absoluta e completa autonomia. * Advogado. Mestre em Direito Tributário pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Professor de Direito Tributário da Universidade Luterana do Brasil. 105 R EVISTA J URÍDICA E MPRESARIAL 7 D OUTRI NA N AC IONAL M ARÇO /A B RI L 2009 A adequada compreensão da relação entre as duas searas tem importância destacada em temas relevantes envolvendo a tributação. A filiação a uma tendência ou outra é capaz de influir desde a definição de competências tributárias até a aferição de condutas elisivas, assim como a determinar a correção de planejamento tributário levado a efeito pelo contribuinte. Como se observa, a discussão não se limita a debate meramente acadêmico, porquanto transcende a discussão doutrinária e encontra frequente espaço no laborioso trabalho da jurisprudência. A proposta da presente investigação é descortinar a importância dos conceitos e institutos de Direito Privado para a compreensão da obrigação tributária, bem como estabelecer critérios seguros para a apropriação de tais conceitos na seara tributária. Nesse sentido, o ensaio está estruturado numa breve abordagem sobre a relação entre o Direito Público e o Direito Privado com o propósito de desvendar como tal interação se desenvolveu ao longo dos tempos. A seguir, propõe-se uma reflexão acerca da propalada autonomia do Direito Tributário e no que tal autonomia efetivamente representa para a solução dos problemas que lhe são próprios. A investigação sobre a interpretação dos conceitos e institutos de Direito Privado passa, no tópico seguinte, pelo exame do conteúdo e alcance dos artigos 109 e 110 do Código Tributário Nacional, complementado com a verificação da posição do Supremo Tribunal Federal sobre o tema, segundo pronunciamentos recentes. Por fim, o trabalho monográfico propõe a utilização do princípio do Estado de Direito como norma capaz de auxiliar na definição de competência tributária e manejo de argumentos no embate dialético. Pretende-se, em suma, com a pesquisa aqui desenvolvida contribuir para uma melhor compreensão e utilização de conceitos jusprivatistas nas relações obrigacionais tributárias, estabelecendo adequada relação entre as normas do sistema. 1 – A EVOLUÇÃO DA R ELAÇÃO E NTRE D IREITO P ÚBLICO E D IREITO P RIVADO A análise da evolução das relações Direito Público – Direito Privado, Direito Tributário – Direito Civil, visa preferencialmente a apontar as razões pelas quais o Direito evolui para o atual estágio, vale dizer, serve para 106 R EVISTA J URÍDICA E MPRESARIAL 7 D OUTRI NA N AC IONAL M ARÇO /A B RI L 2009 contextualizar as discussões que atualmente são travadas sobre o tema, fundamentando-as1. Pode-se apontar como início da divisão entre Direito Público e Direito Privado em Roma, muito embora seja possível retroagir ainda mais na história. No entanto, para os propósitos deste ensaio, o Direito Romano atuará como marco inicial. No Corpus Iuris era verificável a utilização dos termos ius publicum e ius privatum, e lex publica e lex privata. Contudo, tais expressões não guardavam a mesma conotação semântica que atribuímos atualmente aos vocábulos. A separação conceitual iniciou de forma marcante no período medieval, quando outros significados foram incorporados às expressões. Neste período histórico, vale registrar, o único diploma legal existente era o Corpus Iure Civile, não se podendo falar em Constituição e/ou Código ainda2. O medievo trouxe consigo o esfacelamento do Império Romano, o que significou o término de um poder central para todos os povos. Cada povoado adquiriu, com isso, autonomia organizacional, importando, por decorrência, numa fragmentação do Direito. Neste período, portanto, marcado pela organização da sociedade em feudos, o direito é marcado pela descentralização nas suas fontes, bem como na sua aplicação3. A evolução histórica trouxe a formação dos primeiros embriões de Estados Nacionais, sob a égide de regimes absolutistas, onde o monarca incorporava todos os poderes nas suas próprias mãos. Neste período, verifica-se a tentativa de conferir unidade e sistematicidade ao Direito, o que só foi conseguido com a recepção do Direito Romano no âmbito dos ordenamentos jurídicos locais4. 1 2 3 4 Similar abordagem foi procedida no ensaio: PORTO, Éderson Garin. A concretização dos direitos fundamentais nas relações de direito privado. CD JURIS PLENUM, Caxias do Sul, v.2, p.2, 005. SILVEIRA, Michele Costa da. As grandes metáforas da bipolaridade. In: MARTINS-COSTA, Judith (org.). A reconstrução do direito privado. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2002, p.21-23. FACCHINI NETO, Eugênio. Reflexões histórico-evolutivas sobre a constitucionalização do direito privado. In: SARLET, Ingo Wolfgang (org.). Constituição, Direitos Fundamentais e Direito Privado. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2003, p.11. WIEACKER, Franz. História do Direito Privado. 2.ed. Lisboa: Fundação Calouste Gulbekian, 1967, p.20. FRANZ WIEACKER historia a recepção do Direito Romano na Europa, dizendo: “A recepção do direito romano na Europa não constitui, sobretudo, um caso isolado. A difusão dos métodos científicos e da dogmática jurídica dos glosadores e dos ‘consiliadores’ atingiu, pelo contrário, a 107 R EVISTA J URÍDICA E MPRESARIAL 7 D OUTRI NA N AC IONAL M ARÇO /A B RI L 2009 Com efeito, o movimento codificatório, cujo marco é o Code de Napoleon, representa bem o contexto histórico, que fez surgir os conceitos de legalidade como expressão da garantia da liberdade e segurança jurídica dos cidadãos frente ao Estado. Dessa forma, verificou-se uma concentração de poder na mão do legislador, pois este, em tese, seria o legítimo representante dos anseios do povo. Idêntico movimento verifica-se na formação da então incipiente ciência tributária. Como no resto do mundo, o Brasil também foi influenciado pela Escola Histórica do Direito5, que defendia uma interpretação literal das normas que também adquiriu fôlego e expressão com a Jurisprudência dos Conceitos. Nesse modelo, admitia-se que os conceitos e institutos jurídicos seriam capazes de descrever e retratar fielmente a realidade social, bem assim os matizes econômicos, descabendo qualquer esforço hermenêutico6. Ao traçar o paralelo das tendências interpretativas antes referidas com o Direito Tributário, RICARDO LOBO TORRES diz que o momento histórico defendia a primazia do direito civil sobre o direito tributário, “da legalidade estrita, da ajuridicidade da capacidade contributiva, superioridade do papel do legislador, da autonomia da vontade e do caráter absoluto da propriedade”7. No mesmo sentido, pontua RICARDO LODI RIBEIRO, referindo que: “A concepção formalista da jurisprudência dos conceitos entronizou o valor segurança jurídica, tão cara ao Estado Liberal clássico, o Estado ‘Guarda-Noturno’, fruto de uma sociedade individualista, que tinha como valor supremo a proteção da liberdade do indivíduo contra o Estado”8. O período deixou maior parte dos países europeus; e, mesmo na Itália, a pátria deste movimento, a vida jurídica originária foi modificada no mesmo sentido”. Idem, ibidem, p.130. 5 Como destaca LARENZ, SAVIGNY pugnava por uma interpretação no sentido lógico gramatical, sem fazer ampliações ou restrições. Recordando SAVIGNY, LARENZ diz que para esse período histórico: “O juiz não tem que aperfeiçoar a lei, de modo criador – tem apenas que executá-la: um aperfeiçoamento da lei é, decerto, possível, mas deve ser obra unicamente do legislador, e nunca do juiz”. LARENZ, Karl. Metodologia da Ciência do Direito. 3.ed. Tradução de José Lamego. Lisboa: Fundação Kalouste Gulbenkian, 1997, p.12. Partilhando da mesma percepção histórica e com riqueza de informações, TORRES, Ricardo Lobo. Normas de Interpretação e Integração do Direito Tributário. 3.ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2000, p.3-7. 6 O prof. RICARDO LOBO TORRES identifica as raízes da jurisprudência dos conceitos na pandectística alemã. TORRES, Ricardo Lobo. Normais gerais antielisivas. In: Temas de interpretação do Direito Tributário. Rio de Janeiro: Renovar, 2003, p.263. 7 Sobre esta tendência, refere o professor carioca que o direito estrangeiro teve como seus maiores representantes HEINRICH WILHELM KRUSE e ACHILLE DONATO GIANNINI. Entre nós, destaca GILBERTO ULHOA CANTO e SAMPAIO DÓRIA. TORRES, Ricardo Lobo. Normais gerais antielisivas. In: Temas de interpretação do Direito Tributário. Rio de Janeiro: Renovar, 2003, p.263. 8 RIBEIRO, Ricardo Lodi. A interpretação da lei tributária na era da jurisprudência dos valores. In: Temas de interpretação do Direito Tributário. Rio de Janeiro: Renovar, 2003, p.334. 108 R EVISTA J URÍDICA E MPRESARIAL 7 D OUTRI NA N AC IONAL M ARÇO /A B RI L 2009 marcas indeléveis na cultura jurídica, influenciando sobremaneira na exaltação da legalidade tributária e tipicidade “cerrada”, Surgem, portanto, os Códigos, que tinham a pretensão de encerrar todo o direito. Nesta linha, o pensamento jurídico é capitaneado pelo Direito Privado e este é impregnado das idéias positivistas, surgidas a partir do iluminismo. O Direito é pensado como um sistema fechado que, em nome da segurança jurídica, deve prever todas as situações em enunciados normativos com pretensão de esgotar as hipóteses fáticas, tudo encerrado numa codificação, como destaca a Profª JUDITH MARTINS-COSTA: “O Código é, por sua vez, dotado de pretensão de plenitude, por tudo pretender regular, sem deixar espaço nem para lacunas nem para os outros direitos que não os assim constituídos, os que não valem, porque não promulgados por ato de autoridade pública”9. São os Códigos da época que caracterizam de forma inequívoca a ideia de sistema fechado exclusivo e excludente de tudo o mais que não estivesse em si contido. Estas codificações deveriam, de forma prévia e ordenada, esgotar as possibilidades fáticas, prescrevendo condutas e situações jurídicas na sua totalidade10. Este modelo perdura durante décadas, ditando a supremacia do Direito Privado sobre o Direito Público. No período das codificações, o Direito Privado assume papel de preponderância no ordenamento jurídico, relevo acentuado pela atuação dos Códigos como vértices dos sistemas. KONRAD HESSE enfatiza o primado do Direito Privado sobre o Direito Público, dizendo que o Direito Privado chegou a ser o direito constitutivo da sociedade burguesa, desempenhando o Direito Constitucional um papel secundário11. Neste contexto, o positivismo jurídico, na condição de corrente do pensamento hegemônica à época, exigia padrões interpretativos nos quais se deveria almejar o sentido literal das expressões normativas. Vale dizer, vigorava doutrina que impunha rigorismo às formas e excessivo apego ao direito escrito, tendo em vista a preocupação em garantir segurança jurídica através da submissão do Direito à lei. O papel do Direito Público, nesse sentido, é residual àquele desempenhado pelo Direito Privado, mormente porque a doutrina liberal MARTINS-COSTA, Judith. A boa-fé no direito privado. São Paulo: RT, 2000, p.170. Cf. MARTINS-COSTA, Judith. A boa-fé... passim. 11 HESSE, Konrad. Derecho Constitucional y Derecho Privado.Tradução de Ignácio Gutiérrez Gutiérrez. Madrid: Editorial Civitas, 1995, p.38. 9 10 109 R EVISTA J URÍDICA E MPRESARIAL 7 D OUTRI NA N AC IONAL M ARÇO /A B RI L 2009 impunha uma atuação omissiva do Estado, v.g., o liberalismo econômico e as proteções das liberdades individuais12. É assegurada pelo Estado uma igualdade formal, isto é, formalmente, são todos iguais, de modo que merecem tratamento igual, não importando sua condição social. A técnica utilizada para tanto nas codificações foi a da criação de um sujeito de direito único: pai, contratante e proprietário. Isto denota a estrutura basilar do Direito Privado através dos três pilares, família/propriedade/contrato. Esta situação só se alteraria com o advento do século XX e suas vicissitudes. O liberalismo econômico, e, consequentemente, o liberalismo na forma de gestão do Estado, foi sucumbido por crises que assolaram a Europa e principalmente os Estados Unidos no início do século passado. A resposta para os problemas da sociedade foi dada através da hipertrofia da estrutura de atuação do Direito Público frente ao Privado. Neste período, busca-se garantir uma igualdade material, não obstante a formal que já fora alcançada pelas revoluções do século XIX. Pretendeu-se, com isso, tratar de forma diferenciada os indivíduos, para que, ao fim e ao cabo, fosse assegurada a igualdade, partindo-se da premissa de que diferenças sociais havia. Os direitos insculpidos nos Códigos, antes tidos como absolutos, passam a ser relativizados frente às necessidades sociais, vale dizer, com a influência dos Direitos Fundamentais de segunda geração ocorre uma ‘funcionalização’ dos institutos de direito privado, como, por exemplo, a função social da propriedade, a função ético-social da responsabilidade civil, etc.13 Refere KONRAD HESSE: “Le correspondia incluso uma primacía material frente al Derecho Constitucional. Como sistema de las esferas y de los limites de la libertad asumió parcialmente el papel de los derechos fundamentales, que ellos mismos, como se ha expuesto, solo con reservas podían desempeñar. En todo caso, esa libertad burguesa era una libertad no política, una libertad de los particulares para disponer de un espacio propio sin intromisiones del Estado. HESSE, Konrad. Derecho Constitucional y Derecho Privado, p.39. 13 Sobre o tema função social do contrato, consultar com proveito SILVA, Luis Renato Ferreira da. A Função Social do Contrato no Novo Código Civil e sua conexão com a solidariedade social. In: SARLET, Ingo Wolfgang (org.). O Novo Código Civil e a Constituição. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2003, p.127. Refere LUIS RENATO que: “A ideia de função está presente no direito, no plano da compreensão global, quando se pensa em que o conjunto de regras positivas deve ter um tipo de finalidade e buscar alcançar certos objetivos. Neste sentido, fala-se em função promocional do direito, pois no Estado social, o legislador emprega técnicas de encorajamento. Por outro lado, pode-se ver tal noção vinculada a algum ou a alguns institutos jurídicos específicos. Neste sentido é que se fala em função social da propriedade ou função social do contrato”. 12 110 R EVISTA J URÍDICA E MPRESARIAL 7 D OUTRI NA N AC IONAL M ARÇO /A B RI L 2009 A influência do Direito Público sobre o Direito Privado acaba com a ilusão de sujeito de direito único, reconhecendo que em determinados casos as diferenças são aviltantes (fornecedor versus consumidor, locador versus locatário, empregador versus empregado, proprietário versus possuidor urbano e rural). Neste ínterim, ganham prestígio as Constituições, que após um período de inação passam a exercer papel importante na reconstrução do direito. O Etat Legal omisso dá lugar ao Verfassuntgsstaat – Estado Constitucional. Destarte, a Constituição deixa para trás sua característica de mera carta de princípios para adquirir força normativa, conquanto suas normas passam a irradiar efeitos para todo o ordenamento jurídico. Talvez o ícone deste movimento seja a Lei Fundamental de Bonn, como assenta KONRAD HESSE, ao referir que a primazia da Constituição reside na previsão de direitos fundamentais imediatamente aplicáveis, enterrando a vetusta classificação entre direitos autoaplicáveis e não-autoaplicáveis, bem como princípios meramente programáticos14. As evoluções antes narradas estabeleceram significativa mudança nas relações entre Direito Público e Direito Privado, porquanto as disposições normativas constitucionais passam a ingerir no domínio privado. A relação inicial de supremacia do Direito Público, passando por uma relação de incomunicabilidade para logo após se estabelecer uma relação hierárquica de supremacia e complementaridade, culminou com a assunção da Constituição como vértice do sistema jurídico, outrora ocupado pelo Código Civil. As normas constitucionais passaram a conferir conteúdo às normas de Direito Privado, adequando a letra da lei aos propósitos insculpidos na Carta Magna. A doutrina alemã passa a falar em força normativa da Constituição (KONRAD HESSE), rebatendo a velha distinção entre as normas constitucionais autoaplicáveis e de aplicabilidade contida (self executing rule and non self executing rule). A discussão torna-se inócua hodiernamente em 14 HESSE, Konrad. Op. cit., p.54. “Por lo que se refiere al elenco de los derechos fundamentales, la Ley Fundamental se há limitado en lo esencial a los derechos fundamentales ‘clásicos’ frente a lo que hiciera la Constituición de Weimar, pero los há asegurado más firmemente. Como antes, protege importantes fundamentos del Derecho Privado al garantizar ‘como tales’, en la forma ya expuesta, los instituos jurídicos del matrimonio, la família, la propriedade, la herancia y – al menos de acuerdo com la jurisprudência constitucional – la libertad contractual”. 111 R EVISTA J URÍDICA E MPRESARIAL 7 D OUTRI NA N AC IONAL M ARÇO /A B RI L 2009 face das normas existentes tanto na Constituição brasileira quanto na Lei Fundamental alemã, que pugnam pela autoaplicabilidade dos direitos e garantias fundamentais. (art. 5º, § 1º, da CF e artigo 1, 3 da LF15). Como um pêndulo, a relação entre Direito Público e Direito Privado agora estabelece uma supremacia daquele sobre este. PIETRO PERLINGIERI leciona com maestria a evolução da aplicação das normas constitucionais na esfera do Direito Privado. Sustenta o mestre peninsular que a superação da dicotomia entre público e privado com a consequente individuação de um direito civil mais atento aos problemas e exigências da sociedade se funda em grande parte na releitura do Código Civil e das leis especiais à luz da Constituição16. Em síntese, é possível afirmar que tanto o desenvolvimento do Direito Privado rumo ao processo codificatório quanto a sistematização do Direito Público e o constitucionalismo têm em suas raízes os mesmos pressupostos. No Direito Público, como no Direito Privado, os movimentos de sistematização, codificação, dogmatização de conceitos foram motivados essencialmente pela necessidade de estabelecer segurança jurídica. O anseio de pôr fim ao arbítrio moveu os glosadores, assim como os grandes movimentos constitucionalistas. Escreve CANOTILHO que as chamadas garantias institucionais (Einrichtungsgarantien), onde estão compreendidas as garantias jurídico-públicas (Institutionnelle garantien) e as garantias jurídico-privadas (Institutsgarantie), são protegidas constitucionalmente “Art. 5º. (...) § 1º. As normas definidoras dos direitos e garantias fundamentias têm aplicação imediata”. Art. 1. (Proteção da dignidade humana) (...) 3. Os direitos fundamentais que se seguem vinculam a legislação, o poder executivo e a jurisdição como direito imediatamente vigente. 16 Tradução livre do seguinte excerto: “Il superamento della tradizionale distinzione del pubblico e del privato, com l soneguente individuazione di um diritto civile più aderente ai problemi ed alle esigenze della società, si fonda in gran parte sulla ‘rilettura del cana’. La Juve è la vecchia signora. PERLINGIERI, Pietro. Il Diritto Civile nella Legalità Costituzionale. Napolis: Edizioni Scientifiche, 1991, p.189. A norma constitucional como limite – leitura separada do Código e da Constituição; Relevância interpretativa da Constituição: atua hermeneuticamente dando conteúdo e significado à norma ordinária. Atende à exigência de adequação aos valores fundamentais; Norma constitucional como justificação da norma ordinária: A observação da constituição atua não somente como uma exigência de unidade do sistema, nem questão de respeito à hierarquia das fontes, mas também à forma praticável de evitar o risco de degeneração do Estado de Direito. Relevância nas relações interindividuais das normas constitucionais: A doutrina alemã propugna uma aplicação indireta da norma constitucional, através das cláusulas gerais ou através de hipóteses legais abstratas pendentes de regulamentação. A norma constitucional deve ser aplicada no processo cognitivo, principalmente nos casos dúbios; Interpretação da corte constitucional e do juízo ordinário: experiência das Cortes Constitucionais e espaço decisório do juízo de primeiro grau. 15 112 R EVISTA J URÍDICA E MPRESARIAL 7 D OUTRI NA N AC IONAL M ARÇO /A B RI L 2009 para assegurar a proteção dos direitos fundamentais. Refere o constitucionalista que: “As garantias institucionais, constitucionalmente protegidas, visam não tanto a ‘firmar’, a ‘manter’ ou a ‘conservar’ certas instituições naturais, mas impedir a sua submissão à completa discricionariedade dos órgãos estaduais [estatais], proteger a instituição e defender o cidadão contra ingerências desproporcionais e coactivas”17. Esse dado será importante para compreender a relação estabelecida entre o Direito Tributário e os conceitos do Direito Privado. 2 – A F RONTEIRA E NTRE O D IREITO T RIBUTÁRIO E O D IREITO P RIVADO . D A A UTONOMIA D IDÁTICA À A PROPRIAÇÃO C ONCEITUAL A evolução do relacionamento entre o Direito Público e o Direito Privado antes descortinada é alvo de severas críticas, bem representadas pela voz de HANS KELSEN. Já em 1925, KELSEN punha em xeque a dicotomia entre os ramos do Direito por não reconhecer segurança nos argumentos que lhes estabeleciam distinção18. Com a perspicácia que lhe era habitual, ALFREDO AUGUSTO BECKER criticou a chamada “autonomia” do Direito Tributário, afirmando que a proposta de autonomia de qualquer ramo do Direito é um falso problema19. Defende ALFREDO AUGUSTO BECKER que a separação em ramos “autônomos” tem sentido meramente didático, pois a ideia de segmentação das searas jurídicas é contrária à ideia de unidade do sistema jurídico20. PAULO DE BARROS CARVALHO, de seu turno, seguindo a mesma linha de raciocínio, põe em dúvida inclusive a proposta de autonomia didática, pois “o caráter absoluto de unidade do sistema jurídico” é contrário à ideia CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Direito Constitucional e Teoria da Constituição. 5.ed. Coimbra: Almedina, p.395. Excerto citado pelo Min. Gilmar Mendes no voto prolatado nos autos do RE nº 346.084/PR. 18 KELSEN, Hans. Teoria General del Estado. Madrid, 1934, p.105-106. 19 BECKER, Alfredo Augusto. Teoria Geral do Direito Tributário. 4.ed. São Paulo: Noeses, 2007, p.31-33. 20 ALFREDO AUGUSTO BECKER refere que: “Pela simples razão de não poder existir regra jurídica independente da totalidade do sistema jurídico, a autonomia (no sentido de independência relativa) de qualquer ramo do Direito Positivo é sempre unicamente didática para, investigandose os efeitos jurídicos resultantes da incidência de determinado número de regras jurídicas, descobrir a concatenação lógica que as reúne num grupo orgânico e que une este grupo à totalidade do sistema jurídico”. BECKER, Alfredo Augusto. Teoria Geral do Direito Tributário. 4.ed. São Paulo: Noeses, 2007, p.33. 17 113 R EVISTA J URÍDICA E MPRESARIAL 7 D OUTRI NA N AC IONAL M ARÇO /A B RI L 2009 de autonomia. Para o autor, seria como “cisão do incindível, secção do inseccionável”21. A ideia de unidade da Constituição e, por decorrência, do sistema jurídico não é mera proposição doutrinária. O Supremo Tribunal Federal já se pronunciou sobre a ideia de unidade do sistema jurídico, consoante se extrai do voto do Min. Celso de Mello: “Os postulados que informam a teoria do ordenamento jurídico e que lhe dão o necessário substrato doutrinário assentam-se na premissa fundamental de que o sistema de direito positivo, além de caracterizar uma unidade institucional, constitui um complexo normativo cujas partes integrantes devem manter, entre si, um vínculo de essencial coerência”22. GERALDO ATALIBA destaca em sua clássica obra Sistema Constitucional Tributário Brasileiro que a compreensão do fenômeno que o estudioso se propõe a examinar será tão melhor quanto maior for a capacidade deste cientista para entender o todo maior no qual o objeto se insere23. Exsurge, portanto, uma primeira constatação. Não se pode partir para uma análise de qualquer problema jurídico com a premissa de ramos autônomos e compartimentados, em razão da ideia de unidade do sistema jurídico. Para ilustrar a afirmação, basta trazer o exemplo utilizado por PAULO DE BARROS CARVALHO: “Tomemos o exemplo da regra-matriz de incidência do Imposto Predial e Territorial Urbano (IPTU), de competência CARVALHO, Paulo de Barros. Curso de Direito Tributário. 19.ed. São Paulo: Saraiva, 2007, p13. Afirma PAULO DE BARROS CARVALHO que: “Com efeito, a ordenação jurídica é una e indecomponível. Seus elementos – as unidades normativas – se acham irremediavelmente entrelaçados pelos vínculos de hierarquia e pelas relações de coordenação, de tal modo que tentar conhecer regras jurídicas isoladas, como se prescindissem da totalidade do conjunto, seria ignorálo, enquanto sistema de proposições prescritivas. Uma coisa é certa: qualquer definição que se pretenda há de respeitar o princípio da unidade sistemática e, sobretudo, partir dele, isto é, dar como pressuposto que um número imenso de preceitos jurídicos, dos mais variados níveis e dos múltiplos setores, se aglutinam para formar essa mancha normativa cuja demarcação rigorosa e definitiva é algo impossível”. 22 RE-AgR 215107/PR, Rel. Min. Celso de Mello, 2ª Turma, j. 21.11.2006, DJ 02.02.2007, p.138. 23 GERALDO ATALIBA traz útil e precisa definição de sistema: “O caráter orgânico das realidades componentes do mundo que nos cerca e o caráter lógico do pensamento humano conduzem o homem a abordar as realidades que pretende estudar, sob critérios unitários, de alta utilidade científica e conveniência pedagógica, em tentativa do reconhecimento coerente e harmônico da composição de diversos elementos em um todo unitário, integrado em uma realidade maior. A esta composição de elementos, sob perspectiva unitária, se denomina sistema. Os elementos de um sistema não constituem o todo, com sua soma, como uma simples parte, mas desempenha cada um sua função coordenada com a função dos outros”. ATALIBA, Geraldo. Sistema Constitucional Tributário. São Paulo: RT, 1968, p.4. 21 114 R EVISTA J URÍDICA E MPRESARIAL 7 D OUTRI NA N AC IONAL M ARÇO /A B RI L 2009 dos Municípios. A hipótese normativa, em palavras genéricas, é ser proprietário, ter o domínio útil ou a posse de bem imóvel, no perímetro urbano do Município, num dia determinado do exercício. O assunto é eminentemente tributário, e o analista inicia suas indagações com o fito de apreender a descrição legal. Ser proprietário é conceito desenvolvido pelo Direito Civil. A posse também é instituto versado pelos civilistas e o mesmo se diga do domínio útil. E bem imóvel? Igualmente, é tema de Direito Civil. Prossigamos. A lei que determina o perímetro urbano do Município é entidade cuidada e trabalhada pelos administrativistas. Então, saímos das províncias do Direito Civil e ingressamos no espaço do Direito Administrativo. E estamos estudando Direito Tributário... E o Município? Que é senão pessoa política de Direito Constitucional interno? Ora, deixemos o Direito Administrativo e penetremos nas quadras do Direito Constitucional. Mas não procuramos saber de uma realidade jurídicotributária? Sim. É que o direito é uno, tecido por normas que falam do comportamento social, nos mais diversos setores de atividade e distribuídas em vários escalões hierárquicos. Intolerável desconsiderá-lo como tal”24. Dessa forma, estabelecer fronteira ou limitação entre o Direito Tributário ou Direito Privado faz sentido apenas para propósitos didáticos. Como no exemplo hipotético criado por PAULO DE BARROS CARVALHO antes transcrito ou como nos casos concretos examinados pelo Supremo Tribunal Federal, o ordenamento jurídico é tratado como um todo. Na apreciação que se fará a seguir, será possível perceber que os conceitos tradicionalmente vinculados ao Direito Privado são apropriados pelo Direito Tributário já na gênese das espécies tributárias. Tais apropriações, como se pretende demonstrar, decorrem muito mais da compreensão de unidade, coerência e completude do sistema do que da mera aplicação de dispositivos do Código Tributário Nacional que possam estabelecer primazia de um ramo do Direito sobre outro. 3 – A UTILIZAÇÃO DE CONCEITOS DE D IREITO P RIVADO NO D IREITO T RIBUTÁRIO . A LCANCE DOS ARTIGOS 109 E 110 DO C ÓDIGO T RIBUTÁRIO N ACIONAL Como referido na introdução do presente ensaio, a exata compreensão do papel dos conceitos e institutos de Direito Privado no 24 CARVALHO, Paulo de Barros. Curso de Direito Tributário. 19.ed. São Paulo: Saraiva, 2007, p.14. 115 R EVISTA J URÍDICA E MPRESARIAL 7 D OUTRI NA N AC IONAL M ARÇO /A B RI L 2009 âmbito do Direito Tributário tem repercussão marcante na conformação do fato gerador, assim como no planejamento tributário. Tanto num quanto noutro caso, é preciso compreender como tais conceitos e institutos são utilizados pela seara tributária. O ponto de partida é, sem dúvida, a análise dos artigos 109 e 110 do Código Tributário Nacional. Os referidos dispositivos se propõem a tratar do tema, em que pese a interpretação do seu real significado não seja unívoca. O artigo 109 dispõe que: “Os princípios gerais de direito privado utilizam-se para pesquisa da definição, do conteúdo e do alcance de seus institutos, conceitos e formas, mas não para definição dos respectivos efeitos tributários”. Para RICARDO LOBO TORRES, a leitura do dispositivo permite duas interpretações e, por óbvio, consequências distintas25. É possível, segundo o Professor da Universidade Estadual do RJ, extrair do dispositivo que o Código Tributário Nacional se filia ao método sistemático, se lido o dispositivo em conjunto com o artigo 110, assim como é possível inferir que o CTN adota o método teleológico na hipótese da leitura do dispositivo isoladamente. A toda evidência que a escolha de um ou outro método trará consequências distintas. Caso a opção seja o método sistemático, haverá uma valorização da lei como fonte do Direito, o Direito Tributário se subordinará ao Direito Privado e haverá uma liberdade na escolha das formas dos negócios jurídicos. Ao revés, se a escolha recair sobre o método teleológico, a jurisprudência será valorizada como fonte do Direito, o Direito Tributário garantirá primazia sobre os demais ramos do Direito e a elisão será tratada como ilícito. Eis o grande dilema apresentado pelo dispositivo referido. Parte majoritária da doutrina sustenta a adoção do método sistemático, como destaca RICARDO LOBO TORRES: “(...) incontáveis juristas, antigos e modernos, defendem a primazia dos conceitos de direito privado, bastando recordar MORANGE, A. D. GIANNINNI, COCIVERA, MICHELI, TRIMELONI; na Alemanha, FLUME proclamava não competir ao Direito Tributário elaborar os conceitos dos fatos geradores da imposição tributária, opinião que fez muito sucesso entre os juristas germânicos HARTZ, ECKARDT e KRUSE e que, inclusive, sensibilizou o Tribunal Financeiro Federal (Bundesfinanzhof), que, entre 1955 e 1965, se aferrou à doutrina do primado 25 TORRES, Ricardo Lobo. Normas de Interpretação e Integração do Direito Tributário. 3.ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2000, p.189. 116 R EVISTA J URÍDICA E MPRESARIAL 7 D OUTRI NA N AC IONAL M ARÇO /A B RI L 2009 do Direito Civil sobre o Direito Tributário [Primat des bürgerlichen Rechts vor dem Steuerrecht]. Entre nós, os escritores de tendência positivista e formalista comungaram nas mesmas ideias: SAMPAIO DÓRIA, A. A. BECKER, afirmando que as ‘expressões têm dentro do Direito Tributário o mesmo significado que possuem no outro do Direito, onde originalmente entraram no mundo jurídico’, e até mesmo o contraditório RUBENS GOMES DE SOUZA”26. Em apertada síntese do método sistemático, pode-se dizer que os conceitos e institutos devem ser compreendidos de acordo com sua posição e origem no sistema com o propósito de harmonia, equilíbrio e unidade do sistema27. Sistemática é, segundo NORBERTO BOBBIO, “aquela forma de interpretação que tira os seus argumentos do pressuposto de que as normas de um ordenamento ou, mais exatamente, de uma parte do ordenamento (como o Direito Privado, o Direito Penal) constituam uma totalidade ordenada (mesmo que depois se deixe um pouco no vazio o que se deva entender com essa expressão), e, portanto, seja lícito esclarecer uma norma obscura ou diretamente integrar uma norma deficiente recorrendo ao chamado ‘espírito do sistema’, mesmo indo contra aquilo que resultaria de uma interpretação meramente literal”. E arremata, dizendo que “o ordenamento jurídico, ou pelo menos parte dele, constitua um sistema é um pressuposto de atividade interpretativa, um dos ossos do ofício, digamos assim, do jurista”28. Para JUAREZ FREITAS, a interpretação sistemática do direito deve ser encarada como “uma operação que consiste em atribuir a melhor significação, entre várias possíveis, aos princípios, às normas e aos valores jurídicos, hierarquizando-os num todo aberto, fixando-lhes o alcance e superando antinomias, a partir da conformação teleológica, tendo em vista solucionar os casos concretos”29. De outro lado, o método teleológico ou chamado por alguns como interpretação econômica do Direito é sintetizado na ideia de desconsideração da forma jurídica atribuída ao ato e focava-se na consideração econômica do fato gerador, bem assim nos fins perseguidos TORRES, Ricardo Lobo. Normas de Interpretação e Integração do Direito Tributário. 3.ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2000, p.195. Sobre o tema, um dos trabalhos pioneiros é sem dúvida de GENY, François. O particularismo no Direito Fiscal. Revista de Direito Administrativo, n.20, p.6-31, 1950. 27 TORRES, Ricardo Lobo. Normas de Interpretação e Integração do Direito Tributário. 3.ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2000, p.191. 28 BOBBIO, Norberto. Teoria do Ordenamento Jurídico. Tradução de Maria Celeste Cordeiro Leite dos Santos. 5.ed. Brasília: UnB Editora, 1984, p.76. 29 FREITAS, Juarez. A interpretação sistemática do Direito. 2.ed. São Paulo: Malheiros, 1998, p.60. 26 117 R EVISTA J URÍDICA E MPRESARIAL 7 D OUTRI NA N AC IONAL M ARÇO /A B RI L 2009 encarados do ponto de vista econômico30. Essa corrente metodológica influenciou o Direito Tributário, fazendo surgir em especial na Alemanha a “consideração econômica do fato gerador” prevista no artigo 4º do Código Tributário Alemão de 1919. No Brasil, o movimento ganhou o apelido de “interpretação econômica”, cujas principais teses, sintetizadas por RICARDO LOBO TORRES, eram “autonomia do direito tributário frente ao direito privado; possibilidade de analogia; preeminência da capacidade contributiva sacada diretamente dos fatos sociais; função criadora do juiz; intervenção sobre a propriedade e regulamentação da vontade”31. Assim, a leitura do artigo 109 do Código Tributário Nacional, em especial a parte final do dispositivo, permite inferir que é autorizado desconsiderar a forma jurídica atribuída ao ato e focar-se na consideração econômica do fato gerador, bem assim nos fins perseguidos encarados do ponto de vista econômico32. A Comissão encarregada de elaborar o Código Tributário Nacional procurou justificar a redação do dispositivo sustentando a autonomia do Direito Tributário, dizendo que ao Direito Privado competiria a aferição da validade do ato e ao Direito Tributário avaliar o seu conteúdo econômico33. ALIOMAR BALEEIRO fez idêntica leitura do dispositivo, dizendo que o legislador reconhece a importância e o “império” das normas de Direito Civil e Comercial “opulentados por 20 séculos de lenta estratificação”. Contudo, reconhece que o Direito Tributário pode atribuir a tais conceitos efeitos diversos do ponto de vista tributário34. RIBEIRO, Ricardo Lodi. A interpretação da lei tributária na era da jurisprudência dos valores. In: Temas de interpretação do Direito Tributário. Rio de Janeiro: Renovar, 2003, p.340. 31 TORRES, Ricardo Lobo. Normas Gerais Antielisivas. In: Temas de interpretação do Direito Tributário. Rio de Janeiro: Renovar, 2003, p.264. RICARDO LOBO TORRES indica como defensores da corrente ENNO BECKER e BENVENUTO GRIZIOTTI, no exterior, e AMÍLCAR DE ARAÚJO FALCÃO, no Brasil. 32 RIBEIRO, Ricardo Lodi. A interpretação da lei tributária na era da jurisprudência dos valores. In: Temas de interpretação do Direito Tributário. Rio de Janeiro: Renovar, 2003, p.340. 33 Trabalhos da Comissão Especial do Código Tributário Nacional. Rio de Janeiro: IBGE, 1954, passim. 34 BALEEIRO, Aliomar. Direito Tributário Brasileiro. 11.ed. Rio de Janeiro: Forense, 2003, p.685. O autor chama a atenção para a repercussão que a interpretação do artigo 109 do CTN pode ensejar: “O problema tem especial relevo quanto à escolha dos institutos e, sobretudo, à forma dos atos, por parte dos contribuintes, em busca da minoração ou mesmo eliminação dos gravames fiscais. Por outras palavras, se lei decreta o tributo, visando a certa manifestação da capacidade econômica, como, p.ex., a aquisição de imóvel, é lícito ao contribuinte substituir a escritura de compra e venda por uma procuração irrevogável em causa própria, ou por um contrato de locação por prazo longuíssimo e quitação prévia, para fugir ao imposto de transmissão inter vivos? Ou substituir hipoteca pela cláusula de retrovenda, caso a primeira seja duramente tributada?”. 30 118 R EVISTA J URÍDICA E MPRESARIAL 7 D OUTRI NA N AC IONAL M ARÇO /A B RI L 2009 Como visto, a polêmica é mais ampla do que simplesmente perquirir o tratamento dado pelo Direito Tributário aos institutos de Direito Privado. A dúvida reside em saber qual o método interpretativo é adotado pelo Direito Tributário ao recepcionar conceitos e institutos que não lhes são próprios. A partir da resposta a tal indagação, é possível extrair conclusões que irão guiar a intérprete na solução dos problemas propostos no início da investigação. 4 – A P OSIÇÃO A DOTADA PELO S UPREMO T RIBUNAL F EDERAL S OBRE A PROPRIAÇÃO DE C ONCEITOS DO D IREITO P RIVADO PARA F ORMAÇÃO DA O BRIGAÇÃO T RIBUTÁRIA A resposta à indagação destacada acima parece ter sido dada pelo Supremo Tribunal Federal no julgamento do Recurso Extraordinário nº 346.084/PR, onde se discutia a constitucionalidade da ampliação da base de cálculo da COFINS por meio da Lei nº 9.718/98. Para que se compreenda a controvérsia, oportuno tecer breve comentário sobre a referida contribuição35. De efeito, a Contribuição para Financiamento da Seguridade Social – COFINS foi instituída por meio da Lei Complementar nº 70/90 com supedâneo no artigo 195, I da Constituição Federal. Quando da edição da referida lei complementar, a COFINS incidia sobre o faturamento das pessoas jurídicas (artigo 2º da LC nº 70/90), em consonância com a redação do artigo 195, I da Constituição Federal à época. Ocorre que sobreveio a Lei nº 9.718/98, que alterou a base de cálculo da contribuição, modificando o conceito de faturamento, in verbis: “Art 3º. O faturamento a que se refere o artigo anterior corresponde à receita bruta da pessoa jurídica. § 1º. Entendese por receita bruta a totalidade das receitas auferidas pela pessoa jurídica, sendo irrelevantes o tipo de atividade por ela exercida e a classificação contábil adotada para as receitas”. Os contribuintes se insurgiram contra a inovação trazida pela Lei nº 9.718/98, levando a controvérsia ao Poder Judiciário. O Supremo Tribunal Federal apreciou a arguição incidental de inconstitucionalidade no leading case RE nº 346.084/PR, cuja relatoria havia ficado a cargo do Ministro Ilmar Galvão. 35 Uma abordagem mais detalhada pode ser conferida em ÁVILA, René Bergamann; PORTO, Éderson Garin. COFINS. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2005. 119 R EVISTA J URÍDICA E MPRESARIAL 7 D OUTRI NA N AC IONAL M ARÇO /A B RI L 2009 A resposta sobre a constitucionalidade da modificação no conceito de faturamento implementada pela Lei nº 9.718/98 soluciona também a dúvida sobre qual a forma correta de utilização dos conceitos de Direito Privado pelo Direito Tributário. Se for adotada a opção do método teleológico ou interpretação econômica, onde o Direito Tributário pode manipular os conceitos e institutos jurídicos como bem entender, preocupando-se mais com os efeitos econômicos, a modificação seria constitucional. De outro lado, acaso adotada a ideia de que conceitos e institutos jurídicos apropriados pelo Direito Tributário e pressupostos pela Constituição Federal fazem parte de um sistema uno, harmônico e integrado e que as suas consideração e interpretação não podem ser particularizadas, então o reconhecimento da inconstitucionalidade é de rigor. O julgamento do referido precedente é emblemático porque aclara a posição do Supremo Tribunal Federal sobre o método interpretativo consentâneo com a ordem jurídica vigente. Por maioria de votos, a Corte Suprema reconheceu a inconstitucionalidade da modificação no conceito da expressão “faturamento” que, segundo tese vencedora, importou alargamento indevido da base de cálculo da COFINS. No voto do Min. Cezar Peluso, parafraseando Humberto Eco, consta a ideia de que o intérprete não está autorizado a dizer que a mensagem pode dizer qualquer coisa. Em verdade, a mensagem pode significar muitas coisas, mas “há sentidos que seria despropositado sugerir”36. O Min. Cezar Peluso reconhece que determinadas “províncias jurídicas” podem atribuir “conceito jurídico-normativo” diverso daquele sentido vernacular da expressão; contudo, quando não há conceito jurídico expresso, é preciso fazer o que chama de “reconstrução semântica”. Convém transcrever o seguinte excerto: “Como já exposto, não há, na Constituição Federal, prescrição de significado do termo faturamento. Se se escusou a Constituição de o definir, tem o intérprete de verificar, primeiro, se, no próprio ordenamento, havia então algum valor semântico a que pudesse se filiar o uso constitucional do vocábulo, sem explicitação do sentido particular, nem necessidade de regulamentação por lei inferior. É que, se há correspondente semântico na ordem jurídica, a presunção é que a ele se refere o uso constitucional. Quando uma mesma palavra, usada pela Constituição sem definição expressa nem contextual, guarde dois ou mais sentidos, um dos quais já incorporado ao ordenamento jurídico, será esse, 36 RE nº 346.084/PR, Rel. Min. Ilmar Galvão, Pleno, DJ 02.09.2006, p. 8 do voto. 120 R EVISTA J URÍDICA E MPRESARIAL 7 D OUTRI NA N AC IONAL M ARÇO /A B RI L 2009 não outro, seu conteúdo semântico, porque seria despropositado supor que o texto normativo esteja aludindo a objeto extrajurídico”37. Como visto, a discussão bem colocada no precedente citado identifica-se com a pesquisa ora proposta, vale dizer, tanto aqui quanto no julgamento do Supremo a compreensão e a forma de utilização de conceitos e institutos de Direito Privado pelo Direito Tributário estão no cerne do debate. A proposição trazida pelo Min. Peluso assenta-se no sentido de que existem conceitos pressupostos pela Constituição que não podem ser desprezados pelo intérprete do Direito Tributário, sob pena de violação à competência tributária definida pela Constituição. Em matéria de competência, o sistema constitucional tributário é bastante claro em definir as hipóteses de incidência, bem como o conteúdo material para o apropriado exercício da competência38. A Constituição Federal assumiu clara opção pela rigidez normativa em matéria tributária, assim como optou pela utilização de regras para instituição de tributos, em vez de princípios ou outra espécie normativa de textura aberta39. A pesquisa levada a efeito pelo Ministro Cezar Peluso na ordem constitucional foi capaz de demonstrar que o conceito de faturamento pressuposto pela Constituição não admitia a sinonímia feita pela Lei nº 9.718/98 com o conceito de receita. Faturamento é um conceito mais estreito que a definição de receita. Refere o Ministro que: “Tal atribuição legal de denotação ou significado mais extenso, que compreende todos os elementos do gênero ou classe de receitas, seria válida, se não afrontasse o alcance do texto constitucional que usa o termo faturamento, para outorga de competência tributária, com conteúdo semântico mínimo, sem o qual seria impossível observar e controlar os limites dessa mesma competência constitucional, assim como seria impossível preservar todo o grave alcance da proibição constitucional de prisão civil por dívida (art. 5º, LXVII), se não fosse compreensível e restrita a condição jurídica de depositário infiel. Apesar de parecer expletivo, ante a própria inteligência do sistema, o qual já não RE nº 346.084/PR, Rel. Min. Ilmar Galvão, Pleno, DJ 02.09.2006, p.10 do voto. ÁVILA, Humberto. Sistema Constitucional Tributário. São Paulo: Saraiva, 2004, p. 111. 39 Humberto Ávila afirma que: “Essa opção pela atribuição de poder por meio de regras implica a proibição de livre ponderação do legislador a respeito dos fatos que ele gostaria de tributar com base nos princípios da dignidade humana ou da solidariedade social é contrariar a dimensão normativa escolhida pela Constituição”. ÁVILA, Humberto. Sistema Constitucional Tributário. São Paulo: Saraiva, 2004, p.159. 37 38 121 R EVISTA J URÍDICA E MPRESARIAL 7 D OUTRI NA N AC IONAL M ARÇO /A B RI L 2009 permite a alteração da competência tributária pelo ente federado que a recebe, dada a rigidez constitucional, é, a respeito, peremptório o artigo 110 do Código Tributário: ‘Art. 110. A lei tributária não pode alterar a definição, o conteúdo e o alcance de institutos, conceitos e formas de direito privado, utilizados, expressa ou implicitamente, pela Constituição Federal, pelas Constituições dos Estados, ou pelas Leis Orgânicas do Distrito Federal ou dos Municípios, para definir ou limitar competências tributárias’. É claro que o preceito não serve a interpretar a Constituição, mas tem eficácia enquanto predica a sanção de invalidez às normas tributárias que a contrariem nos aspectos enunciados. E não deixa de confirmar que a Constituição da República usa, implicitamente, conceitos de direito privado para delimitar ou limitar competências tributárias.”40 Em verdade, tais conclusões não são novas. O Supremo Tribunal Federal há muito reconhece a importância dos conceitos de Direito Privado apropriados pelo Direito Tributário, reconhecendo conteúdo semântico mínimo. No julgamento do Recurso Extraordinário nº 71.758/GB, o Min. Luiz Gallotti assim expressa seu voto: “Sr. Presidente, é certo que podemos interpretar a lei, de modo a arredar a inconstitucionalidade. Mas, interpretar interpretando e, não, mudando-lhe o texto, e, menos ainda, criando um imposto novo, que a lei não criou. Como sustentei muitas vezes, ainda no Rio, se a lei pudesse chamar de compra o que não é compra, de importação o que não é importação, de exportação o que não é exportação, de renda o que não é renda, ruiria todo o sistema constitucional tributário inscrito na Constituição.”41 A ideia da pressuposição de um conteúdo semântico mínimo pela Constituição Federal foi igualmente reconhecida pelo Supremo Tribunal Federal no julgamento do Recurso Extraordinário n° 166.772-9/RS, que apreciou a controvérsia da incidência da contribuição social sobre a folha de salários nos valores percebidos por administradores e autônomos. O voto da lavra do Min. Marco Aurélio não deixa dúvidas acerca da posição adotada pelo ordenamento jurídico pátrio: “De início, lanço a crença na premissa de que o conteúdo político de uma Constituição não pode levar quer ao desprezo do 40 41 RE nº 346.084/PR, Rel. Min. Ilmar Galvão, Pleno, DJ 02.09.2006, p.24 do voto. RE 71758/GB, Rel. Min. Thompson Flores, Pleno, j. 14.06.1972, DJ 31.08.1973, p.6.310. 122 R EVISTA J URÍDICA E MPRESARIAL 7 D OUTRI NA N AC IONAL M ARÇO /A B RI L 2009 sentido vernacular das palavras utilizadas pelo legislador constituinte, quer ao técnico, considerados institutos consagrados pelo Direito. Toda ciência pressupõe a adoção de escorreita linguagem, possuindo os institutos, as expressões e os vocábulos que a revelam conceito estabelecido com a passagem do tempo, por força dos estudos acadêmicos e pela atuação dos pretórios.”42 Na fundamentação do voto, o Min. Marco Aurélio deixa explícita a adoção de uma interpretação sistemática, pois mais coerente com os valores segurança, previsibilidade e vedação de arbítrio, plasmados pela Constituição Federal43. Por derradeiro, cumpre trazer à colação o julgamento do Recurso Extraordinário nº 116.121-3/SP, onde foi questionada a equiparação da locação de guindaste ao conceito de prestação de serviço para efeito de incidência do Imposto Sobre Serviço de Qualquer Natureza – ISSQN. O Supremo Tribunal Federal deu provimento para reconhecer a inconstitucionalidade da expressão “locação de bens móveis” na legislação paulistana, que ampliava o conceito tradicional de “prestação de serviço” utilizado pelo Direito Privado. O precedente também é importante porque o relator afasta expressamente a consideração do aspecto econômico quando este for contrário ao modelo constitucional44. O Min. Marco Aurélio sintetiza seu voto dizendo: RE n° 166.772-9/RS, Rel. Min. Marco Aurélio, Pleno, DJ 16.12.1994. Diz o Min. Marco Aurélio: “Realmente, a flexibiliade de conceitos, o câmbio do sentido destes, conforme os interesses em jogo, implicam insegurança incompatível com o objetivo da própria Carta que, realmente, é um corpo político, mas o é ante os parâmetros que encerra e estes não são imunes ao real sentido dos vocábulos, especialmente os de contornos jurídicos”. RE n° 166.7729/RS, Pleno, DJ 16.12.1994, p.12 do voto. 44 RE nº 116.121-3/SP, Rel. Min. Marco Aurélio, Pleno, j. 11.10.2000, DJ 25.05.2001, p.3 do voto. No voto do Min. Celso de Mello, o afastamento da interpretação econômica é ainda mais enfático: “Veja-se, pois, que, para efeito da definição e de identificação do conteúdo e do alcance de institutos, conceitos e formas de direito privado, o Código Tributário Nacional, em seu art. 110, ‘faz prevalecer o império do Direito Privado – Civil ou Comercial...’.” (BALEEIRO, Aliomar. Direito Tributário Brasileiro. Atualização de Misabel Abreu Machado Derzi. 11.ed. Forense, 1999, p.687, item n.2, – grifei), razão pela qual esta Suprema Corte, para fins jurídico-tributários, não pode recusar, ao instituto da locação de bens móveis, a definição que lhe é dada pelo Código Civil (art. 1.188), sob pena de prestigiar, no tema, a interpretação econômica do direito tributário, em detrimento do postulado da tipicidade, que representa, no contexto de nosso sistema normativo, projeção natural e necessária do princípio constitucional da reserva absoluta de lei, consoante adverte o magistério da doutrina (CANTO, Gilberto de Ulhôa. Caderno de Pesquisas Tributárias n.13/493, 1989, Resenha Tributária; TROIANELLI, Gabriel Lacerda. O ISS sobre a Locação de Bens Móveis. Revista Dialética de Direito Tributário, v.28/7-11, 8-9)”. 42 43 123 R EVISTA J URÍDICA E MPRESARIAL 7 D OUTRI NA N AC IONAL M ARÇO /A B RI L 2009 “Em síntese, há de prevalecer a definição de cada instituto, e somente a prestação de serviços, envolvido na via direta o esforço humano, é fato gerador do tributo em comento. Prevalece a ordem natural das coisas cuja força surge insuplantável; prevalecem as balizas constitucionais e legais, a conferirem segurança às relações Estado/contribuinte; prevalece, alfim, a organicidade do próprio Direito, sem a qual tudo será possível no agasalho de interesses do Estado, embora não enquadráveis como primários.”45 Diante da clareza dos precedentes examinados, é possível estabelecer algumas conclusões provisórias a respeito da forma de interpretação e utilização dos conceitos de Direito Privado pelo Direito Tributário. As ideias de rigidez do Sistema Tributário, fixação de competências tributárias por meio de regras, valorização da previsibilidade, segurança, mensurabilidade, certeza e calculabilidade convergem para a utilização de método interpretativo que harmonize os conceitos e institutos de forma a prestigiar tais valores. Na atual conformação do ordenamento jurídico pátrio, é impossível conceber interpretação vacilante ou que comporte a utilização de estruturas normativas demasiadamente abertas. A interpretação dos conceitos e institutos consagrados pelo Direito Privado não pode ser solenemente desconsiderada por percepções outras que não aquelas adequadas e harmônicas ao sistema jurídico no qual estão inseridas. Sendo assim, ainda que se reconheça a possibilidade de abertura no sistema jurídico-tributário e igualmente se reconheça que a ideia de conceitos unívocos ou interpretação literal estejam relegadas ao ultrapassado pensamento positivista do século XIX, ainda assim é infenso à ordem constitucional admitir interpretação teleológica, econômica ou principiológica dos institutos e conceitos de Direito Privado, desconsiderando seu conteúdo semântico mínimo em favor do efeito econômico. 5 – P ROPOSTA DE A PLICAÇÃO DO P RINCÍPIO DO E STADO DE D IREITO C OMO N ORMA O RIENTADORA NA D EFINIÇÃO DA C OMPETÊNCIA T RIBUTÁRIA E I NTERPRETAÇÃO DOS C ONCEITOS DE D IREITO P RIVADO A Constituição Federal, ao enunciar que a República Federativa do Brasil é um Estado Democrático de Direito, assim como ao fixar de forma pormenorizada as regras de competência, fez uma opção clara por 45 RE nº 116.121-3/SP, Rel. Min. Marco Aurélio, Pleno, j. 11.10.2000, DJ 25.5.2001, p. 4 do voto. 124 R EVISTA J URÍDICA E MPRESARIAL 7 D OUTRI NA N AC IONAL M ARÇO /A B RI L 2009 determinado modelo jurídico46. Poderia o País ter escolhido um modelo aberto, fixando apenas princípios em nível constitucional, deixando ao legislador ordinário a tarefa de estabelecer as regras de competência, como ocorre na Alemanha, por exemplo. No entanto, a história do Direito Constitucional brasileiro demonstra que a adoção da forma enunciada no artigo 1º da Constituição Federal e disposta no Título VI, pertinente a tributação e orçamento, foi uma escolha natural, fruto da evolução constitucional tributária brasileira47. Em resumo, o Estado de Direito adotado pela Constituição impõe uma série de compromissos no ordenamento jurídico pátrio e, em especial, no Direito Tributário. Entre eles, interessa aqui comentar sobre a fixação escorreita da competência tributária. Com efeito, a Constituição elege os fatos sujeitos a tributação sem deixar margens ao legislador ordinário para escolher outros que melhor conviessem48. Nas palavras de HUMBERTO PAULO DE BARROS CARVALHO refere que o processo de construção normativa não fica ao alvitre do intérprete, in verbis: “Com efeito, as ordenações jurídico-normativas costumam estabelecer caminhos próprios para a realização do percurso construtivo, neles fixando os valores que lhes pareçam convenientes para integrar as múltiplas unidades produzidas. Nesse sentido, a Constituição brasileira é até abundante, fazendo constar uma série de estimativas sem as quais as regras elaboradas pelo intérprete não encontrarão o devido respaldo de fundamento constitucional”. CARVALHO, Paulo de Barros. Proposta de modelo interpretativo para o direito tributário. Revista de Direito Tributário, n.70, p.49. 47 RIBEIRO, Ricardo Lodi. Legalidade tributária, tipicidade aberta, conceitos indeterminados e cláusulas gerais tributárias. Revista de Direito Administrativo, n.229, p.323, jul.-set. 2002. 48 O Tribunal Constitucional Federal Alemão apreciou controvérsia envolvendo a compensação tributária de imposto recolhido por nacional alemão no exterior. No caso, o Tribunal Financeiro de Düsseldorf considerou inconstitucional lei que aplicava o conceito vago de “razões macroeconômicas”. O Tribunal Constitucional Federal decidiu que o conceito “razões macroeconômicas” era compatível com a Lei Fundamental Alemã, nos seguintes termos: “Do princípio do Estado de Direito (art. 20, III, GG) decorre o princípio da reserva de lei. Ele serve à garantia constitucionalmente prevista da liberdade e igualdade dos cidadãos. A necessidade de uma base de autorização legal deve, igualmente, assegurar que o legislador tome as decisões fundamentais essenciais que afetem o campo da liberdade e da igualdade dos cidadãos”. Prossegue a Corte: “É reconhecido que no Estado democrático de direito deve ser exigido também junto a tais autorizações um certo grau de concreção legal já com vistas à devida delimitação, por meio da reserva de lei, entre a área de ação do legislador e da Administração, e no interesse da realização do princípio da justiça tributária (cf. BVerfGE 23, 62[73]). Mesmo que no direito tributário encargos e benefícios não raro caminhem juntos, as exigências direcionadas ao grau da concreção de tais autorizações são, não obstante, menores do que aquelas direcionadas às autorizações de intervenção, uma vez que a relevância de direito fundamental destas é em geral muito maior. (BVerfGE 48, 210 de 19.04.1978). SCHWABE, Jürgen. Cinqüenta Anos de Jurisprudência do Tribunal Constitucional Federal Alemão. Tradução de Beatriz Hennig et alli. Montevidéu: Fundacion Konrad Adenauer, 2005. 46 125 R EVISTA J URÍDICA E MPRESARIAL 7 D OUTRI NA N AC IONAL M ARÇO /A B RI L 2009 ÁVILA: “É lícito afirmar que a Constituição pressupõe conceitos que não podem ser desprezados pelo legislador ordinário”49. Assim, tendo a Constituição feito eleições prévias em matéria tributária, seja na captura de conceitos de outras searas do Direito (teoria da reserva material suposta) ou na fixação de limites e distribuição de competências aos entes da Federação (teoria da reserva material pressuposta), não pode o legislador ordinário se arvorar em terreno não autorizado pelo texto da Carta Magna50. Nesse sentido, a jurisprudência do Supremo Tribunal Federal obrou com zelo na proteção da inteireza do texto da Constituição, fixando limites e estabelecendo critérios para se estabelecer uma relação de primazia entre argumentos manejados na seara constitucional tributária. Sobre o tema, pode-se dizer que os teóricos do Direito se preocuparam sobremaneira em estabelecer critérios e formas de classificação dos argumentos, ao efeito de conferir racionalidade ao discurso jurídico. São exemplos de propostas classificatórias os modelos elaborados por CHÄIM PERELMAN51, STEPHEN TOULMIN52 e ROBERT ALEXY53. Em comum, todos esses autores identificaram a necessidade de se categorizarem as razões presentes no discurso jurídico, de modo a obter um rigorismo científico na elaboração da argumentação. A pesquisa de decisões do Supremo Tribunal Federal sobre o tema demonstra que alguns argumentos possuem carga argumentativa maior que outros em razão da opção assumida pela Constituição Federal. A função argumentativa do princípio do Estado de Direito traz consequências na argumentação jurídica e assume maior relevância em se tratando de discussões tributárias. HUMBERTO ÁVILA já se manifestara, ao referir que “as ÁVILA, Humberto. Sistema Constitucional Tributário. São Paulo: Saraiva, 2004, p.201. Cf. ÁVILA, Humberto. Contribuição Social sobre o faturamento. Cofins. Base de cálculo. Distinção entre receita e faturamento. Jurisprudência do Supremo Tribunal Federal. Revista Dialética de Direito Tributário, n.107, p.96. 50 Construção doutrinária de Humberto Ávila que identifica uma Teoria da reserva constitucional material divisada entre aquelas estabelecidas de forma direta pelo texto da Constituição e aquelas postas indiretamente. ÁVILA, Humberto. Sistema Constitucional Tributário. São Paulo: Saraiva, 2004, p. 201-203 51 PERELMAN, Chäim. Traité de l’argumentation: la nouvelle rhetorique, p.259-463. 52 TOULMIN, Stephen. The uses of argument, p.125 e ss. 53 ALEXY, Robert. Theory of legal argumentation, p.235-243; e ALEXY, Robert. Teoria del discurso y derechos humanos. Tradução de Luis Villar Borda. Bogotá: Universitá Externado de Colômbia, 2000, p.54-57. 49 126 R EVISTA J URÍDICA E MPRESARIAL 7 D OUTRI NA N AC IONAL M ARÇO /A B RI L 2009 classificações elaboradas pela ciência do direito, enquanto voltadas à explicação coerente do ordenamento jurídico, submetem-se a limites dele decorrentes”54. De fato, a Constituição Federal é capaz de fornecer critérios classificatórios dos argumentos, distinguindo-os uns dos outros. Como até aqui sustentado, o Estado de Direito desempenha papel fundamental na argumentação jurídica e não poderia deixar de desempenhar nobre função numa proposta classificatória dos argumentos. Com efeito, propõe-se ao Estado de Direito exercer papel de critério categorizador dos argumentos55. A Constituição Federal tem o Estado de Direito como princípio fundamental do ordenamento jurídico (art. 1°, caput), deixando expresso que a República Federativa do Brasil se constitui num Estado Democrático de Direito. Esta norma revela que o Estado Brasileiro submete-se aos desígnios do Direito e tem o ordenamento jurídico como limite. Estabelecendo um joeiramento prévio, a Corte Constitucional Alemã tem excluído justificativas não-defensáveis sob o aspecto da Ética e do Bem Comum, consoante informação prestada por KLAUS TIPKE: “Para tanto, considerando o alto nível de justiça num Estado de Direito, não é suficiente qualquer motivo objetivo, mas deve ocorrer uma ponderação de valores entre o princípio que serve de critério de comparação e o princípio que fundamenta a norma, a qual não observa o critério de comparação e, consequentemente, determina o tratamento desigual. Entre as justificativas que o Tribunal Constitucional Alemão admitiu como objetivas estão aquelas não-defensáveis sob o aspecto da Ética e do Bem Comum.”56 ÁVILA, Humberto Bergmann. Argumentação jurídica e a imunidade do livro eletrônico. In: TORRES, Ricardo Lobo (org.). Temas de Interpretação do Direito Tributário, p.114. PAULO DE BARROS CARVALHO, de seu turno, destaca que: “Sabemos que as classificações atendem às necessidades do trabalho expositivo, não se submetendo a valores veritativos. Uma classificação bem construída, isto é, formada segundo os cânones da Lógica, será mais ou menos útil, consoante o desenvolvimento que o autor imprimir a suas indagações”. CARVALHO, Paulo de Barros. Direito Tributário, p.78. 55 Esta proposição, a bem da verdade, já fora sustentada por HUMBERTO ÁVILA no parecer sobre as limitações impostas à publicidade do tabaco. AVILA, Humberto. Conflito entre o dever de proteção à saúde e o dever de proteção à liberdade de comunicação e informação no caso da propaganda comercial do tabaco. Exame de constitucionalidade da Lei nº 9.249/96. Revista de Direito Administrativo, n.240, p.352. 56 TIPKE, Klaus; YAMASHITA, Douglas. Justiça Fiscal e princípio da capacidade contributiva. São Paulo: Malheiros, 2002, p.24. 54 127 R EVISTA J URÍDICA E MPRESARIAL 7 D OUTRI NA N AC IONAL M ARÇO /A B RI L 2009 Assim, a primeira grande divisão entre os argumentos empregados no discurso deve ser traçada entre aqueles com referência ao ordenamento jurídico e aqueles sem referência. Esta distinção pode ser verificada na jurisprudência do Supremo Tribunal Federal, como expressamente aduz o Min. CELSO DE MELLO: “Razões de Estado, ainda que vinculadas a motivos de elevado interesse social, não podem legitimar o desrespeito e a afronta a princípios e valores sobre os quais tem assento o nosso sistema de direito constitucional positivo. Esta Corte, ao exercer, de modo soberano, a tutela jurisdicional das liberdades públicas, tem o dever indeclinável de velar pela intangibilidade de nossa Lei Fundamental, que, ao dispor sobre as relações jurídico-tributárias entre o Estado e os indivíduos, institucionalizou um sistema coerente de proteção, a que se revelam subjacentes importantes princípios de caráter político, econômico e social.”57 Em outras palavras, a assertiva do ilustre Min. CELSO DE MELLO divisa as “razões de estado” dos “princípios e valores” com assento no direito constitucional, privilegiando estes em detrimento daqueles58. Em outro acórdão paradigmático do Supremo Tribunal Federal, novamente as razões de Estado são afastadas, preservando-se a supremacia da Constituição Federal. No julgado é destacado, ainda, que a relação entre o Poder, seus agentes e a Constituição deve ser permeada pelo respeito: “Razões de Estado Não Podem Ser Invocadas Para Legitimar o Desrespeito à Supremacia da Constituição da República – A invocação das razões de Estado – além de deslegitimar-se como fundamento idôneo de justificação de medidas legislativas – representa, por efeito das gravíssimas consequências provocadas por seu eventual acolhimento, uma ameaça inadmissível às liberdades públicas, à 57 58 RE n° 150.764-1/PE, fl.1.557. Comentando a experiência alemã, HARTMUT MAURER refuta a preponderância de argumentos políticos sobre jurídicos na tomada de decisões por parte da Corte Constitucional: “Claro que litígios jurídico-constitucionais têm, em geral, um fundo político com a consequência que as próprias sentenças judicial-constitucionais são um processo, acontecimento, objeto ou outra coisa de significado político e, muitas vezes, causam consequências políticas extensas. Mas isso nada modifica, visto que o próprio tribunal constitucional não tem de decidir segundo considerações de conformidade com a finalidade política, mas exclusivamente segundo critérios jurídicoconstitucionais”. MAURER, Hartmut. A revisão jurídico-constitucional das leis pelo Tribunal Constitucional Federal. In: ÁVILA, Humberto (org.). Fundamentos do Estado de Direito. São Paulo: Malheiros, 2005, p.183. 128 R EVISTA J URÍDICA E MPRESARIAL 7 D OUTRI NA N AC IONAL M ARÇO /A B RI L 2009 supremacia da ordem constitucional e aos valores democráticos que a informam, culminando por introduzir, no sistema de direito positivo, um preocupante fator de ruptura e de desestabilização político-jurídica. Nada compensa a ruptura da ordem constitucional. Nada recompõe os gravíssimos efeitos que derivam do gesto de infidelidade ao texto da Lei Fundamental. A defesa da Constituição não se expõe, nem deve submeter-se a qualquer juízo de oportunidade ou de conveniência, muito menos a avaliações discricionárias fundadas em razões de pragmatismo governamental. A relação do Poder e de seus agentes com a Constituição há de ser, necessariamente, uma relação de respeito. Se, em determinado momento histórico, circunstâncias de fato ou de direito reclamarem a alteração da Constituição, em ordem a conferir-lhe um sentido de maior contemporaneidade, para ajustála, desse modo, às novas exigências ditadas por necessidades políticas, sociais ou econômicas, impor-se-á a prévia modificação do texto da Lei Fundamental, com estrita observância das limitações e do processo de reforma estabelecidos na própria Carta Política.”59 Estabelecendo a mesma distinção, o Min. MARCO AURÉLIO profere a seguinte definição: “Por maior que seja o pragmatismo, por maior que seja o sentido de justiça, de equidade, há de prevalecer a visão técnica, tão peculiar ao controle de constitucionalidade, preservando-se a intangibilidade do próprio sistema. A questão referente à saúde econômica e financeira das empresas resolve-se em campo diverso do controle concentrado de constitucionalidade, sob pena de não se ter parâmetros para o exercício deste último, prevalecendo, com variação incompatível com a segurança jurídica, com a Supremacia da Constituição Federal, o critério da conveniência, o critério reinante e, destarte, circunstancial.”60 59 60 ADI-MC nº 2.010-2, Pleno, Rel. Min. Celso de Mello, j. 30.09.1999, DJU 12.04.2002. ADI nº 1.600-8, Pleno, Rel. Min. Sydney Sanches, Red. p/acórdão Min. Nelson Jobim, j. 26.11.2001, DJU 20.06.2003, p.1.883. 129 R EVISTA J URÍDICA E MPRESARIAL 7 D OUTRI NA N AC IONAL M ARÇO /A B RI L 2009 A nomenclatura utilizada por HUMBERTO ÁVILA para distinguir tais argumentos consiste em: institucionais e não institucionais61. Os argumentos institucionais decorrem do Estado de Direito e com ele guardam pertinência. A maior ou menor vinculação com o ordenamento jurídico determinará o peso de cada argumento. O importante, por ora, é registrar o liame que deve necessariamente existir entre os argumentos e o ordenamento jurídico para que estes sejam considerados institucionais. Este vínculo constitui-se numa necessidade de atendimento às exigências que a teoria do discurso demanda. Pressupõe-se o estabelecimento de nexos com elementos institucionais, como leciona ROBERT ALEXY62. De outro lado, os argumentos não institucionais nada mais possuem em seu interior do que uma aspiração à justiça, guardando uma relação oblíqua com o ordenamento jurídico. Dito isto, despiciendo explicar a força da sua carga argumentativa que se revela menos importante frente aos ditos institucionais, como já destacado nos arestos citados no decorrer deste ensaio. Entre os argumentos institucionais, podem ser citados os meramente práticos, os argumentos econômicos, sociológicos, entre outros não derivados do Estado de Direito. Sobre argumentos de índole econômica, escreveu KLAUS TIPKE: “Até agora, entretanto, não está comprovado que a justiça fiscal perturba necessariamente a eficiência econômica. Até agora os economistas não puderam se entender sobre os efeitos econômicos dos impostos. Isso tem a ver com o fato de que as ciências econômicas não pertencem às ciências exatas (PAUL SAMUELSON), pois o comportamento humano não é calculável. Por isso, especialmente num Estado de Direito, deve permanecer a primazia da justiça fiscal sobre a economia.”63 O Supremo Tribunal Federal inclusive já sustentou que os argumentos de índole econômica não podem ser utilizados para dirimir controvérsias no controle de constitucionalidade, consoante voto-vista do Min. MOREIRA ALVES: “Deixo de lado a questão de não haver, aproximadamente há cinco anos, reajuste de vencimentos, até porque ÁVILA, Humberto Bergmann. Argumentação jurídica e a imunidade do livro eletrônico. In: TORRES, Ricardo Lobo (org.). Temas de Interpretação do Direito Tributário, p.117. BORGES, José Souto Maior.. Ciência Feliz, p.135. 62 ALEXY, Robert. Teoria del discurso y derechos humanos. Tradução de Luis Villar Borda. Bogotá: Universitá Externado de Colômbia, 2000, p.52-54. 63 TIPKE, Klaus; YAMASHITA, Douglas. Justiça Fiscal e princípio da capacidade contributiva. São Paulo: Malheiros, 2002, p.45. 61 130 R EVISTA J URÍDICA E MPRESARIAL 7 D OUTRI NA N AC IONAL M ARÇO /A B RI L 2009 argumentos de natureza meramente econômica não podem ser usados, por via de regra, para julgamento de ação direta de inconstitucionalidade”64. Com essas considerações, é possível sustentar o desacerto do Supremo Tribunal Federal ao julgar improcedente a ADIn que questionava a exclusão das sociedades de profissões liberais do Sistema Integrado de Pagamento de Impostos e Contribuições. Em que pesem os votos dos Ministros Carlos Velloso, Marco Aurélio e Sepúlveda Pertence assentaremse no sentido de reconhecer tratamento discriminatório e, portanto, posicionaram-se pela procedência da ADIn, o voto do Min. Maurício Corrêa, fundado apenas em razões econômicas e sociais, sagrou-se vencedor. No caso, o Ministro Relator entendeu que as sociedades de profissionais liberais não necessitam de benefícios porque não estão sujeitas aos desígnios do competitivo mercado65. Padece do mesmo equívoco o acórdão proferido nos autos da ADI nº 1851, que questionava a inconstitucionalidade do Convênio 13/97 e demais decretos que impossibilitavam a restituição do valor pago a maior quando, na substituição tributária, fosse verificado que o produto ou serviço prestado foi comercializado por valor inferior à pauta estabelecida por presunção do fisco. No voto vencedor do Min. Ilmar Galvão, fica evidente que os argumentos empregados são históricos e práticos, vale dizer, primam pela evolução legislativa e por critérios de administração tributária66. Contrastando com a tese vencedora, o voto do Min. CARLOS VELLOSO: ADI – MC n° 2.010-2, Pleno, Rel. Min. Celso de Mello, j. 30.09.1999, DJ 12.04.2002, página 242 do acórdão. Em sentido contrário, o Min. Sydney Sanches defende a utilização de razões políticas em entrevista concedida ao jornal Valor Econômico de 2 de junho de 2006, p. A18: “Valor: De que forma a política influencia nas decisões do Supremo? Sanches: Estamos falando de processo criminal [o Min. se referia ao processo de corrupção movido contra o ex-Presidente Fernando Collor]. Nele não se pode ter motivação política para chegar à condenação de alguém. Ali se está julgando alguém acusado de um crime. Mas claro que no Supremo os maiores assuntos têm conotação política. Por exemplo, saber se a solução ‘x’ ou ‘y’ aumenta a dívida pública, se o país fica ingovernável por isso ou não. Essa é a conotação política que há em uma Corte. Ela não pode ser indiferente ao país. Não se pode pensar que a solução jurídica é essa e o mundo que resolva essa questão. Isso é uma falta de visão do juiz como estadista. Nesse sentido, é uma Corte política. Mas não é de política partidária, de governo. O Supremo deveria ser composto por onze estadistas. Quem deveria indicar? Um estadista. Não se pode colocar o Direito acima do Estado. E isso é uma posição política. Claro que não se pode condenar alguém porque para o país é melhor que ele seja condenado. Mas quando a questão não é de liberdade individual, quando envolve o erário público, o Tesouro, o valor da moeda, a soberania, a cidadania, a nacionalidade, o Supremo tem que ter uma visão de estadista”. 65 ADI nº 1.649-1, Pleno, Rel. Min. Maurício Corrêa, j. 05.12.2002, DJU 14.03.2003. 66 ADI nº 1.851-4/AL, Pleno, Rel. Min. Ilmar Galvão, j. 08.05.2002, DJU 22.11.2002. 64 131 R EVISTA J URÍDICA E MPRESARIAL 7 D OUTRI NA N AC IONAL M ARÇO /A B RI L 2009 “Recomendam os estudiosos da hermenêutica constitucional que os direitos e garantias inscritos na Constituição devem ser interpretados de modo a emprestar-se a esses direitos e garantias a máxima eficácia. De resto, aliás, a máxima eficácia é recomendada para todas as normas constitucionais, principalmente para as normas materialmente constitucionais e aqui temos uma norma materialmente constitucional.”67 Prosseguindo na análise das categorias de argumentos, pode-se haurir do sistema constitucional tributário nova divisão entre os argumentos institucionais. Isso decorre da eficácia de postulado da legalidade, norma inscrita no artigo 150, I combinado com o artigo 5°, I todos da Constituição Federal68. HUMBERTO ÁVILA, ao tratar do postulado da juridicidade, sustenta que esta norma prescreve um dever de obediência do aplicador ao conteúdo mínimo ou ponto de partida eleito pelo legislador. Nas palavras do autor: “A vinculação à lei (art. 5° e art. 150, I) exige do aplicador determinada postura na aplicação da lei tributária. Sua atividade deve poder ser reconduzida à lei e ao Direito”69. Dessa forma, é possível se estabelecer nova divisão entre os argumentos institucionais, distinguindo entre aquelas razões que guardam pertinência com o Sistema Constitucional Tributário e, em especial, com o caso concreto daquelas que não possuem este atributo. Serão aqui chamados de argumentos imanentes ou transcendentes ao sistema constitucional tributário70. Esta classificação é decorrência da jurisprudência do Supremo Tribunal Federal que se ocupou com a defesa do conteúdo ADI nº 1.851-4/AL, Pleno, Rel. Min. Ilmar Galvão, j. 08.05.2002, DJU 22.11.2002. Voto proferido pelo Min. Carlos Velloso, p. 179. Vale transcrever pitoresco debate oral travado pelos Ministros Sepúlveda Pertence e Carlos Velloso que bem sintetiza o embate de argumentos que se pretende demonstrar e remonta às velhas disputatios: “O senhor Ministro Sepúlveda Pertence: (...) A Emenda Constitucional nº 3/93, de que resultou o § 7º do artigo 150, veio para dar ao fisco um mecanismo eficaz para determinado tipo de circulação econômica e fez a ressalva. Agora, se esta ressalva é interpretada de modo a inviabilizar o instrumento fiscal que se autorizou, a meu ver, o que se está é negando efetividade no sentido principal. O senhor Ministro Carlos Velloso: Data venia, isso é uma responsabilidade da fiscalização, vale dizer, do fisco. O senhor Ministro Sepúlveda Pertence: Excelência, mas se a fiscalização pudesse ser feita com perfeição, não haveria razão para o instituto da substituição tributária. O senhor Ministro Carlos Velloso: Esse argumento não faz justiça à cultura de V. Exª”, p.181/182. 68 ÁVILA, Humberto. Sistema Constitucional Tributário. São Paulo: Saraiva, 2004, p.430. 69 ÁVILA, Humberto. Sistema Constitucional Tributário. São Paulo: Saraiva, 2004, p.430. 70 ÁVILA, Humberto Bergmann. Argumentação jurídica e a imunidade do livro eletrônico. In: TORRES, Ricardo Lobo (org.). Temas de Interpretação do Direito Tributário, p.117. BORGE, José Souto Maior. Ciência Feliz, p.135. 67 132 R EVISTA J URÍDICA E MPRESARIAL 7 D OUTRI NA N AC IONAL M ARÇO /A B RI L 2009 mínimo da Constituição, como se verifica do aresto ementado pelo Min. MARCO AURÉLIO: “Interpretação – Carga Construtiva – Extensão. Se é certo que toda interpretação traz em si carga construtiva, não menos correta exsurge a vinculação à ordem jurídico-constitucional. O fenômeno ocorre a partir das normas em vigor, variando de acordo com a formação profissional e humanística do intérprete. No exercício gratificante da arte de interpretar, descabe ‘inserir na regra de direito o próprio juízo – por mais sensato que seja – sobre a finalidade que ‘conviria’ fosse por ela perseguida’ – CELSO ANTONIO BANDEIRA DE MELLO – em parecer inédito. Sendo o Direito uma ciência, o meio justifica o fim, mas não este aquele. Constituição – Alcance Político – Sentido dos Vocábulos – Interpretação – O conteúdo político de uma Constituição não é conducente ao desprezo do sentido vernacular das palavras, muito menos ao do técnico, considerados institutos consagrados pelo Direito. Toda ciência pressupõe a adoção de escorreita linguagem, possuindo os institutos, as expressões e os vocábulos que a revelam conceito estabelecido com a passagem do tempo, quer por força de estudos acadêmicos quer, no caso do Direito, pela atuação dos Pretórios.”71 Entre os argumentos transcendentes, situam-se os argumentos de ordem política. Sem esquecer que a política constitui-se no âmbito adequado para a realização do bem comum e que, portanto, a “arte de governar a Pólis” representa um dos esteios de constituição dos Estados, argumentos fundados em razões políticas podem orientar o discurso, mas jamais se sobreporem aos argumentos institucionais, como inclusive já decidiu o Supremo Tribunal Federal: “O Supremo Tribunal Federal, por mais de uma vez, teve o ensejo de repelir argumentos de ordem política (RTJ 164/11451146, Rel. Min. Celso de Mello), por entender que a invocação das razões de Estado – além de deslegitimar-se como fundamento idôneo de justificação de medidas legislativas – representa, por efeito das gravíssimas consequências provocadas por seu eventual acolhimento, uma ameaça inadmissível às liberdades públicas, à supremacia da ordem constitucional e aos valores democráticos que a informam, culminando por introduzir, no sistema de direito 71 RE n° 166.772-9/RS, Pleno, DJ 16.12.1994. 133 R EVISTA J URÍDICA E MPRESARIAL 7 D OUTRI NA N AC IONAL M ARÇO /A B RI L 2009 positivo, um importante fator de ruptura e desestabilização político-jurídica.”72 Há, ainda, aqueles que remontam à história, seja para encontrar a vontade do legislador, seja para recobrar os trabalhos que antecederam a edição do ato normativo. Este tipo de trabalho é bastante valorizado pela Suprema Corte Norte-Americana, que, com certa frequência, socorre-se destes argumentos para prestar o seu ofício jurisdicional. O Supremo Tribunal Federal já se manifestou sobre o valor dos argumentos genéticos, consoante bem lançado acórdão da lavra do Min. CELSO DE MELLO: “Debates Parlamentares e Interpretação da Constituição – O argumento histórico, no processo de interpretação constitucional, não se reveste de caráter absoluto. Qualifica-se, no entanto, como expressivo elemento de útil indagação das circunstâncias que motivaram a elaboração de determinada norma inscrita na Constituição, permitindo o conhecimento das razões que levaram o constituinte a acolher ou a rejeitar as propostas que lhe foram submetidas. Doutrina. – O registro histórico dos debates parlamentares, em torno da proposta que resultou na Emenda Constitucional nº 20/98 (PEC nº 33/95), revela-se extremamente importante na constatação de que a única base constitucional – que poderia viabilizar a cobrança, relativamente aos inativos e aos pensionistas da União, da contribuição de seguridade social – foi conscientemente excluída do texto, por iniciativa dos próprios Líderes dos Partidos Políticos que dão sustentação parlamentar ao Governo, na Câmara dos Deputados (Comunicado Parlamentar publicado no Diário da Câmara dos Deputados, p. 04110, edição de 12/2/98). O destaque supressivo, patrocinado por esses Líderes partidários, excluiu, do Substitutivo aprovado pelo Senado Federal (PEC nº 33/95), a cláusula destinada a introduzir, no texto da Constituição, a necessária previsão de cobrança, aos pensionistas e aos servidores inativos, da contribuição de seguridade social.”73 Em linhas gerais, a classificação dos argumentos proposta, segundo esta orientação doutrinária e jurisprudencial, oferece condições de resolver uma gama considerável de conflitos. ADI – MC n° 2.010-2, Pleno, Rel. Min. Celso de Mello, j. 30.09.1999, DJ 12.04.2002, página 173 do acórdão. No mesmo sentido: Ag 234163/MA (AgRg) – Rel. Min. Celso de Mello – RE 250590/RS (AgRg) Rel. Min. Celso de Mello. 73 ADI – MC n° 2.010-2, Pleno, Rel. Min. Celso de Mello, j. 30.09.1999, DJ 12.04.2002. 72 134 R EVISTA J URÍDICA E MPRESARIAL 7 D OUTRI NA N AC IONAL M ARÇO /A B RI L 2009 A valorização de um argumento em detrimento de outro se dará sempre no sentido do mais vinculado aos princípios do Estado de Direito, Legalidade e Separação de Poderes para o mais distante, de modo a privilegiar aqueles argumentos mais intrinsecamente ligados ao ordenamento jurídico74. LUCIANO AMARO sustenta que “o que se veda à lei tributária é a modificação de conceitos que tenham sido utilizados por lei superior para a definição da competência tributária, se da modificação puder resultar ampliação da competência”75. Em conclusão, pode-se dizer que o Estado de Direito, através de seus subprincípios, bem assim através da sua eficácia autônoma argumentativa, impõe uma primazia dos argumentos mais vinculados a eles do que daqueles argumentos que mantêm ligações mais distantes ou sequer entretém qualquer relação com o sistema constitucional tributário. A primazia por tais argumentos, como acentua HUMBERTO ÁVILA, se baseia naquilo que “é objetivável no ordenamento jurídico frente àquilo que deixou de sê-lo”. Prossegue, dizendo que: “É preciso dar prevalência, entre as várias hipóteses conceituais, àquela que mais é suportada pelos princípios fundamentais do subsistema de Direito Tributário”76. C ONCLUSÕES Em síntese conclusiva, algumas constatações foram produzidas na pesquisa aqui desenvolvida e são apresentadas agora. A análise da relação histórica mantida entre Direito Público e Direito Privado possibilitou a constatação de que tanto o processo codificatório quanto o processo de constitucionalização tinham por meta coibir arbítrios e almejavam um certo estado ideal de coisas representado pela segurança, previsibilidade e certeza. RAZ, Joseph. On the authority and Interpretation of Constitutions: Some Preliminaries. In: ALEXANDER, Larry (org.). Constitutionalism. Philosophical foundations. Cambridge: University Press, p.156. Afirma que uma teoria normativa não pode ser afetada por meras contingências, contudo, também, não se pode simplesmente fechar os olhos à realidade da vida. 75 AMARO, Luciano. Direito Tributário Brasileiro. 8.ed. São Paulo: Saraiva, 2002, p.101. 76 ÁVILA, Humberto. Sistema Constitucional Tributário. São Paulo: Saraiva, 2004, p.205. A interpretação da norma tributária no Reino Unido segue o mesmo caminho preconizado como refere John Ward, em que pesem as diferenças entre os modelos jurídicos britânico e brasileiro. WARD, John. L’interpretazione delle norme tributarie e gli effetti sugli uffici e sui contribuenti nel Regno Unito. Rivista di diritto finanziario e scienza delle finanze, v.54, p.77, 1995. 74 135 R EVISTA J URÍDICA E MPRESARIAL 7 D OUTRI NA N AC IONAL M ARÇO /A B RI L 2009 Não obstante, a relação mantida entre o Direito Tributário e os demais ramos do Direito Tributário não é de primazia, hierarquia ou independência. Há a ficção da autonomia, que, como sustentado, tem propósitos meramente didáticos, não se sustentando no plano jurídico. O Sistema Constitucional brasileiro não permite uma interpretação econômica do Direito Tributário. O método interpretativo mais adequado para a incorporação dos conceitos e institutos de Direito Privado é o sistemático. Por fim, pode-se dizer que o princípio do Estado de Direito contribui decisivamente para o modo de atuação estatal no campo da tributação, assim como é capaz de oferecer pautas para o exame do conteúdo e mérito da ação. Em existindo escolhas valorativas prévias no texto da Constituição e levando em conta que a jurisprudência do Supremo Tribunal Federal erige a Lei Fundamental ao status de vértice do ordenamento jurídico, é lícito afirmar que o princípio do Estado de Direito contribui na escolha dos argumentos utilizados no discurso jurídico. Não se pretende afirmar que o intérprete está engessado ou que a interpretação literal deve ser levada até as últimas consequências. Esses dogmas estão há muito tempo superados77. O princípio do Estado de Direito, assim como qualquer outro, pode ser aplicado em maior ou menor grau, segundo as particularidades do caso concreto. No entanto, a superação das razões oferecidas pelo Estado de Direito exigirão do intérprete um esforço argumentativo muito maior. B IBLIOGRAFIA ALEXY, Robert. On Balancing and Subsumption. A Structural Comparison. Ratio Juris, v.16, n.4, dez. 2003. ______. Teoria de los derechos fundamentales. Tradução de Ernesto Garzón Valdés. Madri: Centro de Estúdios Políticos y Constitucionales, 2001. _____. Teoria del discurso y derechos humanos. Tradução de Luis Villar Borda. Bogotá: Universitá Externado de Colômbia, 2000. ______. Teoria del discurso y derechos humanos. Tradução de Luis Villar Borda. Bogotá: Universitá Externado de Colômbia, 2000, p.52-54. 77 ALEXY, Robert. Teoria de los derechos fundamentales. Tradução de Ernesto Garzón Valdés. Madri: Centro de Estúdios Políticos y Constitucionales, 2001, p.106. 136 R EVISTA J URÍDICA E MPRESARIAL 7 D OUTRI NA N AC IONAL M ARÇO /A B RI L 2009 ______. Theory of Legal Argumentation. The Theory of Rational Discourse as Theory of Legal Justification. Tradução de Ruth Adler e Neil MacCormick. Oxford: Claredon Press, 1989, p.14-15. ______. Idée et structure d’un système du droit rationnel. Traduzido para o francês por Ingrid Dwars. In: Archives de Philosophie du Droit. Paris: Sirey ed, 1988, t.33, p.23-38. ALMEIDA JÚNIOR, Fernando Osório de. Interpretação conforme a Constituição e Direito Tributário. Repertório IOB de jurisprudência: tributário e constitucional, n.20, p.786-784, 2. quinz. out. 2002. AMARAL, Paulo Adyr Dias do. Analogia em Direito Tributário – Interpretação econômica e norma geral antielisiva. 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