GREBLO 2000 – Democrazia

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GREBLO 2000 – Democrazia
Projeto: Cidadão em Rede: De Consumidor a Produtor de Informação sobre o Território
Projeto de Pesquisa UFBa, 2013/2015
Título: Democracia – passado e presente
Fonte: GREBLO, Edoardo. Democrazia. Bologna: il Mulino, 2000. Lessico Della Politica, 5 .
Na Atenas da primeira metade do século V a. C. se desenvolve uma visão do processo político que
reconhece ao povo não apenas o direito de governar-se mas também os recursos e a capacidade para
participar das práticas de deliberação coletiva. Esta visão estará constantemente no centro do ideal
democrático. O conceito de democracia não perderá nunca totalmente a capacidade de atrair a imaginação
política, a ponto de poder ser considerada como o lugar por excelência da política. De fato a democracia é
não somente uma forma de governo, além de regime político é de fato um ideal ou um conjunto de ideais,
uma palavra símbolo.
Mesmo se hoje a democracia se tornou um modelo fundamental de legitimação política, o conceito de
democracia atravessa a nossa história: desaparece por cerca de 2.000 anos e reaparece no republicanismo
como ideia segundo a qual a liberdade de uma comunidade política se funda no fato de não dever
responder a qualquer autoridade se não àquela da própria comunidade.
Será de fato o republicanismo que retomará na idade moderna o fio perdido e criará as condições para
reafirmar a ideia de um “governo do povo”. Ele transmite à modernidade um conceito de democracia como
modelo de ordenamento político em que os cidadãos são iguais entre si em alguns aspectos fundamentais
como por exemplo a igualdade perante a lei e o direito de controloar aqueles que tomam decisões públicas.
A ênfase posta pelo republicanismo sobre a importância da virtude cívica é balanceada pelo
reconhecimento de sua fragilidade, derivada da luta entre facções e conflitos políticos. Nasce assim a
exigência de uma constituição que equilibre os interesses dos indivíduos, da minoria e da maioria. No
contexto dos Estados nacionais modernos, os republicanos defendem a ideia tornada célebre por
Monstesquieu de uma separção institucional dos poderes – legislativo, executivo e judiciário.
A democracia é o poder do povo. Em que condições o povo pode ser o efetivo detentor do poder cuja
titularidade lhe é atribuída? A possibilidade de unir titularidade e exercício começa a delinear-se no curso
do Medievo através da doutrina da representação. A representação não é de fato inventada pelos
democratas, mas se desenvolve no Medievo como instituição própria de governos aristocráticos ou
monárquicos. É no curso do século XVIII que começa a delinear-se a ideia segundo a qual somente unindo o
princípio democrático do governo do povo com a práxis não democrática da representação que a
democracia pode incluir mais vastos circuitos de indivíduos.
São as revoluções do Setecentos a constituírem um ponto de inflexão assinalando a passagem da concepção
antiga em que democracia indica não apenas a titularidade do poder mas também seu exercício direto para
a concepção moderna que prevê o exercício indireto do poder através de um sistema de representação.
Para que a democracia fosse representativa era necessário abandonar o conceito de representação como
mandato vinculante característico da sociedade de castas típica do Medievo. A dissolução da sociedade de
castas assinala no Ocidente a transição para a idade moderna e permite que o indivíduo enquanto tal, e não
na qualidade de membro de uma corporação, eleja os representatntes de uma nação. Isso implica a
atomização do povo e a criação de uma síntese política de nível mais alto e mais circunscrito constituída
pela assembléia parlamentar.
Notas técnicas
Maria Célia Furtado Rocha
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Este processo de atomização se identifica com o mesmo processo do qual emerge a concepção de Estado
liberal, fundado sobre direitos naturais de cidadãos singulares tomados individualmente.
A democracia moderna em realidade não se coloca em contraste com o liberalismo. O modelo institucional
em que o liberalismo normalmente se inspira é de fato a monarquia parlamentar inglesa, em que a
autoridade do poder central é limitada e controlada por organismos representativos expressos por uma
elite de cidadãos mais ou menos restrita. Nesse sentido o pensamento liberal se diferencia claramente do
democrático, o qual, por sua vez, assume enquanto princípio fundamental a ideia da soberania popular
entendida como governo de todo o povo, ligando-se ao pensamento de Rousseau e à experiência da
Revolução francesa na sua fase mais radical – a jacobina.
Para os democratas a forma ideal de governo é a república, e a única forma legítima de expressão da
vontade popular é a constituição por uma assembleia eleita por sufrágio universal. O conceito de
democracia vem assim a assumir dois significados prevalecentes, a depender do fato de que se coloque em
evidência o conjunto de regras ou o princípio segundo o qual o ideal de um governo democrático deveria
inspirar-se na igualdade. Nasce assim a distinção entre democracia formal e democracia substantiva, entre
democracia como governo para o povo e como governo do povo.
A partir do momento em que se constitui como forma de Estado e não só como forma de governo, o
pensamento liberal, a partir de Constant, estrutura o conceito de democracia representativa sobre a base
do conceito moderno de liberdade negativa, no sentido de que o encontro entre liberdade e democracia
não se dá tanto na participação direta do governo dos cidadãos no governo da comunidade, quanto na
defesa da liberdade individual com respeito à interferência do Estado. É a defesa e a proteção dos direitos
políticos mais que uma impraticável restauração dos ideiais da democracia direta que pode assegurar a
participação dos sujeitos políticos no processo de deliberação política (igualdade jurídica).
Com o surgimento da questão social o conflito entre o direito à liberdade e o direito à igualdade assume
novas formas. A única forma de igualdade que se revelou compatível com a liberdade liberal é a igualdade
na liberdade. Desde a origem do Estado liberal, essa forma de igualdade se expressa em dois princípios
fundamentais expressos em diversas cartas constitucionais: a igualdade perante a lei e a igualdade de
direitos.
Os processos de agregação relacionados ao nascimento da sociedade de massa, verificados entre o
Oitocentos e Novecentos, geram novas formas de organização política: nascem os partidos de massa, que
se colocam o problema da participação dos excluídos na gestão da coisa pública. Com a irrupção das massas
na política se conclui a época em que o objetivo do governo dos Estados era em tese aquele definido pela
tradição democrático-liberal: assegurar a convivência da comunidade nacional no contexto de igualdade
dos cidadãos frente à lei.
A dilatação da política que se verifica no primeiro após-Guerra alcança seu cume na ideologia totalitária.
Facismo, nacionalismo, socialismo, comunismo transformam o conceito de democracia em um discurso
sobre a origem da política e sobre a sua legitimidade, em uma teoria do poder constituinte que se torna
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forma de Estado, da qual vem a se distinguir o conceito de democracia como forma de governo, que assume
diversas formas.
Com a queda do muro de Berlim em 1989 impõe-se a democracia política como o quadro axiológico
indiscutível da vida pública e sua afirmação como forma de Estado. A democracia se impõe como horizone
da igualdade e da inclusão, como um esforço contínuo de manter aberto o horizonte político, não
representando um só valor entre muitos, mas um valor que pode ligar e mediar princípios prescritivos em
competição. O conceito de democracia não pressupõe um acordo entre diversos valores, mas sugere um
modo de colocar em relação os valores entre si.
Na época da globalização tende a atenuar-se aquela relação simétrica e congruente entre os que decidem e
os destinatários das decisões políticas, que estava no centro de uma teoria pensada inteiramente no
contexto de uma comunidade nacional. Para reatribuir significado ao conceito de democracia no quadro do
sistema global, a teoria é hoje chamada a confrontar-se com o desenvolvimento da capacidade política,
administrativa e jurídica que são independentes em nível regional e global e que se configuram como
complemento necessário àqueles já consolidados em nível nacional e local.
A tradição republicana moderna
Da tradição romanística emerge além do conceito de soberania popular o conceito de república qual forma
de governo alternativa ao poder monocrático do príncipe. Quando a democracia ateninense termina em
323 a. C., a democracia se afirma sob outros nomes, como povo ou república. Por séculos a forma de
política ideal é chamada respublica. Res publica é coisa de todos. Enquanto n conceito de democracia é
imanente a referência ao poder de qualquer pessoa, o conceito de res publica é orientado na direção do
bem comum. A respublica vem a designar um sistema político aberto potencialmente a todos no interesse
de todos. Não por acaso na área linguística anglo-saxônica o termo é traduzido como commonwealth, o
bem e bem-estar comum. E sua forma institucional assume o perfil de um governo misto, colocado a meio
caminho entre, por um lado, o governo de um só e, por outro, o governo do povo.
A tradição republicana compartilha com o pensamento democrático grego a ideia de que os cidadãos são
dotados de virtude cívica entendida como disponibilidade para perseguir a busca do bem comum. Na
perspectiva republicana, todavia, o povo, que não pode ser excluído da participação no governo, não é uma
identidade homogênea. Esta fratura, exceto por Maquiavel, é vista como a maior ameaça para a
manutenção de promoção da virtude cívica, pois pode degenerar na luta entre facções. Trata-se de elaborar
um modelo constitucional capaz de mediar interesses contrapostos. A Roma republicana é a expressão
historicamente mais significativa do projeto de um governo misto, com seu sistema de cônsules, Senado e
tribunais da plebe.
A aplicação da teoria republicana aos Estados nacionais torna-se possível só quando a prática não
democrática da representação se une à prática republicana segundo a qual o bem público não é outro que
não o bem-estar do povo.
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Maquiavel propõe o programa político de um governo eletivo com base participativa. O ideal republicano
de uma comunidade que confia na participação cívica articulada em diferentes órgãos colegiados a tarefa
de determinar as condições necessárias à garantia do bem-estar através do auto-governo será transmitido a
gerações sucessivas em oposição ao poder monárquico. Maquiavel vê no “governo misto” republicano a
forma constitucional que melhor exprime a estrutura de governo da qual possam derivar as virtudes cívicas
necessárias ao livre ordenamento interno que favoreça a promoção do bem comum.
O primeiro movimento político moderno empenhado na tentativa de colocar em prática o princípio da
soberania popular, promovendo os ideais de igualdade política que constituirão a base dos sucessivos
sistemas políticos de inspiração democrática, foi o movimento republicano de caráter democrático da época
da primeira revolução inglesa. Apesar de os líderes do movimento associarem o termo “democracia” ao
governo arbitrário de uma massa sem lei, de acordo com a ainda influente tipologia atistotélica das formas
de governo, a luta para destruir a diferentças de castas e pelo reconhecimeno institucional da igualdade dos
cidadãos se move no sentido de uma constituição democrática para toda a sociedade.
Na origem da democracia americana, Hamilton, Madison e Jay defendem, no Federalista publicado em
1788, que instituições representativas de um Estado fundado em princípios republicanos regularmente
submetido ao juízo de mérito dos próprios cidadãos através do voto representa uma solução de governo
mais estável e equilibrada do que a democracia com base em assembléia da Grécia antiga, em que muitas
das funções de governo não eram exercitadas diretamente pelo povo, mas por eleitos pelo povo, que o
representavam nas funções executivas. Segundo esses autores, uma democracia seria limitada a pequenas
localidades, enquanto a república poderia estender-se a grandes territórios, sendo pressuposto
fundamental para a instituição de um governo não opressivo e para estender os institutos democráticos em
nível nacional. Haveria um nexo indissolúvel entre o sistema de representação política e a dimensão
territorial da república, favorecendo a expressão de diversos interesses em competição, impedindo que
alguns se tornem dominantes.
Na base da democracia representativa americana há uma pluralidade de sujeitos, cuja soberaina encontra
expressão nas regras comuns de uma constituição, que é democrática porque derivada do poder
constituinte do povo soberano e republicana porque está orientada à instituição de um governo cujos
poderes são intrinsecamente limitados enquanto derivados daquele poder constituinte que lhe prevê
competências e âmbitos de intervenção.
A democracia moderna
Será Montesquieu a teorizar a articulação institucional indispensável à consittuição de um regime
representativo. A convergência de liberalismo e republicanismo assume assim o perfil de uma teoria da
constituição que retoma o tema do “Estado misto” e da divisão dos poderes para justificar uma concepção
de governo limitado, instituído para organizar a representação de diferentes partes sociais em um quadro
de garantia legal.
Rousseau é tido como o fundador da democracia em seu sentido mais radical. A reformulação do conceito
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de soberania na teoria da vontade geral por ele operada inaugura de fato a teoria moderna da soberania
popular numa direção contrária à lógica da representação. Para Rousseau, a soberania não pode ser
representada, por isso, segundo ele, os deputados do povo não podem ser os seus representantes mas
apenas os seus comissários. Rousseau visa determinar os fundamentos da legitimidade. O único Estado
legítimo é aquele em que o próprio povo exercita a soberania: o Estado republicano e democrático.
Segundo os principais teóricos contratualistas, a liberdade, a vida e a propriedade dos indivíduos encontram
uma garantia na autoridade do Estado, que nasce na base de um contrato de renúncia dos indivíduos
singulares. Em Rousseau, a garantia deriva de um contrato entre iguais subscrito em condições de absoluta
reciprocidade. O povo “se aliena” unicamente de si mesmo no momento em que escolhe governar-se por si.
A única cláusula do pacto é: a alienação total de cada um (e de todos os seus direitos) a toda a comunidade.
Diferentemente da vontade de todos, que é uma somatória não homogênea de vontades particulares, a
vontade geral é absoluta, pura, imutável e inalterável. A vontade popular é correta por definição.
A democracia como forma de governo é entendida por Rousseau como uma prática de autoadministração
popular em que o legislativo e executivo tendem a coincidir. A distinção entre as formas de governo se
refere unicamente ao poder executivo, que é privado de autonomia e é reponsável diante do povo. A
soberania popular é indivisível, inalienáel e ilimitada, mas o exercíco do poder pode ser delegado, no
âmbito de um mandado provisório e revogável.
A natureza democrática do Estado é garantida na condição de que as leis sejam emanações do povo
conjuntamente reunido em assembléia, e não de seus representantes. A forma de governo é a estrutura
provisória que o povo dá à administração até o momento em que achar oportuno alterá-la.
É na democracia “legislativa” afirmada com a Revolução francesa que a herança de Rousseau adquire, em
particular, um papel de relevo. A lei é a expressão da vontade geral; a lei como forma normativa em que se
exprime a vontade da nação. A tradição revolucionária que se delineia com a Revolução francesa vê no
poder ilimitado da lei o instrumento para afirmar a nova ordem democrática. Só o legislador é capaz de
interpretar a vontade geral e de superar os interesses particulares.
Enquanto a Revolução americana está na origem de um modelo de democracia representativa de base
constitucional, a Revolução francesa dá lugar a um modelo de democracia direta e, subordinamente,
representativa, com base legislativa, seja porque exclui limites constitucionais à lei como forma normativa,
seja porque a lei é considerada como a expressão da vontade geral da nação.
No curso dos motins de 1848 na França, delineia-se um conceito de democracia que clama explicitamente
pelo princípio do poder popular opondo-se ao conceito “burguês” e liberal de democracia. Trata-se da
tentativa de estender a democracia da esfera política, do âmbito em que o indivíduo é tomado na sua
qualidade de cidadão, para a esfera social. Para os socialistas a democracia é o sistema de liberdade política
que deve permitir ao povo criar uma ordem social capaz de destruir privilégios e distinções sociais, de modo
a edificar uma democracia “social” que dê espessura e conteúdo às liberdades políticas, na ausência da qual
o povo perde sua soberania.
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A perspectiva de Marx é voltada para a abolição do Estado enquanto administração seprada dos interesses
comuns, com vistas à criação de novos institutos democráticos fundados sobre o autogoverno dos
produtores. Trata-se de restituir à autoadministração dos homens associados aquelas funções que deveriam
pertencer legitimamente à comunidade e que, ao invés disso, o Estado administra separadamente através
de instrumentos institucionais e burocráticos. A crítica de Marx à política como esfera institucionalmente
separada da sociedade encontra referência na experiência da Comuna. Suas caracterísitcas fundamentasi
são: constituir-se mediante eleições gerais, e os conselhos cidadãos, além de responsáveis frente aos
eleitores, poderem ser depostos a qualquer momento. Esses não se configuram como um corpo
parlamentar, mas como um organismo de trabalho executivo e legislativo ao mesmo tempo. Isto significa
que a divisão dos poderes é abolida. Mesmo os funcionários judiciários são eleitos e destituíveis. A
Comuna, todavia, é ainda transitória, destinada a concluir-se com a supressão do Esado e da política e com
a passagem a uma sociedade não-política, a uma democracia comunista entendida como uma forma de
vida em que as pessoas governam coletivamente os negócios comuns.
A democracia e a sociedade de massa
A partir do último decênio do Oitocentos, a difusão do sufrágio universal masculino em quase todos os
países europeus permite que milhoes de pessoas participem organizadamente do processo de formação e
de seleção das classes dirigentes. O nascimento concomitante dos grandes partidos de massa muda
radicalmente a perspectiva com relação ao modelo liberal do Oitocentos: não se trata mais de avaliar a
oportunidade da participação de massa, mas de estabelecer as formas organizativas mais adaptadas a
canalizar a vontade popular, que já encontrar represetnação adequada na forma partido do tipo clube,
partidos de notáveis, mas deve ser enquadrada em grandes aparatos organizativos, destinados a
transformar-se em enormes “máquinas” burocráticas.
Do início da Grande Depressão até os anos 20 do Novecentos, em quase todos os países europeus se afirma
um modelo de democracia representativa que responde só em pequena parte aos ideais de “governo do
povo”. O processo de ampliação da cidadania política faz emergir novas elites, ou seja aquelas “classes
políticas” que nos diversos países encontram no voto de massa novas formas de legitimação. Desse ponto
de vista, a democracia vem a ser, mais que um valor em si, um método político para gerar e legitimar
liderança através de um conjunto de regras formais, que pressupõe a separação entre racionalidade e
valores.
A Primeira Guerra Mundial quebra ulteriormente a relação entre técnica e progresso, entre razão
instrumental e razão prática, demonstrando como as funções da política são sempre mais exercitadas
autonomamente pela técnica, ou seja, a racionalidade dos meios em relação aos fins. De problema
institucional a política se transforma em problema organizativo, e autonomização da tecnoestrutura é
valorizada propriamente pela sua polêmica carga antidemocrática: em cada organização de caráter
instrumental aparece a tendência a favorecer o surgimento de grupos de poder permanente, destinado a
controlar verticalmente aquela mesma massa da qual deveriam ser a expressão.
As experiências vividas durante a Primeira Guerra produz seus efeitos: sugere a transferência do uso da
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violência organizada do âmbito militar para aquele da luta sócia e política; demonstra a eficácia da
propaganda como instrumento de mobilização de massa com finalidades políticas e faz emergir chefes
políticos capazes de instaurar com as massas uma relação carismática, pessoal e livre de qualquer vínculo,
análogo ao existente na guerra entre comandante e tropa.
Se o ingresso das massas na área da cidadania política determina uma mudança dos sujeitos da política, a
política modifica seus próprios fins e objetivos, que se traduzem em uma nova expansão do poder e das
funções do Estado, que penetra na sociedade civil e na esfera econômica. Essa dilatação encontra seu ápice
com os totalitarismos que se difundem entre as duas guerras. De um lado a transformação do capitalismo
tendem a uniformizar o corpo social, nivelando dentro de certos limites hábitos, expectativas, estilos de
vida de grupos sempre mais extensos; de outro lado, tendem todavia a aumentar conflitos pois produzem
novas desigualdades entre as classes sociais.
Os totalitarismos buscarão apagar os novos potenciais de conflitualidade conexos aos fenômenos de
massificação mobilizando autoritariamente as massas para neutralizá-las, eliminando a concorrência no
plano eocnômico, a luta de classes no plano social e a diferenciação ideológica no plano político.
A democracia no mundo contemporâneo
Depois do totalitarismo facista e nazista, a progressiva afirmação do Estado liberal e de suas conquistas que
se verifica no Ocidente transforma o conceito de democracia em um elemento insubstituível para a
legitimidade das instituições políticas. O modelo de Estado social, perfilado no New Deal americano e mais
claramente durante o governo trabalhista na Grã Bretanha no imediato pós-guerra, torna-se o modelo
prevalecente no Ocidente e o principal ponto de diferenciação com o modelo do Estado liberal do
Oitocentos. O povo se torna finalmente sujeito de governo. Radica-se assim uma ideia de democracia
entendida com sistema de regras procedimentais para a formação dos órgãos representativos e para o
acesso aos tomadores de decisão.
Premido entre a exigência de perseguir estratégias de pacificação social, realizadas seja através de simples
concessões econômicas ou fiscais ou mediante a constituição de agências do welfare sempre mais custosas,
e o aumento crescente das demandas de participação relativas à alocação dos recursos escarsos
disponíveis, o Estado democrático sofre o contragolpe de uma “crise de legitimação” que parece colocar em
discussão o nexo entre democracia e soberania popular.
A partir dos anos Oitenta do século XX, Habermas identifica os fundamentos do consenso democrático nos
processos de formação coletiva da vontade capazes de aderir aos critérios normativos que regulam a
racionalidade discursiva, ou seja, acesso ilimitado para os participantes e ausência de coerção.
Supera-se assim o individualismo moderno, pois o sujeito comunicativo é um sujeito “intersubjetivo”. Em
Fatos e Normas, Habermas traz uma proposta de um modelo de “democracia deliberativa” entendida como
teoria geral do processo democrático nas sociedades complexas. A proposta vem a assumir o perfil de uma
“terceira via” alternativa tanto à concepção republicana do Estado como comunidade ética quanto à
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concepção liberal do Estado como garantia de uma sociedade de mercado.
No modelo habermasiano de democracia, a legitimidade do Estado democrático depende da participação
política dos cidadãos, ou seja, daquele processo de formação via debate da vontade cívica, internamente
condicionado por contextos do mundo da vida filtrados discursivamente, dependente de recursos como a
cultura política liberal, a vitalidade das associações que influenciam a opinião pública, e assim por diante –
ou seja, de recursos que em grande parte se criam e regeneram espontanemente no interior do mundo da
vida e que portanto são relativamente subtraídos a um controle político direto.
Entre a igualdade e a diferença
Nos anos Oitenta do seculo XX fecha-se uma época aberta a partir das duas guerras mundiais. O paradigma
normativo dominante nas democracias contemporâneas baseiam-se no princípio segundo o qual o
consenso político fundamental às instituições democráticas é assegurado por meio da garantia da liberdade
igual para todos os cidadãos. A ideia de que todas as pessoas devem ser tratadas como iguais torna-se
partimônio comum das teorias políticas mais significativas. Nesse sentido a democracia contemporânea é
inclusiva: o igualitarismo democrático se configura como luta contra a exclusão e como sustento à inclusão
universal na cidadania civil e política. A esta perspectiva de teoria politica se associa um universalismo
sensível às diferenças – de gênero, tradições culturais, forma de vida.
A inclusão do outro não significa nem assimilação nem fechamento à diferença. Significa que os confins da
comunidade democrática são abertos. A autodeterminação democrática não tem o senso coletivístico,
inclusivo e simultanemente exclusivo, da especificidade local ou nacional; tem o senso inclusivo de uma
autolegislação que considera os cidadãos como iguais e diversos ao mesmo tempo.
Vêm a opor-se duas concepções diferentes de democracia: a uma concepção proceduralista da soberania
popular, que se refere à autonomia privada e pública concedida a todos os cidadãos no âmbito de uma
associação de consorciados jurídicos livres e iguais, se opõe uma outra concepção, a concepção
substancialista da soberania popular, em que cada um se reconhece como um outro no compartilhamento
de um pertencimento comum a uma forma de vida. Aqui se reflete claramente a tensão existente entre os
princípios de um contrato político que se baseie sobre os direitos dos indivíduos e os princípios de uma
sociedade democrática estabilizada pela virtude cívica e coletiva aderente a uma concepção comum do bem
coletivo. Trata-se provavelmente de uma tensão inevitável entre universalidade da democracia e
historicidade da sua autorrealização.
•
Democracia como sistema da justiça
A teoria da justiça de John Rawls constitui-se uma tentativa de reformular a tradição contratualista. A teoria
da justiça como equidade é contratualista na medida em que os princípios de justiça social são o êxito de
um “contrato social” estipulado por indivíduos colocados em condição de igualdade. Rawls concebe as
instituições com um conjunto de regras que presidem a distribuição dos direitos, oportunidades e recursos
entre indivíduos e grupos sociais. A justiça como equidade nasce no interior de uma tradição política que
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assume como própria a ideia de sociedade como equo sistema de cooperação. Uma sociedade bem
ordenada não é unificada a partir de diversas visões do mundo, mas de uma concepção “política” da justiça
capaz de conquistar um consenso.
•
Democracia como sistema das diferenças
Os teóricos comunitaristas abandonam a concepção do Estado neutro em favor de uma política do bem
comum na qual se realiza uma concepção substantiva da vida boa capaz de definir o “estilo de vida” de uma
comunidade. Aqui não é de fato o senso de justiça comum, mas uma concepção comum do bem que vem a
constituir o fundamento da legitimidade do Estado. A necessidade de legitimidade democrática não pode
ser satisfeita senão na condição de atingir o ethos da comunidade, em referência ao qual torna-se possível
atribuir consistência efetiva à preferência dos indivíduos e avaliá-las concretamente na medida em que se
identificam com uma política do bem comum.
Ao “atomismo” dos liberais ou ao individualismo metodológico de quantos assumam que a sociedade não
seja mais que a agregação mais ou menos complexa dos sujeitos individuais que a compõem (sendo o bem
social uma agregação ou somatória dos bens individuais), os comunitaristas opõem a ideia que o
pertencimento a uma comunidade seja indissociável tanto de ser titular dos direitos quanto da
possibilidade de perseguir os próprios interesses privados. Não é o bem comum que deve conciliar-se com
as escolhas autônomas computadas dos indivíduos: ele é o critério em referência ao qual as suas
preferências devem ser avaliadas.
Enquanto o liberalismo incentiva a ideia de uma “escolha” coletiva dos princípios de justiça, o
comunitarismo adere ao princípio da “descoberta” ou da “reconstrução” racional dos critérios
compartilhados presentes em um contexto de práticas consolidadas. Os princípios universalistas do Estado
democrático, para poder ter eficácia normativa, devem ser interpretados na perspectiva da respectiva
comunidade histórica e coligados às motivações dos cidadãos. A duração no tempo das instituições
democráticas depende de um consenso de fundo ancorado na eticidade concreta de uma comunidade
linguística e cultural.
Com o prevalecimento do reformismo social-liberal, as conquistas políticas do liberalismo e da socialdemocracia transformaram a democracia em um sistema político que universaliza os direitos dos cidadãos
mediante a introdução de direitos sociais de repartição e de direitos políticos de participação. A igualdade e
paridade de acesso aos direitos entre membros de povos e culturas diversas tendem a pôr em campo
questões de direitos coletivos.
Sobre um fundo constituído por processos de globalização, o desafio que o multiculturalismo põe às
democracias contemporâneas é a necessidade de reconhecer cidadãos como iguais, respeitando a
identidade de cada um independentemente de sexo, raça ou etnia, por um lado, e, por outro, tutelar
formas de vida sustentadas em costumes locais consolidados. Não se trata apenas de igualdade de
condições de existência, mas de proteger a integridade das formas de vida e de impedir que o sistema
democrático seja cego não apenas às diferenças sociais, mas também às diferenças culturais.
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