o mito oriente-ocidente e sua manipulação geopolítica

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o mito oriente-ocidente e sua manipulação geopolítica
Ensinagem: Revista Periódica da Faculdade de Belém
Stephan Fernandes Houat
Ensinagem: Faculty of Belém Journal V. 2, n. 1, Janeiro/Junho 2013, p. 110-123
ISSN 2238-4871
O MITO ORIENTE-OCIDENTE E SUA MANIPULAÇÃO
GEOPOLÍTICA
THE MYTH EAST-WEST AND ITS HANDLING GEOPOLITICS
EL MITO ORIENTE-OCIDENTE Y SU MANIPULACIÓN
GEOPOLÍTICA
Stephan Fernandes Houat 1
RESUMO
O presente artigo busca demonstrar que a utilização dos termos
Oriente e Ocidente segue mais a interesses geopolíticos do que
representam um rigor cultural e religioso das diferentes populações
mundiais. Dividir o mundo em blocos fixos e rivais em constante
luta, no chamado choque de civilizações é um elemento justificador
de guerras que atendem principalmente a interesses políticos e
econômicos.
Palavras-chave: Oriente. Ocidente. Choque de civilizações.
ABSTRACT
The present paper aims to demonstrate that the use of
terms such as East and West pursues more a geopolitical agenda
then represents in an accurate manner the cultural and religious
differences of the world populations. Dividing the world in steady
and rival blocs in constant fighting, as represented by the so-called
1
Bacharel em Direito (CESUPA - Belém/PA), especialista em Direito Público (na
Universidade Católica Dom Bosco - Corumbá/MS), doutorando em Direito pela UMSA Buenos Aires / Argentina, professor de Ciências Políticas da Fabel. Email: stephanhouat@
fabelnet.com.br.
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O MITO ORIENTE-OCIDENTE E SUA MANIPULAÇÃO GEOPOLÍTICA
clash of civilizations is a justifying element of wars that aim mainly
to achieve political and economic interests.
Keywords: East and West. Geopolitics. Cultural differences.
Religious differences.
RESUMEN
El presente artículo busca demostrar que la utilización de
los términos Oriente y Ocidente sigue más a intereses geopolíticos
del que representan un rigor cultural y religioso de las diferentes
populaciones mundiales. Dividir el mundo en blocos fijos y rivales
en constante lucha, en el llamado choque de civilizaciones es un
elemento justificador de guerras que atendien principalmente a
intereses políticos y económicos.
Palabras-clave: Oriente. Ocidente. Choque de civilizaciones.
1 DICOTOMIA ORIENTE-OCIDENTE - ORIGENS
Não é nova a tentativa, em meios acadêmicos ou não, de tentar
separar o mundo em dois blocos antagônicos: o Oriente e o Ocidente.
Tal divisão é simplista e superficial, ignorando as profundidades
étnicas, culturais, religiosas, jurídicas, históricas e linguísticas dos
vários povos da Terra, forçando que todos sejam enquadrados em um
ou outro bloco, imediatamente extirpados de suas particularidades.
A despeito de não ser uma discussão nova, sua persistência
surpreende, atravessando séculos e contrariando a suposição de que
a melhoria dos meios de comunicação levaria à disseminação da
informação e que acarretaria na superação de velhas ideias, eivadas de
antigos preconceitos.
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Em seu livro Orientalismo: a Invenção do Oriente pelo Ocidente,
Said (2003) demonstra como escritores europeus faziam análises dos
chamados orientais (árabes, indianos, japoneses, chineses, africanos) a
partir de um ponto de vista ocidental - europeu e cristão – fantasioso.
Segundo o mesmo autor, muitos escritores faziam suas análises
sem visitar os países objeto de seus escritos, além de expor suas próprias
fantasias pessoais, desejos, frustrações, erotismos e preconceitos acima
de uma análise científica e imparcial. Os chamados orientais nunca
falam por si próprios, sendo sempre traduzidos por falas ocidentais.
Não são eles que têm a explicação correta sobre sua cultura, religião
e idioma, é preciso que um europeu lhes diga o que eles realmente
querem dizer sobre si mesmos.
Foi gerada então uma linguagem de opostos: os autores
europeus falavam utilizando os termos nós e eles, sendo que o nós
representava o que os autores concebiam serem as características dos
demais habitantes da Europa: brancos, educados, civilizados, cultos,
trabalhadores. Em oposição havia o eles oriental (asiáticos e africanos,
essencialmente) tomados por brutos, deseducados, incivilizados,
preguiçosos.
A conclusão dos autores orientalistas é que eles, os orientais,
eram essencialmente diferentes de nós, ocidentais - concluindo
sempre pela superioridade ocidental, obviamente. O homem oriental
era descrito como sendo o portador de características indesejáveis –
preguiça, trapaça, lascívia-, e tinha muito a aprender com o homem
ocidental – trabalhador, honesto, pudico.
O homem ocidental tinha a obrigação moral de levar sua
civilização aos povos incivilizados - chamado fardo do homem branco,
no poema do inglês Rudyard Kipling, discurso que serviu como
elemento legitimador das ações colonialistas das potências europeias
- e mais tarde dos EUA - em países da África e Ásia, já que a
inferioridade racial, moral, religiosa e cultural dos habitantes desses
territórios era uma doença a ser combatida pelo antídoto europeu
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de civilização, o que foi posteriormente denunciado em livros como
Enterrem meu Coração na Curva do Rio e Veias Abertas da América
Latina.
A origem dos termos Oriente e Ocidente está na divisão do
Império Romano em dois: Império Romano do Ocidente, cujo
território depois formaria os países da Europa Ocidental; e Império
Romano do Oriente, também chamado de Império Bizantino, cujo
território formaria os países do Oriente Médio mediterrâneo e Europa
Oriental (HOURANI, 1994).
Nota-se que a atual nomenclatura Europa Ocidental e Europa
Oriental é herdeira da noção de divisão do mundo em dois, a partir
do ponto de vista da separação do Império Romano. É latente a visão
totalmente eurocêntrica de tais nomenclaturas, já que o ponto de
partida é a divisão do Império Romano, ignorando-se por completo
as civilizações que estavam além das suas fronteiras, como a chinesa,
indiana e persa.
Além de sua característica essencialmente eurocêntrica, a divisão
Oriente-Ocidente do mundo ignora por completo particularidades
culturais de povos habitantes deste ou daquele hemisfério do mundo,
além de menosprezar amálgamas culturais que, fora dos formalismos
fictícios dos teóricos, acontecem constantemente no mundo real.
Como exemplo, tem-se a biografia do próprio escritor Edward
Said: nascido em Jerusalém, em 1935, em uma família árabepalestina de religião cristã ortodoxa, teve sua educação na infância e
juventude dividida entre o colégio anglicano St. Georges Academy
- Jerusalém-Palestina, o colégio Victoria College - Cairo-Egito, e
a escola Mount Hermon - Massachussets-Estados Unidos (SAID,
2003). Como enquadrar alguém que nasceu na cultura árabe sem
ser muçulmano, de religião cristã ortodoxa sem ser europeu eslavo, e
com educação americana e inglesa sem ser anglo-saxão? A dicotomia
rasa Oriente-Ocidente não tem resposta pronta a tal indagação.
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2 O CHAMADO MUNDO JUDAICO-CRISTÃO E A
MIOPIA DESTE CONCEITO
No contexto da divisão de mundo entre Oriente e Ocidente,
encontramos uma subdivisão: a divisão do planeta em mundo judaicocristão e simplesmente o resto ou os de fora, sendo que uma das
civilizações de fora seria a islâmica. O chamado mundo judaico-cristão
seria o Ocidente, em oposição ao Oriente com tradições religiosas
diversas.
Analistas mal informados - ou mal intencionados - costumam
identificar o chamado mundo islâmico (divisão que por si só é superficial,
posto que os diversos países islâmicos possuam profundas diferenças
culturais entre si, sendo que as culturas síria, paquistanesa, iraniana
e indonésia têm mais diferenças do que semelhanças) em oposição
ao chamado mundo judaico-cristão. Por um prisma cultural-religioso,
porém, se o cristianismo for interpretado como um prosseguimento
do judaísmo é forçoso aceitar também o islamismo como um
prosseguimento de ambos.
O cristianismo pode ser visto como prosseguimento do
judaísmo porque a religião cristã nasceu dentro do judaísmo,
proclamando Jesus como o Messias que a religião judaica esperava.
O cristianismo deu continuidade à linha de profetas do judaísmo Adão, Moisés, Abraão, acrescentando outros novos, como José, Jesus
e Paulo. Prosseguiu, portanto, com a leitura do Antigo Testamento,
acrescentando um Novo Testamento, como se pode concluir através
da leitura da Bíblia.
O islamismo também está inserido, no que talvez poucas
pessoas saibam, é que o islamismo não renega o legado judaico-cristão,
mas sim o continua. O Alcorão também conta os relatos de Adão e
Eva, Moisés, Abraão e, para a surpresa de muitos, de Jesus.
De certa forma, os muçulmanos são “cristãos”, porque acreditam
em Jesus como um de seus profetas mais importantes, consideram-no
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nascido da Virgem Maria e tratam até de sua crucificação, porém, com
um detalhe curioso: quem foi crucificado não foi Jesus, e sim Judas,
como punição pela sua traição, já que, por um milagre, Deus fez
com que Judas ficasse com a aparência de Jesus, para que as pessoas
achassem que era a ele que crucificavam, enquanto que o verdadeiro
Jesus estava vivo e protegido por Deus. Além disso, o Alcorão tem um
capítulo denominado José e outro denominado Maria, em referência
aos pais de Jesus. Não existe, portanto, um antagonismo religioso
intrínseco entre islamismo e cristianismo (NARS, 2013).
O islamismo tem muito mais elementos em comum com o
judaísmo e com o cristianismo do que divergentes, como a crença em
um deus único - monoteísmo. Importante dizer que Allah não é “o
deus islâmico”, como reiteradamente quer fazer crer a imprensa, mas
sim o mesmo deus do judaísmo e do cristianismo. Da mesma forma
que cristãos árabes, quando rezam, o fazem para Allah, os cristãos
ingleses o fazem para God, e os espanhóis para Dios, sem que se diga
que God e Dios são “o deus dos ingleses” ou “o deus dos espanhóis”.
Dizer que existe um deus exclusivamente islâmico, em vez de dizer
que muçulmanos cultuam o mesmo deus dos judeus e cristãos é uma
forma velada de mostrar o quanto eles são diferentes, ou seja, que existe
um nós e um eles em oposição.
Em um passado não muito distante, mulheres cristãs cobriam
os cabelos antes de entrar em igrejas, tradição que ainda hoje é
seguida por religiosas judias, ao entrarem na sinagoga. Atualmente,
quando retratam a mãe de Jesus, cristãos o fazem usando véu, porém
a despeito disso, o chamado mundo judaico-cristão acha estranha que
as mulheres muçulmanas cubram os cabelos, como se o véu ficasse
bem no altar, mas não nas ruas, e fosse um elemento absolutamente
estranho à sua religião.
Importantíssimo também mencionar que a filosofia grega, tida
por muitos como a base da cultura ocidental só foi mantida porque a
Europa renascentista teve à disposição a literatura grega por meio
dos livros traduzidos do grego para o árabe, tendo tais livros sido
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mantidos no agora chamado Oriente Médio, já que a Europa medieval
os aboliu. Antes de ser uma cultura antagônica, a cultura islâmica
foi uma verdadeira ponte que uniu a antiga filosofia grega à Europa
moderna (ATTIE FILHO, 2002).
3 AS DIFERENÇAS CULTURAIS
CONVENIENTEMENTE ESQUECIDAS
SENDO
O cientista político americano Huntington (2010) – talvez o
maior expoente teórico da separação do mundo em blocos uniformes
– publicou, em 1933, um artigo ainda exaustivamente citado, O
Choque de Civilizações, onde conclui que as características culturais
das diferentes civilizações do planeta – e não motivos econômicos –
seriam os propulsores das novas guerras travadas no mundo.
Abandonando a separação do globo nas duas metades OrienteOcidente, o autor o dividiu em porções, que lutariam entre si
pela supremacia mundial. A partir da leitura de seu livro, pode-se
condensar suas ideias em (HUNTINGTON, 2010):
a) Civilização chinesa – composta pela China e países
sob sua influência cultural como Coreia, Vietnã, Laos
e Tibete;
b) Civilização japonesa – única civilização formada
por apenas um país, o Japão;
c) Civilização hindu – constituída pelos países que
seguem a religião hinduísta, como, como a Índia;
d) Civilização budista - composta pelos países que
seguem a religião budista, como a Tailândia e a
Camboja;
e) Civilização islâmica – formada pelos países que
seguem a religião islâmica;
f) Civilização ocidental – constituída pelos países
da Europa Ocidental e suas ex-colônias na América
do Norte (Canadá e EUA) e na Oceania (Austrália e
Nova Zelândia);
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g) Civilização lationoamericana – integrada pelos
países da América Latina, sendo que por vezes essa
civilização é considerada como parte da civilização
ocidental;
h) Civilização ortodoxa – formada pelos países
da Europa Oriental, de religião cristã ortodoxa e
cultura eslava;
i) Civilização subsaariana – integrada pelos países
africanos subsaarianos, já que os situados ao norte
do Saara seriam pertencentes à civilização islâmica
Tal divisão do mundo ignora que as culturas não são estanques,
e sim dinâmicas, ou seja, as várias culturas do mundo entram em
contato umas com as outras e se mesclam. O programa de televisão
“A TV que se faz no mundo” exibido em 06/09/2013 pelo canal
TV Brasil mostrou matéria sobre o Comores, um país africano
que foi ex-colônia francesa. Os comorenses são negros, de religião
islâmica, falantes correntes tanto do francês quanto de um idioma
local, e cuja televisão é patrocinada pela China, exibindo duas horas
diárias de programação feita naquele país (incluindo aulas do idioma
mandarim). Mas o maior sucesso atual na televisão comorense é uma
novela mexicana.
A própria cultura brasileira seria um exemplo: aprendemos nas
aulas de História do Ensino Médio que nossa cultura é formada pela
junção das culturas “negra, indígena e branca”, como se realmente
houvesse uma única cultura negra, branca ou indígena no mundo.
A realidade é que os escravos trazidos para o Brasil eram de
diferentes partes da África, alguns seguindo religiões tradicionais
politeístas africanas, outros muçulmanos. Chegaram aqui vindos
de territórios diferentes, falando idiomas diferentes, professando
religiões diferentes.
A chamada “cultura branca” ou “cultura Ocidental”, também
não pode ser considerada como unitária. As primeiras colonizações
brasileiras, além de portuguesas, também foram espanholas, francesas
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e holandesas. Qualquer pessoa minimamente informada sabe que as
tradições culturais de países como Portugal, Holanda, Inglaterra e
Suíça são diferentes entre si, mas em termos simplificados, usamos
em nossos livros didáticos a expressão cultura branca sem nenhum
rigor científico, e quase sem nenhum pudor.
A própria cultura portuguesa, por si só, é um conglomerado
de culturas sobrepostas: o território que hoje corresponde a Portugal
esteve sob influência cultural grega, romana - posteriormente romano,
germânica, judaica e árabe, sendo que estes últimos dominaram a
Península Ibérica por quase oitocentos anos. Palavras portuguesas
como arroz e azeite vieram do árabe ar-roz e az-zeit, além dos famosos
azulejos portugueses terem sido inicialmente usados na decoração
de mesquitas árabe-muçulmanas de Portugal e Espanha - o próprio
nome azulejo vem do árabe az-zalij (ZAIDAN, 2005).
Percebe-se, portanto, que muito antes dos primeiros imigrantes
sírios e libaneses chegarem ao Brasil, à cultura árabe já havia
desembarcado aqui, inserida na cultura portuguesa, mostrando que
longe de serem duas culturas opostas e rivais, as culturas ocidental e
oriental (ou judaico-cristã e muçulmana) tiveram séculos de intercâmbio
e aprendizado mútuo.
A cultura brasileira apresenta divisões culturais, como na
tradição gaúcha e amazônica. O termo gaúcho não significa apenas
o nascido no Rio Grande do Sul, mas sim uma cultura própria,
partilhada pelos Estados brasileiros do Rio Grande do Sul e parte
de Santa Catarina e do Paraná, além de partes da Argentina e do
Uruguai.
A Amazônia, por sua vez, também apresenta uma cultura
própria que igualmente é transnacional, atingindo os habitantes do
norte do Brasil e das duas Guianas, Venezuela, Peru e Colômbia,
provando que as dinâmicas culturais humanas vão muito além das
fictícias fronteiras nacionais. Um habitante da Amazônia brasileira
sente-se culturalmente mais próximo de seu vizinho da Amazônia
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colombiana, ou de um vaqueiro gaúcho? Este, por sua vez, sente-se
culturalmente mais próximo daquele, ou de seus vizinhos uruguaios?
Questões que não são respondidas com facilidade, e que exigem uma
análise muito mais aprofundada do que a mera divisão do mundo em
blocos culturais pré-rotulados.
Em O Choque de Civilizações, Huntington (2010) ignora as
influências culturais mútuas, onde diferentes culturas absorvem
elementos umas das outras. Ignora, também, que alguns países são
próximos culturalmente de um bloco, mas religiosamente de outro,
como é o caso do Paquistão, que foi desmembrado da Índia logo
após a sua independência da Inglaterra, para ser o lar dos indianos
muçulmanos, que queriam separar-se da Índia, país de maioria hindu.
Apesar da quase totalidade da população paquistanesa seguir o
islamismo, sua cultura é intrinsecamente ligada à indiana: o idioma
nacional paquistanês é o urdu, uma variação do idioma mais utilizado
pelos indianos, o hindi. Também as vestimentas paquistanesas, sua
comida, sua arquitetura e seu modo de vida são muito mais próximos
aos indianos do que dos países árabe-muçulmanos (KIMCHE, 1990).
Os países de maioria muçulmana, agrupados em um mesmo
bloco pelo autor, espalham-se por três continentes – África, Ásia e
Europa, têm climas tão variados como desertos escaldantes e cidades
cobertas de neve, economias de modelo liberal e socialista, estados
religiosos e laicos, sistemas jurídicos mais ou menos influenciados
por regras religiosas, idiomas extremamente variados – árabe, turco,
persa, urdu, indonésio – e proximidades culturais muito diversas,
como a cultura paquistanesa, sendo próxima da indiana, e a indonésia,
sendo uma curiosa mistura das culturas chinesa e indiana, contando,
obviamente, com elementos próprios.
Mesmo dentro dos grupos de países árabes (que se diferenciam
culturalmente dos demais países de maioria islâmica) há diversas
diferenças culturais, como, por exemplo, a Síria, que já foi
culturalmente grega, romana e depois passou por domínio francês
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(que inclusive influenciou todo o seu sistema legislativo); e a Arábia
Saudita, país que esteve pouco exposto a colonizações estrangeiras
(HOURANI, 1994).
O Egito é um caso emblemático: quando da sua independência
da Inglaterra, um comitê de intelectuais egípcios foi convocado para
decidir qual era a herança cultural do país, se árabe ou não; sendo que
o comitê concluiu que a cultura egípcia era tripartite, fruto da junção
da cultura egípcia antiga dos faraós, da cultura árabe e da cultura
internacional em geral.
Dois dos principais partidos políticos que pregam a união
de países árabes são o Renascimento (Baath) e o Partido Social
Nacionalista Sírio (Hizb As-Souri Al-Qawmi Al-Ijtima’i), sendo que
nenhum dos dois foi fundado por árabes muçulmanos, e sim por
árabes cristãos: o primeiro pelo cristão ortodoxo sírio Michel Aflaq,
e o segundo pelo libanês também cristão ortodoxo Anton Saadeh.
Por fim, comprovando a heterogeneidade de grupos identificados
como únicos, os bósnios e albaneses são um povo europeu de religião
muçulmana e culturalmente eslavos, lembrando ao mundo que, na
Europa, as tradições cristã e muçulmana podem se fundir, sendo
absurdamente simplista a divisão Oriente e Ocidente, principalmente
quando apontadas como civilizações rivais (HOURANI, 1994).
4 AS UTILIDADES LEGITIMADORAS DE TAIS
CONCEITOS
Separar o mundo em Oriente e Ocidente não é uma simplificação
inocente. Trata-se de verdadeira ferramenta geopolítica, legitimadora
da invasão de países por outros. Os povos atrasados e incivilizados
precisariam da ajuda dos povos avançados e civilizados fazendo-lhes
quase que o favor de tirar-lhes da escuridão.
Este foi um dos argumentos utilizados para justificar o tráfico
negreiro, a morte de índios nas Américas, o colonialismo na África e
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Ásia, o apartheid na África do Sul, a expulsão de palestinos e a invasão
americana do Afeganistão e Iraque.
Atualmente, o islamismo é apresentado como uma religião
violenta, antidemocrática e perseguidora de mulheres, o que se
comprovaria pela existência de grupos que, na verdade, é uma pequena
minoria e não representam os cânones da religião. Concluem, por
exemplo, que, se a Al Qaeda viola os direitos femininos, é porque o
islamismo inteiro adota tal posicionamento.
Partindo dessa mesma lógica, e considerando que o Brasil é
um país onde existe um elevado índice de violência contra a mulher
- daí a necessidade da criação de uma lei específica que a combatesse,
chamada de Maria da Penha, seria correto afirmarmos que, sendo
o Brasil um país cristão, o cristianismo é essencialmente violento
contra a mulher?
A tentativa de caracterizar o islamismo como uma “civilização
anticristã”, cultuadora de um “deus diferente”, ou uma religião
essencialmente violenta, tem origens políticas: serve para a
desumanização dos muçulmanos, o que automaticamente legitima a
invasão dos seus países e a negativa dos seus direitos. A ideia oculta
é que os Direitos Humanos valem para seres humanos, e como os
muçulmanos são tão diferentes de nós - novamente a dicotomia nós
e eles, isso desfigura a sua humanidade, privando-lhes dos direitos
correspondentes.
Isso não é um fato novo. Durante as cruzadas, europeus
chegavam à Palestina e, atônitos, escreviam para casa dizendo que
foram enviados para matar muçulmanos com “chifres e rabo”, mas,
ao chegar ali, tudo o que encontravam eram homens e mulheres, não
demônios.
O historiador inglês Bernard Lewis, orientalista consultor da
Casa Branca para assuntos do Oriente Médio, entusiasta da recente
invasão bélica americana no Iraque, faz uma releitura dos cânones
orientalistas, ao pregar o que vê como a “necessária invasão americana
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a países árabes, para levar a superioridade cultural ocidental ao bárbaro
mundo oriental”, fazendo da já antiga utilização da mentalidade nós e
eles um motor ideológico geopolítico (LEWIS, 2002).
Enquanto os muçulmanos detiverem as maiores reservas
de petróleo do mundo e, enquanto o petróleo for essencial para a
indústria, eles continuarão sendo retratados com “chifres e rabos”,
como inimigos incansáveis a serem combatidos com fúria. Quem
sabe de que forma o mundo irá caracterizar os brasileiros no futuro,
se nossas reservas de água doce forem disputadas por potências
internacionais? Decerto deixaremos de ser o povo do “samba e da
amizade”, e logo ganharemos também chifres, rabos e odor a enxofre.
REFERÊNCIAS
ATTIE FILHO, Miguel. Falsafa - A Filosofia Entre os Árabes. São Paulo:
Palas Athena, 2002.
A TV que se faz no mundo. Rio de Janeiro: TV BRASIL, 06 de setembro de
2013. Programa de TV.
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2003.
GALEANO, Eduardo. As Veias Abertas da América Latina. São Paulo:
LP&M, 2010.
GANDHI, Mohandas Karamchand. Minha Vida e Minhas Experiências com
a Verdade.
HOURANI, Albert Habib. Uma História dos Povos Árabes. São Paulo: Companhia da Letras, 1994.
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LEWIS, Bernard. Time for Toppling. Disponível em: http://online.wsj.com/
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